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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA
ESCOLA DE MÚSICA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM MÚSICA
ODETTE ERNEST DIAS: discursos sobre uma perspectiva pedagógica da flauta
RAUL COSTA d’AVILA
SALVADOR 2009
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RAUL COSTA d’AVILA
ODETTE ERNEST DIAS: discursos sobre uma perspectiva pedagógica da flauta
Tese a ser apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Música, Escola de Música, Universidade Federal da Bahia, como requisito parcial da obtenção do grau de Doutor em Música. Área de Concentração: Execução Musical / Flauta Transversal Orientador: Prof. Dr. Lucas Robatto Co-Orientador: Prof. Dr. Joel Barbosa
Salvador 2009
iii
Costa d’Avila, Raul C837 ODETTE ERNEST DIAS: discursos sobre uma perspectiva pedagógica da flauta / Raul Costa d’Avila. – 2009.
XIII, 239 p. : il. Orientador: Prof. Dr. Lucas Robatto. Co-Orientador: Prof. Dr. Joel Luis da Silva Barbosa. Tese (Doutorado) – Universidade Federal da Bahia. Escola de Música. 2009.
1. – Flauta Transversal - Prática de ensino. 2. Dias, Odette
Ernest 3. – Instrumentos de sopro – Flauta Transversal. 4. – Pedagogia diferenciada – Flauta Transversal. 5. – Musica – Instrução e estudo – Flauta. 6. – Músicos – Formação profissional. I. Robatto, Lucas. II. Universidade Federal da Bahia. Escola de Música. III. Título.
CDD 784.8
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© Copyright by Raul Costa d’Avila
Março, 2009
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TERMO DE APROVAÇÃO
RAUL COSTA d’AVILA
ODETTE ERNEST DIAS: discursos sobre uma perspectiva pedagógica da flauta
Tese aprovada como requisito parcial para a obtenção do grau de Doutor em Música, Universidade Federal da Bahia, pela se- guinte banca examinadora:
Salvador, 07 de abril de 2009
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À Lulude e Theo, minha mulher e nosso filho, que conviveram intensamente comigo neste mergulho, minha gratidão.
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“O problema não é inventar. É ser inventado hora após hora e nunca fica pronta nossa edição convincente”
Carlos Drummod de Andrade
viii
SUMÁRIO
Introdução _______________________________________________________________ 1
Capítulo I ________________________________________________________________ 5
1. Objetivos e metodologia _______________________________________________ 5
1.1 Introdução: problema e objetivo _______________________________________ 5
1.2 Abordagem Qualitativa_______________________________________________ 8
1.3 Delimitação da pesquisa e perspectiva histórica ________________________ 10
1.4 Estudo de Caso _____________________________________________________ 11
1.5 História oral temática como técnica ___________________________________ 12
1.6 Etapas do desenvolvimento da pesquisa _______________________________ 14 1.6.1 Instrumentos de coleta de dados sobre Odette____________________________ 14 1.6.2 Instrumentos de coleta de dados sobre os ex-alunos _______________________ 17 1.6.3 Instrumentos de coleta de dados dos ex-alunos ___________________________ 18
1.6.3.1 Processo de elaboração das perguntas_______________________________ 19 1.6.3.2 Transcrição das entrevistas ______________________________________ 21
1.7 Análise dos documentos e elaboração do inventário de tópicos___________ 22
Capítulo II ______________________________________________________________ 25
2. Fundamentação teórica _______________________________________________ 25
2.1 Abordagens pedagógicas: a diversidade como ponto de partida __________ 29 2.1.1 A Pedagogia Libertadora de Paulo Freire _______________________________ 34 2.1.2 Outras considerações sobre o ensino ___________________________________ 37
2.2 Práticas de ensino de música investigadas _____________________________ 40
2.3 Abordagens pedagógicas no ensino de instrumentos____________________ 47 2.3.1 Modelos de ensino de instrumentos ___________________________________ 48 2.3.2 A técnica pura versus a expressão musical ______________________________ 51
2.4 Práticas de ensino da flauta transversal no Brasil _______________________ 54
Capítulo III______________________________________________________________ 62
3. Odette: percurso e discurso ____________________________________________ 62
3.1 Relativismo cultural e visão de mundo ________________________________ 63
3.2 O legado de seus professores _________________________________________ 67 3.2.1 O respeito à expressão de cada um ____________________________________ 70
3.3 Comportamentos e “métodos” de ensino ______________________________ 71 3.3.1 Considerações sobre técnica__________________________________________ 73 3.3.2 O essencial no estudo da flauta _______________________________________ 74
3.4 Resultados de seu ensino ____________________________________________ 75
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Capítulo IV ______________________________________________________________ 78
4. Discursos dos ex-alunos ________________________________________________ 78
4.1 Descrições__________________________________________________________ 78 4.1.1 A propósito das aulas_______________________________________________ 80 4.1.2 Sobre o repertório__________________________________________________ 95 4.1.3 Abordagem interpretativa __________________________________________ 110 4.1.4 Abordagens técnicas ______________________________________________ 119
4.2 Análises __________________________________________________________ 131 4.2.1 Legados recebidos e transmitidos_____________________________________ 132
5. Discurso aberto... Raul ________________________________________________ 140
6. Referências bibliográficas______________________________________________ 144
7. Anexos _______________________________________________________________ 152
7.1 Anexo I: Documentos referentes à metodologia________________________ 152 7.1.1 Relação dos ex-alunos da UnB Anexos ________________________________ 152 7.1.2 Segunda relação dos ex-alunos da UnB________________________________ 154 7.1.3 Perguntas elaboradas aos ex-alunos __________________________________ 156 7.1.4 Termo de autorização à Odette ______________________________________ 162 7.1.5 Termo de autorização aos ex-alunos __________________________________ 163 7.1.6 Sumário do inventário de tópicos ____________________________________ 164
7.2 Anexo II: Cartas e entrevista de Odette _______________________________ 166 7.2.1 Carta de outubro de 2008 __________________________________________ 166 7.2.2 Carta de abril de 2008 _____________________________________________ 168 7.2.3 Carta de julho de 2007_____________________________________________ 171 7.2.4 Entrevista de janeiro de 2006 _______________________________________ 176 7.2.5 Carta de abril de 2005 _____________________________________________ 179 7.2.6 Carta de junho de 2003 ____________________________________________ 188
7.3 Anexo III: Discografia de Odette_____________________________________ 211
7.4 Anexo III: Relação das composições dedicadas à Odette ________________ 216
7.5 Anexo IV: Títulos de artigos e publicações ____________________________ 217
7.6 Anexo VI: Diplomas recebidos ______________________________________ 219 7.6.1 Primeiro Prêmio em Flauta / Conservatório Nacional de Paris, 1951 ________ 219 7.6.2 Concurso de Genebra, 1951_________________________________________ 221 7.6.3 Título de “Chevalier de l’ordre des arts et des lettres” ____________________ 223
7.7 Anexo VII: Ementas das disciplinas __________________________________ 224 7.7.1 Flauta I ________________________________________________________ 224 7.7.2 Flauta II ________________________________________________________ 226 7.7.3 Flauta III _______________________________________________________ 228 7.7.4 Flauta IV _______________________________________________________ 230 7.7.5 Flauta V________________________________________________________ 232 7.7.6 Flauta VI _______________________________________________________ 234 7.7.7 Flauta VII ______________________________________________________ 236 7.7.8 Flauta VIII______________________________________________________ 238
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Agradecimentos Aos Professores Lucas Robatto (Orientador) e Joel Barbosa (Co-Orientador)
À Professora Marie Thérèse Odette Ernest Dias
Aos flautistas: Andréa Ernest Dias, Ariadne Paixão, Cláudia Castro, Davson de Souza, José
Antonio Alves, José Benedito Viana Gomes, José Evangelista da Silva Júnior, Maria
Elizabeth Ernest Dias, Nivaldo Francisco de Souza, Luciana Morato, Madelon Guimarães,
Maura Lúcia Fernandes Penna, Patrícia Cyriaco, Paulo Magno Borges, Sidnei da Costa Maia,
Sérgio Azra Barrenechea, Silvana Maria Sócrates Teixeira
Ao Programa de Pós-Graduação em Música (PPGMUS) da Escola de Música da UFBA,
Professores e Funcionários
Aos meus pais, Milton de Abreu d’Avila e Maria Salomé Costa d’Avila
À Universidade Federal de Pelotas
À Pró-Reitoria de Pesquisa e Pós-Graduação da UFPel
Ao Departamento de Canto e Instrumento, Conservatório de Música / UFPel
À CAPES
Ao Prof. Mario Ulloa
Ao Prof. Paulo Costa Lima
Aos Professores convidados, Magda Floriana Damiani e Artur Andrés Ribeiro
À Nancy Maria Mendes
À Angela Costa d’Avila
À Rejane Harder e ao Sandro Machado
À Elena Rodrigues, Rita Teixeira, Andréa Bandeira e Tuzé Abreu
À Eliane Maria de Abreu e Marta Cardoso Castello Branco Garzon
Ao Tota Portela, Teca Gondim, Cláudia Salles, Vinicius Fraga, “Seu” Carôso, Flavia
Candussu, Celso Benedito, Di Silva, Marcellino Moreno, Eugênio Lima, João Carlos Vitor,
Saulo Gama, Antonio Carlos Guimarães, Cláudia Schreiner, Ricardo Mello, Flávio de
Queiroz, “Seu” Espinheira, Robson Barreto, Carlos Chenaud, Gabriel Victora, Flávio
Hamaoka, Dennis Leoni, Fábio Queiroz, Clara Rodrigues e Antonio Limongi.
Aos amigos que convivi em Salvador, especialmente na Escola de Música da UFBA, “Sarau”
do João Américo, da “Roda de Choro do Vila Velha” e “Bar do Chico I”.
Às Filarmônicas do Recôncavo que tive o privilégio de assistir, através de Fred Dantas.
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Resumo
Esta tese teve o propósito de investigar e delinear a pedagogia da flauta transversal
desenvolvida por Odette Ernest Dias, entre os anos de 1974 a 1994, período em que atuou como
docente da Universidade de Brasília. Nome de relevância para a história artístico-pedagógica da
flauta transversal no Brasil, ela exerceu uma influência expressiva sobre o comportamento de seus
alunos, tornando-os profissionais caracterizados pela diversidade, enquanto flautistas, e pela
comunhão de sentimentos, linha de pensamento e atuação, enquanto professores.
Foi desenvolvida em quatro capítulos: I. Objetivos e metodologia; II. Fundamentação
teórica; III. Odette: percurso e discurso; IV. Discursos dos ex-alunos. Em substituição à tradicional
conclusão, apresento meu Discurso aberto.
A pesquisa me proporcionou uma reflexão intensa sobre uma pedagogia criticada por não
ensinar “técnica pura”. Procurei resgatar e formalizar informações relevantes sobre um processo de
educação em constantes transformações e mutações, centrado no indivíduo, e em suas origens.
Constatei uma perspectiva pedagógica composta por respeito, flexibilidade, expressão própria,
emoção, provocação, motivação, integridade com o aluno, diálogo, humildade, tolerância, tato
pedagógico, interação com contexto, e incentivo ao questionamento, componentes que, além de
marcantes na vida de seus ex-alunos, estão sendo transmitidos, através deles, às novas gerações de
flautistas.
Para desenvolvê-la contei com o apoio incondicional de Odette — formalizado através de
cartas, muitas conversas e uma entrevista; também houve o total apoio de ex-alunos seus —
manifestado através de e-mails, contatos pessoais e entrevistas. Além disso, fundamentei-me em
autores da área de Educação, Educação Musical e Ciências Sociais, para que fosse estabelecido o
diálogo entre os vários discursos recolhidos.
xii
Abstract
The aim of the present thesis was to investigate and outline the flute pedagogy developed by
Odette Ernest Dias between 1974 and 1994, when she taught at the Universidade de Brasília. An
important figure in the artistic-pedagogical history of Brazilian flute performance, Odette had a
marked influence on the behavior of her students, who were characterized by their diversity as
flautists and by their communion of feelings, thought processes, and activity as teachers.
This thesis comprises four chapters: I. Objectives and methodology; II. Theoretical bases;
III. Odette: trajectory and discourse; and IV. Discourses of former students. As a substitute to the
traditional conclusion, I present an open Discourse.
The research process allowed for an intense reflection on a pedagogical approach
criticized for not teaching “pure technique.” I attempted to retrieve and formalize relevant
information on an educational process under constant transformation and mutation, centered
on the individual and his or her origins. I have encountered a pedagogical perspective based
on respect, flexibility, self expression, emotion, provocation, motivation, integrity with
the students, dialogue, humility, tolerance, pedagogical tact, interaction with context,
and encouragement to questioning, components that, in addition to their significance to the
life of her former students, are being transmitted, through them, to the new generations of
flutists.
While developing this thesis, I received the unconditional support of Odette herself — in the
form of letters, frequent conversations, and an interview. I also received complete support from
former students — through e-mail correspondence, personal contact, and interviews. In addition, my
work was based on literature in the fields of Education, Musical Education, and the Social Sciences,
as an attempt to establish a dialog between the various discourses I collected.
xiii
Résumé
Le propos de cette thèse était de faire une enquête et tracer un contour sur la pédagogie
développée par la flûtiste Odette Ernest Dias, entre les années 1974 à 1994, période ou elle a
été enseignante à l'Université de Brasilia. Nom de relièf de l'histoire artistique et pédagogique
de la flûte traversière au Brésil, elle a eu une influence significative sur le comportement de
sés élèves, les rendant des professionnels qui ont la caractéristique d´être très divers comme
flûtistes, d´avoir la communion de sentiments, de pensée et d'action, en tant que professeurs.
La thèse a été développée en quatre chapitres: I. Objectifs et méthodologie II. Bases
théoriques, III. Odette: parcours et parole; IV. Discours des anciens étudiants. En remplaçant
la traditionnelle conclusion, je présente mon discours ouvert.
La recherche m'a proportionné une réflexion intense sur une pédagogie objet de
critiques pour ne pas enseigner de la “technique pure". J´ai tenté récupérer et formalizer
d’importantes informations sur un processus d'éducation sujet à de constants transformations,
centré sur l’individu et ses origines. J’ai constaté une perspective pédagogique faite de
respect, flexibilité, expression personnelle, émotion, provocation, motivation, intégrité en
relation à l’éleve, dialogue, humilité, tolerance, tact pédagogique, action intégrée, et
débat, elements qui, determinants dans la vie de se anciens éleves, sout transmis par eux
mesmes á de nouvelles genérations de flûtistes.
Pour la développer, j´ai reçu l´ appui inconditionnel de Odette Ernest Dias —
formalisé au travers de lettres, de beaucoup de conversations et d'un entretien. Il a eu aussi le
pleni soutien de ses anciens élèves — exprimé par des e-mails, contacts et entretiens
individuels. En outre, j´ai fondé ma recherche sur des auteurs du domaine de l'éducation,
l'éducation musicale et des sciences sociales, de façon à établir le dialogue entre les différents
discurs.
1
Introdução
Ao assumir a cadeira de flauta transversal da Universidade Federal de Pelotas, RS, em
janeiro de 1990, o impacto em minha vida pessoal e profissional foi imenso. Natural de Minas
Gerais, fatores como costumes e clima, aliados à distância geográfica dos referenciais onde
fui criado, dificultaram bastante meu processo de adaptação. Aliado a isso, o meio musical
também interferiu significativamente no processo, uma vez que em Belo Horizonte desfrutava
de um ambiente musical efervescente1, contrapondo-se à realidade vivenciada em Pelotas na
época. Além disso, passei a receber o tratamento de “senhor”, o que dispensava, mas nem
sempre ocorria, significando, entre outras coisas, o reconhecimento de uma autoridade.
Assim, fui me tornando “autoridade” e, conseqüentemente, referencial aos meus alunos e à
instituição, com os quais passei a conviver em clima de muito respeito e consideração, apesar
da dificuldade.
Se o processo de adaptação não foi fácil, o fato de estar isolado de meus referenciais
proporcionou-me intensas reflexões pedagógicas. Com essas veio-me a oportunidade de
conhecer melhor os alunos e a nova realidade em que vivia, possibilitando-me criar e
desenvolver muitas atividades de natureza artístico-pedagógicas. Nesse processo de
descobertas, angústias, desafios e crescimento, sempre se faziam presentes muitas
recorrências às aulas de meu professor do curso de bacharelado na Escola de Música da
UFMG, Expedito Vianna, e também aquelas ministradas por professores de cursos de férias e
master class de que participei como estudante. Se em alguns momentos as recorrências eram
acertadas, trazendo soluções às minhas dúvidas nas ações pedagógicas, em outros eram 1 Master class com professores nacionais e estrangeiros, concertos e recitais com solistas nacionais e estrangeiros, orquestras renomadas, intensa participação em grupos de câmara (trio de flauta, violoncelo e piano; duo de flauta e piano; quarteto de flautas); concursos de música de câmara; participação em Ciclos de Música Contemporânea, freqüência constante aos concertos realizados pela Orquestra Sinfônica de Minas Gerais, entre outros.
2
insuficientes, pois, a cada momento, deparava-me alguma situação nova, uma necessidade
específica, demandando muita habilidade para atuar de forma adequada em circunstâncias
complexas e delicadas. Assim, fui iniciando minha vida profissional de músico, na qualidade
de professor de flauta transversal, pesquisando, refletindo e experimentando fundamentos e
procedimentos para uma práxis ora mais, ora menos satisfatória, com o intuito de oferecer aos
meus alunos subsídios técnico-musicais que os motivassem e qualificasse cada um deles.
Uma lembrança muito significativa que guardo deste período foram os telefonemas à
Odette Ernest Dias em Brasília, com a intenção de obter orientações, aconselhamentos
pedagógicos. Ainda que não tenha sido seu aluno na Universidade de Brasília, acompanhava
as atividades da professora desde a década de 80, quando a conheci em 1982, no Clube do
Choro de Brasília. Desde então, passei a freqüentar com regularidade cursos, master class e
festivais onde a professora estivesse presente. Além disso, também fui com freqüência a
Brasília participar de atividades que a professora organizava, além de desfrutar gratuitamente
de aulas particulares em sua própria residência.
Nesse processo de observação, aprendizado, assimilação, foi se consolidando uma
amizade e, naturalmente, a professora foi se tornando meu modelo profissional. Assim,
sempre que possível, passamos a nos encontrar para vivenciarmos e discutirmos questões
pertinentes à música, à flauta, a apresentações públicas, à pedagogia do instrumento, ao
mercado de trabalho, entre outros temas. Dos memoráveis encontros que tivemos, cabe
destacar o I e II Encontros de Flautistas realizados no Santuário do Caraça (MG), em 1991 e
1993, e também o I Encontro de Músicos em Bom Jardim (RJ), em 1998.
Como frutos dessa convivência, foram desenvolvidos e publicados dois trabalhos de
natureza pedagógica: “Flauta Transversa – Método Elementar”, de Pierre-Yves Artaud2,
2 Flautista francês (1946), estudou flauta em Versailles com Roger Bourdin (1965-1966) e no Conservatoire National Supérieur de Musique de Paris, com Gaston Crunelle e Christian Larde (1969 – 1970). Primeiro prêmio em flauta (1969) e Música de Câmara (1970) no CNSM. Especializou-se em música contemporânea; autor de
3
publicado pela Editora da UnB em 1996, cuja tradução foi feita por mim com a parceria da
Profª Carmen Cynira Otero Gonçalves. Tivemos o apoio incondicional da Profª Odette; o
outro foi o livro “A Articulação na Flauta Transversal Moderna — uma abordagem histórica,
suas transformações, técnicas e utilização”, publicado pela Editora da Universidade Federal
de Pelotas em 2004. Esta última pesquisa tinha sido concluída em 2000, como dissertação do
meu curso de mestrado.
Em 2002, ao acompanhar as atividades artístico-pedagógicas da professora durante o
“13º Festival Internacional de Música Colonial Brasileira e Música Antiga” (Juiz de Fora /
MG), elaborei uma entrevista como forma de celebrar seus 50 anos de vida profissional no
Brasil, concretizada e publicada no ano seguinte através do PATTAPIO nº22, informativo da
Associação Brasileira de Flautistas (ABRAF). Essa entrevista, com um conteúdo amplo sobre
sua vida pessoal e profissional, foi decisiva na escolha do tema de investigação ao elaborar
meu pré-projeto ao Programa de Pós-Graduação da Escola de Música da UFBA. Percebi
como seria relevante — devido ao conteúdo das respostas3 envolverem importantes questões
de natureza pedagógica — desenvolver uma pesquisa sobre sua maneira de ensinar. Somado a
isto, a importância de Odette à história artístico-pedagógica da flauta no Brasil e também pela
ausência de pesquisas nesse campo.
Assim, considerando este campo de pesquisa ainda bastante carente nos Programas de
Pós-Graduação em Música (PPGMUS) das instituições brasileiras, conforme será mostrado
mais detalhadamente no capítulo I (Objetivos e metodologia), esta pesquisa aspirou, além de
trazer uma discussão crítica sobre uma prática de ensino da flauta desenvolvida por uma
conceituada flautista e professora, registrar e perpetuar por escrito uma práxis, uma maneira
de ensinar, ou, mais nomeadamente, uma perspectiva pedagógica. Deseja ser uma colaboração
trabalhos publicados, entre eles La flûte (1986), Pour La Flûte Traversière – Méthode Élémentaire (1972/1989), e A Propos de Pédagogie (1996). 3 Este documento está no Anexo II, subtópico 7.2.6, p. 188, contendo muitas informações de natureza pessoal e profissional. Para maiores informações sobre a história de vida de Odette, sugiro consultá-lo.
4
para o preenchimento de uma lacuna dos PPGMUS, uma vez que grande parte dos professores
de instrumentos ou pesquisadores instrumentistas, se considerarem mais adequado, ainda não
consideram a pesquisa sistemática sobre o ensino de instrumento, no dia-a-dia da sala de aula,
como uma prática investigativa pertencente ao seu campo de ação, conforme nos lembra
Cristina Tourinho4.
Desse modo, optando pela investigação da perspectiva pedagógica de Odette Ernest
Dias como objeto de estudo — especificamente durante o período em que ela atuou como
docente da Universidade de Brasília (1974 a 1994) —, apresento esta pesquisa. Nela procuro
ser bastante escrupuloso, contando, além do apoio integral da própria professora, com adesão
de seus ex-alunos e, naturalmente, com um respaldo bibliográfico envolvendo áreas da
Execução Musical, Educação Musical, Educação e Ciências Sociais. Tal proposta, ainda que
inquietante, por apresentar perspectivas multifacetadas, encontra respaldo no discurso de um
dos grandes pensadores e filósofos contemporâneos, Paul Feyerabend, ao declarar: “A
pluralidade de opinião é necessária para o conhecimento objetivo, e um método que fomente a
pluralidade é, além disso, o único método compatível com uma perspectiva humanista5”
(FEYERABEND, s/d, p. 23).
4 Professora Adjunta da Escola de Música da Universidade Federal da Bahia e Coordenadora Pedagógica das "Oficinas de Violão" da Escola de Música da UFBa (1989, 1994 e 2001-2005). Mestre e Doutora em Música (Educação Musical) pela UFBA, tendo sido orientada pela Profª Dra. Alda Oliveira. Atualmente está como coordenadora do PPGMUS-UFBA. 5 La pluralidad de opinión es necesaria para el conocimiento objetivo, y un método que fomente la pluralidad es, además, el único método compatible con una perspectiva humanista. FEYERABEND (s/d, p. 23, tradução minha)
5
Capítulo I
1. Objetivos e metodologia
1.1 Introdução: problema e objetivo
Detentora de um currículo de grande relevância à história da flauta transversal no
Brasil, Odette Ernest Dias, francesa, naturalizada brasileira, tem uma importante participação
no processo de formação de um número muito grande de flautistas no Brasil desde 1952,
quando chegou para integrar-se à Orquestra Sinfônica Brasileira a convite do Maestro Eleazar
de Carvalho.
Além de lecionar na Universidade de Brasília (1974 a 1994), onde foi responsável
pela formação de um significativo número de flautistas6 que vêm atuando no cenário musical
local, nacional e internacional, lecionou ainda no Conservatório Brasileiro de Música, na Pró-
Arte, ambos no Rio de Janeiro, em cursos e festivais de música realizados em cidades como
Ouro Preto (MG), Diamantina (MG), Belo Horizonte (MG), São João del Rei (MG), Curitiba
(PR), Brasília (DF), Montenegro (RS), Belém (PA), Recife (PE), Juiz de Fora (MG),
Vassouras (RJ), Pelotas (RS), Campos do Jordão (SP), Fortaleza (CE), Goiânia (GO),
Uberlândia (MG), Teresópolis (RJ), entre outras.
Embora tenha formado um significativo número de alunos, em um momento de
profunda reflexão sobre sua maneira de ensinar ela se questiona, filosofa e depois declara:
6 Conforme Anexo I, subtópicos 7.1.1 e 7.1.2, p. 152 e 154.
6
- eu saberia ensinar? - não sou infalível. - sou alvo de críticas (por ex: não ensino técnica pura) - para mim técnica é inseparável da arte “τεχυη” techné (grego) significa arte – fazer. A técnica é inseparável da musicalidade, da sensibilidade, da emoção. ex: a beleza do estudo das notas longas, das escalas, acordes, intervalos; - eu aprendo ensinando. Meu sistema, se é que existe, é justamente a ausência de sistema – ainda mais aqui no Brasil, onde a experiência individual é básica, diferenciada, por isso mesmo riquíssima. Isso pede o maior respeito. (DIAS, 2005, p. 2, grifo meu)
Se as reflexões de Odette suscitaram um problema, elas também deixam transparecer a
natureza inquietante dela, sua inconclusão7, dodiscência8 e o respeito aos alunos, tanto às suas
origens quanto à sua expressão individual. Diante do questionamento e filosofar da
professora, reflexo do seu estar atenta às críticas a que foi submetida e das quais ainda
continua sendo alvo9, e também de sua inconclusão, a professora formou um significativo
número de profissionais. Eles podem ser caracterizados — a partir da análise das quinze
entrevistas de seus ex-alunos, apresentada no presente trabalho — pela diversidade, quando
focados na condição de flautistas, e pela mesma sintonia de sentimentos, modos de pensar,
agir ou sentir, isto é, pela comunhão, quando focados na condição de professores. Ao longo
dos anos estes profissionais vêm atuando como professores, instrumentistas de orquestras,
bandas, freelancers, multiplicando o número de flautistas, sobretudo em Brasília, realidade
que pode ser comprovada através do número de estudantes formados em flauta pela Escola de
Música de Brasília (EMB), estabelecimento onde atuam e atuaram seus ex-alunos, em um
expressivo número.
7 Conforme FREIRE (1996, p.58), é na inconclusão do ser, que se sabe como tal, que se funda a educação como processo permanente. Mulheres e homens se tornaram educáveis na medida em que se reconheceram inacabados. Não foi a educação que fez mulheres e homens educáveis, mas a consciência de sua inconclusão é que gerou sua educabilidade. 8 Conforme VASCONCELOS e BRITO (2006, p.81) decorrente do ato dialógico de educar, a dodiscência é a docência-discência, o “ensinar aprendendo”. 9 Por não ter ensinado técnica instrumental de maneira metodizada, ou até mesmo pela falta de exigência, sistema ou de um planejamento específico para abordar as questões técnicas, conforme relato nas entrevistas e questionários realizados com os ex-alunos.
7
Diante desta conjuntura, alguns questionamentos vieram à tona na tentativa de
compreender a retórica, a lógica pedagógica da professora, investigando se existe ou não
contradição entre o seu discurso e a realidade. Assim, entre os questionamentos, têm-se:
a) Seria descabida a declaração sobre seu “sistema” de ensino, feita por uma
professora e educadora da importância de Odette?
b) O que Odette transmitiu aos seus alunos?10
Deste modo, visando a desenvolver o objetivo principal da pesquisa ― investigar a
pedagogia de Odette Ernest Dias enquanto docente na UnB, tendo como base os
discursos da professora, de seu ex-alunos e, naturalmente, um respaldo bibliográfico, o
objetivo conseqüente ― estabelecer uma discussão crítica a respeito da pedagogia de
Odette sob a luz de correntes filosóficas, pensamentos, abordagens ou concepções de
ensino que auxiliem na compreensão, na interpretação e, sobretudo, na reflexão crítica
sobre a maneira de ensinar da professora, e também a responder aos questionamentos
expostos, parti para uma criteriosa investigação.
Pelas características naturais da pesquisa, optei por uma abordagem qualitativa,
utilizando-me do estudo de caso como estratégia de investigação, numa perspectiva histórica,
valendo-me ainda da história oral temática como técnica, conforme MEIHY (2005, p.162).
Para isso, as entrevistas colhidas dos ex-alunos da professora foram analisadas e articulados
diálogos com outros documentos, como depoimentos e entrevistas da própria professora.
Além disso, foi consultada uma vasta literatura focada em aspectos pedagógicos e
educacionais, baseada em autores tais como Freire, Aranha, Mizukami, Velho, Saviani, Tait,
Hallam, Santiago, Lima, Homem, Ozzetti, Gimeno Sacristán, Pérez Gómez, Meihy, Oliveira,
Harder, Garbosa, Pacheco, entre outros.
10 Cabe lembrar aqui peculiaridades do seu ensino, como, por exemplo, a sua afirmação – confirmada por muitos alunos – sobre não ensinar técnica “pura”.
8
Face às possibilidades de abrangência de sub-áreas que esta pesquisa pode abranger,
houve a preocupação em direcionar o foco da pesquisa à Execução Musical e à Educação
Musical, contemplando interesses deste pesquisador. Por circunstâncias inelutáveis, também
se estabeleceram diálogos com a Educação e a Antropologia. Inevitavelmente, por focar um
período específico do passado — 1974 a 1994 — a perspectiva histórica, conforme
mencionada, não pode ser descartada uma vez que, conforme Garbosa:
A pesquisa histórica, em educação musical, caracteriza-se pela busca sistemática dos saberes e práticas que nortearam as experiências pedagógico-musicais já vivenciadas, desencadeadas em instituições escolares públicas, privadas, ou conservatórios, bem como em contextos não-formais. Tais investigações podem apresentar, como foco de estudo, o processo de ensino-aprendizagem, envolvendo os elementos musicais propriamente ditos, as atividades de execução, apreciação e composição, bem como os fins, metas, objetivos, materiais didáticos, equipamentos, instalações, procedimentos e o processo de avaliação em música. Da mesma forma, compreende os estudos voltados ao levantamento, análise e registro da trajetória de professores ou personalidades da área. (GARBOSA, 2003, p.129)
1.2 Abordagem Qualitativa
Conforme Vianna (2001, p.122), a pesquisa qualitativa é aquela que envolve
procedimentos diferenciados, isto é, analisa-se cada situação a partir de dados
descritivos, buscando identificar relações, causas, efeitos, conseqüências, opiniões,
significados, categorias e outros aspectos considerados necessários à compreensão da
realidade estudada, envolvendo geralmente múltiplos aspectos. Nesta conjuntura, é
importante ressaltar que, de acordo com Lüdke e André (1986, p. 25), aquilo que cada
pessoa seleciona para “ver” depende muito de sua história pessoal e, principalmente, de sua
bagagem cultural.
Dentro do discurso levantado por Lüdke e André, Pacheco declara que a investigação
qualitativa possibilita uma compreensão melhor do real, ainda que esta seja subjetiva. A este
respeito:
9
[...] a investigação qualitativa proporciona aos investigadores em educação um conhecimento intrínseco aos próprios acontecimentos, possibilitando-lhes uma melhor compreensão do real, com a subjetividade que estará sempre presente; pela conjugação do rigor e da objetividade na recolha, análise e interpretação dos dados. (PACHECO, 1995, p. 17-18, grifo meu)
Bogdan e Biklen apresentam cinco características sobre a investigação
qualitativa que podem assegurar presença integral ou por partes no processo
investigativo, dependendo muito de cada caso. São elas:
1. Na investigação qualitativa a fonte direta de dados é o ambiente natural, constituindo o investigador o instrumento principal; 2. A investigação qualitativa é descritiva; 3. Os investigadores qualitativos interessam-se mais pelo processo do que simplesmente pelos resultados ou produtos; 4. Os investigadores qualitativos tendem a analisar os seus dados de forma indutiva; 5. O significado é de importância vital na abordagem qualitativa. (BOGDAN e BIKLEN, 1994, p. 47-51)
Nesta pesquisa as cinco questões apresentadas permearam o processo
investigativo que envolveu minha análise da reflexão-sobre-a-ação11 apresentada pelos
ex-alunos e pela própria professora. No que diz respeito à primeira questão
apresentada por Bogdan e Biklen, foi fundamental obter informações das principais
fontes: os ex-alunos da professora e, felizmente, a própria professora, viva e atuante,
hoje aos 80 anos; quanto à segunda questão, grande parte dos dados foram descritivos;
à terceira, ainda que seja quase impossível mensurar objetivamente os resultados
pedagógicos em um campo tão subjetivo quanto o das artes, o estudo dos processos de
ensino é muito importante, fundamental; sobre a quarta, não se pretendeu testar qualquer
teoria previamente estabelecida; ao contrário, a análise de dados foi feita de forma indutiva,
procurando contribuir para o processo de “formalização” de uma metodologia ou sistema de
ensino próprio. Na quinta e última característica, os depoimentos diferenciados de cada ex-
aluno foram muito importantes para compor a grande teia analítica sobre a ação realizada pela
11 Termo apresentado por Schön (2000) que, conforme declarou Beineke (2001, p. 90), caracteriza-se pelo pensamento sobre a ação depois que ela já foi concluída, analisando, descrevendo e avaliando a ação passada.
10
professora, pois através de visões diferentes tem-se uma percepção mais abrangente da
pedagogia utilizada pela professora.
1.3 Delimitação da pesquisa e perspectiva histórica
A pesquisa restringiu-se ao período em que Odette atuou como docente no
Departamento de Música do Instituto de Artes da Universidade de Brasília (UnB), período
este que compreende os anos de 1974 a 1994. A escolha deste período deveu-se basicamente
ao princípio fundamental: “quanto mais se restringe o campo, melhor e com mais segurança
se trabalha” (ECO, 1995, p.10). Cabe ressaltar que o último ano que Odette atuou em sala de
aula como docente ativa da instituição foi 1992.
Como flautista, professor universitário e admirador da atuação artístico-pedagógica de
Odette, tive muito interesse em delimitar esta pesquisa no contexto universitário. A
possibilidade de investigar o sistema de ensino de uma professora de flauta, além de um
exercício de reflexão e aprendizado, implica também o registro documentado do legado de
uma professora de instrumento, linha de pesquisa numericamente pouco expressiva no
contexto das pesquisas desenvolvidas nos Programas de Pós-Graduação em Música das
instituições brasileiras.
Quanto à perspectiva histórica, por tratar-se de uma pesquisa que busca resgatar fatos,
experiências, práticas pedagógicas e princípios que nortearam a ação pedagógica de Odette
num período específico do passado, foi pertinente contextualizar a pesquisa neste âmbito. É
importante ressaltar ainda, conforme Garbosa (2003, p. 128) argumenta com propriedade, a
importância de um estudo do entorno, uma vez que o foco da pesquisa se processa em um
contexto cultural, influenciado por acontecimentos sociais, políticos, científicos e
tecnológicos da época. De acordo com Wiersma “a pesquisa histórica é um processo
sistemático de descrição, análise e interpretação do passado baseado em informações de
11
fontes selecionadas relativas ao tópico estudado” (WIERSMA,1991, p. 203 apud GARBOSA,
2003, p.128).
1.4 Estudo de Caso
Tendo como objetivo principal investigar o sistema de ensino de Odette Ernest Dias
no ensino da flauta na UnB, a pedagogia da professora foi definida como objeto de estudo.
Assim a utilização do estudo de caso como estratégia de investigação torna-se um artifício
adequado, uma vez que, segundo Stake, “o estudo de caso não é uma escolha metodológica,
mas uma escolha do objeto a ser estudado” (STAKE, 1994, p. 236 apud GARBOSA, 2001, p.
44).
Segundo Merriam12, “o estudo de caso consiste na observação detalhada de um
contexto, ou indivíduo, de uma única fonte de documentos ou de um acontecimento
específico” (MERRIAM, 1988 apud BOGDAN e BIKLEN, 1994, p.89). O estudo de caso
histórico, conforme Garbosa, “[...] é um dos tipos de investigação processados em educação,
cujas técnicas e procedimentos de pesquisa empregados são similares aos da historiografia”
GARBOSA (2001 p.45). Ainda nesta direção, Garbosa declara que a utilização de fontes
primárias, que constituem o conjunto principal de dados, é o que caracteriza o processo
investigativo. Garbosa (ibid) menciona também Merriam afirmando que “os estudos de caso
históricos têm tendido a descrever instituições, programas, e práticas pedagógicas da maneira
como elas têm se processado durante o tempo, envolvendo não somente a história
cronológica, mas o conhecimento do contexto e de seus participantes” (MERRIAM, 1988,
apud GARBOSA, 2001, p.24), o que naturalmente contempla o propósito desta pesquisa.
12 MERRIAM, S. B (1988) The case study research in education. San Francisco: Jossey-Bass.
12
De acordo com Lüdke e André, o estudo de caso pode ser simples, envolvendo o
caso específico de uma professora competente, ou complexo e abstrato, como, por
exemplo, o estudo sobre classes de alfabetização. A este respeito elas declaram:
[...] é o estudo de um caso, seja ele simples e específico, como o de uma professora competente de uma escola pública, ou complexo e abstrato, como os das classes de alfabetização (CA) ou o do ensino noturno. O caso é sempre bem delimitado, devendo ter seus contornos claramente definidos no desenrolar do estudo. O caso pode ser similar a outros, mas é ao mesmo tempo distinto, pois tem um interesse próprio, singular. (LÜDKE e ANDRÉ, 1986, p.17)
Merriam13 identifica quatro propriedades essenciais nesta forma de pesquisa
(MERRIAM, 1988 apud BRUNHEIRA, 2000, p.70), que procurei levar em consideração. São
elas: (1) e (2) o seu caráter descritivo e indutivo, que se coaduna com uma abordagem
qualitativa; (3) o seu particularismo, por se focar na especificidade de uma situação ou
identidade; (4) a sua natureza heurística, por levar à compreensão do fenômeno em estudo.
1.5 História oral temática como técnica
Antes de abordar especificamente a história oral temática, é importante acercar-se
brevemente da história oral. Segundo Ferreira e Amado (2002), embora tenha sido introduzida
no Brasil nos anos 70, somente no início dos anos 90 ela experimentou uma expansão mais
significativa, através dos diversos seminários e também da incorporação desta modalidade de
pesquisa nos programas de pós-graduação. As autoras ainda argumentam: “Poucas áreas,
atualmente, têm esclarecido melhor que a história oral o quanto a pesquisa empírica de campo
e a reflexão teórico-metodológica estão indissociavelmente interligadas [...]” (FERREIRA e
AMADO, 2002, p. xi).
Para Meihy (2005) qualquer conceituação fechada de história oral é discutível, uma
vez que além de ser uma prática dinâmica e criativa, ela é renovada pelo uso de aparelhos 13 MERRIAM, S. (1988) Case study research in education: A qualitative approach. São Francisco: Jossey-Bass.
13
eletrônicos e com fundamentação moderna. Assim sendo, o autor apresenta cinco conceitos
que, no seu entender, possibilitam uma melhor compreensão para o termo. Entre eles, destaco
dois:
(1) História oral é uma prática de apreensão de narrativas feita através do uso de meios eletrônicos e destinada a recolher testemunhos, promover análises de processos sociais do presente e facilitar o conhecimento do meio imediato. [...] (4) História oral é uma alternativa para estudar a sociedade por meio de uma documentação feita com o uso de depoimentos gravados em aparelhos eletrônicos e transformados em escritos. (MEIHY, 2005, p.17)
Na Parte V de seu sumário, Meihy (2005) menciona três gêneros de história oral:
(1)História oral de vida; (2)História oral temática; (3)Tradição oral. De acordo com o autor
(ibid, p.147), a História oral de vida, como o próprio nome indica, trata-se da narrativa do
conjunto da experiência de vida de uma pessoa. Já a Tradição oral (ibid, p.166) é uma das
mais complexas e raras expressões da história oral. Para ele (ibid, p.167), “ainda que a
tradição oral também use a entrevista com uma ou mais pessoas vivas, ela remete às questões
do passado longínquo que se manifestam pelo que chamamos de folclore e pela transmissão
geracional, de pais para filhos ou de indivíduos para indivíduos”.
A História oral temática (ibid, p.162) é a que mais se aproxima das soluções comuns
e tradicionais de apresentação dos trabalhos analíticos em diferentes áreas do conhecimento
acadêmico. Para Meihy, a história oral temática “é um gênero da história oral que visa à
abordagem objetiva de um assunto”. O autor salienta (ibid, p. 162) “que ela quase sempre é
usada como técnica, pois articula, na maioria das vezes, diálogos com outros documentos”.
Cabe salientar que o produto da entrevista é o documento, que significa em história
oral, de acordo com o glossário de Meihy (ibid, p.260), o resultado da mudança do estado oral
para o escrito. Assim, visando a investigar a pedagogia de Odette, foram elaboradas
entrevistas centradas, sobretudo, em “Odette professora”. Como complemento, e na tentativa
14
de obter mais objetividade dos entrevistados, foi elaborado também perguntas que dizem
respeito à “Odette artista” e “Odette pessoa, ser humano”, conforme poderá ser esclarecido e
apreciado mais adiante, no subtópico “Processo de elaboração das perguntas”.
1.6 Etapas do desenvolvimento da pesquisa
1.6.1 Instrumentos de coleta de dados sobre Odette
O primeiro documento teve origem em julho de 2002, ocasião em que estive presente
no “13º Festival Internacional de Música Colonial Brasileira e Música Antiga”, em Juiz de
Fora / MG, especialmente para acompanhar as atividades de sala de aula de Odette. Nesta
ocasião a professora estava completando cinqüenta anos de vida no Brasil e, assim, elaborei
um questionário com cinqüenta perguntas na intenção de entrevistá-la, registrando em áudio.
Devido a circunstâncias imprevistas o fato não aconteceu, porém, mais tarde, enviei o referido
questionário pelo Correio à professora e rapidamente o recebi respondido, em forma de carta,
datada de 11/06/2003, com 22 páginas mais uma folha de rosto (cf. Anexo II, subtópico
7.2.6).
O segundo documento veio em resposta a uma carta enviada à professora em
14/04/2005, na condição de aluno do Programa de Pós-Graduação em Música da UFBA. Nela
fiz uma série de questionamentos, muitos deles inspirados no Projeto de Tese do Prof. Paulo
Costa Lima, cujo tema foi “O Ensino de Composição Musical: A Pedagogia de Ernst
Widmer”. Recebi o retorno da professora, datado de 30/04/2005, com uma série de
informações substanciais e instigadoras à pesquisa. O documento foi escrito em 07 páginas,
mais uma folha de rosto (cf. Anexo II, subtópico 7.2.5).
15
O terceiro documento trata-se de uma entrevista realizada em 22/01/2006, no
Santuário do Caraça (MG) onde Odette respondeu perguntas estruturadas, feitas a partir de
reflexões sobre as duas primeiras cartas enviadas a este pesquisador. Além de esclarecer
algumas dúvidas, a professora também forneceu outras informações relevantes. Ainda que as
perguntas tenham sido previamente elaboradas em função da necessidade específica dos
esclarecimentos, a professora teve ampla liberdade no seu discurso. A entrevista foi registrada
em áudio e transcrita integralmente (cf. Anexo II, subtópico 7.2.4).
A transcrição foi feita procurando registrar o discurso com o máximo de fidelidade,
uma vez que, na opinião de Elinor Ochs (OCHS, 1979 apud MYERS, 2002, p.275), é
importante tratar a “transcrição como uma teoria”. MYERS (ibid) menciona ainda Sharrock &
Andersons (1987), argumentando que estes defendem uma transcrição detalhada uma vez que
esta, trazendo um ritmo, sonoridade e até um clímax, colabora muito para o processo de
análise da conversação.
Após a transcrição, foi encaminhada à professora uma cópia do texto e do áudio (em
CD) para que ela fizesse sua apreciação do material, agora transformado em documento.
Também foi encaminhado o “Termo de Autorização” para que a professora, ao apreciar o
documento, autorizasse este pesquisador a utilizar-se dos dados contidos na documentação
para fins acadêmicos. O documento pode ser observado no Anexo I, subtópico 7.1.4.
O quarto documento foi redigido em julho de 2007, após a professora ter apreciado a
versão final do projeto de tese. Neste documento de quatro páginas a professora, além de
externar seu contentamento com o meu projeto da pesquisa e seu agradecimento, faz
importantes revelações, como, por exemplo, sobre o seu conceito de técnica, entre outras. A
professora também envia documentos, tais como: recortes de jornais, uma carta de
recomendação de Villa-Lobos, a indicando, na época Mademoiselle Odette Ernest, e Mr. Noel
Devos, à “Compagnie Chants du Monde”, datada de 02/12/1952; uma crítica publicada no
16
Estado de Minas sobre um concerto realizado em Belo Horizonte, datada de 20/10/1953,
entre outros (cf. Anexo II, subtópico 7.2.3).
O quinto documento, datado de 30/04/2008, trouxe algumas reflexões atuais a respeito
de seu pensamento sobre “ensinar-fazer” e também o seu conceito de “Som”. Além disso, a
professora enviou outros documentos, como, por exemplo, cartas de Gaston Crunelle14, seu
professor no Conservatório de Paris, cópia de uma parte do “Bolletin du Conservatorie” do
ano de 1949, programas de recitais em Paris, datados de 1950, fotografias, entre outros (cf.
Anexo II, subtópico 7.2.2).
O sexto e último documento enviado ao longo da pesquisa, é datado de 23/10/2008.
Nele Odette se manifesta muito comovida com minhas atenções e responsabilidades para com
ela ao assumir focalizar sua pedagogia. Declara que a palavra pedagogia contém todo um
mundo e a define como a própria transmissão do saber, não existindo outra palavra para isso.
Além disso, também faz seus habituais questionamentos sobre sua própria vida docente,
mencionando ainda que o período retratado na pesquisa é histórico em sua vida (cf. Anexo II,
subtópico 7.2.1).
Concluindo, cabe mencionar que conversas telefônicas com Odette também se
constituíram em importantes meios para eventuais esclarecimentos. Para estas conversas
nenhum roteiro foi previamente estabelecido, simplesmente as dúvidas foram levantadas e
esclarecidas. Algumas vezes as conversas foram registradas em gravação digital e outras
vezes, não.
14 Gaston Gabrielle Crunelle, nasceu em 1898, Douai, França, [e faleceu em 1992, Paris]. Estudou flauta no Conservatório de Paris com Philippe Gaubert, garantindo segundo prêmio em concurso em 1917 e o primeiro em 1920. Em seguida, fez uma bem sucedida carreira como camerista tocando em vários países da Europa. Em 1933 foi nomeado principal flauta no Théatre National de l'Opéra-Comique, em Paris, posição que ocupou até 1964. Em 1933 também foi nomeado principal flauta da Association des Concerts Pasdeloup até 1945, quando assumiu o cargo de professor de flauta no Conservatório de Paris. Durante sua carreia de professor no Conservatório, 1945-69, sua classe ganhou nada menos que 135 prêmios. (FAIRLEY, A. Flutes, Flautists & Makers. London: Pan Educational Music,1982, p.30)
17
1.6.2 Instrumentos de coleta de dados sobre os ex-alunos
O primeiro passo foi obter uma listagem com os respectivos nomes dos ex-alunos da
professora. O contato foi estabelecido com a UnB através de e-mail datado de 07/06/05, ao
Departamento de Administração Acadêmica (DAA). Rapidamente obtive retorno com uma
listagem de quarenta e nove alunos do curso de flauta15, incluindo os estudantes que
ingressaram entre os anos de 1972 a 2003, conforme Anexo I, subtópico 7.1.1.
Tomando as datas de 1974 a 1994 como referências, pude selecionar vinte e um nomes
de ex-alunos. Desse total dezoito se formaram com a professora e três estudaram parte do
curso com ela, porém não concluíram.
Posteriormente constatei que alguns nomes não estavam na listagem fornecida pelo
DAA16, ainda que os alunos tenham concluído o curso com a professora17. Assim, novo
contato foi estabelecido com o DAA e uma nova listagem, contendo cinqüenta nomes (cf.
Anexo I, subtópico 7.1.2), foi apresentada. Para surpresa, novamente os mesmos nomes não
constaram na listagem18, ainda que tenham sido formados por Odette.
Assim, conforme investigado, obtive vinte nomes de alunos que se formaram com
Odette e três que cursaram parte do bacharelado com a professora, no respectivo período
pesquisado.
O próximo passo foi descobrir os contatos dos vinte e três nomes de ex-alunos de
Odette para informar-lhes sobre minha pesquisa e consultá-los sobre uma possível
15 É importante mencionar que dois nomes desta listagem (Maria José e Paulo Magno) apareceram em duplicidade. De acordo com explicação do DAA, isto provavelmente se deu porque eles estavam matriculados nos cursos de bacharelado e licenciatura, naturalmente com números de matrículas e anos de ingressos, respectivamente, diferenciados. 16 Fato revelado a partir de conversas com os ex-alunos, realizadas em Brasília, em agosto e setembro de 2006. 17 Os nomes não constados na listagem foram: Silvana Maria Sócrates Teixeira e José Evangelista da Silva Júnior. 18 Conforme esclarecimento do Diretor da Diretoria de Administração Acadêmica / UnB, na ocasião, tal fato provavelmente se deu quando da implantação do centro de processamento de dados na administração da UnB.
18
colaboração a esta. Assim, através da Associação Brasileira de Flautistas (ABRAF), obtive
parte dos contatos (e-mails) uma vez que muitos são associados da ABRAF. Os contatos dos
ex-alunos não-associados foram obtidos através dos associados da ABRAF.
De posse dos contatos (e-mails), do total de vinte e três ex-alunos da professora,
dezenove foram contatados através de uma mensagem eletrônica contendo um breve texto de
apresentação mais uma carta anexada expondo-lhes minhas intenções como pesquisador e
doutorando no PPGMUS/UFBA. Para minha surpresa e contentamento, todos foram solícitos,
colocando-se à disposição para colaborar com meu projeto.
Nesta pesquisa optei por entrevistar somente os ex-alunos atuantes como flautistas
profissionais, principalmente na função de professor de flauta, não obstante haver participação
de flautistas integrantes de orquestras, conjuntos instrumentais e freelancers. Naturalmente o
interesse, a disponibilidade e a possibilidade real para participar da pesquisa também foram
levados em consideração.
1.6.3 Instrumentos de coleta de dados dos ex-alunos
O processo de coleta de dados dos ex-alunos da professora se deu através de duas
formas: entrevistas e questionários. Foram consideradas entrevistas os contatos realizados
pessoalmente; foram considerados questionários os contatos realizados virtualmente, mais
especificamente através de e-mail.
Ainda sobre os contatos pessoais, estes foram realizados de duas maneiras distintas: a)
entrevistador e entrevistado no mesmo local; b) entrevistador e entrevistado em locais
diferentes. Na primeira maneira, as entrevistas foram realizadas em sua maior parte em
Brasília (DF) e também em Salvador (BA). Na segunda maneira — diante da impossibilidade
19
de estar presente em diferentes cidades onde residem alguns dos ex-alunos da professora19 —
aconteceram entrevistas via Skype20 e através do tradicional telefone.
Cumpre salientar que, pela natureza da comunicação, os contatos realizados através de
e-mail, se comparados aos contatos feitos pessoalmente, foram os mais prejudicados, não
obstante trazerem informações úteis e muito importantes. Tal fato é comentado por
DENCKER (2001, p. 158), que aponta para a superioridade da entrevista com relação ao
questionário pelo fato de o primeiro fornecer um maior contato e permitir um nível superior
de profundidade.
1.6.3.1 Processo de elaboração das perguntas
Com amplas possibilidades de questionamentos aos alunos, a preocupação com a
objetividade esteve sempre muito presente em minhas reflexões. Assim, na tentativa de obter
a referida objetividade, elaborei perguntas que pudessem contemplar três categorias distintas
— “Odette professora”; “Odette artista”; “Odette pessoa, ser humano” — ainda que soubesse,
de maneira muito consciente, que se tratava de categorizações “imaginárias”, uma vez que
remetem a uma única pessoa, e que as fronteiras desta divisão se diluem constantemente.
Posteriormente, para cada categoria, foram listados tópicos pertinentes às respectivas
categorias, os quais foram, inclusive, motivo de apreciação e discussão em sala com os
colegas de curso. Entre os tópicos, por exemplo, listei: técnica instrumental, repertório
tradicional, repertório popular, repertório contemporâneo, repertório flauta solo, motivação e
prazer, apresentações públicas, interpretação de música brasileira, o gestual, aulas em grupo,
gravações da professora, mensagem significativa para a vida pessoal, o mercado profissional,
relação com o público, o nervosismo, o medo do palco, entre outros, conforme pode ser
observado no Anexo I, subtópico 7.1.6.
19 Vitória (ES), Rio de Janeiro (RJ), Boston (USA) e Madri (Esp.) 20 Sistema de comunicação falado, e também em texto, via internet.
20
Tendo em vista investigar o sistema de ensino de uma professora, a categoria “Odette
professora”, conseqüentemente, foi o tópico em que se desenvolveu o maior número de
perguntas. Visando a uma melhor organização, e também conforme sugestão de Hill e Hill, os
quais argumentam que “se o questionário for comprido e lidar com vários temas diferentes,
pode ser útil agrupar as perguntas por secções” (HILL e HILL, 2005, p.87), agrupei a
perguntas relacionando-as com as seguintes seções: “Questões sobre o repertório”, “Questões
pertinentes ao comportamento, princípios, influências e valores”, “Questões técnico-
musicais” e “Questões gerais”.
As perguntas direcionadas para “Odette artista” e “Odette pessoa, ser humano” foram
em número bem menores, comparadas às de “Odette professora”. A intenção de inserir estas
duas categorias — em um primeiro instante sem relação com o propósito principal da
pesquisa — foi de provocar uma espécie de diálogo entre as categorias, ampliando, assim, o
olhar sobre as ações da “Odette professora”.
Concluindo, cabe mencionar que cada entrevistado preencheu uma folha com
informações de natureza pessoal como, por exemplo: nome completo ou pseudônimo; idade
(opcional); atividade(s) profissional(is) atual(is) e onde a(s) exerce(m); período/anos em que
estudou com Odette; curso(s) que concluiu (bacharelado, licenciatura ou os dois); ano de
conclusão do curso; entre outras.
Como etapa final do processo de elaboração das perguntas, elas foram testadas através
de uma apresentação aos colegas do curso de pós-graduação, como também a alguns
estudantes do curso graduação da Escola de Música da UFBA. Foi uma etapa muito
importante uma vez que algumas perguntas foram reformuladas, outras eliminadas e outras
acrescentadas, resultando, portanto, sessenta e cinco perguntas para “Odette professora”,
dezesseis para “Odette artista” e cinco para “Odette pessoa, ser humano”, conforme poderá
ser observado no Anexo I, subtópico 7.1.3.
21
Todas as entrevistas foram registradas em áudio. Em algumas entrevistas, por
circunstâncias favoráveis, determinadas perguntas puderam ser registradas em vídeo. Os
questionários, pela sua natureza, naturalmente foram registrados somente em texto.
Dos vinte e três ex-alunos identificados, foi possível entrevistar dezesseis, sendo, treze
ex-alunos21 que se formaram com a professora, e três ex-alunos que cursaram parte do
bacharelado com ela. Dos dezesseis entrevistados, apenas uma entrevista não pôde ser
transcrita.
1.6.3.2 Transcrição das entrevistas
A transcrição das entrevistas com os ex-alunos foi similar ao processo ocorrido na da
professora. Naturalmente, por ser em número maior, o processo foi bastante exaustivo. Para
dar amadurecimento ao trabalho, depois da transcrição foi dado um tempo para o processo;
posteriormente, o texto foi conferido novamente para possíveis ajustes e correções. Para isso
foi fundamental ouvir a entrevista outra vez e acompanhar atentamente o texto.
Concluída a transcrição, foi encaminhada a cada ex-aluno entrevistado cópia do texto
e do áudio (em CD) para que cada um fizesse sua apreciação detalhada do material, agora
transformado em documento. Também foi encaminhado, junto com a cópia do texto e do
áudio, um “Termo de Autorização” para que, após apreciação do texto, cada entrevistado
autorizasse este pesquisador a utilizar-se dos dados contidos na documentação para fins
acadêmicos. O documento pode ser observado no Anexo I, subtópico 7.1.5.
21 Conforme as listagens, 20 nomes de ex-alunos se formaram com ela, porém entrevistei 13. Os outros 07 ex-alunos da professora não participaram da pesquisa pelos seguintes motivos: 01 faleceu, 03 não foram localizados, 01, conforme informações, abandonou a profissão, 01 atua como professora na área de Educação Musical e a outra atua com regente de coral.
22
1.7 Análise dos documentos e elaboração do inventário22 de tópicos Conforme já foi mencionado, o resultado da mudança do estado oral para o escrito,
produto da entrevista, de acordo com Meihy (2005, p.260), é o documento. Assim, a análise
dos documentos, ocorrida de maneira mais formal depois de encerrada a coleta de dados, foi o
primeiro passo para a organização e início de um melhor entendimento da pedagogia da
professora. De acordo com Bogdan e Biklen:
[...] a análise dos dados é o processo de busca e de organização sistemático de transcrições de entrevistas, de notas de campo e de outros materiais que foram acumulados, com o objetivo de aumentar a sua própria compreensão desses mesmos materiais e de lhe permitir apresentar aos outros aquilo que encontrou. (BOGDAN e BIKLEN, 1994, p.205)
Assim, visando à referida compreensão dos materiais, e, naturalmente, uma
compreensão mais detalhada do sistema de ensino de Odette, foi organizado um inventário de
tópicos pedagógicos, a partir das respostas das entrevistas e questionários elaborados por este
pesquisador. Para isso, todo o material acumulado, isto é, as respostas pertinentes a cada
pergunta, foram agrupadas em duas categorias: descritiva e analítica.
Na categoria descritiva foram incluídos tópicos como: “A maneira de ensinar”, “A
propósito das abordagens técnicas”, “A propósito do repertório”, “A abordagem
interpretativa”. Naturalmente, dentro de cada tópico, foram desenvolvidos vários subtópicos.
Na categoria analítica foram desenvolvidos tópicos como: “Comentários a propósito
da prática pedagógica”, “Principais características da professora”, “Principais características
dos ex-alunos da professora”, “O mercado profissional” e “A propósito dos legados da
22 Como não localizei o termo “Inventário” em metodologias consultadas, optei em inserir um conceito a partir do Dicionário Eletrônico Houaiss da Língua Portuguesa, na tentativa de explicitar minha idéia. Assim, de acordo com o Houaiss, o termo inventário pode significar: 6. levantamento minucioso dos elementos de um todo; rol, lista, relação; 7. qualquer descrição detalhada, minuciosa de algo.
23
professora”. Como na categoria anterior, dentro de cada tópico, também foram desenvolvidos
vários subtópicos.
Posteriormente, cada grupo de respostas referente aos tópicos e subtópicos foi lido,
relido e refletido para que, a partir desse material bruto, fosse elaborado um texto
“amarrando” todas as respostas pertinentes a cada tópico. É importante ressaltar que, na
medida do possível, não foi feita nenhuma interferência ou comentário no texto produzido,
uma vez que meu interesse maior foi manter a integridade dos conteúdos apresentados pelos
ex-alunos. Apenas organizei as respostas de modo que estas pudessem estar “costuradas” sob
a lógica do meu olhar23, e assim, como salientou Bogdan e Biklen, que essa “costura”
colaborasse no meu processo de compreensão dos dados e, portanto, no melhor entendimento
da pedagogia da professora. Quando necessário, foi feito algum comentário ou interferência
no texto através de nota de rodapé.
Outra questão importante também pensada foi a forma geral do inventário, e, para isso,
articulei os dados partindo da macroestrutura à microestrutura. Nesse sentido, levei em
consideração que o processo de formação da professora — tanto no ambiente familiar quanto
no ambiente do Conservatório de Paris — foi a base fundamental para suas futuras ações
pedagógicas, e, portanto, a macroestrutura. Assim, parti de “A visão do mundo e o relativismo
cultural”, “O respeito à expressão de cada um”24, e “Trabalhando a identidade e a
personalidade musical de seus alunos”, para, na seqüência, apresentar os tópicos e subtópicos
de caráter descritivo e, posteriormente, os tópicos e subtópicos de caráter analítico, compondo
a microestrutura.
Concluindo, foi um processo muito importante porque além de contribuir para uma
compreensão mais minuciosa do sistema de ensino em foco, o processo também serviu para
23 É importante salientar aqui que naturalmente este olhar está intimamente relacionado com o objetivo principal da pesquisa e ainda, conforme já mencionado, de acordo com LÜDKE e ANDRÉ (1986, p. 25), com a história pessoal e, principalmente, com a bagagem cultural de cada pessoa. 24 Legado absorvido do ambiente familiar e de Gaston Crunnelle, seu professor no Conservatório de Paris, também transmitido aos seus alunos da UnB.
24
estabelecer relações de pensamentos, transversalizar informações, observar idéias e
pensamentos mais significativos, e, sobretudo, pinçar os temas que chamaram mais a minha
atenção para serem discutidos e direcioná-los para uma fundamentação. Assim, o trabalho
constitui-se em um importante documento para dar encaminhamento à pesquisa, conforme
pode ser observado em seu sumário, Anexo I, subtópico 7.1.6.
25
Capítulo II
2. Fundamentação teórica Ainda que meu propósito seja investigar o sistema de ensino de Odette Ernest Dias,
como docente do curso de flauta transversal na Universidade de Brasília (UnB), indagarei
antes a respeito de práticas de ensino em geral, que forneçam subsídio teórico suficiente para
uma melhor compreensão do fenômeno educacional, incluindo aquele desenvolvido pela
referida professora. A idéia básica é perquirir correntes filosóficas, pensamentos, tendências,
abordagens ou concepções de ensino que auxiliem na compreensão, na interpretação e,
sobretudo, na reflexão crítica sobre a maneira de ensinar desta professora, ou, em outras
palavras, sobre seu “sistema” de ensino, embora ela tenha declarado que “[...] Meu sistema, se
é que existe, é justamente a ausência de sistema [...]” (DIAS, 2005. p.2).
Além de estabelecer diálogos entre áreas como Educação, Educação Musical e
Execução, foi necessário dialogar também com a Antropologia, por acreditar, em
concordância com Sacristán e Pérez Gómes (1998, p. 208), que a prática educativa é uma
atividade complexa. Como argumenta Aranha (2006, p.150), a questão antropológica surge
em primeiro lugar em diversas situações vividas, pois nossas concepções de mundo — e
nossas formas de agir — partem de uma idéia de humanidade nelas subjacente, mesmo que
disso não tenhamos uma consciência nítida.
Antes de iniciar este capítulo, considerando que pode ser muito útil ao leitor ter
melhor compreensão de conceitos que compõem o arcabouço desta pesquisa, apresento as
seguintes conceituações: Sistema, Educação, Pedagogia e Antropologia. Ressalto que o
conceito de Sistema será apresentado sob dois pontos de vista: antropológico e educacional.
26
Do ponto de vista antropológico, Sistema é uma construção do observador e não um
fenômeno natural. Portanto, “um sistema, seja cognitivo, de crenças, político, econômico etc.
não é dado empiricamente. Não é um fenômeno natural” (VELHO, 1999, p.52). O autor
argumenta ainda que “é correto falar em sistema na medida em que o pesquisador demonstre
através da análise de seus dados que existem categorias, valores, temas, atividades, que se
articulam, que fazem sentido uns em relação aos outros” (ibid). Do ponto de vista da
Educação o termo “é empregado com acepções diversas, o que lhe confere um caráter de certo
modo equívoco. No entanto, partindo da educação como fenômeno fundamental, é possível
superar essa aparência e captar o seu verdadeiro sentido” (SAVIANI, 1999, p. 120). O autor
afirma haver uma íntima relação entre “sistema de ensino” e “plano de educação”, ou seja:
[...] o sistema resulta da atividade sistematizada; e a ação sistematizada é aquela que busca intencionalmente realizar determinadas finalidades. É, pois, uma ação planejada. Sistema de ensino significa, assim, uma ordenação articulada dos vários elementos necessários à consecução dos objetivos educacionais preconizados para a população à qual se destina. Supõe, portanto, o planejamento. Ora, se “sistema é a unidade de vários elementos intencionalmente reunidos, de modo a formar um conjunto coerente e operante” (Saviani 1996a, 80), as exigências de intencionalidade e coerência implicam que o sistema se organize e opere segundo um plano. Conseqüentemente, há uma estreita relação entre sistema de educação e plano de educação. (ibid)
Como pode ser observado, as conceituações se complementam. Quanto à Educação,
Brunner e Zeltner (2002, p. 88) argumentam que a discussão sobre este conceito leva a
grandes controvérsias. Declaram tratar-se de um processo de interações sociais, onde pessoas
buscam modificar o comportamento, as disposições comportamentais e as características de
personalidade de outras pessoas, visando a um fim. Os autores complementam afirmando que
“os objetivos desses processos de modificação e/ou estabilização resultam dos valores e
normas que o educador e/ou grupo no qual se trabalha considera como de especial
importância” (ibid).
27
O conceito de Educação que será adotado no presente trabalho baseia-se em Freire
(1992), (1996), (2005), sendo definido como um processo que vai além do ensino e do
aprendizado de alguma coisa, de algum conteúdo, feito de maneira sistemática ou não. É um
processo de permanente assimilação de um conhecimento, do qual educador e educando
participam através de uma relação predominantemente caracterizada pelo diálogo. Saliento
que a educação não significa transferência de conhecimentos, mas um processo capaz de gerar
possibilidades para a própria construção destes, tanto por parte do educando quando do
educador. Ela deve, sobretudo, estimular a criação por parte do educando e a formação de sua
consciência crítica e questionadora.
A propósito da Pedagogia é importante salientar que historicamente, segundo
Abbagnano (1998, p.747-748), no passado longínquo o termo remetia à prática ou profissão
de educador. Na antiguidade clássica a pedagogia não era considerada como ciência
autônoma, e sim parte da ética ou da política. Ao longo dos anos a reflexão pedagógica passa
a ser dividida em dois ramos isolados: um de natureza puramente filosófica e outro de
natureza empírica ou prática. Conforme o autor, esses dois ramos se unem pela primeira vez
no séc. XVII, graças a G. A. Comênio25. Nas primeiras décadas do século XIX a psicologia
tornou-se a principal ciência auxiliar da pedagogia. Atualmente a pedagogia contemporânea,
além de contar com a contribuição da psicologia, também conta com a antropologia e a
sociologia, para prover à Pedagogia um conjunto de instrumentais nas áreas em que o
problema dos fins permanece aberto.
O conceito de Pedagogia adotado nesta pesquisa é aquele que “passou a designar
qualquer teoria da educação, entendendo por teoria não só uma elaboração organizada e
genérica das modalidades e possibilidades da educação, mas também uma reflexão ocasional
ou um pressuposto qualquer da prática educacional” ABBAGNANO (1998, p.747-748). Tal
25 Comênio (1592-1670), pensador tcheco que é considerado o primeiro grande nome da moderna história da educação.
28
conceito também vai ao encontro de autores como Barbanti (2003), Marques (2000) e Aulete
(1974).
Quanto à Antropologia, etimologicamente o termo origina-se do grego anthropos
(homem) e logos (teoria, ciência), significando, portanto, todas as teorias a respeito do ser
humano. De acordo com Marconi e Presotto:
[...] uma conceituação mais ampla a define como a ciência que estuda o homem, suas produções e seu comportamento. O seu interesse está no homem como um todo ― ser biológico e ser cultural ―, preocupando-se em revelar os fatos da natureza e da cultura. Tenta compreender a existência humana em todos os seus aspectos, no espaço e no tempo, partindo do princípio da estrutura biopsíquica. Busca também a compreensão das manifestações culturais, do comportamento e da vida social. (MARCONI e PRESOTTO, 2006, p.2, grifo meu)
As autoras apresentam três dimensões à Antropologia: a dimensão biológica,
relacionada à antropologia física; a sociocultural, relacionada à antropologia social e/ou
cultural e a dimensão filosófica, relacionada à antropologia filosófica, onde estão reunidas as
teorias antropológicas da educação, entre elas as concepções essencialista, naturalista e
histórico-social, que serão apresentadas mais adiante. A Antropologia investiga os conceitos
que o ser humano constrói de si próprio, seja de suas faculdades, habilidades e ações que
orientam sua vida. Tanto Aranha (2006) quanto Marconi e Presotto (2006) são categóricas em
declarar que a antropologia filosófica é aquela que se empenha em responder à pergunta: o
que é o homem?
29
2.1 Abordagens pedagógicas: a diversidade como ponto de partida
“Em nossa casa em Paris circulavam pessoas bem diferentes, de diversos países e línguas, mas, para mim era uma coisa normal, ouvir francês, inglês, alemão, dialetos “creóles” e alsaciano − O meu ouvido e coração sempre souberam, quase intuitivamente, que o mundo era maior de que um só país, que a nacionalidade (que pode mudar sempre) não representa uma cultura, que as fronteiras são linhas fictícias e arbitrárias, que a cultura nasce dos gestos, das falas, das músicas, das culinárias, das religiões, representativos e equivalentes no mundo inteiro”. Odette E. Dias, 2003 “Considero que, desde a infância, tive a sorte de aprender e viver em casa o que é a cultura e a música, vividas e não assistidas, o que define, acho, minha atitude de hoje”. Odette E. Dias, 2003
Duas razões básicas apontaram à diversidade como ponto de partida. A primeira delas
reportou-se ao próprio discurso de Odette, reforçando a explanação que Cavalieri França faz
em artigo intitulado “Engajando-se na conversação: considerações sobre a técnica e a
compreensão musical” : “somos herdeiros de uma diversidade de formas simbólicas. Através
da multiplicidade de elementos culturais, compreensões, significados, crenças, aquisições e
práticas, elaboramos e damos sentido à nossa experiência” (CAVALIERI FRANÇA, 2001,
p.35). A segunda apontou ao discurso de dois autores da antropologia quando declaram: “[...]
considerando a extrema diversidade cultural da humanidade, pode-se compreender cada grupo
humano, seus valores definidos, suas exclusivas normas de conduta e suas próprias reações
psicológicas aos fenômenos do cotidiano” (MARCONI e PRESOTTO, 2006, p.17).
Segundo Libâneo, grande parte dos professores baseia sua prática em prescrições
pedagógicas que passaram a ser senso comum, “incorporadas quando de sua passagem pela
escola ou transmitidas pelos colegas mais velhos” (LIBÂNEO, 1985, p. 19-20). Sob meu
olhar, ainda que seja uma metodologia prática e comum, pode ser muito arriscada porque a
maneira como os professores articulam seus métodos de ensinar no dia-a-dia, selecionando e
30
organizando conteúdos, têm a ver, além dos pressupostos teórico-metodológicos, com
crenças, experiências e reflexões idiossincráticas. Isto é reforçado pelo discurso de Couceiro
(1998), quando declara que as práticas dos professores não dependem somente dos saberes
disciplinares: “elas são resultado de um quadro interpretativo pessoal, construído através de
múltiplos fatores, que tem a ver com a globalidade da história de vida, e que constitui um
modo próprio de ver, sentir, pensar e agir” (COUCEIRO, 1998, p.53).
Para Aranha, a “imagem de ser humano”, desde as mais antigas civilizações, vem
orientando pais e mestres na tarefa de educar as novas gerações. A autora menciona ainda
que, conforme a época e o lugar, esse conceito de humanidade é imposto de maneira mais
rígida ou então, como vem ocorrendo no mundo contemporâneo, com maior ênfase na relação
dinâmica entre pessoas que constroem em conjunto uma realidade em constante mutação.
A autora argumenta também sobre a importância de saber como, ao longo do tempo,
essas concepções antropológicas foram gestadas e impregnaram as teorias pedagógicas,
salientando a necessidade de nos posicionarmos a respeito de que ser humano desejamos
educar. Ela complementa: “Ter claramente tematizada a questão antropológica na práxis
educativa dará condições para que a atuação do mestre seja intencional e não apenas
empírica” (ARANHA, 2006, p.149).
No contexto das teorias antropológicas relacionadas à práxis educativa destacam-se
três concepções que considero relevante incluir aqui, por entender que se trata das concepções
mais difundidas. São elas: concepção essencialista ou metafísica, naturalista ou científica e
histórico-social. A concepção essencialista, ou metafísica, ainda hoje persiste em algumas
teorias pedagógicas. Conforme a autora acima ainda argumenta “busca-se a unidade na
multiplicidade dos seres, ou seja, a essência que caracteriza cada coisa” (ibid). O conceito de
humanidade é compreendido a partir de uma natureza imutável, ou seja, apesar das
31
constatadas diferenças entre seres humanos, existiria uma essência humana, um modelo a ser
atingido por meio da educação.
Esta concepção antropológica dá origem à abordagem pedagógica tradicional, onde o
ensino é centrado no professor, caracterizando o que Aranha denomina de relação
“magistrocêntrica”, isto é, o professor detém o saber, a autoridade, e dirige o processo de
aprendizagem apresentando-se como o modelo a ser seguido, caracterizando uma relação
professor-aluno vertical, hierárquica. Metodologicamente a aula expositiva é muito
valorizada, os alunos são submetidos a horários e currículos rígidos. Como se não bastasse,
não existe atenção especial para as diferenças individuais e, portanto, os alunos são
considerados um bloco único e homogêneo.
A concepção naturalista, também conhecida por científica, surgiu com a revolução
científica do século XVII. Este século, conhecido como “século do método”, inaugurou uma
maneira nova de pensar, tanto na filosofia, quanto na ciência. Segundo Aranha, na
antropologia filosófica “o enfoque rigoroso do método influenciou de modo marcante a
compreensão sobre o que é ser humano, ao se buscar encontrar, também nele, as regularidades
que marcariam seu comportamento” (ARANHA, 2006, p.152). Esta concepção é
caracterizada pelo enfoque naturalista imposto ao conceito de humanidade, atingindo seu
ápice com o cientificismo positivista do século XIX, e ainda hoje tem seguidores26.
A concepção naturalista dá origem à abordagem pedagógica comportamentalista, onde
o ensino “é tratado em função de uma tecnologia que, além da aplicação de conhecimentos
científicos à prática pedagógica, envolve um conjunto de técnicas diretamente aplicáveis em
situações concretas de sala de aula” (MIZUKAMI, 1985, p. 35). Nesta abordagem “o
professor teria a responsabilidade de planejar e desenvolver o sistema de ensino-
aprendizagem, de forma tal que o desempenho do aluno seja maximizado, considerando-se
26 Nomes como Ivan Pavlov (1849-1936), John B. Watson (1878-1938) e Burrhus Frederic Skinner (1904-1990) foram alguns dos principais defensores.
32
igualmente fatores tais como economia de tempo, esforços e custos” (ibid, p.31). Ainda que
tanto na abordagem tradicional quanto na comportamentalista se notem diretivismo, isto é,
professor ou equipe escolhe os assuntos a serem estudados, tomam decisões para o aluno, a
ênfase dada à transmissão de informações e demonstrações do professor, segundo argumenta
Mizukami (ibid, p.36), é substituída pela direção mais eficiente do ensino fornecida pela
programação. Portanto, esta abordagem se baseia em resultados experimentais do
planejamento, e não em uma prática cristalizada através dos tempos.
A concepção histórico-social é a nossa contemporânea. De acordo com Aranha (ibid,
p.153-154) esta seguiu por diversas vertentes até as atuais teorias construtivistas e
progressistas. Dentro desta concepção estão as pedagogias dialéticas, que refletem
cientificamente sobre a educação como também propõem modos de uma ação emancipatória.
Aranha arremata suas considerações sobre esta concepção afirmando que ela se manifesta
através de inúmeras tendências, e que o mais importante a ser destacado é a ênfase no
processo, onde nada é estático; é a contradição, ou seja, não existe linearidade no
desenvolvimento; e por último o caráter social do engendramento humano, isto é, o processo é
permeado por relações humanas, expressando-se, ao longo da história, de modos diferentes.
Esta concepção antropológica dá origem à abordagem pedagógica sócio-cultural,
onde, segundo Mizukami (1985, p.99), a relação professor-aluno é horizontal e não é imposta.
Há uma preocupação com cada aluno em si, com o processo e não com produtos de
aprendizagem acadêmica padronizados. O diálogo é desenvolvido havendo, ao mesmo tempo,
oportunidades de cooperação, de maior união, organização para a solução em comum dos
problemas. A autora salienta que o professor engajado nesta prática transformadora vai
procurar, junto com o aluno, desmitificar e questionar a cultura dominante, valorizando a
linguagem e cultura deste, possibilitando condições para que cada um deles analise seu
contexto e produza cultura.
33
Quanto à metodologia da abordagem sócio-cultural, Mizukami (ibid, p.100) declara
que o diálogo é o principal elemento engajador entre professor e aluno. Junto com o diálogo
também vem o despertar da consciência crítica do aluno, criando um conteúdo programático
próprio, ou seja, a partir da consciência que se tem da realidade é que se busca o conteúdo da
educação, abordado através da dialógica horizontal entre educador e educando.
Neste contexto cabe comentar que, observando as concepções provenientes das teorias
antropológicas e as abordagens pedagógicas surgidas das concepções, percebe-se que a
relação de poder, dominação do professor ao aluno vai gradualmente diminuindo. Enquanto
na abordagem tradicional não existe diálogo, a relação é “magistrocêntrica”, vertical, isto é, o
professor detém o saber, dirige o processo, a abordagem histórico-social possibilita uma
relação dialógica, conseqüentemente horizontal. Portanto, tomando como referência as
concepções apresentadas, as abordagens pedagógicas e os dados coletados, percebo que a
concepção histórico-social é a que oferece maior possibilidade de diálogo com o sistema de
ensino desenvolvido por Odette. Assim, aponto a fundamentação desta pesquisa às lentes
desta concepção, com especial atenção às Teorias Progressistas, através da tendência
libertadora, mais conhecida como pedagogia de Paulo Freire.
34
2.1.1 A Pedagogia Libertadora de Paulo Freire
“Então você tem que olhar a pessoa que você tem na sua frente, isto é que eu chamo de a expressão do outro, você dialoga com a pessoa, você não vai impor uma coisa. Então, com aluno você tem que dialogar [...] Você tem que observar muito bem a pessoa que você tem na sua frente. Observar muito bem o aspecto físico, a voz da pessoa, a maneira de olhar. Aí você começa”. Odette E. Dias, 2006 “[...] eu acho que a gente pode dizer, em primeiro lugar, reforçando esta idéia da flexibilidade, da diversidade, que ela [Profª. Odette] era uma pessoa que abarcava sem muito preconceito as diferentes visões, e essa maneira eclética de abordar o ensino da flauta como algo não estanque dentro de uma prática tecnicista, esse respeito ao ser humano, respeito ao aluno, acho que é uma das coisas mais positivas que ela pôde transmitir [...]”. Ariadne Paixão, 2006 “Eu gosto muito da palavra provocação porque era isso que a Odette me passava, sabe, era sempre uma provocação, de me tirar da minha zona de conforto, e era instigante. Então, da mesma forma que ela provocava a mim, acredito que ela provocava outros alunos, e cada pessoa respondia de uma forma. Então, não existe um aluno da Odette que toca igual ao outro, isso é muito bom. Isso demonstra como que ela via o aluno como indivíduo, como único, e o tratava de uma forma holística”. Cláudia Castro, 2006
Conhecida também como pedagogia do oprimido27, a pedagogia libertadora de Paulo
Freire consiste na educação voltada para a conscientização da opressão, possibilitando a
mencionada ação transformadora, isto é, uma prática que possibilita ao homem constantes
mudanças e crescimento em direção a sua autonomia, sobretudo, a partir do respeito e do
diálogo.
Como ação transformadora para libertar os indivíduos das amarras da opressão,
retirando-os da condição de dominados, desrespeitados, onde lhes são impostos
conhecimentos de cima para baixo, sem possibilidades de reflexões, diálogos,
questionamentos, Freire desenvolve a concepção de educação “libertadora”. Tal concepção é
a antítese da concepção modelo “imposto”, e que ainda não foi totalmente abandonada, 27 Ou ainda, conforme VASCONCELOS e BRITO (2006, p.89, 151), também conhecida como “Educação Problematizadora”, “Teoria da Não-Extensão do Conhecimento”, “Pedagogia do Desejo” ou “Pedagogia Crítica”.
35
denominada por ele como concepção “bancária”28 da educação. Este modelo preconiza uma
visão distorcida da educação, não havendo criatividade, transformação, nem saber, e sim uma
educação opressora, engessada. Como Paulo Freire pronuncia, “necessitávamos de uma
educação para a decisão, para a responsabilidade social e política” (FREIRE, s/d, p.96), ou
ainda, conforme ele declara mais adiante:
Não podíamos compreender, numa sociedade dinamicamente em fase de transição, uma educação que levasse o homem a posições quietistas ao invés daquela que o levasse à procura da verdade em comum, “ouvindo, perguntando, investigando”. Só podemos compreender uma educação que fizesse do homem um ser cada vez mais consciente de sua transitividade, que deve ser usada tanto quanto possível criticamente, ou com acento cada vez maior de racionalidade29. (ibid, p.98)
Partindo do respeito ao ser humano, da conscientização, do diálogo e da
individualidade Freire idealiza a “ação transformadora” promovendo a autonomia do
educando. Assim, só é possível respeito aos educandos “à sua dignidade, a seu ser formando-
se, à sua identidade” (FREIRE, 1996, p.64), se é levado em consideração as condições que
eles vêm existindo, reconhecendo a importância dos conhecimentos que eles trazem em sua
bagagem.
Gadotti (1996) argumenta que, a rigor, não se poderia falar em “Método Paulo Freire”,
uma vez que se trata muito mais de uma teoria do conhecimento e de uma filosofia da
educação do que de um método de ensino. O autor chama atenção que, mais precisamente,
esse método deveria ser chamado de “sistema”, “filosofia”, ou “teoria do conhecimento”. Ele
menciona dois dos elementos fundamentais da filosofia educacional de Freire — a
conscientização e o diálogo — assim dizendo: 28 Conforme FREIRE (2005, p.66), “a narração, de que o educador é o sujeito, conduz os educandos à memorização mecânica do conteúdo narrado. Mais ainda, a narração os transforma em “vasilhas”, em recipientes a serem “enchidos” pelo educador. Quanto mais vá “enchendo” os recipientes com seus “depósitos”, tanto melhores educandos serão. Desta maneira, a educação se torna um ato de depositar, em que os educandos são os depositários e o educador depositante. [...] Eis aí a concepção “bancária” da educação, em que a única margem de ação que se oferece aos educandos é a de receberem os depósitos, guardá-los e arquivá-los”. 29 Freire, compactuando com Popper, declara que, conforme Sócrates, o verdadeiro racionalismo “é a consciência das próprias limitações, a modéstia intelectual dos que sabem quantas vezes erram e quanto dependem dos outros até para esse conhecimento”. (p.98, s/d)
36
A conscientização não é apenas tomar conhecimento da realidade. A tomada de consciência significa a passagem da imersão na realidade para um distanciamento desta realidade. A conscientização ultrapassa o nível da tomada de consciência através da análise crítica, isto é, do desvelamento das razões de ser desta situação, para constituir-se em ação transformadora desta realidade. [...] O diálogo consiste em uma relação horizontal e não vertical entre as pessoas implicadas, entre as pessoas da relação. [...] Como ele afirma “ninguém educa ninguém. Ninguém se educa sozinho. Os homens se educam juntos, na transformação do mundo”. Nesse processo se valoriza o saber de todos. O saber dos alunos não é negado. Todavia, o educador também não fica limitado ao saber do aluno. O professor tem o dever de ultrapassá-lo. É por isso que ele é professor e sua função não se confunde com a do aluno. (GADOTTI, 1996, p.81)
No que diz respeito à individualidade, outro importante elemento da sua filosofia de
educação, Freire declara, citando François Jacob, que:
Nós somos todos diferentes e a maneira como se reproduzem os seres vivos é programada para que o sejamos. É por isso que o homem teve a necessidade, um dia, de fabricar o conceito de igualdade. Se nós fôssemos todos idênticos, como uma população de bactérias, a idéia de igualdade seria perfeitamente inútil. (JACOB, 1991 apud FREIRE, 1992, p. 98)
Ainda na direção da individualidade, Freire (1992) argumenta que é preciso saber
trabalhar muito bem a relação entre o conhecimento “inato” e o “adquirido” porque, para ele,
ainda dentro do pensamento de Jacob, “a fabricação do indivíduo”, do ponto de vista físico,
intelectual e moral, corresponde a uma interação permanente entre os dois conhecimentos
mencionados. Ainda nesta direção, Zitkoski comenta:
Então a natureza humana não é simplesmente o inato nem somente o adquirido, mas a interação permanente entre ambos. O processo histórico e sociocultural da existência humana consiste na permanente articulação entre a dimensão inata da vida humana (que compreende as estruturas hereditárias, os genes ou as potencialidades constitutivas de cada indivíduo) e o processo de aprendizagem, que ocorre através da experiência histórica. (ZITKOSKI, 2006, p.75)
No que diz respeito à experiência educativa, Freire (1996, p.33) manifesta-se contra o
puro treinamento técnico do aluno, em favor do caráter formador dele, argumentando que isto
37
seria “amesquinhar o que há de fundamentalmente humano no exercício educativo: o seu
caráter formador”. Deste modo, a pedagogia libertadora de Paulo Freire instiga o ser humano
a não apenas reagir aos fatos, mas a refletir sobre eles antes de reagir. Como argumenta muito
bem Freire (1992, p.98), na condição de seres imaginativos e curiosos, não podemos parar de
aprender, de buscar e pesquisar a razão das coisas. Interrogar, questionar sobre o amanhã,
sobre o que virá é vital para nossa existência, pois é com esta ação que podemos concretizar o
“inédito viável” que, segundo Vasconcelos e Brito (2006, p.125-126): “consiste em tornar o
sonho realidade, desde que aqueles que fazem a história assim o queiram”.
2.1.2 Outras considerações sobre o ensino
“[...] o transcurso do progresso educativo se assemelha mais ao vôo de uma mariposa que à trajetória de uma bala” 30. JACKSON, 1996
De acordo com Sacristán (1995), o ensino é uma prática social, concretizando-se na
interação entre professores e alunos, e seus atores refletem a cultura e os contextos sociais a
que pertencem. Nesta conjuntura, ele salienta ainda que “a intervenção pedagógica do
professor é influenciada pelo modo como pensa e como age nas diversas facetas de sua vida”
SACRISTÁN (in NÓVOA, 1995, p.66). Nesta direção, ele avança seu pensamento
argumentando que a atividade docente está relacionada com as condições psicológicas e
culturais dos professores, e que “educar e ensinar é, sobretudo, permitir um contacto com a
cultura, na acepção mais geral do termo; trata-se de um processo em que a própria experiência
cultural do professor é determinante” (ibid).
Conforme Sacristán (1995), a prática da educação, como ocorreu em muitos outros
domínios da cultura humana, existiu antes que tivéssemos conhecimento formalizado sobre
esta, e ela também é anterior ao aparecimento dos sistemas formais de educação. O referido 30 “[...] el transcurso del progreso educativo se parece más al vuelo de una mariposa que a trajectoria de una bala”. (JACKSON, 1996, p.197, tradução minha)
38
autor ainda argumenta: “As práticas educativas, tal como os hábitos de alimentação ou
higiene, geraram uma cultura alicerçada em costumes, crenças, valores e atitudes. Trata-se de
formas de conhecer e de sentir, que se inter-relacionam entre si, dando sustentação para as
atividades práticas” (ibid, p.70).
Sacristán e Pérez Gómez (2000, p.207-212) declaram: “a educação, o ensino, o
currículo, são processos de natureza social que permitem ser dirigidos por idéias e intenções,
mas que não podem ser previstos totalmente antes de serem realizados”. Declaram ainda que a
prática educativa não admite muitas simplificações, sendo uma realidade caracterizada por
condições, as quais considerei fundamental transcrever integralmente, salientando algumas
em especial. Assim tem-se:
1) A multidimensionalidade. São muitas as coisas que é preciso fazer e cada uma delas estão implicadas dimensões e aspectos muito distintos: elementos pessoais, materiais, organizativos e sociais. Compreende ações que tendem para objetivos muito variados e de desigual complexidade. 2) São várias as tarefas que um professor/a deve conduzir simultaneamente num grupo de alunos/as. 3) O docente pode prever cursos de ação, tarefas em seus traços gerais, mas boa parte de sua atuação está governada pela rapidez de decisões que deve tomar constantemente, às quais responde por intuição ou por rotina. 4) Sua prática não pode ser prevista, pois são muitos os fatores que intervêm numa situação, na conduta de um aluno/a ou na de todo o grupo. 5) Responde a isso orientado por idéias muito gerais, por mecanismos quase reflexos, guiado por intuições, imagens gerais de como se comportar, mas não por leis precisas. 6) Existe uma implicação pessoal na qual se projeta a idiossincrasia de cada um, a subjetividade composta pela biografia pessoal, a formação e a cultura de procedência. 7) E tudo isso dentro de contextos variáveis e determinados não pela vontade do professor/a nem pelos conhecimentos ou modelos científicos. 8) São poucos os objetivos que permitem um planejamento algorítmico, ou seja, uma estrutura de ações seqüenciadas de tal modo que nos levem de forma segura à conquista da meta proposta. A maioria dos objetivos tem uma natureza complexa e é sempre interpretável. (SACRISTÁN e PÉREZ GÓMEZ, 2000, p.208-209, grifos meus)
39
Assim, pelo fato de a prática educativa não admitir simplificações, e pela
impossibilidade de regulação total das atividades de ensino, Sacristán e Pérez Gomez (ibid)
apresentam a dimensão artística ou intuitiva como uma perspectiva pedagógica — ou plano
de ensino/currículo, segundo os autores — a ser levado em consideração. Tal fato, entretanto,
não significa a impossibilidade de aplicar certos princípios orientadores, observar algumas
regularidades gerais, acumular experiência e aproveitar modelos que parecem dar bons
resultados em outros casos.
Eisner (1979) também contribuiu para fundamentar essa metáfora do ensino como
arte, não significando, entretanto, falta de regras ou improviso. Essa caracterização é apoiada
em realidades como:
a) Os professores/as, como os artistas, realizam julgamentos apoiando-se em determinadas qualidades que põem na prática enquanto transcorre a atividade; a ação deve ser dirigida com um senso crítico que aprecie, a todo instante o que é relevante, orientando as decisões que paulatinamente se adotem. b) Trata-se de uma atividade não dominada por prescrições ou rotinas, ao menos não toda ela, senão por casualidades e contingências que são imprevisíveis. Qualificá-la de artística é uma forma de admitir que é preciso situar os problemas e atividades no ensino em contextos mutantes que precisam ser avaliados para se saber o que acontece e que mudanças vão se produzindo. c) O ensino é artístico, pois os fins obtidos vão se originando ou adquirem significado no próprio processo de seu desenvolvimento prático, no sentido que não se pode prever o que queremos de antemão com um significado preciso, senão que, partindo de idéias e aspirações, encontramos seu valor quando se realizam. (EISNER, 1979 apud SACRISTÁN e PÉREZ GÓMEZ, 2000, p.210, grifos meus)
Deste modo, como argumentam Sacristán e Pérez Gomez (ibid), apesar da incerteza
ser estabelecida como forma de pensar, não é muito importante que os modelos de
planejamento, de ensino, sejam universalizáveis. O principal é que a capacidade do professor
seja norteada pelo pensar, discutir e decidir com racionalidade a prática pedagógica
vivenciada. Assim, levando-se em consideração todas essas questões pertinentes a este plano
de ensino, entendo que este pode ser um válido auxílio metodológico para colaborar no
40
processo da reflexão crítica sobre a maneira de ensinar de Odette, maneira esta em constantes
transformações ao longo dos anos, conforme observado nos dados coletados. Intitulada por
dimensão artística ou intuitiva, ainda que não tenha sido concebida especificamente ao
ensino voltado à arte, considero a metáfora dos autores muito apropriada, afinal ter o controle
total sobre as ações do ensino ― seja ele dirigido a qualquer área do conhecimento ― é algo
tão complexo, tão suscetível a constantes mudanças, que esta dimensão do ensino como arte
pode ser muitíssimo bem considerada, pois, como argumentam os autores, a condição artística
a ser desenvolvida dentro da incerteza estabelecida como forma de pensar ― não significando
improviso ―, “é o elemento que une as idéias, os princípios gerais e os conteúdos educativos
com a realidade prática” (ibid, p.210-211).
2.2 Práticas de ensino de música investigadas
Dedicada ao ensino da composição, em particular ao professor e compositor Ernst
Widmer (1927–1990), Lima31 (1999) analisou e descreveu a pedagogia do Prof. Widmer, ao
longo de sua atuação como docente da Escola de Música da UFBA (1963-1987). Ele
investigou as relações entre prática pedagógica e seus referenciais teóricos abrangentes,
acompanhando possíveis transformações ou permanências ao longo do período. Avaliando as
relações estabelecidas entre o processo de ensino/aprendizagem e a produção composicional e
teórica concomitante, identificou as características da pedagogia do Prof. Widmer, tanto a
partir de contribuições produzidas pelo próprio professor, como daquelas provenientes de seus
ex-alunos.
A pesquisa de Lima (1999) traz uma descrição primorosa de uma pedagogia,
incluindo, além dos princípios filosófico-musicais norteadores do professor em foco, o
31 ERNST WIDMER e o ensino de Composição Musical na Bahia, tese defendida no PPG da FAE/UFBA. Pesquisa publicada em livro, Salvador: FAZCULTURA/COPENE, 1999.
41
cotidiano de seus procedimentos de sala, sua atitude básica, o ensino das técnicas
composicionais, as estratégias para despertar interesse e motivação, a maneira de comentar os
trabalhos dos alunos, além da literatura utilizada por ele como referência, daquele que foi um
dos mentores do Grupo de Compositores da Bahia (GCB), cujo lema em sua Declaração de
Princípios foi: “[...] estamos contra todo e qualquer princípio declarado”, pensamento que,
segundo Lima (1996, p.33), reverbera em muitos dos escritos do Prof. Widmer. Portanto, esta
pesquisa foi um marco e estímulo para mim, pois foi justamente a explanação primorosa de
uma pedagogia, dos princípios filosófico-musicais norteadores do professor investigado, que
me serviram de base, de inspiração, para que eu desenvolvesse uma investigação sobre a
pedagogia de Odette, tendo como referência maior os discursos dela, de seus ex-alunos, e
estabelecesse uma discussão crítica a respeito, delineando os princípios norteadores de sua
perspectiva pedagógica, similar àquilo desenvolvido por Lima.
A pesquisa de Beineke32 (2000) investigou três professoras de música na escola
fundamental com o intuito de desvelar algumas das lógicas que guiam e sustentam as ações
pedagógicas por elas desenvolvidas. A autora se fundamenta em referenciais da educação
como Gimeno Sacristán, Zabalza, Pacheco, Alarcão, Elbaz e Clandinin, dentre outros, o que,
além de dar substancial embasamento ao seu trabalho, possibilitou-me perspectivas
investigativas.
Sua dissertação situa-se no campo das pesquisas sobre o paradigma do pensamento do
professor que “têm o objetivo de compreender a forma como o professor concebe e justifica
suas ações pedagógicas, seus problemas, seu fazer e o contexto que delimita a sua atuação”
(BEINEKE, 2000, p.9). Ainda conforme a pesquisadora, este campo de pesquisa envolve
temas importantes como:
32 “O Conhecimento Prático do Professor de Música: Três estudos de caso”. Dissertação defendida no PPGMUS/UFRGS.
42
[...] processos pelos quais os professores transformam o conhecimento a ser ensinado em conteúdos de ensino; as justificativas que os professores dão às suas ações pedagógicas; a identificação dos processos de raciocínio utilizados pelos professores durante sua atuação; a compreensão das influências dos valores e crenças dos professores no desenvolvimento das suas aulas; a forma como os recursos pedagógicos são utilizados; os dilemas pessoais e profissionais dos professores. (BEINEKE, 2000, p. 9-10)
A investigação representou um importante referencial, sobretudo pela preocupação da autora
em compreender a natureza multifacetada do fenômeno educativo, o que vai ao encontro de
minhas propostas ao investigar o sistema de ensino de Odette.
Dedicado a Hans Joachim Koellreutter (1915-2005), Brito33 (2001) se propõe, além
de apresentar a essência daquilo que caracteriza a postura pedagógica do educador, mostrar
como ele cumpriu o projeto que idealizou. Assim, temas como “A questão do método”, “O
ensino pré-figurativo”, “Percepção e Consciência”, são salientados pela autora.
Avesso ao método, por considerar que “[...] o método fecha, limita, impõe... e é
preciso abrir, transcender, transgredir, ir além...” (BRITO, 2001, p.29) ―, pensamento similar
ao apresentado por Lima (1999) sobre o Prof. Widmer ―, o Prof. Koellreutter desenvolveu,
através do “ensino pré-figurativo”, seu importante trabalho pedagógico. Segundo ele, “o
ensino pré-figurativo das artes é parte de um sistema de educação que incita o homem a se
comportar perante o mundo, não como diante de um objeto, mas como artista diante de uma
obra a criar” (ibid, p.35). Completando ainda sua concepção do ensino pré-figurativo,
Koellreutter continua sua declaração:
[...] orienta e guia o aluno, não o obrigando, porém, a sujeitar-se à tradição, valendo-se do diálogo e de seus estudos concernentes àquilo que há de existir, ou se receia que exista. Um sistema educacional em que se não ‘educa’, no sentido tradicional, mas, sim, em que se conscientiza e ‘orienta’ os alunos através do diálogo e do debate. (KOELLREUTTER, 1997, p.41-65, apud BRITO, 2001, p.35.)
Assim, guiando-se pela observação e pelo respeito ao universo cultural dos alunos, aos seus
conhecimentos prévios, às necessidades e aos interesses dos educandos (Brito, p.29), o Prof. 33 “Koellreutter educador: o humano como objetivo da educação musical”
43
Koellreutter desenvolveu sua pedagogia privilegiando a formação integral do indivíduo e o
desenvolvimento global do potencial humano.
Quanto ao respaldo do trabalho de Brito, foi basicamente em depoimentos e
manuscritos do professor e depoimentos de seus ex-alunos. Ainda que a autora tenha
mencionado que sua reflexão sobre o trabalho de Koellreutter envolveu um relacionar com
outras áreas do conhecimento — ciências, filosofia, psicologia, pedagogia, entre outras, —
especificando inclusive que “[...] a fenomenologia, a Gestalt e os estudos sobre a física
moderna [...] foram bases teóricas importantes para o desenvolvimento de seus estudos e
reflexões” (ibid, p.27), ela praticamente não menciona as respectivas fontes em seu discurso
para que as conexões possam ser estabelecidas. Tal processo parte mais de uma dedução do
leitor, segundo pode ser observado, por exemplo, através do título “Percepção e consciência”
(p. 47), o que me pareceu uma tendência para um inter-relacionar com a fenomenologia, na
perspectiva de Merleau-Ponty. Independentemente da questão que discuto, considero muito
importante integrar a pesquisa de Brito nesta apresentação de trabalhos. A pesquisa oferece
um olhar à pedagogia desenvolvida por um professor de música, um educador musical. Ela
resgata o pensamento de um conceituado docente que tem um discurso, em determinados
pontos, similar à pedagogia desenvolvida por Odette, corroborando, sobretudo, à questão do
respeito ao aluno, tão defendido pela professora.
A pesquisa de Del Ben34 (2001) teve por objetivo investigar como as concepções e
ações de educação musical de três professoras de música35 configuraram a prática
pedagógico-musical nas escolas. Fundamentando-se também no campo da pesquisa sobre o
pensamento do professor, a autora recorreu ainda à fenomenologia social, a partir de Alfred
Schutz, buscando conceitos que a auxiliaram a compreender o mundo concreto e cotidiano
das práticas escolares. A autora declara que o termo concepção lhe parece mais abrangente 34 “Concepções e ações de educação musical escolar: três estudos de caso”, tese defendida no PPGMUS/UFRGS. 35 Atuantes em diferentes escolas da rede privada de ensino de Porto Alegre/RS.
44
porque, ao construírem suas concepções de educação musical os professores poderão levar em
conta crenças, valores, preferências, hábitos, princípios, percepções e interpretações de
práticas pedagógicas, além das tradições, aspectos, características e exigências dos contextos
específicos nos quais trabalham. Portanto, sua maior contribuição à minha pesquisa está na
visão que ela traz sobre o conceito de concepção, o que, a meu ver, estabelece uma relação
com a antropologia, ponto de partida de minha pesquisa.
A pesquisa de Cavalcante36 (2004) investiga a prática pedagógica do Prof. José
Eduardo Gramani (1944-1998), em particular seu legado sobre a rítmica, ainda que Gramani
também tenha atuado como instrumentista. O autor aborda questões como “a identidade do
professor e sua história de vida”; “o compromisso do profissional com a sociedade”,
estabelecendo um paralelo com Freire em vários momentos, em especial no capítulo que
recebeu o mesmo título do livro de Freire, “Educação e Mudança”. Além disso, Cavalcante
aborda questões como “Crenças e valores do professor”; “Práticas e técnicas pessoais de
ensino”, onde contextualiza a questão do conhecimento prático, descrevendo sobre as rotinas
de sala de aula, a brincadeira como elemento de superação dos desafios, entre outros, e
apresentando um capítulo intitulado “Características pessoais e profissionais”.
Cabe ressaltar que esta pesquisa, além de respaldada em importantes autores da
educação, como Freire, Nóvoa, Pérez-Gómes, Shulman, entre outros, contou também com
depoimentos de ex-alunos, colegas profissionais e parentes de Gramani. Os dados coletados
foram analisados visando a ressaltar a trajetória de vida pessoal e didática do professor. O
trabalho de Cavalcante traz uma significativa contribuição no âmbito da prática pedagógica de
um professor de música, visto que o pesquisador preocupou-se em inter-relacionar
informações que pudessem atestar a prática bem-sucedida do educador Gramani, sob o prisma
de suas crenças e valores; tal fato vai ao encontro de minhas propostas ao pesquisar o sistema
36 “Ensino de Rítmica Musical: analisando uma prática pedagógica bem sucedida”, dissertação defendida no PPG em Educação, da Universidade Federal de São Carlos.
45
de ensino de Odette, uma vez que este foi muito mais guiado por crenças, valores, princípios,
a saberes de natureza curriculares propriamente, ainda que estes também compusessem sua
perspectiva.
Mesmo não tendo como propósito resgatar o cotidiano do professor na preparação e
execução do ensino, a pesquisa de Araújo37 (2005) é um importante referencial porque teve
como objetivo investigar os saberes que norteiam a prática pedagógica de professores de
piano/bacharéis ao longo da carreira. A autora esclarece que o termo “saberes” foi utilizado
em seu trabalho para designar o “conjunto de conhecimentos” e que na literatura
contemporânea o termo “conhecimentos” foi substituído pela palavra “saberes”
Em seu processo de investigação, a pesquisadora apresenta três autores ― Tardif,
Huberman e Heidegger ― utilizados como referenciais. Tardif, para a discussão sobre saberes
docentes; Huberman, para as reflexões sobre as etapas da carreira docente, e Heidegger, para
orientar a linha discursiva embasada na fenomenologia.
No discurso sobre os saberes docentes, a autora apresenta o conceito de saberes,
conforme seu autor referencial, que diz:
O saber dos professores é o saber deles e está relacionado com a pessoa e a identidade deles, com sua experiência de vida e com a sua história profissional, com as suas relações com os alunos em sala de aula e com os outros atores escolares na escola, etc. Por isso, é necessário estudá-lo relacionando-o com esses elementos constitutivos do trabalho docente. (TARDIF, 2002, p.11 apud ARAÚJO, 2005, p.50)
Assim, para desenvolver sua proposta, Araújo investigou 03 professoras de piano em
diferentes etapas da carreira profissional, acreditando, com base em Tardif, que “a
temporalidade do saber é um elemento chave para a compreensão do exercício profissional
docente, pois os conhecimentos sobre o ensino são adquiridos no contexto de sua história de
vida escolar e pessoal” (ARAÚJO, 2005, p.52).
37 “Um estudo sobre os saberes que norteiam a prática pedagógica de professores de piano”, tese defendida no PPGMUS/UFRGS
46
Inspirado em Tardif a autora criou uma tipologia que pudesse abranger os diferentes
grupos de saberes que foram observados em sua investigação através das pianistas. Levando
em consideração que ela enfocou as especificidades dos docentes de música diferenciadas das
categorias existentes à profissão do professor do ensino regular propostas por Tardif, Araújo
criou quatro grupos de saberes (cf. p. 78-79): “Saberes Disciplinares”; “Saberes Curriculares”;
“Saberes da função educativa” e “Saberes Experienciais”38.
Portanto, por envolver a prática pedagógica sobre o ensino de um instrumento, o
trabalho de Araújo também mereceu uma investigação mais criteriosa. Ainda que a autora
tenha se detido mais a uma investigação dos saberes que norteiam a prática pedagógica de
professores de piano, criando inclusive categorizações de saberes, pode-se fazer um paralelo
com o ensino da flauta e, sobretudo, uma possível relação com a perspectiva pedagógica de
Odette, uma vez que os “saberes da função educativa” e os “saberes experienciais”,
mencionados pela autora, vão ao encontro de muitos dos saberes utilizados por Odette,
aliados, naturalmente, aos “saberes disciplinares e curriculares”.
38 Os saberes disciplinares foram considerados como um conjunto de saberes produzidos no âmbito de uma tradição cultural, que incluíram diferentes conhecimentos musicais, oriundos da formação inicial e continuada destes docentes; Os saberes curriculares, [...] foram dimensionados como um grupo de saberes, selecionado da cultura erudita e das instituições escolares, que o docente se apropria, por meio do contato com as instituições de formação e de atuação profissional. Tais conhecimentos são transmitidos ao longo de sua formação e de sua carreira, por meio do contato com diferentes currículos e programas escolares; Os Saberes da Função Educativa: optei por utilizar o termo saberes da função educativa para determinar os saberes que se referem especificamente às práticas de viabilização do ensino do instrumento, como a didática, as metodologias empregadas, enfim ao conjunto de conhecimentos que fazem parte do “ser” professor de piano no que tange a sua função de ensino; Os saberes experienciais [...] Foram definidos como um grupo de saberes que são desenvolvidos ao longo do trabalho cotidiano e, diferentemente dos saberes disciplinares e curriculares, não são institucionalizados, mas brotam de experiência e por ela são validados. (ARAÚJO, 2005, p. 79, 81, 82, 83, grifo meu)
47
2.3 Abordagens pedagógicas no ensino de instrumentos
Os processos de ensino utilizados pelos professores para ensinar instrumento ainda
preservam resquícios daquilo que caracterizava as corporações do século XVIII, ou seja, um
processo de transmissão de tradição oral39, baseado no estilo “mestre-discípulo”, quase
sempre com aulas individuais, ainda que existam exceções40. Este pensamento é
compartilhado por Kraemer (2000), Rónai (2003) e Harder (2008).
De acordo com Harder (2008), até a metade do século XIX a transmissão musical, de
uma geração para outra, se dava, na maioria dos casos, de forma oral, e o processo não
enfatizava exclusivamente as habilidades técnicas do instrumento. De acordo com a autora, a
tradição oral tinha como objetivo o desenvolvimento integral do músico, aliando a técnica às
habilidades criativas através da improvisação e da composição. Ela salienta: “Os alunos
iniciantes aprendiam as passagens freqüentemente ‘de ouvido’, procurando imitar o professor
nas peças desconhecidas e a reconstruir no instrumento peças e canções já familiares”
(HARDER, 2008, p.43).
Após a segunda metade do século XIX, com o aperfeiçoamento físico-acústico dos
instrumentos, especialmente os de sopro, o aparecimento dos métodos impressos em larga
escala e, conseqüentemente, com os novos e arrojados desafios impostos pelos compositores
em função das novas concepções de instrumentos, não obstante da tradição mestre-discípulo
ter sido mantida, os exercícios técnicos tendem a prevalecer sobre os melódicos. Neste
particular McPherson e Gabrielsson (in PARNCUTT & McPHERSON, 2002, p. 100)
39 A “tradição oral”, “forma oral”, ou “oralidade” é compreendida aqui como uma forma de ensino predominantemente falado e ilustrado musicalmente através do próprio professor tocando. 40 No que diz respeito às aulas em grupo, HALLAM (2006, p. 168) argumenta que as comparações da eficácia entre as aulas em grupo e as individuais não são conclusivas. As aulas em grupo podem estimular a competição, o desenvolvimento social, além de oferecer vantagens no que diz respeito ao tempo e custo. Já o ensino individual “permite que o professor enfoque no detalhe sobre cada aspecto da performance individual do estudante”.
48
argumentam que o desenvolvimento das máquinas de impressão a partir de 1830, produzindo
partituras em larga escala com um custo relativamente barato, foi o responsável pelas
drásticas mudanças no comportamento dos músicos. Os intérpretes passaram a dar maior
ênfase às habilidades técnicas, diminuindo a ênfase sobre a criação, improvisação e expressão,
características da tradição oral que procurava o desenvolvimento integral do músico.
No contexto específico do ensino da flauta, Rónai ilustra ambas as situações
apresentadas quando declara:
[...] E se no século XVIII a aquisição de técnica vem junto com a de repertório – os exemplos utilizados nos Métodos são normalmente extraídos de peças em voga no momento – no século XIX, exercícios e peças são bem separados. Aparecem trechos compostos de intervalos difíceis, repetidos em várias tonalidades (os precursores dos “Exercices Journaliers” de Taffanel & Gaubert) e exercícios sobre escalas cromáticas. Inúmeros tratados são lançados quase simultaneamente, e as editoras florescem. Os velhos métodos são abandonados e esquecidos, assim como todo o repertório dos séculos anteriores. (RÓNAI, 2003, p.12-13)
2.3.1 Modelos de ensino de instrumentos
De acordo com Tait (1992), o modelo geral para ensinar música normalmente se
origina do professor de conservatório, que dirige o foco sobre a partitura. Neste modelo o
professor analisa a execução musical, identifica problemas e propõe soluções. Para o autor,
em algumas situações o processo do aprendizado é feito a partir da imitação exata do
professor, ou seja, este apresenta o modelo e o aluno o copia; em outras existe uma margem
de flexibilidade para se desenvolver um diálogo com os alunos, sendo estes encorajados a
compartilhar suas opiniões. Portanto, há dois modelos distintos que, a partir da perspectiva de
Mazzoli (1997, p.6), podem ser vistos como Programação e Projeto. Enquanto a primeira
expressa um modelo linear, implicando um controle cognitivo do professor sobre o aluno, o
Projeto expressa um modelo complexo que implica a autonomia cognitiva do professor e dos
alunos.
49
Dos dois modelos apresentados Tait declara que o primeiro, centrado no professor,
segundo ele denomina-o, prevalece. O autor argumenta que este modelo parece ser mais
razoavelmente bem acertado “aos alunos motivados musicalmente, onde são dedicadas
grandes quantidades de tempo à prática ou realização do refinamento das respostas desejadas”
(TAIT, 1992, p.532), sendo, portanto, oferecido aos alunos o mínimo de oportunidades para
eles tomarem consciência dos seus próprios papéis no processo de aprendizagem musical.
No segundo modelo, da margem de flexibilidade para o diálogo, ou o modelo centrado
no aluno, em contraposição ao centrado no professor, conforme Hallam (1998, p. 240), o
professor é sensível às indicações daquilo que o aluno deseja aprender e à maneira preferida
por ele para desenvolver suas atividades. Tait (1992) argumenta que este modelo não é tão
atrativo à grande maioria dos estudantes porque a sociedade contemporânea necessita de um
retorno mais imediato, o que não é característico deste modelo devido ao fato de sua natureza
demandar maior quantidade de tempo ao processo. Ao contrário do modelo centrado no
professor, este oferece oportunidades para os alunos tomarem consciência dos seus próprios
papéis no processo de aprendizagem musical.
Apoiando-se em autores da área de estudos sobre a teoria da educação41, Hallam
(2006, p.165-166) declara: “em nível mais simples, o ensino pode ser visto tanto como a
transmissão de conhecimentos ou a facilitação da aprendizagem”. Evidências de todas as
áreas da Educação Musical, segundo a autora declara, indicam que muito do processo de
aprendizagem é direcionado pelo professor, ou seja, é baseado na transmissão do
conhecimento. Este modelo, segundo Hallam (1998, p.232-233), pertence a uma concepção
de ensino onde os alunos são vistos como receptores passivos do conhecimento, ou seja, o
professor controla totalmente as atividades, ditando inclusive o currículo, repertório, além de
decidir como deve ser tocado tecnicamente e musicalmente.
41 Tais como Kember e Gow (1994), Dunkin (1990) e Pratt (1992), entre outros.
50
No que diz respeito à facilitação da aprendizagem, de acordo com a autora (ibid,
p.125), em primeiro lugar os professores precisam estar cientes de que cada aluno é um
indivíduo. Não obstante a existência de algumas práticas que oferecem um ensinamento mais
generalizado, os professores poderão experienciar dificuldades no processo devido a
diferenciadas maneiras de ensinar das quais cada indivíduo vai necessitar.
Mesmo que muito do ensino da música seja baseado na transmissão do conhecimento,
conforme Hallam (1998) e (2006) menciona, ela argumenta que a facilitação da aprendizagem
conta com quatro dimensões: estruturando a aprendizagem; motivando a aprendizagem;
incentivando a atividade e independência; estabelecendo relações interpessoais condutivas ao
ensino. Sob meu olhar, estas dimensões remetem ao segundo modelo apresentado por Tait, o
centrado no aluno42. Hallam também argumenta que, mesmo ocorrendo pouca ênfase sobre
este processo de ensino, para a criatividade musical este processo é essencial.
Deste modo, igualmente observado no tópico “A diversidade como ponto de partida”,
aqui também pode ser percebida uma clara divisão de pensamentos situados na relação
professor e aluno. Se de um lado tem-se uma relação caracterizada pela ausência de diálogo,
uma relação vertical, onde o professor controla totalmente as atividades de ensino, por outro
se tem uma relação horizontal, dialógica, que possibilita uma prática transformadora. Assim,
reitero minha argumentação a favor das lentes das Teorias Progressistas, através da tendência
libertadora, incluídas na concepção histórico-social, conforme mencionado.
42 Ainda que nenhum dos autores tenha mencionado Rogers, segundo DOXSEY (2005, p.36): “Carl Rogers foi o fundador da abordagem da psicologia denominada ‘Abordagem Centrada na Pessoa’, surgida no início dos anos de 1940, em reação à Psicanálise e à Teoria Comportamental. Influenciada por pressupostos filosóficos do humanismo, do existencialismo de Kierkgaard e da Fenomenologia, o pressuposto básico nesta abordagem é a crença na tendência atualizante, tendência inerente a todo ser humano, capaz de conduzi-lo para o desenvolvimento e atualização de suas potencialidades. Assim, ao apresentar sua nova proposta, Rogers enfatiza não apenas o aspecto cognitivo da aprendizagem, mas também o afetivo e o social, na qual o aluno tem condições de entrar em contato com seu mundo interno e com o seu processo de aprendizagem. Para o Rogers, a relação professor-aluno-conteúdo é o ponto chave para consolidar o processo de aprendizagem ‘significativa’ no interior do aprendiz”.
51
2.3.2 A técnica pura versus a expressão musical Conforme já apontado por Harder (2008) e Rónai (2003), e segundo pode ser
observado na literatura específica da flauta43, do século XIX aos nossos dias a quantidade de
literatura publicada44 é muito extensa. Se de um lado a expressão musical deveria ser o
objetivo final da grande maioria das propostas pedagógicas, via de regra a ênfase recai sobre o
desenvolvimento da técnica pura45. Como se sabe, essa tendência não é particular da flauta,
uma vez que esta cultura tornou-se predominante a partir dos novos ideais sonoros impostos à
sociedade, advindos das novas concepções dos instrumentos e do repertório especialmente
composto para eles. Assim, professores de instrumento, de modo geral, têm privilegiado
exaustivamente a técnica, enquanto os aspectos expressivos ficam relegados a um segundo
plano. Tais constatações são apontadas por Lisboa et al., quando declaram:
Uma série de estudos revela que professores gastam relativamente pouco tempo com questões relacionadas à expressividade, ao emocional e com os aspectos estéticos da performance, comparados com os de natureza técnica. Isto é surpreendente, considerando-se que a originalidade artística — a mais pura, no sentido mais romanticamente definido — é menos freqüentemente associada às proezas técnicas do que às habilidades musicais.46. (LISBOA et al., 2005, p. 76, grifo meu)
Assim, neste processo, como argumentei anteriormente, as habilidades técnicas,
impostas através dos “novos ideais sonoros”, são praticadas, quase sempre, de forma
enfadonha e sem a “expressão musical”. Portanto, os estudos tendem a ser direcionados à
43 Vide http://www.flutehistory.com/Resources/Lists/Flute.methods.php3, em 16/09/08 44 Tratados, métodos, cadernos de estudos e livros sobre flauta, entre outros materiais afins. 45 “[...] define-se como o estudo da técnica pura com a finalidade de desenvolver coordenação motora, destreza e fluência, fora do contexto musical. Restringe-se ao estudo de escalas, arpejos, notas dobradas, variações intermináveis sobre motivos repetidos em determinada tonalidade ou modulantes, constituindo-se na preparação do músico atleta que aspira a uma técnica perfeita, seja qual for o instrumento. Assim como o dançarino ou o desportista, esse músico busca precisão e controle, trabalhando passo a passo cada movimento dos mais variados tipos de técnica instrumental”. (SERRÃO, 2001, p. 12 apud RÓNAI, 2003, p.69) 46 A number of studies reveal that teachers spend relatively little time on expressive, emotional and aesthetic aspects of performance, as compared with those of a technical nature. This is surprising, considering that artistic originality - in its purest, most Romantically defined sense - is less often linked with technical prowess than to musical abilities. (LISBOA, et al., 2005, p.76, grifo meu, tradução minha)
52
técnica pura, visando a desenvolver as mais distintas habilidades, como, por exemplo,
coordenação motora, destreza e fluência, muitas vezes fora de um contexto musical, o que é
lamentável porque questões importantíssimas como a individualidade, a personalidade, são
relegadas, indo justamente em direção oposta aquilo que Odette remete sobre seu professor ao
declarar sobre a importância da personalidade, conforme poderá ser visto no subtópico “O
respeito à expressão de cada um”, do capítulo 3.
Ainda na direção da técnica, Hallam (2006, p. 168) declara: “a técnica é
freqüentemente enfatizada em detrimento das considerações musicais”, e completa dizendo
ainda que os questionamentos dos alunos representam uma pequena proporção do tempo da
aula, sinalizando que estes não têm voz ativa em sala. Ainda na direção da tendência de
enfatizar a técnica, a referida autora (1998, p.234) menciona um estudo onde constatou que o
trabalho técnico recebeu 59% do tempo da aula, contra 20% para notação, 16% para a
habilidade “aural”47 e 5% para a expressão e forma.
Portanto, contrapondo a ênfase demasiada às questões técnicas, autores como Lussy
(1931), Thurmond (1991), Artaud (1996), Sloboda (2000), Juslin e Person (2002), Lisboa et al.
(2005), dentre outros, apontam para a importância em desenvolver procedimentos de ensino
voltados aos aspectos expressivos.
Thurmond (1991, p. 18) declara que durante anos se pensava sobre a expressão como
algo impossível de ser ensinado, sendo adquirida pelo músico somente depois de assegurar
mestria técnica, possibilitando-lhe encontrar a si mesmo musicalmente48. Acreditando que ela
47 Conforme TAIT (1992, p.529), a modelagem aural é uma estratégia não-verbal que pode melhorar tanto a habilidade quanto o desenvolvimento criativo. “Este método tornou-se um direto e um econômico meio de comunicação não-verbal e não-instrumental porque não requer nenhum conhecimento altamente técnico; [...]” (TAIT e HACCK, p.86, 1984) De acordo com David ELLIOT (1983, apud TAIT, 1992, p.529), a modelagem aural tem sido uma parte intrínseca e natural do jazz, onde a linguagem corporal reforça o sentir os acentos, síncopes, inícios e terminações de frase, clímaces, pontos de cadência, gestos dramáticos, e o crescer e decrescer da dinâmica. 48 A propósito da argumentação de “encontrar a si mesmo musicalmente”, SANTIAGO (1992, p.221) declara algo a este respeito muito pertinente: “O educador musical consciente deve preocupar-se em oferecer a seus alunos a possibilidade do jogo musical que favoreça o encontro consigo mesmo e a percepção de diversos
53
poderia ser ensinada, o autor desenvolveu sua metodologia escrevendo um importante livro,
“Note Grouping – A Method for Achieving Expression and Style in Musical Performance”.
Conforme o autor declarou, este fato aconteceu pela vontade de ajudar muitos estudantes
hábeis tecnicamente, proficientes em seus instrumentos, mas aos quais faltava vida em suas
execuções, “calor”, qualidades, segundo ele, necessárias ao sucesso dos artistas concertistas.
Ao abordar sobre como progredir tecnicamente, Artaud (1996, p.108) argumenta a
importância de não só racionalizar os esforços que envolvem o estudo das técnicas49, mas
também de refleti-los, salientando que o trabalho deve ter o objetivo da expressão musical,
fato que, infelizmente, conforme apontaram Lisboa et al. (2005, p.76), ainda é surpreendente
em nossa realidade porque, de acordo com estudos mais recentes, se gasta mais tempo com
questões relacionadas com a natureza técnica do que com questões relacionadas à
expressividade, ao emocional e a aspectos estéticos da execução.
Sloboda (2000, apud HARDER, 2008, p. 39) declara que as “habilidades em
performance instrumental não são apenas técnicas e motoras”. Ainda conforme Harder, para o
autor “São necessárias também habilidades interpretativas que gerem diferentes performances
expressivas de uma mesma peça de acordo com o que se quer comunicar de forma estrutural e
emocional” (ibid), fato que, como se pode perceber, integra a relação entre habilidade técnica
e expressiva, reforçando a opinião de Artaud. Nessa direção Juslin e Person (in PARNCUTT
& McPHERSON, 2002, p.219-238) apresentam um capítulo onde desenvolvem o tema
“Comunicação Emocional”50, estabelecido por eles como “situações onde o performer
pretende comunicar uma emoção ao ouvinte”. Os autores declaram haver muita coisa escrita
elementos musicais, conduzindo-o para a conscientização do que realiza e para a abertura a um número variado de possibilidades”. [grifo meu] 49 Ainda que o conceito sobre “técnica” apresentado aqui esteja contextualizado especificamente à flauta transversal, pode ser feito um paralelo com outros instrumentos de um modo geral. Portanto, de acordo com ARATUD (1996, p.107): “o termo ‘a técnica’ é utilizado impropriamente no singular. Não existe uma, mas diversas técnicas a controlar: vibrato, respiração, trabalho dos lábios, da língua, trillos, boa posição dos dedos, terças, quartas, oitavas, ornamentos, articulações, intervalos, notas longas, dinâmicas, constituem alguns tópicos propostos nos capítulos essenciais. Poder-se-ia enumerar mais de 300. [...]”. 50 Emotional Communication
54
sobre expressão na música, onde desde a antigüidade até os tempos modernos uma variedade
de idéias sobre o que a música é capaz de expressar tem sido revelada51. Os autores também
declaram que as emoções são difíceis de definir e medir, mas pesquisas creditam que
provavelmente a emoção consiste de muitos componentes, entre eles: avaliação cognitiva,
sentimento subjetivo, fisiologia e expressão, além de outros. Assim, além de os autores
demonstrarem uma preocupação em desenvolver estratégias para o ensino e para a resolução
de questões fora do âmbito da técnica, eles defendem a posição de estabelecer um equilíbrio
entre expressão e técnica, posição também compartilhada por Artaud, conforme foi visto.
2.4 Práticas de ensino da flauta transversal no Brasil
Ao consultar as pesquisas produzidas nos Programas de Pós-Graduação em Música do
Brasil (PPGMUS) dedicadas ao ensino de instrumento, em especial sobre a flauta, constatei
uma realidade ainda não muito favorável às práticas de ensino. Embora os PPGMUS nos
últimos 10 anos venham produzindo regularmente52, nossos pesquisadores, com raríssimas
exceções, ainda não atentaram para uma importante questão que diz respeito a uma visão
geral sobre os procedimentos pedagógicos dos professores de instrumento. A este respeito, 51 Entre estas idéias destacam-se: emoção, beleza, movimento, forma expressiva, energia, tensão, acontecimentos, crença religiosa, identidade pessoal e condição social. 52 Como ilustração dos trabalhos acadêmicos publicados nos últimos 10 anos, que remetem ao âmbito do ensino e pedagogia da flauta transversal, destacam-se: OZZETTI (2006) João Dias Carrasqueira: um mestre da flauta; COELHO (2006) A Influência do Trato Vocal na Qualidade Sonora da Flauta; SAMPAIO NETO (2005) A Iniciação Infantil à Flauta Transversal a partir do Pífaro: Repertório, Aspectos Técnicos e Recursos Didáticos; HOMEM (2005) Expedito Vianna: um flautista à frente de seu tempo; FONSECA (2005) Os Principais Desconfortos Físico-Posturais dos Flautistas e suas Implicações no Estudo e na Performance da Flauta; PAIXÃO (2005) O Uso do livro-texto na pedagogia da Flauta Transversal no Brasil: um estudo preliminar; BENCK (2004) O Regionalismo Fonético e a Articulação Fundamental na Flauta Transversal; RÓNAI (2003) Em busca de um mundo perdido: Métodos de flauta do Barroco ao Século XX; GORITZKI (2002) Manezinho da Flauta no Choro: uma contribuição para o estudo da flauta brasileira; FUCHS (2000) A Produção Sonora na Flauta Transversal; D’AVILA (2000) A Articulação na Flauta Transversal Moderna: uma abordagem histórica, suas transformações, técnicas e utilização; RANEVSKY (1997) A Embocadura na Flauta Transversa Moderna; OLIVEIRA (1997) A Cor do Som na Flauta: Três Peças de Autores Brasileiros; GOMES (1997) Pixinguinha – Choro: Presença e Aplicabilidade no Estudo da Flauta Transversal no Brasil; DIAS (1996) A Expressão da Flauta Popular Brasileira: uma escola de interpretação; entre outros.
55
Tourinho (1998) já apontava para essa lacuna, argumentando sobre a realidade que a área de
Educação Musical no Brasil já enfrentava. Assim ela declarou:
A área de Execução Musical no Brasil se ressente da ausência de trabalhos escritos que registrem soluções encontradas por executantes e professores de instrumento. Uma quantidade expressiva de intérpretes e professores ainda não vê como necessidade e de importância o fato de registrar e perpetuar por escrito o seu trabalho docente ou executante e considera a pesquisa sistemática não pertinente ao seu campo de ação. (TOURINHO, 1998, p. 197)
Tal constatação também foi investigada por Borém (2001) quando, por meio de uma
análise estatística em um universo de 585 pesquisas registradas no sítio da Associação
Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Música (ANPPOM), produzidas em performance
no Brasil entre 1981 e 2001, nos apresenta o índice de 6,2% de ocorrência de trabalhos
produzidos (especificamente entre 1986 a 2001) na subcategoria de estudos bifacetados
“Performance Musical e Educação Musical” (cf. p.20). Ainda que Borém tenha manifestado
que suas categorizações tiveram um caráter arbitrário, apresentando no artigo apenas uma
aproximação suficiente para mostrar tendências, sua pesquisa constitui-se em um significativo
referencial aos pesquisadores. Sobre esta subcategoria ele declarou:
Em Performance Musical e Educação Musical os interesses são bastante diversos, mas observa-se um grande interesse em integrar o ensino à realidade do performer brasileiro (O uso da música contemporânea brasileira na iniciação ao piano; A obra pianística de Ernesto Nazareth: uma aplicação didática) ou suprir as deficiências de métodos específicos de ensino instrumentais (Suplementação de um método de violino para o aluno brasileiro; Abordagem construtivista ao ensino básico de clarineta; A produção sonora como elemento básico na formação de um principiante de piano). Há ainda a intenção de divulgar metodologias de ensino instrumentais originais (Pedagogia da sonoridade: o método de Heitor Alimonda para o ensino do piano), recuperar o papel de importantes pedagogos da performance (Arnaldo Estrela: a arte de uma didática) ou sintetizar tendências do ensino instrumental (O ensino do contrabaixo: uma visão atual) [...].(BORÉM, 2001, p.24)
Harder (2003) também apresentou importantes reflexões sobre o papel do professor de
instrumento nas Escolas de Música Brasileiras, externando sua preocupação a respeito da
escassez de trabalhos que aliem performance a processos pedagógicos. A autora apontou para
56
a necessidade de elaboração e divulgação de estratégias educacionais que auxiliem na
construção de novas competências requeridas. A este respeito ela declarou:
Reafirmamos a necessidade já registrada no relatório de Ray (2001), de se desenvolver “uma cultura de pesquisa entre educadores que lidam com ensino de instrumento musical”. O incentivo às pesquisas direcionadas à Pedagogia do Instrumento, certamente gerará subsídios valiosos ao processo de construção das competências necessárias ao professor, tornando-o preparado para as mais diversas situações de ensino, bem como apto a corresponder ao perfil e às buscas do aluno brasileiro do Século XXI. (HARDER, 2003, p.42)
Das pesquisas dedicadas ao ensino específico da flauta — envolvendo a pedagogia dos
professores — destacam-se os trabalhos de Homem53 (2005) e Ozzetti54 (2006), ambos com
tendência memorialista. Harder55 (2008), tendo como objeto de estudo a “Abordagem
PONTES”56, apresentou sua pesquisa investigando a pedagogia de três professores de
instrumentos diferentes: violão, piano e flauta.
Abordando quatro propostas pedagógicas57 desenvolvidas pelo flautista e professor
Expedito Vianna (1928), a pesquisa de Homem (2005) é muito importante porque, além de
ser uma das pioneiras no Brasil no que diz respeito à maneira de ensinar de um professor de
flauta — se não a primeira —, traz significativas contribuições aos flautistas, sejam estudantes
ou profissionais, ainda carentes de literatura específica sobre a mencionada prática,
desenvolvida, sobretudo, por intérpretes e professores brasileiros.
Homem nos mostra que as idéias do Prof. Expedito Vianna continuam vivas e atuais,
ilustrando suas argumentações com trabalhos de flautistas/professores/pesquisadores que
53 “EXPEDITO VIANNA: um flautista à frente de seu tempo”. Artigo apresentado ao Programa de Pós-Graduação em Música da UFMG/2005, como requisito parcial da obtenção do título de mestre em música. 54 “JOÃO DIAS CARRASQUEIRA: um mestre da flauta”. Artigo apresentado ao Programa de Pós-Graduação em Música da UFMG/2006, como requisito parcial da obtenção do título de mestre em música. 55 “A Abordagem PONTES no ensino de instrumento: três estudos de caso”. Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Música da UFBA/2008, como requisito parcial da obtenção do título de doutor em música. 56 Conforme sua autora, a Profª. Dra. Alda Oliveira, PONTES pode ser considerada como um guia para o ensino e para a ação em educação musical. (OLIVEIRA, 2006) 57 I. alteração do timbre através da utilização de vogais; II. aplicação dos estudos de sonoridade de Marcel Moyse no estudo de passagens difíceis do repertório; III. solução de problemas técnicos através do reagrupamento de notas; IV. estudo de tonalidades baseado na transposição de melodias simples.
57
atualmente desenvolvem atividades em direção similar às desenvolvidas pelo Prof. Expedito.
Assim, conforme declarou Maurício Freire, além de objetivar o resgate e validar o trabalho do
professor, realizado “[...] sem acesso a bibliografia, laboratórios ou outros recursos. Apenas
seu talento e intuição. [...]” (FREIRE, 2005 apud HOMEM, 2005, p. 34), Homem também
demonstrou ainda, através de experimentos e análise comparativa das propostas pedagógicas,
que o Prof. Expedito Vianna introduziu uma proposta sem precedentes na história dos
flautistas brasileiros de sua geração.
Como forma de aferir a utilização e a continuidade do trabalho desenvolvido pelo
Prof. Expedito Vianna, desenvolveu-se um questionário que foi enviado a doze ex-alunos do
professor, todos atuantes profissionalmente, conforme estabelecido pelo pesquisador. De
acordo com relato do autor da pesquisa, verificou-se que 100% dos entrevistados ainda
utilizam as mencionadas propostas ― tanto no estudo individual, como em atividades
pedagógicas ― assimiladas através do contato com o Prof. Expedito.
Assim, ao resgatar as propostas técnico-musicais do Prof. Expedito Vianna, o autor
nos apresenta um legado de uma concepção que possibilita, provoca a criatividade, coerente e
possível, não tornando o flautista um mero adestrador de habilidades. São propostas que
rompem com a monotonia, e que, ao mesmo tempo, instigam o flautista, seja estudante ou
professor, às pesquisas sobre sua prática de estudo diário com a flauta com mais objetividade,
obtida através de uma integração racional e equilibrada entre música, expressividade,
criatividade e capacidade física58. Este é o mote da grande conexão com o sistema de ensino
de Odette, uma vez que a preocupação com a expressividade é um dos principais pontos no
ensino da professora, conforme argumentam seus ex-alunos, e o Prof. Expedito, na condição
de educador atento, sensível às necessidades dos alunos, desenvolveu habilmente uma
proposta pedagógica unindo expressividade e habilidade técnica.
58 Como, por exemplo, os movimentos dos dedos, língua, lábios, entre outros.
58
A pesquisa de Ozzetti (2005) registrou e documentou os aspectos mais significativos,
tanto na condição de flautista quanto de professor, de João Dias Carrasqueira (1908-2000).
Contando com uma série de depoimentos do professor59 e de seus ex-alunos, a pesquisa foi
desenvolvida em cinco capítulos básicos60, sendo guiada por importantes referencias, entre
eles, Paulo Freire, Keith Swanwick e Violeta Gainza.
É no cap. III que a autora apresenta a metodologia do ensino da flauta desenvolvida
pelo Prof. Carrasqueira. Acreditando que “[...] cada aluno é um aluno e é praticamente
impossível escrever um método para todos os alunos [...]” (CARRASQUEIRA, 1993, apud
OZZETTI, 2006, p. 19), sua metodologia consistia em criar ou indicar exercícios que estavam
diretamente relacionados com as dificuldades de cada aluno, sendo, portanto uma prática
pedagógica individualizada. Conforme declaração do professor:
[...] já foi escrito muita coisa sobre flauta, muito sistema de ensino sobre flauta, mas é difícil arranjar um método escrito, um livro com todas as maneiras de se lecionar e que sirva para àquela pessoa. Poderá servir com o tempo, mas nós não esperamos o tempo. Nós procuramos um jeitinho para que essa pessoa assimile, que goste e que aprenda. (CARRASQUEIRA, 1993, apud OZZETTI, 2006, p. 19-20, grifo meu)
A pedagogia do professor não se limitava apenas ao ensino da flauta uma vez que,
conforme foi observado, ele ilustrava suas aulas com histórias sobre os compositores, os
flautistas, incentivando sempre seus alunos a aprofundarem estudos em livros especializados,
muitas vezes emprestados pelo próprio professor. Além disso, o Prof. Carrasqueira era dotado
de uma capacidade para ajudar seus alunos a superarem as dificuldades fora do campo da
música, como foi o caso de uma aluna deficiente visual, que mais tarde se tornou professora
de flauta. Como declarou um de seus ex-alunos, “ele superava as dificuldades, tinha essa
59 Registrados em áudio pela pesquisadora no ano de 1993. 60 I. Introdução; II. O Canarinho da Lapa; III. O professor e sua metodologia de ensino de flauta; IV. A magia da flauta para crianças; V. “Flautosofia”, mais a Conclusão, as Referências Bibliográficas, os Arquivos Consultados e os Anexos.
59
capacidade pela sua inteligência e pelo ideal de educador no sentido amplo da palavra”
(GRUNSPUN, 2005 apud OZZETTI, 2006, p. 20).
No âmbito da valorização da cultura, no contexto de sala de aula, o professor utilizava
com muita convicção músicas do repertório brasileiro, como valsas, serestas, choro e músicas
do cancioneiro popular. Conforme declaração “ele preocupava-se em desenvolver nos alunos
uma consciência de suas origens culturais, ampliando o universo musical como ferramenta
para a interpretação” (OZZETTI, ibid, p. 26). Além disso, o professor também compunha
melodias, fazia arranjos que, além de atender a demanda pedagógica, associava habilmente a
proposta pedagógica com a música popular brasileira, como ele próprio afirmou: “Eu tenho
vários arranjos para quarteto de flautas sobre músicas brasileiras e quartetos sobre minhas
músicas também. Sempre com o intuito pedagógico de ajudar o aluno” (CARRASQUEIRA,
1993 apud OZZETTI, 2006, p.31). Isto reflete o que Paulo Freire defende como “Docência
Transformadora”, uma vez que, conforme menciona a autora, “O educador Paulo Freire
ensina que a aprendizagem acontece mais facilmente, quando o aluno reconhece elementos da
sua própria cultura nos conteúdos trabalhados” (OZZETTI, 2006, p.23). Assim como Freire,
educadores musicais como Keith Swanwick e Violeta Gainza também discursam nesta
direção, além de mestres da música como Villa-Lobos, que, conforme se sabe, implantou um
programa de educação musical baseado no canto coletivo para a escola de 1º grau, ressaltando
a importância de se criar “uma consciência musical brasileira” (PAZ, 2000, p. 18, apud
OZZETTI, 2006, p.25).
Portanto, a maneira de ensinar do Prof. Carrasqueira delineia uma pedagogia centrada
no aluno, naturalmente de muito respeito, onde cada um é valorizado como indivíduo,
independentemente de possuir maior ou menor talento, sendo instigado a pensar e tomar
consciência de seu papel na sociedade, maneira esta que se aproxima muito do sistema
desenvolvido por Odette. Ainda conforme relato, “o trabalho do professor [Carrasqueira] era
60
movido por uma idéia filosófica de que quem praticasse música estaria contribuindo para um
mundo melhor, nas suas próprias palavras [do professor], ‘um mundo fraterno, de paz e
amor’” (OZZETTI, ibid, p.45). Ela encerra sua discussão apresentando a expressão
“flautosofia”61, criada pelo professor, que resume os princípios pedagógico-musicais do
mestre.
A pesquisa de Harder62 (2008) investigou como três professores de instrumento da
Escola de Música da Universidade Federal da Bahia — Mário Ulloa (Violão), Diana Santiago
(Piano) e Lucas Robatto (Flauta) — realizam suas articulações pedagógicas em sala de aula,
visando a uma aprendizagem significativa por parte dos alunos. Para isto, a autora registrou
em áudio e vídeo as aulas dos professores, com diferentes alunos e em momentos distintos de
semestres letivos, para que posteriormente fossem analisadas e estabelecidas as relações das
articulações pedagógicas dos professores investigados com a “Abordagem PONTES”63.
Ainda que nossos objetos de estudo sejam distintos, a pesquisa de Harder (2008) traz
importantes contribuições para minha reflexão enquanto pesquisador. Ela apresenta um
61 [...] Flautosofia é transformar o som da sua flauta em felicidade. Essa filosofia tem como objetivo maior um mundo mais belo, mais alegre, mais feliz. A música é a melhor das religiões. É uma religião que todos entendem e uma linguagem que todos entendem. Você deve falar muito em fraternidade, em amor a Deus, ao próximo, dentro das suas convicções. Eu tenho lidado com muitos alunos judeus, espíritas, protestantes, católicos, como se eles fossem filhos da gente, temos o mesmo pai, que é Deus. Todas as religiões procuram se unir a Deus e ao próximo. Religar. Religião é religar Deus ao homem e o homem aos outros homens. É confraternização. Fraternidade humana. E com a linguagem da música, se pode fazer isso. Talvez a música ainda salve o mundo, porque os homens não se entendem. Mas a música todo mundo entende. Ela toca corações. É um sonho. Mas pode ser assim, não? (CARRASQUEIRA, 1993, apud OZZETTI, 2006, p.45) 62 “A Abordagem PONTES no ensino de instrumento: três estudos de caso”. Tese defendida no PPGMUS da Escola de Música da UFBA. 63 Pode ajudar os professores de música a articular os diferentes aspectos que acompanham o processo de ensino-aprendizagem, especialmente aqueles relacionados com os pontos de contato culturais, como as características pessoais do aluno, dos elementos e a essência do contexto sociocultural, dos conhecimentos e experiências musicais prévias do aluno, e o novo conhecimento a ser aprendido. [...] Estas são as principais características da abordagem Pontes: ● POSITIVIDADE: positividade: abordagem positiva, atitude, perseverança, poder de articulação e habilidade de manter a motivação do estudante, acreditando no seu potencial para aprender e desenvolver-se; ● OBSERVAÇÃO: observação; capacidade de cuidadosamente observar o aluno, o contexto, as situações cotidianas, os repertórios e as representações; ● NATURALIDADE: naturalidade, simplicidade na relação com o estudante, com o currículo e com os conteúdos de vida, com as instituições, com o contexto e os participantes; tentar compreender o que o aluno expressa ou quer saber e aprender; ● TÉCNICA: técnicas adequadas a cada situação educacional, habilidade para desenhar, desenvolver e criar novas e adequadas estruturas de ensino-aprendizagem de diferentes dimensões; ● EXPRESSÃO: expressão, criatividade, esperança e confiança na habilidade e capacidade do aluno para se desenvolver, expressar e aprender; ● SENSIBILIDADE: sensibilidade às diferentes músicas, às linguagens artísticas em geral, à natureza e ao meio ambiente, às necessidades dos alunos e aos diferentes contextos. (OLIVEIRA, 2006, p.30-32)
61
conjunto de princípios que pode contribuir no processo que cada professor articula sua prática
pedagógica, sobretudo no que diz respeito às questões humanas, lamentavelmente muitas
vezes desconsideradas, além de ilustrar com situações práticas do cotidiano de sala de aula.
Enquanto Harder (2008), baseando-se especificamente na “Abordagem PONTES”,
procura relacionar as articulações pedagógicas dos professores investigados sob a luz desta
abordagem, minha pesquisa analisou depoimentos de Odette e entrevistas com seus ex-alunos
para, posteriormente, relacionar a conduta pedagógica da professora com a concepção que
mais se aproximava do seu sistema de ensino.
62
Capítulo III
3. Odette: percurso e discurso
“[...] como eu mesma vim ao ensino, como me tornei professora - eu não estudei especificamente para isso – veio normalmente ao decorrer das solicitações – Me torno professora a cada dia – com experiências novas, gratificantes ou não – novos alunos – novas situações – novo contexto. (até agora, numa escola primária municipal com crianças de favela, na sua maioria. ‘Dona Marta’ escola México). - Eu saberia ensinar? - não sou infalível”. Odette E. Dias, 2005
Entendo, em concordância com Couceiro (1998), que a prática de ensino não depende
somente dos saberes disciplinares, mas é também resultado de um processo pessoal
construído por uma multiplicidade de fatores. Relaciona-se com a história de vida da pessoa
que a desenvolve, com seu modo próprio de ver, sentir, pensar e agir. Em virtude disso,
considero fundamental apresentar este capítulo, intitulado propositalmente “Odette: percurso
e discurso”, cujo intento é fazer conhecer um pouco do pensamento, das idéias e crenças da
professora.
É oportuno esclarecer que, embora esta pesquisa tenha uma perspectiva histórica,
investigando especificamente uma pedagogia que compreende os anos de 1974 a 1994, a
professora está viva, atuante, na casa dos 80 anos. Tenho o privilégio de manter contato com
ela e de acompanhar suas constantes reflexões e mutações. Conforme ela mesma declara “[...]
estou viva e continuo ensinando. O período que você retrata nas entrevistas dos flautistas de
Brasília, a meu ver, retrata um período histórico de minha vida. A minha atitude está sempre
mudando, em “mutações” — pois o mundo evolui — e eu também” (DIAS, 2008b, p.1).
63
Pretendo, ao mesmo tempo, possibilitar ao leitor uma panorâmica do percurso de vida
da professora, apresentar seu discurso — sobre o passado e o presente —, na tentativa de
desvendar como chegou ao ensino, como se tornou professora, através de seus
questionamentos e filosofar. Afinal, como apontaram Aranha (2006), Marconi e Presotto
(2006), a antropologia filosófica se empenha em responder o que é o homem.
3.1 Relativismo cultural e visão de mundo
“O que faço hoje é o resultado de anos de vivência musical e, sobretudo, humana, que me permitiram desenvolver as sementes que recebi desde minha infância: uma visão do mundo”. Odette E. Dias, 2003
Como foi visto no subtópico “A diversidade como ponto de partida” (cap. 2), os
discursos da professora e de autores como Cavalieri França (2001) e Marconi e Presotto
(2006) sinalizam a importância em dar atenção às questões relacionadas à multiplicidade
cultural, afinal “aquilo que o professor faz e pensa é o resultado de um processo pessoal de
raciocínio e ação pedagógica, determinado por um ato de ensino e por um quadro de valores,
crenças, projetos, etc...” (PACHECO, 1995, p. 34), o que, em outras palavras, está
diretamente relacionado com a cultura de cada indivíduo.
Odette cresceu em um período histórico difícil, cercada pelos horrores da guerra,
obrigada a conviver diariamente com a tragédia. Apesar disso, fazendo uma retrospectiva
sobre sua vida, a professora declara: “hoje eu sei, olhando o passado com uma visão mais
distante e ampla, e olhando o presente, que o homem nunca deve se acostumar à violência e à
repressão” (DIAS, 2003, p. 4-5). Observa que, mesmo sendo criada em um ambiente social
muito duro, sua educação não foi repressora, pois seu ambiente doméstico se conservou livre
de qualquer preconceito racial, religioso, cultural e nacional. A meu ver, tal fato deveu-se
muito ao pai, uma vez que ela declara que ele era antes de tudo um educador, e que a música
64
para ele, igualmente o esporte, a preocupação com a saúde — incluindo medicina natural,
yoga, exercícios de respiração, higiene, cuidados corporais e com a alimentação — eram a
base da educação. Entusiasticamente ela ainda revela que inclusive fez esgrima,
provavelmente influenciada pela visão ampla que seu pai tinha sobre a educação. Além disso,
ela declara:
Ele [seu pai] tocava clarinete e ela [sua mãe] bandolim. Ele fazia a gente (eu tinha dois irmãos) cantar e dançar, pular, reconhecer ritmos da rua. Esse foi o ambiente da minha primeira infância; não tínhamos piano, nem rádio, discos, não assistia [sic] concertos (muito caros) − mas a música estava no cotidiano, no corpo. Cedo aprendi a ler as letras e as notas musicais. Quando fui para a escola, eu já sabia – aprendi em casa. (DIAS, 2003, p.3)
Do ambiente da casa de seus pais, em Paris, guarda a lembrança de que as pessoas que
por lá circulavam eram, na sua maioria, de língua e países diferentes. Isto a fez perceber,
“quase intuitivamente”, conforme suas palavras, que “o mundo era maior que um só país, que
a nacionalidade (que pode mudar sempre) não representa uma cultura, que as fronteiras são
linhas fictícias e arbitrárias, que a cultura nasce dos gestos, das falas, das músicas, das
culinárias, das religiões, representativas e equivalentes no mundo inteiro” (DIAS, 2003, p.2).
Tal declaração reforça e salienta seu relativismo cultural apontado por Marconi e Presotto
(2006, p.31): “a posição cultural relativista tem como fundamento a idéia de que os indivíduos
são condicionados a um modo de vida específico e particular, por meio do processo de
endoculturação64. Adquirem, assim, seus próprios sistemas de valores e sua própria
integridade cultural”.
Conforme foi observado, na educação de Odette e seus irmãos, a música foi uma
aliada importante na ação proposta no seio familiar. Isto lhe proporcionou um envolvimento
natural e muito grande com a cultura, que, segundo ela, foi determinante na definição de suas
atitudes. A este respeito ela fala: “Considero que, desde a infância, tive a sorte de aprender e
64 Processo de aprendizagem e educação de uma cultura, desde a infância até a idade adulta. Fonte: Dicionário de Sociologia < http://www.prof2000.pt/users/dicsoc/soc_e.html#endoculturacao >, em 02 jan. 2009.
65
viver em casa o que é a cultura e a música, vividas e não assistidas, o que define, acho, minha
atitude de hoje” (DIAS, 2003 p.3). Isso só reforça o discurso de Pacheco mencionado no
primeiro parágrafo deste subtópico.
De acordo com uma matéria publicada no Pattapio65, “Ela aprendeu a se interessar
profundamente pelas coisas, valorizá-las e jamais subestimar a capacidade das pessoas. Odette
considera que a coisa mais preciosa que herdou de seus pais é [foi] a necessidade de lutar
contra qualquer tipo de preconceito e opressão. [...]” BARRETO (in PATTAPIO, 1999, nº15,
p.9).
Mesmo sendo a visão de mundo de cada indivíduo inteiramente particular, considero
fundamental pontuar alguns acontecimentos que — possivelmente — contribuíram no
processo de formação dos valores, crenças e pontos de vista que determinaram a atitude de
Odette em suas atitudes como ser humano, artista e professora. Este conjunto de princípios
representa aquilo que Krapívine conceitua como visão de mundo, de que compartilho. A este
respeito tem-se:
Pode-se definir o conceito de visão de mundo [como] o que se refere ao conjunto de princípios, pontos de vista e convicções que determinam a atitude do ser humano em relação à realidade e a si próprio, a orientação da atividade de cada pessoa concreta, grupo social, classe ou sociedade em geral. A tarefa explicativa do mundo, ou seja, a própria elaboração da visão de mundo, sempre foi tarefa da filosofia que, não sendo atemporal, apreende, em pensamentos a sua época. Isto significa dizer que o processo de produção de conhecimento também se determina pela forma como os homens se organizam em sociedade. (KRAPÍVINE, 1986 apud CARVALHO, 2003, p.24)
Sua visão de mundo relacionada com os ensinamentos que recebeu do ambiente
familiar e no ambiente musical de Paris, se enriquece com as experiências profissionais no
Rio de Janeiro e, posteriormente, em Brasília. No Rio de Janeiro, cidade que representa sua
entrada na vida profissional, tocou em Orquestras Sinfônicas (Brasileira e Nacional), nas
65 Informativo da Associação Brasileira de Flautistas / ABRAF.
66
Orquestras das Rádios Nacional, Tupi, Mayrink Veiga, da TV Globo, e participou de
inúmeras gravações com cantores populares. Paralelamente, ela também lecionou na Pro-Arte.
A respeito de suas impressões do Rio de Janeiro, ao chegar ao Brasil, ela conta:
Quando cheguei ao Brasil e ouvi os flautistas populares, de choro ou regional, como se dizia, fiquei fascinada pela sua maneira de tocar: improvisando, com articulações diferentes como se fosse modelar o som, como uma fala (por exemplo Eugênio Martins, Dante Santoro, Altamiro, Copinha) e percebi que na realidade não existiam “escolas”, mas sim “músicos e música”. (DIAS, 2003, p.18, grifo meu)
Sobre suas atividades na Pro-Arte:
Na Pro-Arte, como eu era ligada à vida profissional bem diversificada, com conhecimentos da música popular, do choro em particular, meus alunos recebiam essas informações − posso dizer que introduzi o choro nessa escola, com sucesso − audições lotadas. Meus alunos daquele tempo são hoje músicos de projeção tanto na área popular66 quanto na erudita. (DIAS, 2003, p.17, grifo meu)
Em Brasília, outro importante momento profissional de Odette, o fator meio foi
decisivo na definição de sua personalidade, conforme ela reconhece: “A minha própria
personalidade se definiu naqueles anos — adquiri uma visão panorâmica do Centro, Planalto
Central, para o horizonte de 360°” (DIAS, 2005, p. 5). Em um lampejo poético a professora
traça um paralelo de sua vida com os movimentos de uma sinfonia, deixando transparecer
que, em cada fase de sua vida, é notório como as influências do meio foram marcantes,
definindo parte de suas atitudes como ser humano, artista e professora. A este respeito ela diz:
Eu dividiria minha vida em quatro fases, como se fossem quatro movimentos de uma sinfonia. I. Paris – infância, aprendizagem – tradição: Prelúdio. II . Rio de Janeiro - entrar na vida – pessoal e profissional – atividades múltiplas – Allegro. III. Brasília – despojamento, nudez – céu aberto – horizonte, contemplação – produção nova – Adágio. IV. Rio de Janeiro – volta – decantação procura da essencialidade – deixar a carga, o passado para trás – Alegria – Allegro Stretto final. (DIAS, 2005, p.2, grifo meu)
Deste modo, tanto o seu relativismo cultural, isto é, uma postura negando normas e
valores absolutos, defendendo o pressuposto de que as avaliações e reflexões sobre a cultura
66 Entre eles Marcelo Bernardes, Kim Ribeiro, Mauro Senise, Danilo Caymmi, Marcelo Alonso, entre outros.
67
estão relacionados às origens, quanto sua visão de mundo, são resultados de uma intensa
vivência e formação humana, familiar, cultural e social que lhe possibilitaram, como disseram
seus ex-alunos, transpor limitações que seriam normais para qualquer pessoa que não tivesse
as mesmas experiências vividas por ela. Entre essas, destacam-se defender diferentes riquezas
culturais, quebrar paradigmas para encarar o mundo e suas atividades como flautista e
educadora sempre de maneira, provocativa, questionadora, promovendo o diálogo, a não
padronização de alunos, isto é, procurando incentivar a diversidade, o que, segundo Mizukami
(1985), contempla a abordagem pedagógica sócio-cultural.
Portanto, ainda que as argumentações apresentadas neste tópico sejam presumíveis,
quando argumento que elas contribuíram para o processo de formação dos valores, crenças e
pontos de vista que interferiram na concepção e atitude da professora Odette em suas ações ―
seja como ser humano, artista e professora ― tal conjetura ganha respaldo quando, em carta,
Odette revelou-me:
Você está vendo em mim coisas que existiam mas de que eu não tinha consciência de uma maneira concreta. Meu comportamento, certamente, como você diz, é o resultado de uma vivência, formação humana, familiar, cultural, social, que é intrínseca, vem de longe, e que, sem querer tão objetivamente, passo para meus alunos e para as pessoas que convivem comigo. (DIAS, 2007, p.2)
3.2 O legado de seus professores
Entre os professores dos quais se lembra, alguns merecem atenção especial, a começar
de sua primeira professora de piano. Com Madame Marguerite Laeuffer-Heumann, além de
aprender teoria, solfejo, ditado e leitura à primeira vista, absorveu uma visão mais ampla da
música: a idéia de que tocar pode transformar-se em uma “festa”67.
67 As audições de Madame Heumann eram uma festa − No final ela mesma tocava uma Rapsódia de Liszt – e maravilha ! Tinha doces e uma geladeira de sorvete! (DIAS, 2003, p.4)
68
Com Lucien Lavaillotte, seu primeiro professor de flauta, aos 13 anos, aprendeu algo
essencial: soprar no bocal. A esse respeito, ela declara:
Na primeira aula, primeiro com o bocal e depois com a flauta inteira, dedilhando a nota si, ele falou: “sopra” – naturalmente e nada mais – nada de explicações sobre produção do som, acústica etc. etc ... somente “sopra” – e até hoje faço o mesmo, com excelentes resultados: todo mundo sabe instintivamente como “soprar”. O sopro é vital, místico. Aqui no Brasil, nos meios da música popular, se falava “esse flautista tem um sopro bonito”, e não um som bonito. (DIAS, 2003, p. 7)
Com Nadia Boulanger, no Conservatório de Paris, que a convidava para ilustrar suas
aulas públicas de análise da obra de Bach, viveu experiências marcantes. Uma delas, relatada
por Sidnei, um de seus ex-alunos, diz respeito à emoção que a Profª. Boulanger transmitia aos
seus alunos dando aula. Ele se lembra de Odette contar que em sala a Profª Boulanger
utilizava corais de Bach para ensinar contraponto; em seguida colocava a turma para cantar e
regia o coral e, ao terminar, ela estava chorando.
Com Pierre Boulez e Pierre Schaeffer, assistiu às primeiras experiências de piano
preparado. Com Norbert Dufoureq, grande especialista de Bach, fez um curso de História da
Música; com Roland Manuel, historiógrafo de Ravel e Manuel de Falla, fez curso de Estética
e Pedagogia, e com Marcel Beaufils, autor inclusive do livro Villa-Lobos: Musicien et Poète
Du Brésil, teve aulas de cultura germânica.
Com Gaston Crunelle, seu professor de flauta do Conservatório de Paris, aprendeu a
respeitar a personalidade de cada aluno, não modificando a maneira de cada um se expressar.
Sobre Crunelle, ela declara: “[...] Mais do que um roteiro estabelecido, mais do que um
conteúdo rígido e histórico, ele formava os alunos para serem músicos, executantes,
presentes. Dotado de uma psicologia instintiva, ele ensinava como estudar, insistia na
concentração, na memória, na presença física” (DIAS, 2003, p.11, grifo meu).
A professora acrescenta que o ensino de Crunelle daria um capítulo à parte. Era
relacionado à sua personalidade expressiva e comunicativa de músico profissional atuante.
69
Durante os quatro anos que estudou com Crunelle priorizou a profundidade de foco sobre as
obras escolhidas, ao conhecimento superficial de uma grande quantidade de obras: “[...] eu
estudei o ‘como estudar’, tanto que nunca mais tive outro professor e todo repertório que toco
estudei sozinha com as partituras” (DIAS, 2003, p.11).
Na classe de Crunelle também teve oportunidade de conhecer pessoalmente André
Jolivet, Dutilleux, Pierre Sancan e George Enesco, pois iam assistir à execução de suas obras.
Com Enesco ao piano, por exemplo, teve o privilégio de tocar “Cantabile e Presto”. Além
disso, foi na classe de Crunelle também que ela ganhou o importante Concurso Internacional
de Genebra, onde obteve por unanimidade a “primeira medalha de flauta”, em 1951,
conforme pode ser visto no Anexo VI, subtópico 7.6.2.
A professora menciona também que Crunelle tinha um assistente, Fernand Caratgé,
que o substituía quando viajava em tournées. Ela observa que “o ensino de Caratgé era mais
analítico e completava admiravelmente o de Crunelle” (DIAS, 2003, p.11-12).
Perguntada por este pesquisador se ela poderia falar um pouco sobre a maneira de
Crunelle ensinar, tentando fazer um paralelo dos fundamentos e procedimentos pedagógicos
dele, com os fundamentos e procedimentos pedagógicos utilizados por ela, especificamente na
UnB, a professora declara:
Ah, mas você está sendo muito teórico. O que eu fiz, já te falei, foi confrontado em uma realidade diferente, [...] diferente do que tinha lá em Paris, muito diferente. Então realmente a pessoa vai se influenciar, mas talvez ele me influenciou na idéia de eu ser eu mesma, você entende, mais do que tudo, mais do que tudo. Ele deixou essa coisa da liberdade, da confiança [...] a sua idéia de poder tocar... tocar, tocar. Não é porque me apoiei tanto em Crunelle. Quando me referi a ele, é porque vinha naturalmente. Eu assimilei as coisas dele, eu não precisava de me lembrar o que o Crunelle falava, vinha assim, normalmente, aquela coisa. Ele dizia: “C’est toi qui joues”, “é você que está tocando”. Eu falo isso com meus alunos porque [ele] passou para mim. Não é [por]que quando o aluno está tocando [que] eu vou me lembrar do que o Crunelle falou para mim [...]. O modelo sim, o modelo do que eu assimilei eu incorporei algumas coisas, mas muitas outras coisas me confrontei com coisas [questões/realidades] completamente diferentes [...]. (DIAS, 2006, p.4)
70
3.2.1 O respeito à expressão de cada um
O respeito – princípio maior da perspectiva pedagógica de Odette – foi o grande
legado transmitido a ela, não só pelos pais, quanto por seu professor, não obstante dela
ressaltar que Crunelle lhe “influenciou na idéia de eu ser eu mesma”, conforme já
apresentado. Declara ainda que ele insistia na importância da personalidade, uma vez que,
quanto à flauta, ao repertório, de um modo geral, todos sempre vão “saber bastante”. Pode-se
inferir que, para ele, um músico sem personalidade, ainda que toque bem, representa um
artista incompleto. Odette enfatiza, citando as palavras dele: “ ‘C’est toi qui joues68’ ” (DIAS,
2003, p.14).
Questionada por mim a respeito do que ela pensa exatamente sobre “respeitar a
expressão de cada um”, ela responde:
Cada um tem um tipo de expressão sonora, como existe no bocal. Você não pode mudar, dizer que o som dele é feio, que o som dele não é ... O som tem que ser afinado, legato e tudo. Mas o timbre de cada um, pertence a cada um, isto é a expressão de cada um [...]. Depois também, a mesma pessoa, na compreensão de uma frase, a questão da respiração, por exemplo, a expressão. [...]. Você pode discutir uma frase, você não é dono da verdade, é preciso discutir com o aluno a questão do fraseado, da respiração, do volume [...] Tem gente que tem menos volume. Você tem que saber explicar [...] a disposição física dela, a expressão, a ligação, a sua transformação física. [...] a postura, a posição da flauta ela não é idêntica para todo mundo. Tem gente que tem o ombro mais caído [...]. Então você tem que olhar a pessoa que tem na sua frente, a isto é que eu chamo “a expressão do outro”. Você dialoga com a pessoa, não vai impor. Com aluno você tem que dialogar. [...] Tem que observar muito bem a pessoa que tem na sua frente. Observar muito bem o aspecto físico, a voz da pessoa, a maneira de olhar. Aí você começa... (DIAS, 2006, p.1, grifos meus)
Observando o discurso apresentado por Odette e relacionando-o com os seus discursos
sobre as qualidades e conduta de Crunelle em sala de aula, percebe-se, visivelmente, a
unidade de pensamento entre eles. Tal fato, além de poder ser considerado procedente, a
coloca na qualidade de uma efetiva propagadora de um legado que “assimilou”. Como
68 “É você quem toca”
71
ilustração dessa “qualidade”, ao relatar uma situação vivida na classe de Crunelle, demonstra
ter sido aquilo um grande aprendizado que recebeu e transmite:
Quando estava na classe de flauta em Paris, apareceu um flautista suíço que tocava de uma maneira diferente, sem nenhum vibrato (tido como característica da “escola” francesa). Ele ganhou o primeiro prêmio no primeiro ano. Os alunos criticaram: “ele tem o som feio, etc...” Crunelle mandou-os calar e disse: Ele é um artista.
Ao afirmar “ele é um artista”, seu professor, além de valorizar o aluno, de reconhecer
sua condição de flautista — fez um alerta incisivo à classe para conscientizá-los de sua
individualidade. Assim, Crunelle deixa transparecer sua tendência às teorias progressistas, à
pedagogia libertadora, segundo as quais o respeito aos educandos, à sua dignidade, a seu ser
em formação, à sua identidade relacionada com suas origens, são levados em consideração. A
propósito, remetendo a Freire: “O respeito devido à dignidade do educando não me permite
subestimar, pior ainda, zombar do saber que ele traz consigo para a escola” (FREIRE, 1996,
p. 64).
3.3 Comportamentos e “métodos” de ensino
No que diz respeito especificamente a seu comportamento ou “métodos” de ensino, ela
declara: “sempre provocar, incentivar a curiosidade dos alunos em relação ao universo
musical, fazer deles músicos ‘atuantes’ ” (DIAS, 2005, p.7). Ela mesma sugere as questões:
— “como? provas? concursos? festivais? apresentações públicas?” (ibid) — e, a seguir revela
como eram realizadas as respectivas atividades, e até mesmo como era elaborado o repertório
para seus alunos. A este respeito:
Provas – eu não aplicava provas – existia no departamento uma pauta para apresentações públicas dos alunos. Eu falava para eles se inscreverem quando tivessem vontade e com um repertório preparado – convocávamos os colegas professores, alunos, amigos, parentes para o “concerto”, que fazia parte da avaliação durante o ano todo. Não era uma prova, um concurso, não tinha banca. Da mesma forma, o recital de formatura se tornava uma festa – às vezes com comes e bebes.
72
Repertório – as “ementas” eram flexíveis – figuravam mais pro forma. Sempre abertas a repertório novo, contemporâneo – obras de jovens compositores do departamento, música “popular”, choro – música eletro-acústica. Festivais-Encontros – Foram promovidos por mim, com apoio total do departamento, dos colegas e alunos e das entidades oficiais (CNPq, CAPES, Embaixadas), vários cursos e encontros nacionais e internacionais – com execuções e concertos ao vivo – pelos alunos e professores, e colaboração dos adidos culturais das embaixadas. (DIAS, 2005, p.7)
A professora aponta outro elemento que considera essencial no seu ensino, ao ressaltar
a importância de descobrir a individualidade, a personalidade de cada um, para procurar
desenvolvê-la. Fala sobre seus alunos dizendo que todos tocam de uma maneira diferente, um
orgulho para ela, que admite ser, talvez a marca de sua “escola”. Tal fato volta a remeter ao
legado de Crunelle que sempre dizia aos seus alunos ser a personalidade o importante, uma
vez que de flauta todos vão saber o bastante.
Não poderia deixar de remeter aqui as idéias de Jacob, mencionadas por Freire (cf.
subt. “A pedagogia libertadora de Paulo Freire”), quando este enfatiza a importância de
sermos diferentes um dos outros69. Assim, igualmente na Pedagogia da Libertação, para
Odette a individualidade, a identidade sempre foi considerada um elemento essencial na
formação do instrumentista.
69 Nós somos todos diferentes e a maneira como se reproduzem os seres vivos é programada para que o sejamos. É por isso que o homem teve a necessidade, um dia, de fabricar o conceito de igualdade. Se nós fôssemos todos idênticos, como uma população de bactérias, a idéia de igualdade seria perfeitamente inútil. (JACOB, 1991 apud FREIRE, 1992, p. 98)
73
3.3.1 Considerações sobre técnica
“- sou alvo de críticas (por ex: não ensino técnica pura) – para mim, técnica é inseparável da arte ‘τεχυη’ techné (grego) significa arte – fazer”. Odette E. Dias, 2005
Como pode ser observado na epígrafe, a professora assume abertamente não ensinar
técnica pura70, confirmando as críticas que recebe, mas justifica-se. Em vários momentos,
reafirma sua concepção de técnica como indissociável de outros requisitos da arte musical.
Argumenta enfaticamente que o ensino da técnica deve se relacionar à valorização da
expressividade, da musicalidade, da sensibilidade, da emoção, exemplificando: através do
estudo das notas longas, escalas, acordes e dos intervalos, você pode produzir beleza musical.
Em outro documento a professora faz novas reflexões sobre técnica, estabelecendo
paralelos com o hai-kai, o minerador, o ourives e entre a mão e o pensamento. A esse
respeito ela declara:
[...] essa técnica é a procura do essencial, o condensado, como no “hai-kai” japonês. – é o som incisivo, cavado, minerado, e não trabalhado como ourives na superfície. – a procura desse som, denso, humano, exige um estudo em profundidade, aprimorando todos os recursos de movimento, gestos, respiração e principalmente pensamento que leva à emoção e a comunicação. Essa é a minha procura constante. Em resumo: a técnica não é uma ferramenta – ela é a própria arte, – a mão inseparável do pensamento. É preciso visitar o Museu da Estação em BH – Museu de Artes e Ofícios – onde cada ferramenta de trabalho é, em si, uma obra de arte. Esse é o meu conceito de “técnica”. (DIAS, 2007, p.3)
Nesse contexto, cabe fazer um paralelo com um belíssimo texto de Martin Heidegger,
a “Serenidade”, apresentado por Isabel Maia71. Fazendo uma reflexão sobre a essência da
técnica moderna, Heidegger mostra a necessidade de recuperar o que ele chama de
70 Conceito apresentado no Capítulo 2 desta pesquisa, “Discursos referenciais: teorias”, no subtópico “Técnica pura versus a expressão musical”, conforme nota de rodapé 43. 71 Sobre a “Serenidade” de Martin Heidegger, por Isabel Maia http://www.consciencia.org/contemporanea/heideggerisabel.shtml, em 16 fev. 2007.
74
“pensamento meditativo”, defendendo que aquilo de maior valor que o homem possui é ser
justamente um “ser pensante”. Chama atenção para este fato: o homem se esqueceu de “ser”,
deixando-se “amarrar” pelas coisas, ou seja, transformando a realidade em puro objeto para
ser dominado e explorado, o que implica em uma supervalorização excessiva na técnica como
possibilidade de domínio sobre todas as coisas. Assim, Heidegger propõe que mantenhamos o
pensamento “acordado”, não nos esquecendo de “ser”; que sem negar a técnica repensemos
nossa relação com ela, pois o homem é um ser pensante.
A meu ver, o ideal de Heidegger nesse texto vai ao encontro da proposta de Odette,
que também procura valorizar, antes de tudo, o “ser”, conforme observado em suas palavras.
É oportuno, ainda, mencionar a advertência de Vattimo que Odette parece ter no pensamento:
“o esquecimento do ser não é um fato que atinja só o pensamento, mas determina todo o
modo de ser do homem no mundo” (VATTIMO, 1977, p.134 apud MAIA, s/d).
3.3.2 O essencial no estudo da flauta Ao apresentar compactamente o que considera essencial no estudo da flauta, Odette,
delineia um perfil pedagógico dotado de objetividade, atento às prioridades, compromissado
com o “ser pensante”, criativo, reflexivo. Deixa também transparecer uma estreita relação
com o modelo de ensino da “margem de flexibilidade para o diálogo” (cf. “Modelos de ensino
de instrumentos”, cap. 2); refere-se à relação de prazer, contentamento, em tocar, ainda que
somente estudos, o que só reforça seu mote. Além disso, admite que tal prazer e
contentamento abram possibilidade de uma festa, legado de sua primeira professora de piano,
Madame Marguerite Laeuffer-Heumann.
Não se poderia encerrar este subtópico sem citar suas recomendações específicas para
o estudo da flauta:
75
O que eu acho essencial no estudo da flauta é ter alguns elementos básicos de estudo de sonoridade primeiro − estudo de intervalos, procurando a maior continuidade e expressividade no som; − exercícios de articulações e ritmos baseados em escalas tonais e modais; − criação de exercícios apropriados às dificuldades de cada peça, cada um no seu estilo; − análise das peças; − conhecimento das partes de piano ou dos outros instrumentos nos conjuntos orquestrais camerísticos; − concentração no tempo de estudo: 20 minutos concentrado é o bastante; − saber parar, relaxar e depois [recomeçar, isso evita tendinite!] e confiar no adquirido; − memorização; − desenvolver o prazer de tocar; − tocar em conjunto, em muitos ambientes, uns para os outros; tocar é uma festa. (DIAS, 2003, p.19)
3.4 Resultados de seu ensino
Os resultados de seu ensino na UnB podem ser observados em vários trechos
de suas cartas e entrevista, e através de depoimentos dos ex-alunos que hoje atuam em
Escolas de Música, Universidades e Orquestras. O primeiro que posso mencionar,
como já o fiz, é a maneira diferente com que seus alunos tocam em relação uns aos
outros, incluindo aí suas próprias filhas. Isto parece ser tão importante e significativo
para ela que, além de mencionar esse ponto como fator de orgulho, o propõe como
possível marca característica de sua “escola”.
Outra questão importante mencionada pela professora é a multiplicação de
flautistas que se deu em Brasília durante os vinte anos em que ela ensinou na UnB:
“Fiquei vinte anos na UnB e posso dizer que houve uma multiplicação impressionante
de flautistas que tocam, ensinam, pesquisam, trabalham em produção” (DIAS, 2003,
p.17). Ainda a este respeito ela posteriormente declara: “Partindo praticamente do
nada em 1974, posso dizer que houve uma multiplicação não ‘de flautistas’, mas de
seres humanos felizes e atuantes, caracterizados pela sua liberdade” (DIAS, 2005, p.
6). Isso, sem dúvida, é um reflexo do modelo que ela ofereceu com seu princípio
maior: respeito ao ser humano e valorização da individualidade, da personalidade.
76
Ressalta também, nos depoimentos e entrevista que me concedeu, a realidade
do ensino de flauta atualmente em Brasília, informando que seus alunos já formaram,
pelo menos, três gerações de profissionais. Considerando suas características pessoais
e de educadora, transmitidas aos seus alunos, conforme será visto mais adiante, se
indaga: “Como e por que isso tudo pôde e pode acontecer quando a “raiz” é tão pouco
“acadêmica”? [...]” (DIAS, 2005, p.4). Além disso, faz revelações sobre “o período
brasiliense (1974 – 1994)”, dizendo que, ao chegar ao Departamento de Música da
UnB, praticamente não havia alunos. Os que foram aparecendo tinham perfis os mais
variados, sendo a maioria iniciantes. Não existia a prova especifica para ingresso ao
curso. Nesse contexto, ela diz ter estado diante de um dilema: “Procurar nivelar ou
considerar a individualidade de cada um? Cada aula adaptada a cada um?” (ibid).
No que diz respeito ao comportamento de seus ex-alunos, ou à “unidade de
comportamento” 72 que eles apresentam, a professora declara que eles são unidos, curiosos,
estão sempre à procura de novidades e repertório diferenciados. Ela destaca não serem
preconceituosos, terem interesse pela música contemporânea e pela brasileira, haver “unidade
de formação, de preparo, de grupo”, além de sentirem “prazer” de tocar. Comenta, com
justificada satisfação, que tudo isso lhes foi transmitido por ela. Outra importante declaração
foi sobre outro de seus pontos de orgulho: “Um de meus maiores pontos de orgulho é de
constatar que muito poucos dos alunos que tive, principalmente em Brasília, se desviaram do
campo da música” (DIAS, 2003, p.17).
Assim, fazendo um paralelo entre as pedagogias de Freire e Odette, enquanto Freire,
também guiado pelo respeito, teve como propósito tornar os indivíduos livres das amarras da
opressão, retirando-os da condição de dominados, desrespeitados; a perspectiva pedagógica
de Odette possibilitou aos seus alunos uma atitude de liberdade, de individualidade e
72 Expressão utilizada por Odette em entrevista realizada em 22 fev. de 2006.
77
identidade. Através do confronto entre vivências ela fez surgir instrumentistas, músicos,
desvinculados de modelos pré-estabelecidos, que não sejam aqueles dos próprios alunos:
flautistas com personalidades e identidades próprias, consolidando uma “escola”.
78
Capítulo IV
4. Discursos dos ex-alunos
A proposta deste capítulo é apresentar os discursos dos ex-alunos de Odette sob duas
perspectivas distintas: descrições e análises.
4.1 Descrições
Embora as descrições tenham sido recolhidas em períodos similares, cada depoimento
representa um momento, um período da vida, do cotidiano docente de Odette, o que implica,
naturalmente, no caráter mutante de sua práxis, uma vez que a própria Odette (cf. subt.
“Percursos e discursos: Odette”, cap.3) declarou: “[...] Me torno professora a cada dia, com
experiências novas, gratificantes ou não – novos alunos – novas situações – novo contexto
[...]” (DIAS, 2005, p. 2), ou ainda: “[...] A minha atitude está sempre mudando, em
‘mutações’ — pois o mundo evolui — e eu também” (DIAS, 2008b, p.1).
Assim, para se ter uma idéia mais precisa da temporalidade, apresento a relação
completa dos 15 ex-alunos participantes da pesquisa, em ordem alfabética, com os respectivos
anos que cada um estudou com Odette.
Ressalto que em alguns momentos estabeleço relações dos discursos apresentados com
a fundamentação utilizada, em forma de referência cruzada. Em outros, faço uma breve
conexão dos discursos apresentados com autores não utilizados na fundamentação teórica por
79
considerar pertinente e importante. A idéia principal foi deixar uma voz: dos entrevistados,
apresentados sempre pelo próprio nome.
Relação dos quinze ex-alunos participantes da pesquisa:
NOME COMPLETO PERIODO QUE ESTUDOU
01) Andréa Ernest Dias 1980 a 1983
02) Ariadne Araújo Paixão 1987 a 1991
03) Cláudia Castro 1990 a 1991 (não se formou com Odette)
04) Davson de Souza 1990 a 1991 (não se formou com Odette)
05) José Benedito Viana Gomes 1986 a 1990
06) José Evangelista da Silva Júnior 1981 a 1986
07) Luciana Stadniki Morato 1989 a 1992 (não se formou com Odette)
08) Madelon Anselmo Guimarães 1986 a 1990
09) Maria Elizabeth Ernest Dias 1979 a 1982
10) Nivaldo Francisco de Souza 1974 a 1979
11) Patrícia Cyriaco
1984 a 1990
12) Paulo Magno Borges
1978 a 1982
13) Sérgio Azra Barrenechea 1981 a 1988
14) Sidnei da Costa Maia 1974 a 1979
15) Silvana Maria Sócrates Teixeira
1975 a 1978
Obs. Embora a pesquisa mencione os anos 1974 a 1994, período em que Odette atuou
como docente da Universidade de Brasília, ela só pôde ser desenvolvida até 1992, último ano
que Odette atuou em sala da aula conforme informações da professora.
80
4.1.1 A propósito das aulas
Conforme observado no inventário de tópicos pedagógicos (a partir de agora,
designado apenas por “inventário”) não havia um padrão definido nas aulas de Odette. Era
possível trabalhar um tema específico, como o de uma sonata de Bach, por exemplo, como
também desenvolver uma atividade específica sobre aquilo que mais interessava o aluno —
desde que ela considerasse adequado, de acordo com seu tato pedagógico. Segundo Patrícia
“[...] não havia fórmula, rotina. Cada aula era singular. Havia como base o repertório e sobre
ele abordávamos, técnicas, sonoridade, articulações, respiração, etc” (CYRIACO, 2006, p.5).
De modo geral, havia até um direcionamento das atividades desenvolvidas em sala às
particularidades de cada aluno, característica que pode ser associada ao modelo de ensino “da
margem de flexibilidade para o diálogo” (cf. subt. “Modelos de ensino de instrumento”, cap.
2). O objetivo era, além de possibilitar oportunidades ao desenvolvimento de cada um, de
acordo com suas peculiaridades, conforme mencionaram Madelon e José Benedito,
proporcionar condições para que os alunos, posteriormente, pudessem desenvolver sua
capacidade de autonomia e dar continuidade aos estudos sozinhos. A respeito deste objetivo,
foi declarado: “[...] estímulo à independência artística do aluno, fomento à execução da
música brasileira e da música de câmara, estímulo para o aluno ter uma atuação social e não
somente musical, estudo de repertório diversificado, busca por formar um aluno
interdisciplinar” (GOMES, 2006, p.3 ).
Pelo que pude observar nos depoimentos dos ex-alunos, o cuidado de Odette com a
afinação e a emissão, de modo geral, sempre foi salientado. Seu principal exercício era
desenvolvido sobre os intervalos de quarta, quinta e oitava, onde, além de estudar a afinação,
praticava-se o estudo de sonoridade e, conseqüentemente, embocadura. Esse discurso pode ser
observado através das declarações de Sidnei, Andréa e Paulo Magno.
81
O que mais chamava a atenção de Sidnei na abordagem interpretativa de Odette
relacionava-se com a emoção. Entretanto, questões relativas ao fraseado, respiração,
regularidade rítmica, timbre, afinação, entre outros, sempre eram ressaltadas no discurso da
professora. Segundo ele, Odette dizia: “ ‘observe essa frase, ela começa aqui e termina ali,
você tem que respirar nesse lugar; tem que respirar naquele lugar, mas cuidado com essas
semicolcheias que não estão muito boas; a afinação desse intervalo não está lá essas coisas; o
timbre desse ataque não está bom...’ ” (MAIA, 2006, p.23-24).
Luciana declara que os aspectos técnicos musicais mais relevantes observados no
discurso da professora envolviam as articulações, condução de notas, fraseado, afinação e
dinâmica. Observa ainda que isso foi tão marcante para ela, que este legado tem sido
transmitido aos seus alunos na Escola de Música de Brasília, instituição onde atua. Em
direção similar, Maria Elizabeth, sua filha, menciona algo que complementa o discurso acima:
“eu parto exatamente desse conceito da beleza; para mim a beleza do som e o nosso sistema
temperado está intrinsecamente ligado ao fato de você estar bem afinado ou não. Isso faz
muita diferença” (DIAS, M. E. E., 2006, p.6-7).
Como disse Andréa, sua outra filha, ainda que Odette não oferecesse muitas soluções
técnicas, que inclusive foi motivo recorrente em outras fontes de informação, ela “de um
modo geral tinha um cuidado com a afinação e a emissão [...] e qualidade de acabamento na
nota longa, fraseado [...] ” (DIAS, A. E., 2007, p.7).
Embora as apresentações em público de seus alunos não fossem obrigatórias, eram
sempre muito valorizadas pela mestra, conforme também declarou Andréa. Ainda segundo
esta, Odette fazia questão que os seus alunos, de todos os níveis, tocassem sempre, inclusive
promovendo audições ao final dos semestres. Revela que além da preparação da música em si,
o diálogo com os alunos era um aliado muito importante no processo para as apresentações.
82
De acordo com o depoimento de Patrícia, Odette ouvia seus alunos no ensaio geral e
fazia observações: “Procure sentir o que você está tocando” ou, “Quando estiver no palco,
esteja no palco” (CYRIACO, 2006, p.3). Em direção similar, José Evangelista explica que em
geral os alunos tinham um tempo para preparar, depois se marcava um ensaio para mostrar à
professora em que condição estava o material estudado e, a partir daí, ela fazia críticas
pertinentes ao que necessitava ser desenvolvido até o próximo ensaio.
Cláudia comenta que os saraus, as rodas de choro e as apresentações pelo campus da
universidade muitas vezes eram improvisados, porém esclarece: “embora parecesse coisa de
última hora, a presença de Odette sempre dava um sentido profissional ao evento” (CASTRO,
2006, p.3). Sérgio também menciona sobre as apresentações realizadas no campus da UnB
dizendo que tiveram vários momentos, algumas vezes para comemorar algum compositor
específico, como aconteceu com Villa-Lobos. Comenta ainda que tocavam em corredores,
auditórios, mas que “eram apresentações tipo um happening que ela gostava [...] ”
(BARRENECHEA, 2006, p.8). Ele complementa dizendo que atividade foi muito
significativa para ele: “na UnB tinha muito isso, a gente tocava, tinha o “Concerto de
Esquina”, o Prof. Hary do Fagote também fazia isso aí, a gente saia, tocava nas outras
unidades, e era um negócio legal, acho uma tradição assim, interessante, que eu não vi em
outros lugares, eu via mais na UnB” (ibid).
Sobre os momentos antecedentes as apresentações, Ariadne comenta que certa
ocasião, antes de entrar no palco, ela estava tocando alguma coisa muito rápida, não parava de
tocar, e Odette lhe interrompeu dizendo: “ ‘antes de tocar nós devemos ficar em silêncio’ ”
(PAIXÃO, 2006, p.4), ressaltando com isso que a quietude é muito importante em momentos
que precedem a uma apresentação73.
73 A este respeito posso declarar também, por ter tido oportunidades de fazer apresentações com Odette, que ela realmente fica recolhida e muito concentrada. No DVD “A Vida na Flauta”, ao iniciar, ela manifesta-se falando do ritual de recolhimento que o toureiro faz em uma Capelinha, no escuro, antes de iniciar a tourada, estabelecendo um paralelo com suas atitudes antes das apresentações.
83
Levando em conta que Odette sempre gostou, e ainda gosta, de tocar em bares e
ambientes populares, considerei importante contextualizar estas apresentações. Questionados
como eles percebiam esta prática, se foram influenciados ou se consideravam que ela
compunha a perspectiva pedagógica de Odette, obtive variadas respostas sempre
demonstrando entusiasmo pela atividade, como também a revelação de que tal prática
compunha sua perspectiva pedagógica, ainda que informalmente.
Ariadne também manifesta-se dizendo que aprendeu com a professora “nunca ignorar
qualquer oportunidade de tocar e compartilhar aquilo que a gente sabe fazer com outras
pessoas” (PAIXÃO, 2006, p.12). Ao ser questionada se acreditava que essa atitude de Odette
compunha suas atividades pedagógicas, ela declarou: “É uma pergunta interessante. Sendo o
tocar flauta um constante aprendizado, eu acho que a gente acaba remetendo esse tipo de
experiência dentro da nossa prática pedagógica, de uma forma ou de outra” (ibid). Cláudia
declarou que admirava bastante esta atitude da professora porque, quando aluna, tinha “uma
certa inibição” (CASTRO, 2006, p.13). Para ela, isto foi algo admirável, lhe servindo de
muita inspiração uma vez que se a professora chegasse em algum lugar e estivesse com
vontade de tocar, não fazia cerimônia.
Luciana além de considerar esta atitude da professora muito importante, também
associa este gesto ao seu ecletismo e a sua maneira de encarar as coisas sem preconceitos. Ela
também acredita que esta prática compunha as atividades pedagógicas de Odette. Indagada se
ela toca em bares e ambientes populares, revelou: “Toquei durante 4 anos seguidos em um
restaurante. Fiz parte de um grupo chamado ‘Orquestra de Senhoritas’, cujo o repertório era
somente popular brasileiro” (MORATO, 2006, p.11).
Madelon diz que sempre achou muito boa esta atitude de Odette tocar em bares e
ambientes populares, entretanto, diz que foi uma atividade pouco desenvolvida com eles.
Reforça sobre o ecletismo, dizendo que “ela [Odette] nunca fez obstáculo entre o popular e o
84
erudito, ela deixou bem livre” (GUIMARÃES, 2006, p.10). Ainda remete ao fato de Odette
ter levado Hermeto Pascoal ao Departamento de Música, onde todos os alunos tocaram com
ele, concluindo que foi uma experiência muito positiva.
Patrícia também admira muito esta atitude de Odette, mas admitindo que embora tenha
sofrido influência dela, prefere não tocar em ambientes populares a bares. Salienta um detalhe
muito importante, dizendo que hoje, com maturidade, percebe que a professora não dissociou
a flautista da professora. Sidnei também declara que foi influenciado por sua prática de tocar
em ambientes populares. Teria pensado: “Não tem nada de mais, é legal, quero fazer isso
também” (MAIA, 2006, p.21). Silvana diz que sempre achou “o maior barato” Odette tocar
em bares e ambientes populares. Dentro da linha do ecletismo e ausência de preconceito,
mencionado igualmente pelos colegas, sua ex-aluna manifesta-se dizendo que Odette não tem
pudor de chegar e tocar, seja em ambientes simples ou não: “... abre a flauta e toca”
(TEIXEIRA, 2006, p.11). Ela também “considera o máximo” esta atitude da professora,
dizendo que não tem essa desenvoltura dela, mas que gostaria de ter.
José Evangelista diz que não sofreu muita influência porque, apesar de gostar de
música popular, gosta mais de tocar em salas de concerto, música erudita, clássica, com a
orquestra. Não obstante, admite que a influência da professora seja inevitável, dado ao intenso
amor que ela tem pela música brasileira.
No que diz respeito ao nervosismo e também ao medo de palco, a abordagem mais
utilizada pela professora neste tópico, conforme observado, consistia de um elemento muito
simples: o diálogo. Odette encarava o nervosismo como algo normal e que deveria ser tratado
com naturalidade, como declarou Ariadne: “ ‘se você errar siga em frente, não fique pensando
naquilo que errou, passou’ ” (PAIXÃO, 2006, p.4).
Andréa diz que sua mãe não tinha elementos para “curar” ou “salvar”, conforme suas
palavras, nem o nervosismo, nem o medo de palco do aluno, entretanto ela salienta que o
85
diálogo também estava sempre presente. O mesmo aconteceu com José Benedito, que a este
respeito ele explica: “A Odette sempre conversou bastante comigo e deu muita orientação que
sigo até hoje. Não eram orientações com dia e hora marcada [...] onde quer que a encontrasse
e saísse o assunto apresentação musical tinha sempre algo de muito significativo para dizer”
(GOMES, 2006, p.3).
Sérgio declarou que não se lembra de Odette comentar alguma coisa mais específica,
“pelo menos nunca escutei nenhum comentário dela a respeito disso” (BARRENECHEA,
2006, p.9), dizendo ainda que para ela a situação é “[...] natural... você vai ter que passar por
isso mesmo” (ibid). Reforçando respectivamente os discursos de Andréa e Sérgio, Sidnei
também declara que o nervosismo era considerado normal, todo mundo fica nervoso ao se
apresentar em público, e que Odette também não tinha nenhuma técnica para lidar com o
nervosismo.
Para ilustrar uma situação vivenciada, apresento a declaração de Sidnei, onde poderá
ser observado como o diálogo foi utilizado pela professora em uma situação dessa natureza:
[...] Teve uma vez que Silvana [Teixeira] teve uma crise, próximo do final de semestre: “eu vou parar de tocar, não quero mais tocar, eu vou fazer outra coisa na vida...” começou a chorar... aquelas crises... “não é isso que eu vou fazer na minha vida, tá doido, eu vou ficar fazendo isso a vida inteira, eu vou enlouquecer, eu vou fazer outra coisa”. Odette pegou Silvana pelo braço e foi para um boteco na 406 Norte, ficando ali convencendo Silvana que ela estava errada, deveria continuar tocando, não podia parar. Então, a preparação para tocar, tinha muito isso, era muita conversa; o nervosismo é uma coisa natural, todo mundo fica nervoso, não tinha nenhuma técnica... tinha sim: respira fundo e entra, respira fundo e vai! (MAIA, 2006, p.15)
Ainda a respeito desse caso, a própria Silvana declara: “Eu era nervosíssima [...] eu
chorei e ela ia lá, conversava comigo. Eu chorei porque não consegui tocar, travei, não
consegui tocar, abri a boca.” (TEIXEIRA, 2006, p.7). Questionada se Odette lhe transmitiu
algo para enfrentar o palco, o nervosismo, ela declara: “De enfrentar o palco, o erro, de saber
lidar com o erro também. Faz parte” (ibid), o que só reforça que o diálogo era o principal
86
meio utilizado por Odette para o enfrentamento das situações adversas, conforme apontou
Andréa, José Benedito, Sérgio, Sidnei, entre outros.
Luciana declarou que a professora sempre passava tranqüilidade para executar as
músicas e que para Odette tocar flauta era muito natural, orgânico74. Assim, a questão do
nervosismo não era item de discussão em sala uma vez que a professora transmitia
tranqüilidade, naturalidade, acrescentando sempre uma mensagem de incentivo. Odette
ressaltava também que o mais importante era “aquilo que se conseguiu transmitir através do
instrumento, o sentimento, e não aquela nota errada, aquele trecho que desafinou um pouco ou
aquele desencontro de compassos ... o importante era ‘o todo’ ” (MORATO, 2006, p.4).
José Evangelista disse que o trabalho para enfrentar um possível nervosismo do palco
fazia parte do dia-a-dia, do “pacote” que a mestra desenvolvia dentro da expressividade. A
este respeito ele declarou: “Conforme ela trabalhava a peça durante a aula, ela já ia dando
pinceladas, aqui da expressividade, da postura, da atitude em relação ao público, a projeção
do som, esse tipo de coisa era sempre diluído durante o trabalho em geral” (SILVA JR., 2006,
p.11).
Assim, o diálogo utilizado por Odette além de servir como elemento para tranqüilizar
os alunos, pode reforçar a questão da relação horizontal com eles, opondo-se a qualquer
atitude de imposição, “magistrocêntrica” (cf. “A diversidade como ponto de partida”, cap. 3).
Como declarou Savater:
“Ninguém é sujeito na solidão e no isolamento, sempre se é sujeito entre outros sujeitos: o sentido da vida humana não é um monólogo, mas provém do intercâmbio de sentidos, da polifonia coral. Antes de mais nada, a educação é a revelação dos outros, da condição humana como um concerto de cumplicidades inevitáveis” (SAVATER, 2005, p.38).
Conforme o inventário, um dos aspectos mais relevantes do ensino de Odette era a
constante demonstração no instrumento de diversas questões musicais, não importando se
74 Termo que Ariadne Paixão igualmente utiliza.
87
tratava de um repertório específico, um trecho de uma peça ou até mesmo um único som,
como lembrou Cláudia: “qualquer nota que ela tocava na flauta era música viva” (CASTRO,
2006, p. 4). Essa capacidade – que implica em anos de experiência e conhecimento de um
vasto repertório − foi tão marcante para um dos seus discípulos que este comentou:
[...] Ela sempre tocava, não importava o repertório, ela tocava e mostrava. [...] isso marcou mesmo, eu tinha ali [a demonstração musical ao vivo]. Nessa época a gente não tinha muito acesso a gravação [...] várias músicas eu toquei anos e anos a fio sem ter escutado uma gravação [...] a demonstração que você tinha era a do professor, a Odette chegava e tocava, era o referencial; [...] isso que marcou muito, [...] você ter um referencial mesmo. (BARRENECHEA, 2007, p. 110).
Era costume de Odette se basear em aspectos da interpretação musical para, a partir
daí, chegar aos aspectos técnico-instrumentais específicos, e não ao contrário, conforme José
Evangelista: “Ela nunca abordou a técnica como primeira coisa a ser desenvolvida para depois
você pensar em musicalidade” (SILVA JR. 2006, p. 4). Essa priorização da abordagem
musical, diante da técnica instrumental, foi também reforçada por Paulo Magno ao lembrar “a
preocupação dela com a expressividade na música”, muitas vezes, independentemente do
domínio de questões técnicas do aluno. Este ainda complementa: “para ela era fundamental,
acho que conseguiu passar isso para mim e para os outros alunos também” (BORGES, 2008,
p. 2).
Reforçando os discursos, Ariadne destaca que “ela sempre preconizou o estudo da
técnica flautística sobre uma determinada passagem musical. Para ela, soava absurdo estudar
técnica, fazer exercícios técnicos que não estivessem inseridos num contexto musical, dentro
da literatura musical” (PAIXÃO 2006, p.6). Tal constatação é reforçada ainda nos discursos
de Madelon, Sidnei, entre outros, o que me faz concluir que, depois do respeito à expressão de
cada um, princípio maior de sua perspectiva pedagógica, sua principal diretriz é:
expressividade antes, técnica depois.
88
No que diz respeito ao material de estudo não estar preparado, Odette não dizia: “vai
embora, vai estudar” (BARRENECHEA, 2007, p. 11), ou então “fica aí estudando que eu vou
ali tomar um café” (MAIA, 2006, p.4). Era sempre criada uma situação como, por exemplo,
estudar passagens que não estivessem prontas ou trechos que estavam razoáveis procurando
torná-los melhores. A leitura à primeira vista também era uma alternativa, o que possibilitava,
entre outras coisas, o aluno conhecer repertório. Em alguns casos o aluno “driblava” a falta de
estudo através de conversava: “Eu começava a conversar sobre alguma interpretação dela em
determinado disco. Daí ela pegava a flauta e começava a tocar e conversava... e, quase sem
perceber, estava me dando uma super-aula-show” (CYRIACO, 2006, p.4).
Davson pronuncia-se sobre a disposição de Odette para lidar com a falta de estudo dos
alunos de uma forma “bem tranqüila”, ou seja, ela era compreensiva, procurando ver o que é
que estava bom e aprimorar o estudo nos pontos vulneráveis. Ele complementa: “ela tinha
sempre a sensibilidade para buscar o que estava bem feito e às vezes alertava: ‘olha, para
prosseguir, é preciso que esse trabalho esteja pronto’ ” (SOUZA, D., 2007, p.6), o que reforça
seu tato pedagógico.
Conforme observado nos discursos, havia uma maneira diferenciada na atitude da
professora com cada aluno, às vezes em função da personalidade do próprio aluno ou até
mesmo em função do que cada um estivesse estudando ou desejasse estudar. Ainda que
Andréa tenha dito “Ah, nunca era de uma cobrança assim: ‘ah, você não fez, você não
cumpriu’, [...] ela sempre criava uma solução alternativa” (DIAS, A. E., 2007, p.3), em alguns
momentos havia um nível de exigência mais acentuado, ainda que tal situação não fosse regra:
“Ah, ela era rigorosa, ela era bastante exigente. [...] ‘oh você não preparou, você não fez isso’.
[...]” (SILVA JR., 2007, p.4). Enfim, de modo geral, quando acontecia a situação da falta de
estudo, a aula era direcionada àquilo que fosse de maior interesse para o aluno, e, mesmo que
ocorresse “alguma bronca”, era diluída durante a aula.
89
Se o fato do estudo não estar bem preparado, pode ser considerado inadmissível, uma
vez que pressupomos que o aluno deva estudar diariamente, as diferentes declarações revelam
uma professora flexível, dinâmica e sensível em seu procedimento, o que pode ainda ser
reforçado pelo discurso de José Benedito ao declarar que Odette gostava de “Aproveitar o que
eu tinha estudado e de alguma forma dizer algo de bom e estimulante a respeito” (GOMES,
2006, p.4). Assim sua conduta sinaliza afinidades com a perspectiva pedagógica de dois
importantes e atuais autores do campo da Educação (cf. cap. 2, “Outras considerações sobre o
ensino”, § 5 e 6).
No que diz respeito sobre a imitação, um grupo de entrevistados afirmou que havia
prática da imitação; outro declarou que não havia tal prática. Outros, entretanto, responderam
da seguinte maneira: “A Prof.ª Odette executava um trecho quando necessário. Às vezes
comentava e fazia anotações na partitura. A prática da imitação era relativa à necessidade”
(MORATO, 2006, p.4); “primeiro ela dava ao aluno oportunidade de desenvolver aquilo [a
música que estava sendo apresentada] por conta própria, só dando explicações, alguns toques,
alguns detalhes” (SOUZA, N., 2006, p.2), para posteriormente ela tocar.
Do grupo que declarou haver imitação, Cláudia disse: “Eu acho que de certa forma
sim, porque ela sempre ilustrava todos os exemplos que ela dava. Então, com certeza, eu acho
que sim” (CASTRO, 2006, p.4). José Evangelista explicou: “Havia, mas não assim
insistentemente... ao mesmo tempo em que ela procurava, em alguns momentos críticos,
mostrar como ela pensava que deveria ser feito, ela também dava liberdade de você escolher
como deveria ser feito e respeitava, muitas vezes, as particularidades de cada estudante”
(SILVA JR., 2006, p.2). Em outro momento ele ainda declara:
90
[...] a gente fazia duos na sala de aula em que era possível ela mostrar, tocando a parte do professor, e isso automaticamente nos influenciava a imitar; foi muito importante esse trabalho de duo com o professor porque... na parte didática uma das coisas que mais influencia é você escutar um ponto de referência que você tem, uma pessoa mais experiente, que você respeita, um artista que você respeita, e você se basear nisso como ponto de partida, não que você vai imitar e repetir as coisas que ela faz, mas como ponto de partida para você desenvolver seu próprio estilo. (SILVA JR., 2006, p.3)
Ele ainda arremata seu pensamento dizendo: “[...] o trabalho de imitação do aluno não se
limitava a repetir o que ela estava fazendo, mas entender, incorporar e desenvolver, a partir
disso, a sua própria identidade musical. Ela valorizava muito esse tipo de trabalho [...]”
(SILVA JR., 2006, p.5).
Dos que falaram não haver imitação, Patrícia categoricamente declarou: “Comigo não
havia esse tipo de coisa” (CYRIACO, 2006, p.3). Maria Elizabeth disse: “Prática da imitação
não [...] não me lembro da minha mãe falar ‘você faça igual a mim’. Acho que isto ela não fez
(DIAS, M. E. E., 2006, p.2-3). Sidnei explica mais detalhadamente:
Não imitar, mas ela talvez fosse mais capaz de dar vários exemplos de uma coisa, do que mostrar como você devia tocar. Ela nem sempre tocando, mas às vezes indicando coisas para ouvirmos: “ouça aquele bandolinista tocando tal música que você vai ver como é que é a articulação para esta sonata de Bach”. Enfim, não tinha propriamente imitação, se é que eu estou entendendo a pergunta, no sentido de imitação “faça igual a mim”, mas existem tantas possibilidades. (MAIA, 2006, p.2)
Levando-se em consideração que a prática do ensino em música ainda sofre muita
influência da forma de ensino falado e ilustrado através do próprio professor, ou seja, da
“tradição oral”, a imitação até pode acontecer como uma conseqüência natural do processo,
uma vez que o professor, em grande parte dos casos, apresenta o modelo. Por outro lado, para
um dos mais conceituados educadores musicais da atualidade, a “imitação não é mera cópia,
mas inclui simpatia, empatia, identificação com, a preocupação com (o objetivo), percebendo
91
nós mesmos como algo ou alguém. É a atividade pela qual nós buscamos ampliar nosso
repertório de ação e pensamento75” (SWANWICK, 1988, p.33).
Assim, tanto a ampliação do repertório de ação, quanto à ampliação do pensamento,
mencionado por Swanwick, podem suscitar o desenvolvimento da identidade musical própria,
questão muito valorizada por Odette e que ainda hoje continua vivenciando isto, deixando
transparecer uma espécie de “ideologia pedagógica76” em sua conduta de educadora,
conforme seu discurso sobre aquilo que ela considera essencial em seu ensino: “[...] descobrir
a personalidade de cada um, ouvir e procurar desenvolvê-la” (DIAS, 2003, p.18). Portanto,
mesmo que a prática da imitação pudesse ocorrer, durante um momento ou fase, com muitas
evidências a prática não era endossada por Odette, até porque vai em direção oposta ao seu
modelo de ensino adotado, o da margem de flexibilidade para o diálogo (cf. cap. 2, “Modelos
de ensino de instrumento”), onde os alunos são encorajados a compartilhar suas opiniões e
desenvolver identidades próprias.
Como ilustração, apresento um depoimento muito apropriado prestado por Sérgio:
Rapaz, é engraçado, eu fui lá em Belo Horizonte, para uma banca, aí o Maurício pediu para eu fazer uma master class para os alunos; eu estava demonstrando alguma coisa, quando entrou o Artur na sala, sentou, e eu continuei tocando. Depois ele veio falar, ‘você toca parecido com a Odette’ [risos...]. Eu nunca tinha parado para pensar isso. Alguma coisa ficou, agora eu não sei bem detectar o quê, entendeu? Eu falei para você, a gente está naquele contato com o professor ali, é um processo meio osmótico, você vê como ele ataca, você está a 20 cm dele, e aquilo causa uma impressão em você [...] Agora eu não consigo detectar o que possa ser, que ficou... [risos...] (BARRENECHEA, 2007, p.10)
Ainda que no processo de formação de Odette as aulas coletivas77 tenham sido
atividades desenvolvidas no dia-a-dia por seu professor, e mesmo ela tendo desenvolvido esta
75 “Imitation is not mere copying, but includes sympathy, empathy, identification with, concern for, seeing ourselves as something or someone else. It is the activity by witch we enlarge our repertoire of action and thought.[…]” (SWANWICK, 1988, p.33, tradução minha) 76 Conforme SAVIANI (in GARCIA, 1995, p.18), o termo ideologia aqui remete a um sentido mais amplo de “orientação da ação”. 77 O conceito de aulas coletivas aqui deve ser compreendido às aulas onde um aluno toca e os demais assistem, ou, quando todos tocam juntos a mesma música ou exercício.
92
prática durante um determinado tempo, conforme revelou Sérgio78, este formato de aula em
sua classe na UnB não foi uma prática regular. Esta atividade, como uma prática efetivamente
realizada, foi mais citada em referência aos cursos de férias que Odette ministrava. Não
obstante, salientam que ela gostava e incentivava a prática da flauta em grupo, fato que
também é reforçado por Cláudia ao dizer que “fazia parte da filosofia da professora”
(CASTRO, 2006, p.4) colocar o aluno para tocar com outra pessoa.
Assim, é importante salientar que, conforme expôs José Benedito, ainda que as aulas
coletivas não tenham acontecido regularmente, elas sucederam em períodos de preparação de
apresentações em grupo. Não se pode esquecer que, em cursos extra UnB, ela as adotava. Eu
mesmo, na condição de participante de diversos cursos e encontros ministrados por Odette,
tive oportunidade de participar dessa prática.
No que diz respeito ao ritmo, de acordo com Ariadne e José Evangelista, Odette
demonstrou sempre muita preocupação e exigência com a questão do ritmo: “ela não admitia
que nós não fôssemos fieis ao que estava escrito ritmicamente na partitura” (PAIXÃO, 2006,
p.9), ou ainda, “[...] enfatizava a questão do ritmo como uma necessidade básica” (SILVA
JR., 2006, p.14). Quanto ao procedimento de estudo, segundo Andréa a orientação dada era
para que quando surgisse uma determinada dificuldade, selecionar o trecho e trabalhá-lo
lentamente, conforme foi dito a respeito de um arpejo no estudo de uma música de Villa-
Lobos. Esse estudo lento consistia da tradicional prática de alteração rítmica79, como expôs
Ariadne, até que o ritmo real fosse gradativamente assimilado.
78 “[...] Eu acho também que a Odette teve muitas fases, [...] Ela disse [à irmã de Sérgio] ‘fala com ele pra vir aqui, sexta-feira eu faço master class, e lhe dou uma aula aqui’. Molequinho, de 14 anos, eu fui lá pra UnB e pegava aula às sextas-feiras, quando ela fazia master class. Geralmente eu ficava por último, depois que todo mundo tocava era minha vez [risos]. Um incentivo muito grande porque eu estava praticamente sem professor e a Odette foi meu grande incentivo. Imagina ser um molequinho e uma professora super-conceituada me apoiando, querendo me incentivar. Isso, pra mim, foi muito importante; mas quando eu entrei na UnB, isso foi, sei lá, uns três ou quatro anos depois, eu acho que ela [...] estava mais interessada na parte de pesquisa; foi na época em que ela estava fazendo também aquele trabalho do Reichert”. (BARRENECHEA, 2007, p.3) 79 Decompondo as estruturas rítmicas.
93
A respeito deste procedimento de estudo, Michel Debost (2002) diz que durante os
anos em que estudou com Gaston Crunelle no Conservatório de Paris, ele lhe ensinou uma
prática de estudo para passagens difíceis. Tal prática é muito semelhante àquela mencionada
acima tanto por Andréa, quanto por Ariadne, ao descreverem sobre os ensinamentos de
Odette. De acordo com Debost, este conhecido processo, além de precisar ser estudado
conforme a descrição acima, inclui uma importante recomendação, dita por Crunelle, que
segundo Debost consistia em “evitar tentar tocá-las [as passagens estudadas] imediatamente
no andamento, ou pior ainda, aumentar a pulsação do metrônomo progressivamente, o que
destruiria o paciente trabalho feito previamente”80 (DEBOST, 2002, p.160). Ele declara ainda
que praticou este estudo durante anos e que sempre o recomendou aos seus alunos. Portanto,
igualmente a Crunelle e Debost, Odette também recomenda que seus alunos estudem as
passagens mais críticas dessa maneira. Pierre-Yves Artaud (1995), em seu “Flauta Transversa
— Método Elementar”, igualmente apresenta ilustrações desta natureza de estudo.
Naturalmente, na qualidade de outro ex-aluno de Crunelle, ele também é adepto e
incentivador desta prática uma vez que, além de eficiente, possibilita ao flautista, desde o
início do aprendizado, desenvolver este competente recurso solucionando possíveis problemas
em passagens difíceis, o que significa autonomia.
Quanto ao metrônomo, conforme declarou José Benedito, seu uso não era uma
exigência, era apenas sugerido, porém nunca de uma maneira que pudesse trazer tédio ao
aluno. José Evangelista explica que a professora incentivava o aluno a desenvolver uma
disciplina internalizada da métrica, opondo-se à externa, ou seja, não com o metrônomo
pulsando ao lado do aluno, mas sim uma pulsação orgânica, mental, interiorizada. Talvez esta
atitude de Odette possa estar relacionada às suas crenças, princípios, valores e a forma de
80 “[…] to avoid trying them immediately up to tempo, or worse yet, to increase the metronome beat progressively, which would destroy the previous patient work”. (DEBOST, 2002, p.160, tradução minha)
94
encarar a vida sem opressão, acreditando no potencial e capacidade de cada ser humano,
legado dos pais (cf. “Relativismo cultural e visão do mundo”, cap. 3).
Quanto à memorização, ainda que a própria Odette tenha declarado que nas aulas de
Crunelle ele insistia na concentração, na memória81, e que, conforme suas declarações no
subtópico “O essencial no estudo da flauta” (cap. 3) ela mencione a memorização como um
dos quesitos essenciais, esta prática não foi exigida de seus alunos.
José Evangelista declarou que eles não eram compelidos a decorar, deixando
transparecer certo alívio, uma vez que pela impossibilidade de dedicar tempo integral ao curso
de flauta, supunha não ter tempo para desenvolver tal prática. Sidnei manifesta-se dizendo que
Odette “[...] não tinha preocupação com isso a [memorização], pelo menos não a
demonstrava, pelo menos pra mim” (MAIA, 2006, p.17), reforçando a argumentação de José
Evangelista. Andréa explica que a memorização não era obrigatória e que a partitura estava
sempre presente; ressalta, porém, que, pessoalmente, mais tarde foi se libertando da partitura,
uma vez que sempre teve facilidade de memorizar. Sinaliza que a professora realmente
deixava à vontade pois, de acordo com cada um, a memorização iria acontecer ao longo do
tempo.
Ariadne declarou que embora também não se lembre de Odette falando alguma coisa
mais específica sobre a memorização, lembra-se dela tocando muitas coisas de cor, o que
pode revelar, entre outras coisas, que além de gostar de tocar de memória, ela possivelmente
estudou algo sobre este processo, conforme pode ser verificado através da nota de rodapé
trazendo a descrição feita pela Odette sobre a “Preparação aos concursos” 82 que Crunelle
81 Cf. “O legado de seus professores”, cap.3, “[...] Mais do que um roteiro estabelecido, mais do que um conteúdo rígido e histórico, ele formava os alunos para serem músicos, executantes, presentes. Dotado de uma psicologia instintiva, ele ensinava como estudar, insistia na concentração, na memória, na presença física” (DIAS, 2003, p.11, grifo meu). 82 “Preparação aos concursos Para os instrumentos de sopro era sempre escrita uma obra nova, a ser tocada de memória. (par coeur!). Depois de ter passado por dois concursos eliminatórios durante o ano em janeiro e maio, você chegava perto do “Concurso” público, divulgado em todos os jornais. Três semanas antes Crunelle anunciava: “chegou o morceau de concours ”, está no editor “Max Eschig” rue de Rome. Vocês vão lá e comprem a peça (nada de cópia ou xerox, que nem existia). A classe de 12 alunos era dividida em dois grupos de
95
fazia com seus alunos. Além disso, Ariadne ressalta que esta prática era importante para
Odette, afinal, tocar de cor proporcionava-lhe maior liberdade e expressividade e, através da
“demonstração”, despertava interesse e motivação em seus ex-alunos para fazerem o mesmo.
José Benedito foi o único a comentar algo dito por Odette sobre a memorização: “era
sugerido que alguns trechos fossem memorizados para uma maior qualidade na execução da
obra musical” (GOMES, 2006, p.7). Portanto, igualmente nas aulas coletivas, a memorização
não era uma preocupação da professora, nem uma obrigação. O que havia, era estímulo e
incentivo à prática.
4.1.2 Sobre o repertório Conforme a análise dos depoimentos, a escolha do repertório semestral era livre, ou
seja, não havia imposição de obras para os alunos tocarem. Predominava o interesse pessoal
dos alunos e, às vezes, conforme relatos, Odette direcionava para algum motivo que gostaria
de desenvolver, como por exemplo, as sonatas de Haendel ou as obras de Villa-Lobos,
ocorrido por ocasião da celebração do centenário de nascimento do compositor. Ariadne
ressalta que “de vez enquanto ela dava sugestões” (PAIXÃO, 2006, p.2), mas predominava a
6 – Cada grupo assistia obrigatoriamente a duas aulas por semana – de 9 às 12 (não podia sair). Crunelle dava assim doze horas de aula e os alunos assistiam cada um a 6 horas. A distribuição do tempo de tocar dos alunos era a critério do Crunelle, mas ele sabia da necessidade da cada um; quem não tocava ouvia e se beneficiava também. No tempo do concurso final os doze alunos tinham que assistir as 12 horas, 4 aulas por semana. Crunelle não dava aulas particulares aos seus alunos do Conservatoire. Em último caso, quando mais perto da prova, surgiu algum problema mais sério, ele chamava, de graça para casa dele, para acertar algum detalhe. Ele era extremamente dedicado. As três semanas pré-concurso No fim da primeira semana, todo mundo tinha que ter a peça decorada. A gente tocava, solfejava até entrar na memória. Na segunda semana se estudava a parte técnica, interpretativa, apontava-se os momentos “perigosos”- enfim o conteúdo da peça. Na terceira semana − acho que aquilo devia parecer uma concentração de futebol. Era “como se apresentar, como jogar o jogo”. Tocávamos a peça de ponto a ponto com a pianista, sem parar. Nos três últimos dias ele levava a gente na sala de concertos onde o concurso ia se realizar (no meu 1º prêmio foi na Salle du Ancien Conservaitorie – Centro de Paris, construído no tempo da Revolução Francesa, fins do séc. XVIII e de acústica primorosa). Ele falava: entra no palco, é você que toca − “C’est toi qui joues ” − Toque para aquele que está com o mínimo de interesse em você, que entrou porque estava chovendo lá fora, esqueça o juri, − o palco é seu − não fuja! Ele insistia até no aspecto físico “caprichar na roupa”, não comer nada indigesto, no dia do concurso dar um pequeno passeio, respirando pensando na música, não estudar mais !” (DIAS, 2003, p.12-13, grifo meu)
96
liberdade para o aluno tocar o que ele desejasse, questão também reforçada pelos demais
entrevistados.
Sérgio conta que o fato da escolha do repertório ser de acordo com a vontade de cada
um era muito interessante porque assim os colegas não tocavam as mesmas coisas. Em outro
momento ele explica que certa ocasião Odette lhe disse: “ ‘ah, não é tão chato todo mundo
tocar a mesma música?!” (BARRENECHEA, 2006, p.13). Andréa além de reforçar que a
escolha do repertório era livre, argumenta também que as ementas não eram apresentadas aos
alunos, fato igualmente confirmado por Madelon, Patrícia, entre outros83.
Silvana diz não saber se existia um conteúdo programático, acreditando na
possibilidade de Odette escolher o repertório de acordo com o potencial de cada um: “olhava
para os alunos e... ‘ela pode fazer isso, então vamos experimentar’. Eu acho que era muito
assim, e claro, conforme o desenvolvimento que você tivesse” (TEIXEIRA, 2006, p.5-6). Se
esta declaração parece contradizer a liberdade mencionada acima, ela é justificável pelo fato
de Silvana ter sido aluna entre 1975 e 1978, fase que provavelmente Odette adotava outro
comportamento e, que ao longo dos anos foi sofrendo modificações, “mutações”, conforme
discurso mencionado no capítulo 3, “Percurso e discurso: Odette”
Davson, do mesmo modo, reforça o coro da liberdade na escolha do repertório,
manifestando que Odette lhe perguntava o que vinha tocando, estudando ou até mesmo
desejando tocar. Não fazia nenhuma imposição “pode tocar isso, não pode tocar aquilo”
(SOUZA, D., 2007, p.2). Ressalta, entretanto, que a professora o alertava se teria competência
técnica ou nível musical para tocar o repertório escolhido, o que remete ao tato pedagógico
(cf. subtópico “A propósito das aulas”). Também a respeito da liberdade de escolha, Luciana
comenta que o aluno podia optar pelo repertório a ser estudado, ressaltando que diante disso
83 A respeito das ementas, elas podem ser apreciadas no Anexo VII.
97
optou pelo repertório barroco, brasileiro e peças de Reichert, flautista e compositor belga, que
Odette pesquisou, gravou, publicou partituras e um livro sobre sua vida84.
Com um discurso voltado à pesquisadora Odette, José Evangelista declarou que seu
material era vasto e “também se dava ao luxo de introduzir partituras que eram fruto das
pesquisas que ela fazia” (SILVA JR. 2006, p.9). Ainda a respeito da pesquisadora, Davson
declara que a principal influência de Odette sobre ele está relacionada à pesquisa de
repertório, “buscar coisas que mereçam ser tocadas, estudadas, e que às vezes... ficam
largadas, esperando quem toque e ninguém vai à frente com a coisa” (SOUZA, D., 2007, p.9).
Maria Elizabeth revela que uma das coisas muito importantes que absorveu bem de
sua mãe foi montar um repertório, ou seja, critérios para um repertório, para elaborar um
programa de recital. Conforme ela declarou, além de difícil, pouca gente dá importância. A
este respeito se manifesta:
[...] então eu penso que uma das coisas mais importantes que eu aprendi com ela foi montar um repertório, critérios para um repertório, elaboração para um programa de um recital [...], coisa que eu acho que é muito difícil de fazer e pouca gente dá importância a isso. Também a montagem de um repertório pessoal, que hoje em dia, analisando, eu vejo que são [...] peças básicas, que são do repertório internacional. Por exemplo, tocar “Orfeo de Gluck”, entender exatamente o que esta peça quer dizer, leva-se a vida inteira para entender isso; hoje eu percebo, tem que começar muito cedo para entender. Então [...] eu comparo muitas vezes essa prática da minha mãe com a mesma abordagem que o Cláudio Santoro dava quando ele iniciou a Orquestra daqui do Teatro. Eu chamo muitas vezes “as coisas do baú do maestro Santoro”; são obras que eu sei que [ele] considerava fundamentais pra construção da mente musical de qualquer pessoa que queira se dizer músico. Nesse sentido, eu vejo que minha mãe tem muita clareza sobre isto. Então, a formação desses pilares é muito sólida; Orfeo de Gluck, as sonatas de Bach, as composições de Mozart. Mas falando assim, parece muito óbvio porque todo mundo faz isto, mas não é exatamente, não é que todo mundo faça isto, mas da maneira como ela apontava, mostrando que o entendimento desta construção, do fraseado em tal sonata, de tal compositor. Isso é uma coisa que eu pude aplicar em todos os outros compositores [...]. (DIAS, M. E. E., 2006, p. 2)
84 O LP foi lançado em 1986, com o título de M. A. REICHERT - “AFINIDADES BRASILEIRAS –”, gravado na “Sala Cecília Meireles”, Rio de Janeiro, em 13/09/1985. Com Elza Kazuko Gushiken (piano) e Participação Especial de Jaime Ernest Dias (violão). O livro, “Mathieu André Reichert UM FLAUTISTA BELGA na Corte do Rio de Janeiro” foi editado pela Editora da UnB, em 1990, com 96 páginas, em três idiomas: português, francês e inglês. As partituras Mathieu-André Reichert – Vol. I (Piano) e Vol. II (Flauta) organizadas pela Profª. Odette, também editadas pela Editora da UnB, em 1990, respectivamente com 134 p. e 82p.
98
Ela lembra ainda do gosto eclético de sua mãe em relação ao repertório, dizendo que embora
seja passível de críticas, ela não critica, pelo contrário, apóia.
Assim, de acordo com os depoimentos, pôde-se tomar conhecimento da atitude de
Odette de deixar a escolha do repertório livre, ou de acordo com os interesses de cada aluno.
Por outro lado, fica uma pergunta: até que ponto esta liberdade não era dirigida, ainda que
inconscientemente? Sendo Odette um modelo para seus alunos, uma artista de referência
nacional e internacional, ou ainda, como declarou Sérgio — uma pessoa carismática, com
tendência de ser mais liberal, fato que inclusive na época, por coincidir justamente com o
momento do término da ditadura militar, era algo bem quisto; uma pessoa que sempre discutia
e conversava sobre tudo, sempre com opinião sobre as coisas — a tendência natural era que
seus “seguidores”, por empatia, também quisessem tocar o repertório que ela vinha tocando,
fato que inclusive pode ser ilustrado através dos discursos de Luciana e Cláudia:
O trabalho com as obras do Reichert para mim foi o mais marcante. Eu tinha 17 anos, e ganhei o disco (LP) da minha tia. Fiquei impressionada! Queria tocar todas as músicas. “Tarantelle” eu utilizei como peça de livre escolha para o concurso da OSTN [Orquestra Sinfônica do Teatro Nacional / Brasília], que me ajudou a garantir uma cadeira entre os músicos da orquestra. Baseei-me na sua interpretação. (MORATO, 2006,p. 10, grifo meu) A Odette tocava e eu acho que o que geralmente acontecia era que tudo que ela tocava era tão bonito que as pessoas queriam tocar o que ela tocava ou o que ela tinha gravado, porque ela gravou também muitas coisas. (CASTRO, 2006, p.12)
Deste modo, ainda que seja uma indagação, pode-se perceber que a influência de Odette sobre
seus alunos foi muito grande. Além disso, sua atitude também pode ganhar respaldo através
de sua própria declaração85 (cf. “Relativismo Cultural e Visão de Mundo”, cap. 3).
Segundo as declarações prestadas, Odette tinha um arquivo pessoal imenso em sua
sala na UnB, fruto de suas pesquisas e hábitos. Maria Elizabeth revelou que ela costumava
85 “Você está vendo em mim coisas que existiam, mas de que eu não tinha consciência de uma maneira concreta. Meu comportamento, certamente, como você diz, é o resultado de uma vivência, formação humana, familiar, cultural, social, que é intrínseca, vem de longe, e que, sem querer tão objetivamente, passo para meus alunos e para as pessoas que convivem comigo”. (DIAS, 2007, p.2)
99
comprar as músicas ou, quando não existiam, “pagava um copista para reproduzir tal e tal
obra” (DIAS, M. E. E., 2006, p.8), como aconteceu com a “Sonata para Duas Flautas” de J. S.
Bach. Madelon revela que se o aluno não tivesse a partitura, a professora emprestava a dela, o
mesmo dizendo Luciana: Odette nunca se opôs a emprestar seu material. Na mesma direção,
Sérgio refere-se à quantidade de material que Odette possuía, emprestando sempre para os
alunos fazerem cópias. Diz ainda que no seu tempo de estudante, esse material não estava
todo organizado, sendo catalogado posteriormente, o que facilitou muito o acesso. Ele
complementa: “ela sempre foi muito generosa com o material dela, nunca ficou escondendo,
sempre ajudou bastante a gente nesse sentido” (BARRENECHEA, 2007, p.15).
Patrícia, José Benedito e José Evangelista também testemunharam a generosidade da
professora. José Evangelista ressalta a questão do material inédito, isto é, não publicado, que a
professora possuía, fruto de suas pesquisas: “ela ainda recolhia muito material inédito. Vez
por outra, ela soltava uma composição que nunca tinha sido tocada pra gente tocar: ‘Oh, esse
material aqui é inédito e você... vai estudar essa música’ ” [...] (SILVA JR. 2006, p.7).
O repertório contemporâneo sempre foi motivo de incentivo da professora aos seus
alunos. Sérgio disse que “não existia, como existe em outros músicos, nenhum preconceito”
(BARRENECHEA, 2006, p.5). Ressalta também que “ela sempre encarou todo tipo de
música como música, sem preferir uma ou outra” (ibid). Sérgio revela ainda que em uma
determinada época, quando nem era aluno regular do curso de graduação, tocou86 “Anjos
Xifópagos”, uma composição para duas flautas de Eduardo Bértola87, onde além da música,
existia toda uma mise-en-scène para ser feita durante a execução da obra. Este acontecimento
foi muito marcante e incentivador para ele. 86 Em dupla com Paulo Magno Borges, também ex-aluno de Odette. 87 Eduado Bértola (1939-1996) compositor argentino, que em 1975 participou como professor do Festival de Inverno da UFMG, passando a ter uma ligação permanente com Belo Horizonte. Em 1979, mudou-se definitivamente para o Brasil, lecionando na escola de Brasília até 1984. De 1985 a 1993, foi professor efetivo da Escola de Música da UFMG, lecionando análise, Composição, Contraponto, Estética, Introdução à Música do Século XX e Técnicas de Ambientação Sonora. Foi também fundador e coordenador do Laboratório de Música Eletroacústica da EMUFMG, que funcionou no Centro de Pesquisa em Música Contemporânea, de 1985 a 1990, e professor de Análise no curso de Especialização em Musicologia Histórica Brasileira, de 1986 a 1993.
100
Sidnei declara que, por opção própria, não estudou o repertório contemporâneo,
porém, teve muita oportunidade de ver a professora prepará-lo e interpretá-lo. Ele revela uma
situação na qual, além de descrever alguns detalhes do cotidiano da professora, mostra sua
docência-discência, decorrente do ato dialógico de educar, o ensinar aprendendo e vice-versa,
aspecto já abordado (cf. “A pedagogia libertadora de Paulo Freire”, cap. 4), a dosdicência”88.
[...] tive a oportunidade de ver Odette interpretando e preparando músicas, como, por exemplo, uma peça do Jorge Antunes, dedicada a ela, para flauta e fita magnética. Tinha um monte de “efes” na música, ficava “ffffff”, [Sidnei emite o som de efes...] fazendo assim o tempo inteiro [risos]. Eu me lembro dela estudando isso, lendo a bula, me mostrando e até pedindo sugestão: como você acha que fica melhor, faz assim, faz assado? (MAIA, 2006, p.11-12)
José Evangelista argumenta que a relação da professora com a música contemporânea
foi também em função da sua formação, uma vez que na França se desenvolve muito esse tipo
de repertório, e que eles, na condição de alunos de Odette, igualmente absorveram esta
prática. Em direção similar Cláudia declara:
Por ter sido a professora aluna do Conservatório de Paris, instituição onde se realiza tradicionalmente um concurso anual de formatura da classe de flauta com uma peça original composta por um de seus compositores-professores, e dada a importância do repertório francês contemporâneo, foi um privilégio escutar o relato da professora sobre práticas interpretativas de algumas peças do repertório (ex. Sonatina de Duttilieux). (CASTRO, 2006, p.2)
Estas declarações, além pertinentes, podem ser aqui confirmadas (cf. “O legado de seus
professores”, cap.3), onde há revelações desta natureza feitas pela própria Odette, quando se
refere a compositores como Boulez, Shaeffer, Jolivet, Duttileux, Sancan e Enesco, com quem
conviveu no Conservatório de Paris.
Questionada sobre o repertório contemporâneo, Andréa reforça a informação de José
Benedito, ilustrando com os encontros sobre música contemporânea que Odette promoveu,
como a vinda de Pierre-Yves Artaud a UnB, proporcionando assim o contato dos alunos com
88 “Ensinar, aprender e pesquisar lidam com esses dois momentos do ciclo gnosiológico: o em que se ensina e se aprende o conhecimento já existente e o em que se trabalha a produção do conhecimento ainda não existente [...]”. (FREIRE, 1996, p.28)
101
um vasto leque de obras. Ainda dentro desse assunto, Ariadne também se pronuncia dizendo
que Odette sempre incentivou a prática desse repertório, inclusive tocando em seus recitais
“de uma maneira muito natural e espontânea” (PAIXÃO, 2006, p.2), ressaltando que era com
a mesma naturalidade com que tocava, por exemplo, as composições barrocas. Luciana
argumenta que o procedimento da professora em sua abordagem pedagógica sobre este
repertório era ouvir a execução da obra interpretada pelo aluno e, conforme a necessidade de
aprimoramento interpretativo e técnico, interrompia a execução demonstrando, seja por meio
de explicações ou através de seu instrumento.
Analisando os dados levantados, não havia diferenciação entre a abordagem do
repertório brasileiro e os demais. Odette sempre incentivava a inclusão de música brasileira
no repertório de seus alunos. O procedimento das orientações interpretativas eram os mesmos:
partia-se de uma contextualização, para depois abordar a interpretação propriamente dita,
conforme mencionou Madelon.
Davson comenta que ela dava ênfase ao repertório brasileiro, alertando “que era
preciso tocá-lo, que era importante para a gente que era brasileiro e para nossa formação, [...]
e a gente não poderia simplesmente ignorá-lo e fazer outras coisas” (SOUZA, D., 2007, p.3).
Nesta direção Sidnei manifesta-se dizendo que o interesse dela pela música brasileira era
grande e que, na condição de aluno, sempre preparou músicas pertencentes a este repertório.
Ele enfatiza: “Todo mundo tocava música brasileira, era uma preocupação dela” (MAIA,
2006, p.12).
Destacando a pesquisadora Odette, Cláudia argumenta que suas contribuições foram
muito significativas para a difusão do repertório de música brasileira para flauta, conforme
pode ser constatado através de sua discografia no Anexo III. A esse respeito ela ainda declara:
“Suas pesquisas musicológicas e seus discos nos proporcionavam (a nós alunos) a
possibilidade de ampliação e de revisão do repertório brasileiro de flauta do Século XIX”
102
(CASTRO, 2006, p.2). Nessa direção comenta que Odette sempre manteve contatos com
compositores brasileiros, entre eles, Villa-Lobos89 e Pixinguinha. Ela ressalta que em seus
diálogos com a professora lhe foram reveladas informações interessantes sobre a interpretação
de peças do repertório, transmitidas à Odette pelos compositores, contemplando, dessa
maneira, a contextualização e, por conseqüência, a interpretação. Da mesma forma, Patrícia
comenta que o fato de Odette conhecer e ter amizade com compositores como Cláudio
Santoro e Emílio Terraza, entre outros, que dedicaram composições à professora, lhe
favoreceu muito, porque pôde absorver possibilidades de interpretação de algumas peças,
graças à estreita relação com as fontes.
Ariadne declara que a nacionalidade de Odette passa despercebida quando interpreta
música brasileira: “ela conseguiu se impregnar de toda essa maneira de fazer, tanto
ritmicamente, quanto o swing, que não está escrito na partitura, mas que está implícito dentro
do discurso musical” (PAIXÃO, 2006, p.2). Arremata dizendo que Odette conseguiu
assimilar a expressividade da música brasileira, o que me leva a dizer que tal fato é
perfeitamente justificável pela sua postura cultural relativista (cf. “Relativismo Cultural e
Visão de Mundo”, cap. 3) que, reforçado pelo discurso abaixo, ela transmitiu tão bem aos seus
alunos.
[...] olha, eu vou te contar, ela é uma pessoa muito mais brasileira que muito brasileiro que eu conheço. Tinha preocupação com a brasilidade das coisas, da música, pesquisou modinhas de Minas, inclusive gravou algumas. Dava muito valor à cultura brasileira... choros, valsas... e acho que ela conseguiu passar, despertar interesse nas pessoas que às vezes não as valorizavam. Quando se vê uma pessoa de outra nacionalidade valorizando esse aspecto na sua cultura, a pessoa, que às vezes não dá tanto valor, começa até a valorizá-la. Isso... eu acredito que tenha acontecido com seus alunos, com quem conviveu com ela. (BORGES 2008, p.6)
Assim, a atitude de Odette valorizando a cultura, é uma característica marcante de sua
perspectiva pedagógica, uma vez que tal fato está intimamente relacionado ao “Relativismo
89 Cabe mencionar aqui uma carta de apresentação que Odette e Noel Devos receberam de Villa-Lobos.
103
Cultural e Visão de Mundo” e, conseqüentemente, ao “Respeito à expressão de cada um”,
conforme capítulo 3. Neste contexto cabe remeter ao discurso de Swanwick, quando este
também aponta em direção ao respeito e valorização da cultura local, assim manifestando:
“Não ‘recebemos’ cultura, meramente. Somos intérpretes culturais... O ensino musical, então,
torna-se não uma questão de simplesmente transmitir a cultura, mas algo como um
comprometimento com as tradições em um caminho vivo e criativo” (SWANWICK, 2003,
p.45-46).
Pelos relatos, o fato da professora tocar um pouco de piano colaborou muito para
maior envolvimento dos alunos e, conseqüentemente, o estudo das partes de
acompanhamento. Patrícia, por exemplo, declara: “Em sala de aula ela sentava-se ao piano e
me acompanhava em alguns trechos, mostrando-me pela análise musical o que eu deveria
ressaltar na flauta, em termos de sonoridade, respiração, mais ou menos vibrato, etc”
(CYRIACO, 2006, p.2). Ariadne, do mesmo modo, comentou sobre o piano: “Odette tocava
um pouco de piano e muitas vezes ela tocava na flauta a parte do baixo. Então nós tínhamos
como hábito tocar a melodia, e ela o acompanhamento com a flauta” (PAIXÃO, 2006, p.3).
Particularmente sobre o hábito de tocar a parte do acompanhamento com a flauta, tanto
Madelon, quanto José Benedito e Luciana também apontaram alguma coisa nessa direção.
Madelon declara que tanto ela quanto a professora tocavam as partes, fazendo sempre o que
era possível com a flauta. Para se ter uma melhor compreensão da obra, era feita uma análise
para observar as vozes, ou seja, o que a voz da flauta fazia em relação à parte do
acompanhamento. Tal procedimento é reiterado por José Benedito quando este declara que os
estudos das partes de acompanhamento das obras eram feitos “através de uma análise dos
elementos mais significativos do acompanhamento para a execução do flautista” (GOMES,
2006, p.2). Luciana declara, com entusiasmo, que o procedimento da professora era
interessante, argumentando:
104
Ah, isso é interessante! Lembro-me em certa ocasião que a Profª. Odette pediu que eu trouxesse para a aula a parte do piano da Sonata de Bach. Na aula seguinte ela fez uma comparação de alguns trechos da parte do piano, principalmente da mão esquerda, com a parte da flauta, de como as melodias se completavam, o que estava acontecendo com a harmonia, e como havia ao mesmo tempo uma independência entre as vozes (flauta, piano mão direita e piano mão esquerda). (MORATO, 2006, p.3)
De outra opinião, Sidnei relata que esse procedimento era eventual, utilizado em
algum momento específico. Normalmente acontecia em um ensaio e também não era algo que
acontecia formalmente. Salienta que quando ensaiavam, Odette fazia o papel da professora de
música de câmara, dizendo algo como:
[...] “aqui, olha, você toma cuidado porque tem isso aqui na parte do cravo... Aqui tem a parte do piano, faz assim ... Pensa na afinação. Aqui tem que tocar mais forte, porque a parte do piano é muito forte nesta frase, ou toca mais ‘piano’, porque a frase do piano é mais importante” [...]. (MAIA, 2006, p.13-14)
Cabe lembrar aqui a questão da temporalidade, uma vez que Sidnei estudou com Odette entre
1974 e 1979, e que, portanto, o fator tempo, enquanto agente modificador, lhe libertou de uma
prática pedagógica uniforme.
Davson explica que essa atividade era desenvolvida em conjunto, isto é, a parte da
flauta sempre junto com a parte do acompanhamento, seja ele realizado pelo piano, violão ou
orquestra. O objetivo, segundo ele, era desenvolver a atenção dos alunos no momento de
“juntar os elementos da flauta com o acompanhamento” (SOUZA, D., 2007, p.3), visando
obter um resultado musical de maior qualidade. Ele ilustra o caso mencionando uma aula
sobre o Andante em Dó Maior, KV 315, de W. A. Mozart:
[...] eu me recordo especificamente de uma obra ... que era o Andante em Dó Maior de Mozart, para flauta e orquestra, e que num determinado ponto a gente começou a debater com relação aos trinados. Eu estava seguindo uma linha de algumas coisas que eu tinha lido, de sempre começar o trinado ... pela na nota superior. Ela me chamou atenção e falou: “mas qual que é a harmonia aqui, você sabe qual é a harmonia aqui pra começar pela nota superior? Não é sempre pela nota superior, a gente tem que saber qual é a harmonia porque isso pode causar um choque ou pode causar algum outro efeito que perca a importância do trinado por conta da junção do acompanhamento”. Ela sempre nos policiava para ficarmos atentos a essas coisas. (SOUZA, D., 2007, p.3-4)
105
Assim, conforme foi apontado, o fato da professora tocar piano era “um negócio
interessante” (BARRENECHEA, 2007, p.5-6). Ela tocava junto com o aluno, principalmente
se o acompanhamento não fosse tão complicado. No caso de um acompanhamento mais
complexo, por não ser uma exímia pianista, segundo palavras de seu ex-aluno, ela fazia uma
versão com menos acordes, mas que servia como ferramenta de estudo possibilitando uma
idéia mais concreta da obra. Conclui dizendo que Odette sempre tinha algo interessante para
comentar sobre a obra em estudo, não se restringindo à parte da flauta, mas a obra como um
todo. A este propósito, Odette declarou:
[...] até hoje adoro acompanhar meus alunos e cantores quando aparecem, mesmo não sendo nenhuma virtuosa. A leitura harmônica, a capacidade de reduzir um acompanhamento, e a maneira de respirar com o cantor, principalmente, ou com qualquer outro instrumentista, tudo isso foi e é fundamental na minha formação musical – e é básico – é como dançar com outra pessoa. (DIAS, 2003, p. 6)
No que diz respeito ao repertório solo, ou desacompanhado, como também pode ser
denominado, todos os entrevistados declararam ter tocado alguma coisa. Além disso, foi
declarado que Odette sempre prezou esta prática e que dava muita importância à presença de
palco, conforme declarou Patrícia. Ariadne menciona sobre a Partita em lá menor, BWV
1013, de J. S. Bach, dizendo que era uma obra “incontornável” dentro da prática pedagógica
de Odette, ou seja, estava em constante estudo, fazendo também com que seus alunos a
estudassem. Relembra ainda: “todos nós tocávamos essas obras que são realmente pilares
dentro do repertório da flauta transversal” (PAIXÃO, 2006, p.3).
Em relação às obras pilares, Sérgio comenta que tocou o repertório tradicional, como
por exemplo, as Fantasias de Telemann, a Partita de Bach, Danse de la Chèvre, Syrinx, além
de composições do repertório brasileiro como as Melopéias, de Guerra-Peixe, os Improvisos,
de Camargo Guarnieri, entre outras. Acrescenta ainda que Odette gostava de fazer uma
apresentação ao final de cada semestre, e que normalmente peças solo eram inseridas ao
106
programa. Assim os alunos presenciavam seus colegas tocando outras peças, sempre
aprendendo alguma coisa extra. Ele conclui: “Era uma estratégia interessante que ela
mantinha” (BARRENECHEA, 2007, p.5).
Andréa menciona que composições para flauta solo foram dedicadas à sua mãe, das
quais muitas foram utilizadas em aula, especialmente aquelas publicadas no álbum “Nova
Música Brasileira para Flauta”, editado pela SISTRUM. Comenta ainda: “[...] ela passava
isso pra gente, não era exclusivo dela, todo mundo tocava. Essa troca de repertório era ótima”
(DIAS, A. E., 2007, p.11). José Evangelista destaca sobre o repertório contemporâneo solo,
enfatizado através da vinda de Pierre-Yves Artaud a UnB, além de salientar a presença da
música moderna do início do século XX e dos compositores franceses. Assegura também que
os alunos recebiam muito incentivo de Odette para desenvolverem esse repertório. Esses
depoimentos foram reforçados por Davson quando declarou recordar apenas que a professora
orientava seus alunos no sentido de inserir pelo menos uma peça solo em todo recital. Paulo
Magno destaca a histórica gravação que Odette fez de “Naquele Tempo”, um dos mais belos e
conhecidos choros de Pixinguinha. Essa gravação, inserida em seu primeiro LP, “Recital”, na
opinião dele, além de ter sido feita à cappella, foi registrada em um momento histórico em
que o gênero passava por uma crise90. A meu ver esse fato revelou, além de seu apreço pela
flauta solo, o valor que ela sempre deu à música popular brasileira, aos nossos compositores,
aos músicos em geral, sem distinção. Com se não bastasse, revela também seu ecletismo, sua
abertura ao montar um programa para recital, já lembrado por Maria Elizabeth.
Conforme pode ser observado nos diversos relatos, “Taffanel & Gaubert” foi o método
utilizado pela professora, tanto para os iniciantes quanto para os iniciados. Sidnei, por
exemplo, afirma: “ela utilizava na sala de aula basicamente o Taffanel. [...] A gente não tinha
conhecimento de nenhum outro método” MAIA (2006, p.19); na mesma direção, Maria
90 Esta crise que Paulo Magno se refere aconteceu nos anos 70, onde de fato o choro ficou esquecido, passando por uma fase difícil, ressurgindo a partir dos anos 80. Este disco foi gravado em 1976.
107
Elizabeth declara: “É, mas método, para mamãe, era o Taffanel, ela nunca me mostrou outras
coisas não [...]” (DIAS, M. E. E., 2006, p. 8). Silvana e José Evangelista também se referem
somente ao Taffanel & Gaubert como método básico de utilização, e Paulo Magno, que
acrescenta: “e olhe lá...”.
Verifiquei que a IV parte do “Taffanel & Gaubert”, “Grands Exercices Journaliers de
Mécanisme”, foi a mais utilizada por Odette. Desses, os “Exercices Journaliers” [EJs] mais
citados foram o EJ 4, de escalas em todas as tonalidade, e o EJ 10, dos arpejos. Quanto à V
parte, “Vingt-quatre Études Progressives” [EPs], a única ex-aluna que os mencionou foi
Andréa, dizendo simplesmente que “chegamos até os EPs” (DIAS, A.E., 2007, p.8).
José Evangelista afirma que estes estudos não eram a ênfase da professora, mas eles
trabalhavam escalas e arpejos. Outros alunos dizem que esses exercícios não foram praticados
em sala com Odette, uma vez que eles também faziam aulas na Escola de Música de Brasília,
na classe do Prof. Nivaldo de Souza, diplomado por Odette, cujo direcionamento era voltado
aos estudos técnicos de escalas e arpejos, conforme já mencionado.
Sidnei relata ainda que como a abordagem da professora era sempre uma abordagem
musical, ela nunca partia da técnica para começar, portanto, nunca recomendava: “vai estudar
escala e arpejo que o negócio sai” (MAIA, 2006, p.5), o que só reforça os depoimentos de
José Benedito e José Evangelista.
Sobre os estudos de Böehm, Köhler, Castérède, Reichert, entre outros, conforme
declarou Andréa, “não havia uma coisa progressiva assim, estabelecida” (DIAS, A. E., 2007,
p.12-13), mas havia uma prática, especialmente voltada aos estudos de Reichert, ressaltando
inclusive que “os estudos são maravilhosos, nos valeram muito” (ibid). Além de Reichert, os
estudos de Jacques Castérède também são citados por Sérgio, Andréa e Davson. Pelo
depoimento de Davson, Castérède foi contemporâneo da professora no Conservatório de
Paris. Sérgio explica que os estudos de Castérède eram mais modernos e que Odette gostava
108
deles; também cita os “Doze Exercícios” de Böehm, dizendo: “[...] eu lembro que ela me deu
também Böehm, mas não foram os estudos, mas exercícios, “Doze Exercícios”; de que ela
gostava também. Acho que foi no primeiro semestre” (BARRENECHEA, 2006, p.7).
Sidnei diz que fez estudos melódicos mais simples, citando os estudos de Gariboldi. A
esse respeito ele diz: “[...] a gente fazia estudos, quer dizer, tinha estudos melódicos claro,
mas eram estudos mais simples; acho que com a Odette eu fiz estudos do Gariboldi. Claro que
foi o repertório que eu fiz, porque eu era daqueles que nunca tinham visto a flauta na vida”
(MAIA, 2006, p.17). Patrícia revela que os estudos eram preparados como se fossem peças
para serem levadas no palco, entretanto a prática de levar os estudos ao palco não ocorria.
Luciana também menciona os estudos de Reichert, declarando que ênfase mesmo era dada
sobre as peças de repertório e que os outros estudos ela fazia na Escola de Música, com o
Prof. Nivaldo de Souza. Silvana afirma que chegou a preparar os estudos de Andersen e
Köhler; Gomes diz que os estudos eram acompanhados pela professora ao longo do semestre,
seguindo a seqüência apresentada pelo autor. Já Paulo Magno diz que não se lembra da
professora ter passado um Andersen ou Drouet, só mesmo o Taffanel.
Concluindo, José Evangelista declara que Odette não enfatizava muito a questão da
técnica, o que já foi revelado em outros momentos. Geralmente eram feitos um ou dois
estudos por semestre: “a gente tinha obrigação de fazer estudos, mas sem ênfase na
quantidade. Ela se baseava muito mais no repertório interpretativo do que no repertório
técnico” (SILVA JR., 2006, p.11).
No que diz respeito ao repertório popular, por unanimidade, o choro foi o destaque,
demonstrando não só o gosto de Odette pelo gênero, como também o interesse em valorizá-lo
artística e pedagogicamente. Ariadne declara que “Odette sempre apreciou muito e respeitou
esse gênero musical brasileiro” (PAIXÃO, 2006, p.3), salientando inclusive que os alunos
tinham liberdade para incluir essa música no repertório. Sérgio declara que “ela gostava muito
109
de chorinho” (BARRENECHEA, 2007, p.6), acrescentando ser natural eles tocarem choro e
que havia muito interesse por ele próprio em tocar música popular em geral. Ressalta que no
teste específico, que compunha a prova de vestibular para ingressar na UnB, tocou, além da
Fantasia de Telemann, “O Chorinho pra ele”, de Hermeto Pascoal, ouvindo de Odette as
seguintes palavras: “ ‘ah, que bom, você está tocando um chorinho!’ ” (ibid). Ainda a respeito
do vestibular, Davson argumenta que o choro não só era incluído na prova para o ingresso na
UnB, na época em que Odette pertencia ao Departamento, como também a professora sugeria
que o aluno “fizesse alguma música de compositor brasileiro, um chorinho” (SOUZA, D.,
2007, p.4), aconselhando que esse material fosse incluído nos repertórios de recital,
igualmente mencionou Ariadne.
Luciana declara que sem preconceitos ou discriminação ela estudou “até chorinho com
a Profª Odette” (MORATO, 2006, p.3). Remetendo à indagação levantada no início deste
tópico — até que ponto a liberdade de escolha do repertório não era dirigida, ainda que
inconscientemente? — é interessante mencionar que o choro que Luciana citou ter estudado
chama-se “Pour Odette”, de autoria de Ruy Quaresma, dedicado à professora. Tal fato pode
ser uma ilustração da capacidade de Odette influenciar o repertório sobre seus alunos.
No que diz respeito a como se deveria tocá-lo, José Evangelista relatou: “Arrumava-se
uma partitura e era feito um estudo sobre ela da mesma forma, com a mesma ênfase como se
fazia sobre o repertório tradicional” (SILVA JR., 2006, p.10). José Benedito explicou que os
estudos relativos ao choro eram desenvolvidos buscando-se uma interpretação dentro do
estilo, cuidando sempre da superação das possíveis dificuldades técnicas em pontos
específicos, o que, em outras palavras, remete aos procedimentos feitos com o repertório
tradicional.
110
Silvana, José Evangelista e Paulo Magno salientam que Odette foi uma das fundadoras
do “Clube do Choro de Brasília”, fato concretizado, conforme site da instituição91, em 09 de
setembro de 1977, evidenciado o valor que ela dava ao gênero e, sobretudo, aos chorões. A
esse respeito Borges manifesta: “[...] foi na casa dela, na minha quadra [...] que nasceu o clube
do choro; as pessoas começaram a se reunir na casa dela [...] depois é que foram arrumar
outro lugar para se reunir” (BORGES, 2008, p.7).
4.1.3 Abordagem interpretativa
Já foi apontado que para Odette a musicalidade e a expressividade estavam sempre em
primeiro plano. Tal fato significa que sua abordagem partia dos aspectos musicais
interpretativos para chegar a técnica, e não o contrário. Em outras palavras, expressividade
antes, técnica depois, sua principal diretriz92, ainda que passível de críticas, as quais ela
enfrenta. Essa atitude refletiu muita coerência com seu discurso e com princípios filosófico-
musicais que a nortearam e, conseqüentemente, com modelos de ensino que se aproximam do
seu. Dentre esses, por exemplo, o da “margem de flexibilidade para o diálogo”, de Tait
(1992); do “Projeto”, de Mazzoli (1997), ou ainda da “facilitação para a aprendizagem”,
segundo Hallam (2006), para quem os alunos não são receptores passivos do conhecimento,
ou seja, o professor não deve controlar totalmente as atividades, nem ditar o currículo,
repertório, além de não decidir como se deve tocar técnica e musicalmente.
Deste modo, contrariando o procedimento daquilo que a grande maioria dos
professores de instrumento fazem − privilegiar exaustivamente a técnica −, Odette prioriza os
aspectos expressivos, os quais normalmente ficam relegados a um segundo plano, para, a
91 <http://www.clubedochoro.com.br/2008/index.php?option=com_content&task=view&id=3&Itemid=2> , consultado em 28 de fev. 2009. 92 Depois do respeito à expressão de cada um, princípio maior de sua perspectiva pedagógica, sua principal diretriz é: expressividade antes, técnica depois.
111
partir deles, aprimorar a técnica de acordo com as necessidades de cada um. Esta atitude,
conseqüente de seu princípio maior, o respeito à expressão de cada um, que pode inclusive ser
apreciado no subtópico de mesmo título (3.2.1), encontra consonância com instrumentistas-
pesquisadores da atualidade como Lisboa et al (2005) (cf. cap. 2 “A técnica pura versus a
expressão musical”), o que só reforça seu discurso: “[...] A técnica é inseparável da
musicalidade, da sensibilidade, da emoção [...]” (DIAS, 2005, p.3).
Conforme observado nos discursos, a contextualização e a riqueza nos detalhes foram
os pontos que mais chamaram a atenção de seus ex-alunos na abordagem interpretativa de
Odette. Foi declarado, por exemplo, que, como preâmbulo da apresentação da peça, era
costume da professora abordar as circunstâncias em que a obra foi escrita, mencionar algo
sobre o compositor, situando-a para o aluno através de uma conjuntura histórica e estética,
como foi explicado:
[...] tinha o hábito de contextualizar. Acho que contextualizar era importante para ela, porque isso ia fazer você buscar a emoção daquele momento histórico. Não que ela fosse purista nesse sentido, [...] mas refletia o conhecimento dela, sua prática de vida, seu conhecimento da literatura, enfim, fazia parte da própria formação intelectual dela, uma formação francesa, européia, com aquelas características de.... universalismo. (MAIA, 2006, p.11)
Na mesma direção, Madelon declara que somente depois de abordado o contexto
histórico da peça, informações sobre o compositor, e analisada a parte fraseológica, Odette
desenvolvia a questão interpretativa. Davson tece comentários similares, acrescentado: “isso
aqui funciona ou não funciona; porque funciona, ou não funciona, porque eu já toquei
funcionou, ou não funciona porque eu tentei isso e não funcionou” (SOUZA, D., 2007, p. 6),
refletindo conhecimentos da prática de vida dela.
Patrícia comenta que a professora estava “sempre preocupada e atenta aos detalhes de
época” (CYRIACO, 2006, p.2), o que revela intenções de natureza histórica e estética. Maria
Elizabeth chama atenção para a maneira como ela abordava o anacruse, como dar uma
112
entrada, ressaltando: “realmente acho que isso é fundamental e faz toda diferença, quando
você tem a compreensão disso, faz parte de sua capacidade, de fazer a diferença entre, aqui
tem música, aqui não tem música” (DIAS, M. E. E., 2006, p.3). Ela conclui seu discurso
dizendo que “este é o grande lance da mamãe” (ibid), ou seja, a maneira dela abordar sobre a
interpretação com seus alunos promovia, e ainda promove, resultados de muita qualidade
musical:
[...] “aqui tem um anacruse que você não estava fazendo direito, aqui tem esta frase, essa nota aqui é o fim disso e o começo disso ao mesmo tempo” entende?!, A gente escuta, eu escuto, eu vou a muitos recitais e tudo, é de flautistas e não flautistas, tem coisas que são óbvias e as pessoas passam batido simplesmente, não realizam. Aí eu penso assim: puxa, uma aula de mamãe faria até bem para essa pessoa. (DIAS, M. E. E, 2006, p.11)
Andréa argumenta sobre a coerência que era estabelecida com o repertório escolhido,
havendo uma espécie de “determinação” em dar sentido ao todo ― início, meio e fim da obra
― “daquilo que você está fazendo” (DIAS, A. E., 2007, p.11). Tal argumentação vai ao
encontro do discurso de Maria Elizabeth93, reforçando assim a questão dos detalhes
mencionados pelos ex-alunos em geral.
Ariadne chama a atenção à maneira natural que Odette tinha de encarar qualquer
música, fosse de que período fosse, sempre com expressividade. Enfaticamente Paulo Magno
comenta sobre a preocupação que Odette tinha com a expressividade ou, mais
especificamente, o “compromisso com a expressão” (BORGES, 2008, p.2), declarando que
isso o marcou muito. Silvana fala sobre o fraseado e salienta sobre a necessidade que Odette
tinha em dar ênfase à dinâmica e à sonoridade, deixando transparecer que a demonstração
constituía-se mesmo como o elemento explicativo na maioria dos casos. José Benedito
menciona “seu grande conhecimento musical e sua sensibilidade interpretativa” (GOMES,
2006, p.2), o que vai ao encontro dos discursos de Ariadne, Sidnei e Andréa, quando estes
93 Conforme já mencionado: “a idéia que a persegue, ou a idéia que a acompanha todo o tempo é a idéia da música como um todo, da construção [...]” (DIAS, M. E. E., 2006, p.5).
113
remetem à bagagem cultural da professora. Madelon remete à grande facilidade que Odette
tinha em comparar a interpretação com outras linguagens artísticas, ou até mesmo com algum
idioma. Isto, conforme ela declarou, servia para que o aluno melhorasse a expressão do
fraseado e até mesmo as articulações.
Por fim, considero pertinente apresentar o discurso de José Evangelista descrevendo
sobre a riqueza dos detalhes e a coerência. Assim ele pronunciou:
Bom, a abordagem interpretativa que a Odette utilizava, em relação ao nosso curso de flauta, era sempre baseada na riqueza dos detalhes que ela sentia que faziam falta na hora de você montar a interpretação de uma peça. Com o tempo, ela ia adicionando detalhes que ela via que eram necessários, e segundo a particularidade de cada um, para montar assim, vamos dizer, um pacote, que fosse coerente com a idéia central da peça, e ia expandindo a idéia de forma a criar adornos e complementos que tornassem aquele pacote mais interessante. Conforme a necessidade, o aluno ia trabalhando deficiências técnicas aqui e ali, pra alcançar esses detalhes que tornariam o pacote coerente no final. (SILVA JR., 2006, p. 17)
Assim, pode-se constatar que este pronunciamento além de revelar seu modelo de
ensino, o da margem de flexibilidade para o diálogo, ou da facilitação da aprendizagem,
revela ainda sua principal diretriz, expressividade antes, técnica depois: em primeiro lugar
ela cuidava dos detalhes da interpretação para, posteriormente, trabalhar possíveis
deficiências técnicas, visando dar sentido ao todo.
O conteúdo desenvolvido aos seus ex-alunos no que diz respeito aos aspectos
culturais, estéticos e históricos foi norteado por duas questões: a experiência pessoal de
Odette e sua atuação como pesquisadora. Nesta direção Luciana declara: “cada obra estudada
era uma ‘experiência de vida’. Além da contextualização dada através de pequenos
comentários durante a aula, a Profª. Odette trazia uma experiência pessoal daquele repertório”
(MORATO, 2006, p.2), deixando transparecer nas entrelinhas que não só tinha tocado o
repertório, mas também teve oportunidades de receber informações sobre uma determinada
obra através do próprio compositor. Sérgio manifesta que na aula Odette transmitia,
basicamente, a sua experiência, a idéia que ela tem da música que está sendo estudada. Ainda
114
dentro dessa linha da “experiência pessoal”, Ariadne fala sobre a formação sólida que a
professora teve e afirma ser sua abordagem decorrente da sua própria experiência em relação
ao repertório que estivesse sendo estudado. Assim ela explica:
[...] pessoa muito culta, pelo fato de ter uma grande vivência e ter uma formação flautística muito sólida, conhecia profundamente o repertório de flauta e não somente o repertório do começo do século XX, mas também o contemporâneo. Assim sendo, toda a sua abordagem partia da própria experiência em relação a ele. (PAIXÃO, 2006, p. 2)
O enfoque de pesquisadora foi abordado por Patrícia, José Evangelista e por Cláudia.
Patrícia, por exemplo, explica que sendo a professora uma pesquisadora, seu instinto aguçado
lhe permitia grande conhecimento histórico, cultural e estético, seja do compositor, seja de
sua obra. José Evangelista comenta que pelo fato da professora ser aberta às diferentes
culturas94, tinha um trabalho de pesquisa muito intenso. Esse aspecto muito valorizado
durante o curso, ela passava aos seus alunos. Tal argumento complementa-se com o discurso
de Cláudia quando esta declara: “A Profª procurava inculcar no aluno o interesse pela
pesquisa musicológica (e o prazer dela derivado)” (CASTRO, 2006, p.2), demonstrando que
além de ensinar Odette também instigava à pesquisa.
Sobre o fraseado, os comentários foram sempre de elogios à Odette. Sérgio, por
exemplo, considera que ela sempre teve um “fraseado incrível”, transmitindo a idéia de que a
demonstração, aquele algo tradicional que ocorre com os instrumentistas de modo geral, era
mais importante que a explicação:
[...] a gente pegava por osmose. Eu não lembro muito de ouvir explicações de Odette; mas o fato de você ter ali o professor tocando, que era uma coisa que ela sempre fazia, demonstrando, “oh, eu vou tocar aqui pra você”, entendeu?! Era uma metodologia tradicional da demonstração. (BARRENECHEA, 2007, p.4)
Este procedimento pode constituir-se naquilo que Tait (1992) menciona como estratégia não
verbal, ou seja, uma comunicação sem o uso das palavras, que consiste em modelagem
94 O que remete ao “Relativismo Cultural”, já mencionado.
115
musical, quando o professor toca para o aluno ouvir; a modelagem aural, quando o professor,
se desejar, cantarola ou transmite pontos específicos da música; e a modelagem física, que
inclui gestos físicos e expressões faciais do professor.
Além disso, Sérgio revela ainda que a coisa mais importante para Odette era o aluno
transmitir a idéia da música, do fraseado, “a intenção que você quer dar na música” (ibid, p.
14), expressa por um conjunto composto pela respiração, articulação, dinâmica, andamento,
nuanças de rubato, afinação, entre outros. A ênfase, porém, recai na sensibilidade e identidade
daquele que desenvolve a idéia musical, ainda que com algum prejuízo de natureza técnica,
uma vez que, para Odette, originalidade artística é mais associada às habilidades musicais do
que às proezas técnicas. Isso, igualmente, mencionou Lisboa et al. (2005).
Maria Elizabeth, declarou que mesmo estando atuante profissionalmente há vários
anos, acha incrível quando vai tocar para sua mãe. Esta é capaz de perceber coisas tão óbvias
no fraseado que muitas vezes passam despercebidas. A este respeito ela explica:
[...] tem coisas em frases de música que vou tocar pra mamãe, ela me interrompe e chama atenção para uma determinada coisa que está tão evidente, tão óbvia, que faz muita diferença musicalmente, mas passou despercebido. Então, essa coisa do fraseado, por exemplo [...], ela sempre quis mostrar, que é exatamente como ela pensa e porque aquilo faz sentindo musical. E... realmente faz toda a diferença. (DIAS, M. E. E, 2006, p.11)
Luciana argumenta que recebeu preciosas informações a respeito das possibilidades de
condução do fraseado e que a principal mensagem deixada pela professora era para que o
fraseado fosse harmonizado aos movimentos do corpo, conforme será apresentado no
subtópico “Abordagens técnicas”. Andréa declara que não se lembra da mãe fazendo
comentários sobre o fraseado, porém diz que ela, de um modo geral, tinha um cuidado com
muito grande com o fraseado, a qualidade do acabamento da nota longa e a afinação. Em
outro momento alega ainda se lembrar de reproduzir o que ela tocava através do exemplo
dado: “Ela [Odette] tocava, dava o exemplo tocando e eu a repetir” (DIAS, A. E., 2007, p. 7).
Isso significa que a partir da demonstração, do exemplo da professora, ela ia se moldando de
116
alguma maneira até ficar mais próximo do padrão demonstrado, o que pode remeter também à
estratégia não verbal, mencionada por Tait (1992). Com um discurso na mesma direção,
Ariadne explica que “ela [Odette] tocava pra mostrar como é que a frase se conduzia ... ‘não,
não é assim que se faz’ e mostrava aonde a frase ia” (PAIXÃO, 2006, p.4), reforçando assim a
idéia de que a demonstração era algo realmente muito importante para seus alunos porque a
partir daquele modelo o aluno estudava, pesquisava, até obter um fraseado pessoal, mais
apropriado à música.
Embora não tenham sido feitos estudos sistematizados sobre a “Forma Musical”, tema
pertinente às disciplinas Estruturação Musical ou Análise, Odette sempre foi muito atenta ao
estudo do fraseado, porque, segundo Sidnei, ela sempre falava: “ ‘olha, essa frase aqui, essa
semi-frase’... o motivo, o inciso, ..., o período” (MAIA, 2006, p.5 e 24), conceitos que
segundo ele eram “depositados”, isto é, sistematicamente utilizados no cotidiano das aulas, e
em algum momento o aluno iria lembrar-se e buscar maiores informações seja perguntando,
estudando ou pesquisando através do instrumento. Ele argumenta ainda que a idéia de estudo
dela sobre fraseado era relacionada a como deveria soar no instrumento, sempre com intuito
de criar algo emocionalmente interessante:
[...] mas tinha muito assim, do fraseado, do estudo das frases, e de como o instrumento deve soar, em função da questão emocional em cada momento, ou deve visar o tipo mais apropriado para a música, que também tem a ver com essa questão emocional, tudo em função de criar um clima emocional interessante. [...] (MAIA, 2006, p. 24)
Mesmo que uma pergunta específica a respeito da emoção não tenha sido realizada,
dois entrevistados mencionaram enfaticamente sobre a emoção, fato que considerei
importante trazer nesta discussão. Cláudia, ao ser questionada sobre o que mais chamava a
sua atenção em relação à flautista Odette se apresentando, declara: “Eu acho que é única a
forma como ela transmite a música e a emoção [...]” (CASTRO, 2006, p.11), e também
117
quando declara que as “emoções e a racionalidade eram exploradas buscando melhorar a
intenção e expressão musical” (ibid, p.5).
Sidnei, em vários momentos, também salienta muito sobre a emoção. O primeiro deles
foi quando questionado sobre aquilo que chamava mais sua atenção na abordagem
interpretativa de Odette, e prontamente responde: “eu acho que o principal foco da
interpretação da Odette estava relacionado com a emoção. Então tudo tinha assim um objetivo
emocional [...]” (MAIA, 2006, p.23-24). Complementa dizendo que ela falava ainda para
observar o início e fim da frase, qual seria o melhor ponto para respirar, cuidar do ritmo, da
afinação, timbre, e conclui: “mas tudo isso tinha que estar voltado para um objetivo
emocional” (ibid). Em outro momento argumenta que Odette defendia sempre que tocar um
instrumento não é algo puramente exibicionista, querendo dizer com isso, a meu ver, que o
principal para Odette era fazer com que a música fosse transmitida com emoção, reforçando a
indissociabilidade entre técnica, musicalidade, sensibilidade e emoção. Ele enfatiza que,
segundo ela, “Você tem que estar emocionado para você transmitir emoção para alguém”
(MAIA, 2006, p.24). Portanto o enfoque do estudo da interpretação, na opinião de Sidnei,
estava relacionado, sem dúvida, à emoção. Talvez, esta característica dela possa estar
relacionada ao legado assimilado de seus professores (cf. subtópico “O legado de seus
professores”, cap. 3). A propósito desta questão, Sidnei revela:
[...] e um comentário que uma vez ela fez, ... que ela estudou com a Nadia Boulanger [...], que a Nadia pegava um coral de Bach, para ensinar contraponto, para dar uma aula de contraponto, colocava a turma para cantar o coral e regia, e quando terminava estava chorando. Então isso, de certa forma, também foi assimilado por ela, esse negócio de ser uma pessoa de se emocionar mesmo pelo que faz. Acho que essa é a característica dela como professora, mas não só como professora, como tudo, como pessoa, artista. (MAIA, 2006, p.10)
Em outro momento ele ainda reforça seu discurso em relação à emoção quando,
questionado sobre aquilo que mais despertava sua atenção ao ouvir os discos de Odette, ele
declara:
118
Eu ouvi muito das Sonatas de Bach, ouvi muito aquele do Reichert... o que me chama atenção na Odette, é o que me chamou sempre atenção em tudo o que ela faz, ela sempre faz as coisas muito emocionada, assim... não parece uma seqüência de notas, uma seqüência de dificuldades. Quando eu ouvi, por exemplo, o Rampal tocando a Partita eu falei: “rapaz, ele é fera mesmo, ele consegue transpor essa dificuldade toda, ele consegue fazer isso ai”. Quando eu ouvi a Odette tocando as sonatas eu falava assim “Rapaz, que música bonita heim, puxa vida!” Entendeu?! era assim... não transparecia dificuldade na música, o que passava mesmo era o prazer de estar tocando, fazendo música bacana. [...] (MAIA, 2006, p. 20)
Fazendo uma reflexão sobre o subtópico “Considerações sobre técnica”, cap. 3, ela
deixa claro que técnica para ela é a procura do essencial, o condensado, que, de acordo com
suas impressões, é “como no ‘hai-kai’ japonês”. Para ela o som deve produzir uma sensação,
viva, forte, penetrante, não sendo trabalhado somente na superfície, como o ourives, exigindo,
portanto, que este som produzido — denso, humano — seja aflorado através de um estudo
rigoroso envolvendo gestos, respiração e, sobretudo, o pensamento, capaz de conduzir uma
comunicação emotiva, que é sua busca constante. Portanto, por essa razão talvez, é que
Cláudia e Sidnei argumentam sobre a emoção de Odette, presente na condição de professora,
artista e ser humano. Como revelou Menuhim: “As emoções são o próprio sangue vital da
música e a linha vital da comunicação, particularmente na ausência de palavras”
(MENUHIM, 1991, p.118).
119
4.1.4 Abordagens técnicas
Este foi o tema onde se concentrou o maior número de críticas e queixas à perspectiva
pedagógica de Odette. Dos quinze ex-alunos entrevistados, somente Silvana poupou a
professora das mencionadas críticas e queixas. Maria Elizabeth, por exemplo, faz críticas95
incisivas sobre a questão da técnica pura96, declarando ter-se ressentido muito de não ter tido
uma orientação que lhe proporcionasse “robustez” em sua técnica, isto é, segurança e
tranqüilidade para realizar atividades musicais específicas como trechos ou passagens rápidas
em qualquer região do instrumento, sem lhe causar sofrimento diário diante de uma estante,
em uma orquestra. A este respeito ela declara:
[...] esta história da técnica pura, que é uma discussão de toda vida, é “cósmica”, a famosa aula de técnica... técnica não tem sentido. Olha, meu pensamento vai e vem, vai e vem porque como eu nunca tive muita disciplina; esse é um ponto que eu remeteria a ela como educadora, porque essa parte ela não ensinou. [...] (DIAS, M. E. E., 2006, p. 7)
Em direção similar, Madelon manifesta-se dizendo que o ponto mais frágil da
pedagogia de Odette foi à ausência de abordagem técnica, mais especificamente estudos e
exercícios, pois tudo estava voltado ao repertório. Patrícia argumenta que a professora não
tinha paciência para trabalhar técnica instrumental, enquanto Paulo Magno declara que ela
não se preocupava muito com esse lado do domínio técnico. Diz ainda que muitos de seus
colegas chegavam à universidade com deficiências técnicas por falta de fazer determinados
95 Essa crítica também foi feita diretamente à Odette, conforme foi relatado pela própria Odette em carta que recebi: “A Beth, outro dia, fez umas reflexões críticas sobre o resultado desse meu ‘ensino’: ‘o pessoal de Brasília é mais fraco (flautistas) não tem ‘técnica’, comparando com os de São Paulo, por exemplo’ (isso ela falou mais ou menos). Uma convivência recente no último FIIB [Festival Internacional de Inverno de Brasília] do qual participei com master class, algumas aulas (alunos de S. Paulo, Paraíba, Brasília), banca de concurso, notei algumas coisas – ‘tecnicamente’ (farei algumas considerações, mais algumas sobre esse conceito de técnica). Não observei essas diferenças tão gritantes. Mas tive ocasião de conversar, bate-papos com alunos antigos – Sidnei, Paulo Magno, Maíra, Ariadne, Toninho, Serginho (dei algumas aulas para este), com a própria Beth – constatei o quanto eles são pessoas humanas, realizadas pela música, dentro da música, com questionamentos constantes, renovados, sendo também bons ‘técnicos’. São pessoas que evoluíram. Tive, estou tendo contato com eles, contatos humano, musicais. O mesmo acontece comigo – A procura constante de uma expressão essencial, na música e na vida. [...]. (DIAS, 2007, p.1-4) 96 Cf. conceito já apresentado no subtópico “A técnica pura versus a expressão musical”, cap. 3.
120
estudos, como exercícios de velocidade na terceira oitava. Conclui: “ela realmente não se
preocupava muito com isso, a gente que se arranjasse, mas não se sabia identificar que
deficiências eram essas; hoje, à distância, sim” (BORGES, 2008, p.3).
Davson revela que, quando ingressou na UnB, existia uma deficiência significativa
com relação à parte técnica da flauta entre os alunos que foram seus contemporâneos. Ele
atribui essa deficiência “ao princípio que Odette tinha de respeitar os limites de cada um, e à
sua vontade de não padronização do protótipo de flautista. Ela deixava isso bastante livre,
bastante solto” (SOUZA, D., 2007, p.5), embora tenha consciência de que é justamente essa
liberdade que não padronizava os alunos. Ele conclui sua exposição dizendo que esse
procedimento não impediu alguns ex-alunos de solicitarem mais subsídios dela, que os
fornecia, ou ainda de seus ex-alunos recorrerem a outras possibilidades que os auxiliassem
obter maior desenvoltura técnica. Esse fato é igualmente reforçado tanto através dos discursos
de Andréa, quando esta menciona que uma das características dos alunos da professora é que
eles não pararam somente nela, foram buscar informações em outras fontes também97, quanto
de Sérgio, ao lamentar não ter tido um detalhamento das questões técnicas, embora
atualmente considera que este fato foi benéfico porque o fez buscá-lo, estimulando-o a pensar
mais a este respeito. Sobre isto, ele declarou:
[...] isso foi uma coisa que apesar de [Odette] não ter me ensinado, me fez buscar. Então é algo relativo, não posso dizer que foi negativo porque foi benéfico para mim, tinha necessidade e eu fui buscar, me estimulou a pensar mais nessas coisas, entendeu?! [...]. BARRENECHEA (2007, p.9-10)
Das soluções encontradas para possibilitar-lhes vivência, treinamento e
desenvolvimento específico da técnica, Nivaldo de Souza, ex-aluno de Odette, conforme já
mencionado, foi citado por alguns dos entrevistados como sendo um dos responsáveis pelo
suporte à técnica pura. Entre eles posso citar Luciana, Davson e Patrícia.
97 [...] Ninguém parou nela, só aprendeu com ela e caiu na vida profissional [...] (DIAS, A. E., 2007, p.6-7)
121
Ariadne declara que Odette pecava por não exigir mais do aluno, o que refletia em
uma classe muito heterogênea e, portanto, com muitas defasagens. Em outro momento Sérgio
explica que a professora “deixava um pouquinho livre demais” (BARRENECHEA, 2007,
p.10), argumentando que ele precisava, na época, de um “pouquinho mais firmeza”, como por
exemplo: “oh, você tem que fazer isso, você tem que fazer o Andersen tal, depois você vai
fazer o tal” (ibid). Manifesta, além disso, que sentia necessidade, na ocasião, de ensino mais
verbal98, porque o ensino era mais tradicional, resumindo-se em demonstração. Ele queria
mais detalhamento: “oh, para fazer esse som você faz assim, assado” (ibid), ou seja, mais
estratégia verbal, conforme Tait (1992).
Diante dos fatos, é necessário refletir muito sobre estes resultados. Como já
questionado99, o que Odette transmitiu aos seus alunos?
Levando-se em consideração que seu modelo de ensino, o da “margem de
flexibilidade para o diálogo”, ou “modelo centrado no aluno”, prioriza a autonomia cognitiva,
estimulando, entre outras coisas, a individualidade, a personalidade, a identidade100 de cada
98 A este respeito: “Os processos de ensino instrumental incluem estratégias verbais e estratégias não-verbais. As estratégias verbais, segundo Tait (op. cit. p.526) incluem três categorias de vocabulário: o vocabulário profissional - que diz respeito aos termos técnicos, conceituais ou estéticos derivados da própria música tais como "articulação" (técnico), "ritmo" (conceitual) e "intenso" (estético): o vocabulário experiencial - que "auxilia a integrar o conhecimento musical com a experiência pessoal daquele conhecimento": e um vocabulário referente aos processos do ensino musical que "inclui palavras tais como analisar, imaginar, descrever, explorar, expressar e demonstrar". Embora não totalmente concordantes, a maior parte das pesquisas na área demonstra um excesso de fala da parte dos professores, gerando desatenção por parte do aluno: esta fala utiliza-se mais do vocabulário técnico e deixa de lado termos mais abstratos que poderiam enriquecer a experiência musical, o que deve ser corrigido. As estratégias não-verbais utilizadas pelos professores de música ocorrem em três áreas principais, constituindo-se de 1) modelos musicais de execução (o professor toca para o aluno ouvir); 2) modelos musicais de execução (o professor cantarola "para comunicar significados específicos ou pontos de ênfase na música") e 3) modelos musicais fisiológicos (expressões faciais, gestos físicos, etc) (p. 528)” (SANTIAGO, 1991, p.227, grifos meus) 99 Cf. “Introdução: problema e objetivo”, cap. 2. 100 De acordo com LARROSA (1995, apud GIMENO SACRISTÁN, 2001, p.43): “a identidade é aquilo pelo qual acreditamos que somos determinados, que nos singulariza e faz com que nos sintamos diferentes, total ou parcialmente, dos demais. É algo que adquirimos como conseqüência de nossa passagem por grupos sociais e de nossas experiências diversas (algumas causadas pela posição na qual a vida nos coloca desde o nascimento e outras escolhidas por nós mesmos). Sentir-se alguém que tem uma determinada individualidade é uma característica e uma necessidade básica da personalidade, que dá consistência ao eu, que dá continuidade e estabilidade a nossa presença nas relações sociais que mantemos e que serve para perceber os demais na medida em que nos assemelhamos ou nos diferenciamos deles. A identidade é uma forma de sentir a subjetividade como algo constituído pela posse de algumas qualidades. Nutre-se de experiências concretas e também de assumir modelos normativos ideais construídos culturalmente. [...]”.
122
um, conforme se evidencia nos discursos de seus ex-alunos, é possível presumir que foi
justamente esta questão que diferenciou seus alunos, possibilitando-lhes, de certa forma, a
compensação pela ausência da práxis direcionada à técnica pura, práxis esta desenvolvida
posteriormente, seja com auxílio de outras fontes ou individualmente, ao longo do processo
de amadurecimento da autonomia. Ainda segundo Hallam (1998), mesmo ocorrendo pouca
ênfase sobre esta concepção de ensino, onde os alunos não são vistos como receptores
passivos do conhecimento, para a criatividade musical este processo é essencial, o que pode
justificar a diversidade de flautistas obtida por Odette, ou, conforme as palavras de Odette:
“[..] Um outro ponto de orgulho meu é que meus alunos tocam todos de uma maneira
diferente uns dos outros (até minhas filhas) e atuam em ambientes diferentes. Talvez seja isso
a minha ‘escola’” (DIAS, 2003, p.18-19).
Além disso, é preciso ressaltar os princípios filosófico-musicais de Odette aqui
registrados (cf. “Considerações sobre técnica”, cap. 3), onde, enfaticamente ela declara que a
técnica é inseparável da musicalidade, da sensibilidade, da emoção, pensamento que
educadores e pesquisadores da atualidade, tais como Artaud (1996), Sloboda (2000), Juslin e
Person (2002), Lisboa et al. (2005), dentre outros, vêm valorizando e chamando atenção para
que se desenvolvam procedimentos de ensino voltados à expressividade, uma vez que “a
técnica é freqüentemente enfatizada em detrimento das considerações musicais” (HALLAM ,
2006, p.168).
Para ilustrar os princípios de Odette e sua perspectiva pedagógica, Sérgio assim se
pronuncia:
Eu acho que é um dos professores mais diferentes com quem tive a oportunidade de lidar, não só de flauta, de outros estudos também, mas que dentro disso ai tudo... o objetivo maior dela, que é estar trabalhando com pessoas, estar estimulando essas pessoas a fazer o que elas querem, e às vezes é justamente um processo ali, da pessoa ter um clique, né, “ah...” entendeu? risos..., e às vezes não funciona com todo mundo, ou às vezes não funciona naquele momento, não é uma coisa imediatista, não é um negócio assim, “oh, você vai ficar trabalhando esse exercício aqui que seu dedo vai melhorar”, entendeu? aquela coisa, é um negócio mais amplo, e às vezes...
123
quando você está ali naquele processo você não percebeu que... é uma coisa a longo prazo, que... que você vai entender muito depois [...] (BARRENECHEA, 2007, p.16).
Assim, o discurso apresentado por Sérgio vai em direção ao modelo da flexibilidade
para o diálogo, onde os estudantes são estimulados a compartilharem suas opiniões,
desenvolver a criatividade, a autonomia. Conforme o autor deste modelo, “professores de
música bem-sucedidos desenvolvem muitas estratégias e estilos para atender as várias
necessidades de seus alunos. Assim sendo, não existe um melhor estilo para ensinar música, e
sim um repertório de estratégias e uma variedade de estilos”101 (TAIT, 1992, p. 525).
A preocupação de Odette com relação à postura de seus alunos era constante. José
Benedito comenta que ela o abordava “de forma branda”, ou seja, com tato pedagógico, para
corrigi-lo quando sua postura pudesse causar algum prejuízo musical ou físico, o que também
é reforçado por Luciana ao revelar que “havia uma preocupação com os movimentos do
corpo, para que não fossem excessivos, porém pertinentes ao fraseado” (MORATO, 2006,
p.8). Ela comenta também uma importante observação que Odette fez a respeito dos
movimentos de seu corpo, o que lhe possibilitou desenvolver uma consciência sobre eles, ou,
sob outra perspectiva, despertar a “autonomia cognitiva”, o que vai ao encontro da
“Fundamentação teórica”, exposta no cap. 2. Sobre este acontecimento Luciana descreveu:
Lembro-me que certa vez, ela me fez tocar um trecho de uma das Sonatas de Bach que estávamos trabalhando, olhando no espelho, para perceber como meus movimentos estavam repetitivos, quase que ‘marcando o tempo’ com o corpo. Sua observação fez com que eu desenvolvesse uma consciência dos meus movimentos e que eles faziam parte da interpretação musical! Essa experiência trago até hoje, e também levo para os meus alunos. (MORATO, 2006, p.2)
Ariadne diz que, embora não se lembre de Odette ter falado alguma coisa a respeito da
postura, revela que “ela tinha, ela tem até hoje, uma postura muito elegante, natural, muito
101 “Successful music teacher develop many strategies and styles in order to address the varied needs of their students. Accordingly, there is no one best style for teaching music, but rather a repertoire of strategies and a range of teaching styles”. (TAIT, 1992, p. 525, tradução minha)
124
relaxada, e eu acho que nós, naturalmente, tentávamos imitá-la” (PAIXÃO, 2006, p.9),
percebendo-se assim a empatia, simpatia ou identificação, conforme conceito de imitação de
Swanwick (1998) já apresentado. Sidnei declarou que a professora sempre cuidou muito do
jeito de segurar o instrumento, comentando que esta maneira dela talvez tenha uma relação
com a escola francesa mesmo. José Evangelista lembra que durante a aula Odette observava o
que o aluno estava fazendo, procurando orientá-lo, se necessário. Silvana, além de mencionar
que ela era bastante exigente em relação à postura, remete particularmente à posição da
cabeça, dizendo lembrar-se bem de que a professora recomendava mantê-la ligeiramente
inclinada. São testemunhos que só reforçam a utilização de uma de suas grandes fontes, que
será apresentado mais adiante: o método Taffanel & Gaubert. Em outro momento, Sidnei
ainda remete sobre o polegar da mão direita dizendo que “ele [o polegar] era sempre muito
pra frente, eu botei um pouco mais pra trás” (MAIA, 2006, p.16).
Ainda que Andréa dissesse não ser aplicado nenhum tipo de exercício relacionado à
postura, ela reforça que havia sim uma preocupação de Odette com relação à postura do
corpo. Embora tal fato ocorresse, uma questão ficou muito clara: se Odette tem uma postura
elegante, natural e muito relaxada, conforme mencionou Ariadne, a estratégia não-verbal,
segundo Tait (1992), me parece, supriu, em parte, a ausência de explicações mais detalhadas
ou até mesmo algum exercício, conforme apontou Andréa.
Como ilustração desta influência de Odette sobre seus alunos, considero importante
trazer o depoimento de Sidnei:
[...] a Odette é até uma pessoa discreta tocando, faz poucos movimentos, movimentos discretos. Eu, durante um tempo, toquei fazendo muito movimento. Ai depois eu pensei na Odette nessa época... acho que um amigo me fez uma observação: “é, você se movimenta...”. Ele não estava nem criticando, estava só fazendo uma observação,“você se movimenta muito no palco, né?!” Eu falei: é verdade. E comecei a pensar... e acho que o exemplo da Odette veio para mim nessa hora: É verdade, Odette não faz assim. Eu tinha visto um ensaio de orquestra com o Rampal aqui [em BSB], há muito tempo, e o Rampal é aquele flautista que ia até lá no chão, descia, subia e tal, e eu achei bacana aquela maneira, “é o Rampal né...”. Mas aí depois eu vi...
125
não, aquele jeito da Odette é um jeito mais suave, mais delicado [...]. (MAIA, 2006, p. 3)
Assim, conforme pode ser observado, a preocupação maior de Odette neste subtópico
está relacionada ao aspecto musical, ou seja, a postura não deveria trazer prejuízo musical
nem físico: “não era nada mecânico, era musical [...] era tudo orgânico, de acordo com a
música” (CASTRO, 2006, p.4). Deste modo os movimentos do corpo deveriam estar em
harmonia com o fraseado, estabelecendo-se uma relação de equilíbrio entre os gestos físicos e
musicais. Para concluir, ao ser questionada sobre aquilo que mais absorveu dos gestos da
professora, Patrícia declara algo muito relevante, pois estabelece conexão entre a dança, artes
cênicas e música:
Assim como o ator mostra seu personagem no palco, o músico, quando se entrega ao que está tocando, se torna um intérprete daquele sentimento que a música quer transmitir. Isso a Odette sabe transmitir com tanta facilidade, que é uma fusão de bailarina, atriz e flautista no palco. (CYRIACO, 2006, p.4).
As orientações da professora em relação a respiração visavam mostrar que deveria ser
tratada como algo muito natural, ou, como foi lembrado numa entrevista: “[...] ela sempre
quis que nós respirássemos naturalmente, da mesma maneira que a gente respira quando fala”
(PAIXÃO, 2006, p.9). Cláudia declarou que Odette questionava o mito da respiração
diafragmática, além de dizer que, de acordo com a professora, “a intenção musical tem que vir
de baixo pra cima... dos pés à cabeça” (CASTRO, 2006, p.7). José Benedito manifesta que
não havia nada especial em sua abordagem, sugeria que além dos exercícios tradicionais
apresentados nos métodos, ele também praticasse esportes como a natação, o que igualmente
foi reforçado por José Evangelista. Silvana afirma que veio a ouvir coisas diferentes a respeito
da respiração posteriormente, através de outras fontes, o que, de certa maneira, só prova a
atitude da professora de tratar a respiração como algo muito natural.
126
Questionada sobre quais os aspectos da aula de Odette mais lhe chamavam atenção,
Patrícia declara: “Ela sempre me dizia: ‘respire, a respiração deve fazer parte da música e não
ser um decalque sobre ela’. Ela me ensinou a respirar, mesmo sem precisar de ar”
(CYRIACO, 2006 p. 4). Patrícia ainda declara que Odette dizia: "a respiração também é
música" (ibid, p. 6). Portanto, seguindo sua conduta aplicada à postura do corpo, onde,
resumidamente, suas orientações eram dadas com o intuito de equilibrar os gestos físicos com
os musicais, as orientações de Odette sobre a respiração também vão em direção à
musicalidade, ao fraseado.
A propósito da embocadura, este tema foi possivelmente a principal influência de seu
primeiro professor, Lucien Lavaillote, com o qual Odette teve apenas alguns meses de aula.
Patrícia declarou que o assunto era tratado sem mistério, ou seja, de maneira simples, o que é
compartilhado por Ariadne ao reforçar que a fala de Odette sobre a embocadura “sempre foi
muito empírica” (PAIXÃO, 2006, p. 9). Sidnei também vai em direção das declarações de
Patrícia e Ariadne, dizendo que sobre isso não havia uma abordagem especial e que Odette
passava a informação um pouco geral. Além disso, argumenta que a professora não ficava
falando “ ‘faz assim, faz assado, ou puxa mais aqui, não, a sua embocadura tem que ser mais
assim’ ; se o aluno tirou o som, ótimo, porque depois ele mesmo vai trabalhá-lo [...] (ibid).
Esta declaração se aproxima do discurso de José Evangelista ao explicar que Odette
apresentava um princípio, uma tendência que ela recebera na França, e que, ao estudar, o
aluno “tinha a incumbência básica de tornar seu som mais bonito, mais sonoro,
independentemente do que ele teria que fazer para isso. Partindo daquilo [do princípio que ela
apresentava] você desenvolvia com liberdade” (SILVA JR., 2006, p.13).
Andréa declara que ela dizia para não prender a garganta, ou não “crispar”, conforme
relatou Paulo Magno, porém nunca falou se embocadura era presa ou era solta, isto é, com
mais ou menos pressão do bocal sobre o queixo, porém ressalta que às vezes ela falava: “ah,
127
descobre um pouquinho mais aqui pra essa nota sair melhor” (DIAS, 2007, p.8), ou seja, não
tocar com o bocal tão virado para dentro. Assim, percebe-se que os procedimentos de Odette
vão ao encontro do princípio que ela recebeu de seu primeiro professor: “[...]‘sopra’ –
naturalmente e nada mais – nada de explicações sobre produção do som, acústica etc. etc ...
somente ‘sopra’ – e até hoje faço o mesmo, com excelentes resultados: todo mundo sabe
instintivamente como ‘soprar’ ” (DIAS, 2003, p. 7), legado assimilado e adotado em sua
prática docente.
Não fugindo aos seus princípios filosófico-musicais, o estudo da sonoridade
desenvolvido por Odette também era aplicado ao contexto musical. O procedimento do estudo
era separar os pontos que necessitavam ser desenvolvidos e assim estudavam-se
especificamente aquelas partes, visando aprimorar tanto a sonoridade, quanto dedilhados,
seqüências e escalas.
Silvana salienta que, embora a professora utilizasse o repertório que estava sendo
desenvolvido para estudar os demais tópicos, como fraseado e articulação, o estudo da
sonoridade era “sempre à parte, quer dizer, antes de tudo, a sonoridade” (TEIXEIRA, 2006,
p.8). Em outro momento revela ainda que Odette dava mesmo muita importância à
sonoridade, legado que ela assimilou, e como professora da Escola de Música de Brasília
valorizou muito no seu processo de formação de multiplicadores. Ela ainda salienta: “Olha, eu
sempre me lembro muito desse aspecto da sonoridade, muito, muito mesmo, dos exercícios
que a gente fez, e como eram feitos” (ibid).
Quanto aos exercícios específicos à sonoridade, ainda que não houvesse muita
freqüência em sua prática, foi dito: “a gente chegava, tinha lá um tempinho para um exercício
de sonoridade, fazia um pouquinho de nota longa e tal [...]” (MAIA, 2006, p.23). Em outro
momento Sidnei comenta que a professora também buscava mais suavidade nas notas agudas,
128
cuidando para não forçá-las, salientando que “[...] aquilo nunca tinha uma recomendação do
tipo: ‘olha, se você mexer 10 mm pra baixo o lábio inferior ou não sei o que [...]’ ” (ibid, p.5).
Especificamente quanto ao caderno de sonoridade de Marcel Moyse, somente Sidnei e
Andréa o mencionam. Sidnei comenta que ela lhe ensinou um exercício de sonoridade
dizendo assim: “ ‘você não sabe que tem um exercício assim, que faz assim... assim... assim?’
Era o Moyse, ela nem falou: ‘olha, esse aqui é o exercício do Marcel Moyse’ (MAIA, 2006,
p.15). Andréa diz que o caderno de Moyse nunca foi utilizado com ela, mas que sua mãe tinha
o hábito “de fazer a nota longa, nota bonita e tudo” (DIAS, A. E., 2007, p. 7). Entretanto,
como ela ainda diz, não havia uma prática sistemática do estudo da sonoridade uma vez que
os exercícios de nota longa eram criados no momento em que era feito o estudo. Maria
Elizabeth chama atenção para o estudo dos Sons filés102, dizendo: “ela tocava junto, porque eu
me lembro que a gente fazia sempre som filé. Hoje em dia a gente nem fala mais som filé ”
(DIAS, M. E. E., 2006, p.3).
Outro tipo de exercício ressaltado, tanto por Sidnei, quanto por Andréa e Paulo
Magno, foi o de intervalos de oitavas, quartas e quintas, proposta em que, além de trabalhar-se
sonoridade, estudava-se também embocadura e a afinação, subtópico que será visto mais
adiante.
Madelon comenta que Odette estabelecia uma relação da articulação com o idioma,
procurando fazer paralelos que pudessem colaborar no processo dos alunos emitirem sons
bem articulados. Ela diz que isso ajudava muito, pois o paralelo tornava o processo mais
claro. Esta relação que Odette estabelecia entre articulação com a linguagem falada é uma
importante prática utilizada pelos instrumentistas, em especial os de sopro, fato que não era
novidade para a professora. De acordo com Balssa (1995, apud D’AVILA, 2000, p.3), desde a
102 De acordo com o “Método Completo de Flûte”, de G. Gariboldi, editado por Jan Merry (s/d, p.7), os “sons filés” são obtidos atacando uma nota e fazendo-a crescer e decrescer com grande suavidade, gradualmente. Do resultado desta prática se obtém um som puro e melodioso.
129
antigüidade grega os tocadores de aulos tomavam emprestados da voz os elementos da
linguagem articulada para construir seqüências melódicas imitando a enunciação em sílabas.
O depoimento Madelon, além de demonstrar a consciência que Odette tem sobre a
articulação, revela também princípios, crenças, enfim, a sua maneira, sua filosofia de procurar
sempre um caminho natural para vivenciar a prática de um estudo técnico, o que poderia
acrescentar à justificativa da ausência de maiores explicações ou detalhamentos, como
declararam Andréa, Ariadne e Sérgio.
Sidnei menciona sobre o ataque que Odette ensinava: “o ataque é como se você tivesse
um papelzinho na língua e cuspisse” (MAIA, 2006, p.15-16). Menciona ainda que a
professora sugeria que ouvissem algum instrumentista tocando com o intuito de perceber
como poderia, por exemplo, ser feita uma articulação em uma sonata de Bach. Enfim, a
articulação era desenvolvida de acordo com o repertório que cada aluno estivesse trabalhando.
Além disso, também havia o incentivo da professora para que os trechos mais complexos
fossem selecionados e estudados conforme a necessidade específica. Como assegurou Maria
Elizabeth: “a idéia que a persegue, ou a idéia que a acompanha todo o tempo é a idéia da
música como um todo, da construção [...]” (DIAS, M. E. E., 2006, p.5). Assim, como nos
temas anteriores, a maneira de abordar a articulação também estava relacionada ao contexto
musical, mais especificamente ao repertório que cada aluno estivesse estudando, e, sempre
que possível, Odette procurava demonstrá-lo tocando.
Considerando que, conforme Richter (1986, apud D’AVILA, 2000, p.60), a
articulação na técnica dos instrumentos de sopro é mais do que o ensinamento do golpe de
língua e das ligaduras, e que ela avança amplamente no âmbito geral da produção do som,
contextualizo também neste tópico algumas técnicas contemporâneas de produção do som.
Assim, de acordo com José Benedito, técnicas como o frullato, whistle tones, sons percutidos,
entre outros, “eram trabalhadas em sala no momento em que apareciam no repertório que
130
estava sendo estudado” (GOMES, 2006, p.7). Complementa dizendo que, a partir daí passava
a exercitar e buscar a sonoridade desejada, sempre com o acompanhamento da professora,
através da obra estudada.
Luciana menciona uma aula em que a professora lhe passou informações técnicas
sobre o frullato, dizendo que o mesmo poderia ser feito com a garganta ou a língua. Ela
reforça a argumentação de que não havia um planejamento específico para abordar as
questões técnicas e que, portanto, as explicações eram dadas conforme a curiosidade do aluno
ou necessidade da música que estava sendo estudada, como mencionou José Benedito.
José Evangelista salienta a vinda de Pierre-Yves Artaud ao Departamento de Música
da UnB durante o curso, dizendo que a presença do flautista foi um marco na experiência dele
e de seus colegas com relação à música contemporânea possibilitando-lhes conhecer muitas
obras, conforme também declarou Andréa, e, com elas, técnicas contemporâneas de emissão
de som, que, levando-se em consideração o conceito de Richter apresentado no parágrafo
anterior, também podem ser consideradas como articulação.
131
4.2 Análises
De acordo com as análises dos entrevistados, a perspectiva pedagógica de Odette teve
muito impacto sobre a vida profissional deles. Além de carismática, ela soube se relacionar
com seus alunos, sobretudo com muito tato pedagógico. Todos revelaram que sofreram
influências, adquiriram hábitos, costumes, os quais ainda hoje levam consigo na condição de
profissionais, e que também passaram a transmiti-los aos seus alunos. José Benedito
assumidamente declara: “creio que seja muito difícil não utilizar algo, pois a influência dela
possivelmente acontece no âmbito do inconsciente” (GOMES, 2006, p.5).
Embora os entrevistados tenham declarado que se utilizaram muito das práticas
vivenciadas com Odette no processo de formação de multiplicadores, o “excesso de
liberdade” e o “estudo da técnica aplicado ao repertório” foram os menos utilizados por eles.
Curiosamente, entretanto, ao fazer suas análises, Cláudia e Sérgio tecem comentários sobre
situações vivenciadas no curso remetendo, respectivamente, à liberdade e a ausência do
estudo mais sistematizado da técnica, que considerei pertinente apresentá-los. Cláudia
declarou que a liberdade que Odette lhe proporcionou possibilitou que ela desenvolvesse
disciplina para atingir seus objetivos profissionais. Sérgio afirma que, embora não tenha
vivenciado no curso uma abordagem mais detalhada verbalmente sobre as questões técnicas,
considera que foi benéfico porque o instigou a buscá-la uma vez que sentia muita necessidade
de algo nesta direção. Portanto, ainda que o “excesso liberdade” e o “estudo da técnica
aplicado ao repertório” possam ser vistos como algo não muito favorável à formação
profissional, segundo a pedagogia convencional, existe uma contrapartida, mostrando ser
possível tirar proveito das mais diferentes situações.
132
4.2.1 Legados recebidos e transmitidos
O respeito foi apontado como um dos princípios da pedagogia de Odette mais citados
e valorizados, ficando claro que sua importância no comportamento profissional dos ex-
alunos é imensa. Ariadne, por exemplo, declarou que a partir do convívio com Odette passou
a valorizar a capacidade de respeitar o indivíduo e suas limitações como aluno e ser humano,
além de valorizar a bagagem cultural trazida por este, procurando sempre tornar tudo
experiência benéfica e construtiva para seus alunos. Andréa declarou que absorveu o hábito
de ouvir inicialmente o que o aluno tem a dizer, falando e tocando, para somente depois
comentar. Sérgio tece suas considerações dizendo que, em Odette, o respeito é algo
“interessantíssimo” porque, segundo ele, “muitos professores por ai” praticamente obrigam os
alunos a aceitar o modelo de ensino deles: “é aquele negócio, o aluno tem que entrar num
sistema ali e não tem adaptação pra ninguém [...]” (BARRENECHEA, 2007, p.9), ou seja, os
alunos são obrigados a se enquadrar, eles não têm vez nem voz.
Tal declaração é realmente interessante porque vai justamente ao encontro do modelo
de ensino que predomina, o centrado no professor, onde é oferecido aos alunos o mínimo de
oportunidades de tomarem consciência do seus próprios papéis no processo de aprendizagem;
em outras palavras, é a ausência de respeito à individualidade. Sérgio conclui, assegurando
que considera a maneira de Odette lidar com seus alunos extremamente positiva, revelando
que essa atitude refletiu muito em sua vida profissional.
Ainda sobre a questão do respeito, Cláudia traz um depoimento bastante elucidativo:
A Profª Odette respeitava a individualidade de cada aluno e procurava trabalhar com as propensões artísticas, e as limitações de cada aluno em relação à flauta. Minha percepção era de que a professora tomava a experiência de vida de cada aluno como a mais importante de ser traduzida em música. Seu “approach” era holístico, toda experiência extra musical seria passível de tradução para a linguagem musical. A música é um meio de expressão, não um fim em si mesmo. [...]. (CASTRO, 2006, p.5)
133
Luciana diz que a mensagem mais significativa que Odette deixou para sua vida
profissional e pessoal foi o fundamento de suas atitudes baseado na compreensão e no
respeito à individualidade. Menciona também seu grande aprendizado: o ato de ensinar exige
humildade103, tolerância e respeito à autonomia do educando, discurso que aponta em direção
da Pedagogia Libertadora.
Além do respeito, a flexibilidade também consta da listagem dos princípios
assimilados pelos ex-alunos, uma vez que Odette, por ter uma tendência não conservadora,
abordava o ensino de uma maneira própria, não condicionada às práticas tradicionais. Nesta
direção, José Evangelista declarou que ela o influenciou muito para que ele tivesse mais
liberdade de percepção das coisas, para não ser tão rígido, quadrado, metódico, acadêmico,
para que se ampliassem seus horizontes e absorvesse valores diferentes. Ainda nesta direção,
Nivaldo igualmente comenta que conseguiu absorver de Odette a atitude de ser mais flexível
com seus alunos, e que isto foi muito positivo para sua vida profissional:
Eu, pela minha formação, era muito rígido na maneira de ensinar. Eu consegui pegar [assimilar] da Odette ser um pouco mais liberal com os alunos, dar mais liberdade para os alunos de realização. Então, eu acho que isso aí foi uma coisa muito positiva pra mim [...]. Procurar... deixar o aluno ser um pouco mais livre, não para fazer o que quisesse, mas para ele ter liberdade de se lançar um pouco. Haver discussões, aceitar ponderações dos alunos, então... eu acho que isso aí me ajudou muito. (SOUZA, N., 2006, p. 6)
A constante busca pela identidade, pela expressão própria, foi outro importantíssimo
ponto que marcou significativamente os integrantes das classes de Odette. Os flautistas
103 Ilustrando a questão da humildade, José Evangelista, ao ser questionado sobre o que ele diria de mais significativo na personalidade da Odette enquanto “ser humano” que o tivesse influenciado, responde: “Acho que a firmeza dela, sua posição sempre bem definida. Talvez pela personalidade forte, talvez pelas dificuldades que tenha passado na vida e conseqüente aprendizado que acumulou, ela sempre passou uma atitude de muita firmeza, e ao mesmo tempo de humildade. Eu já citei esse exemplo, de uma época em que eu precisei trabalhar durante o curso para poder me sustentar e ela ficou extremamente revoltada com isso porque achava que eu não ia dar conta de acompanhá-lo. Depois de um ano ou dois ela se desculpou e disse: ‘olha, eu estava errada e agora eu cheguei à conclusão que você vai dar conta e que eu estava enganada realmente. Peço-lhe que me desculpe tudo isso, não queria te causar nenhum transtorno, não queria que você desistisse, fiquei muito preocupada...’. Ela teve essa capacidade de reconhecer que estava errada, e eu acabei lhe provando que era capaz de conseguir [conciliar duas atividades] também”. SILVA JR. (2006, p.18)
134
comentam que ela queria que cada um desenvolvesse o seu próprio som, como a voz, nunca
sendo cópia de alguém. Paulo Magno, por exemplo, fala de uma preocupação de Odette “não
querer que a pessoa desenvolvesse um som ‘ah, eu quero ter um som do Rampal, um som do
Galway’, ela falava: ‘não, cada um é um, cada um é uma voz, assim como cada um tem um
timbre de voz, cada um vai ter um na flauta’ ” (BORGES, 2008, p. 3). Na mesma direção,
José Benedito revela: “sempre incentivando cada um a construir o seu próprio caminho
musical. Sem copiar algum flautista já famoso. Cada um deveria ser original, não cópia de
alguém” (GOMES, 2006, p.4).
Sérgio revelou que passou adotar a prática de Odette: “não fazer todo mundo tocar a
mesma coisa [...] (BARRENECHEA, 2007, 14). Ariadne declara que deixa o aluno escolher o
repertório com o qual ele se identifique, não fazendo imposições, considerando que isso é
muito motivador e produtivo. Sidnei declarou que aprendeu a diversificar suas atividades com
Odette, podendo, por exemplo, tocar em orquestra, tocar choro, tocar em um casamento,
enfim, encarar os desafios e possibilidades profissionais. Salienta que ela lhe transmitiu algo
relacionado à diversidade no repertório, e que tocar deve ser sempre um prazer: “tudo é
música, tudo é emoção..., tudo é prazer, principalmente tudo é prazer... na hora que deixar de
ser prazeroso... não vale mais104” (MAIA, 2006, p.24-25). Sidnei salienta que o exemplo de
vida de Odette foi aquilo que ele mais absorveu, marcando-o e influenciando sua vida
profissional. Nessa direção José Evangelista declara: “uma pessoa que nunca parou de se
mexer, sempre inquieta, no sentido de estar querendo sempre produzir, produzir, produzir,
tocar, tocar, sempre, sempre. Eu vejo Odette tocando até o último dia, até a última respiração
dela” (SILVA JR., 2006, p.16).
104 A esse respeito, Berenice Menegale, pianista e Diretora da Fundação de Educação Artística em Belo Horizonte, no encarte do CD “ODETTE ERNEST DIAS”, produzido pelo selo da Rádio MEC, declara em seu depoimento sobre Odette: “[...] Tem ensinado muita gente a tocar flauta, porém, mais que isso, tem transmitido esse prazer único que a música proporciona [...]”.
135
No que diz respeito à emoção, à sensibilidade, à provocação, os ex-alunos também
fazem menção a estes componentes da pedagogia de Odette. Sidnei declarou que passou a
valorizar muitas coisas a partir do convívio com ela, remetendo em especial à emoção:
[...] aprendi a relativizar, a gostar [mais ainda] de coisas que eu já gostava. Sempre apreciei uma boa natureza, mas eu vi que aquilo era para ser apreciado mesmo [...]. A gente estava tocando em um jardinzinho de inverno, chegou um passarinho, começou a cantar, e ela falou: “não pára não, não pára não que ele gosta”. (MAIA, 2006, p.22)
Ele declara ainda que chama atenção de seus alunos para a importância de procurar passar a
emoção junto com a música àquele que ouve, salientando que “a própria técnica é um
caminho”, declaração que, “ironicamente” remete ao mote de Odette: “[...] A técnica é
inseparável da musicalidade, da sensibilidade, da emoção [...]” (DIAS, 2005, p.3).
Patrícia referiu-se também à sensibilidade, dizendo que Odette lhe ensinou a não ter
medo de mostrar sua sensibilidade, valor que ela mesma desconhecia e que a partir de
conversas com a professora, descobriu-a. Hoje também procura passar tal valor aos seus
alunos. O mesmo pode ser dito em relação à provocação, uma vez que Cláudia declarou que
Odette sempre gostou de provocar, instigar seus alunos, considerando isto muito importante.
Quanto ao incentivo e a motivação, Nivaldo, Sérgio, José Benedito, Patrícia, Luciana,
entre outros, declaram que Odette sempre primou pelo lado positivo das coisas, não falando
nunca algo que pudesse desestimular o aluno, deixando claro que esta prática foi incorporada
em suas ações pedagógicas.
Olha, na minha maneira de ver a Odette como professora, foi sempre uma incentivadora, sempre motivou os alunos, sempre procurou achar uma coisa positiva em cada aluno, para que ele, a partir daquele ponto positivo, desenvolvesse sua atividade. [...]. Eu não me lembro da Odette fazendo crítica para poder anular o aluno; sempre a atitude dela foi de procurar elevar o aluno para que ele [se] desenvolvesse naquela atividade que ele havia se proposto. (SOUZA, N., 2006, p. 4).
Neste contexto, cabe incluir a relação de integridade com o aluno, apontada também
como uma das práxis de Odette assimilada pelos ex-alunos. Ariadne, reforçando os discursos
136
de Sidnei, declara que o exemplo de Odette foi o que ficou de mais importante para que ela
pudesse exercer sua profissão com plenitude e dignidade. Ela complementa que para Odette
tudo que seus alunos quisessem fazer, que eles gostassem de fazer, deveria ser feito de uma
maneira natural, orgânica, respeitando sempre a música em primeiro plano, ou seja,
musicalidade antes de qualquer coisa. Patrícia declarou que passou a valorizar mais “a relação
franca e ética entre professor e aluno” (CYRIACO, 2006, p.9). Essa interação, além de, via
indireta, reforçar a questão do respeito, já mencionada, está em estreita relação com a
pedagogia libertadora: “A prática docente, especificamente humana, é profundamente
formadora, por isso, ética. Se não se pode esperar de seus agentes que sejam santos ou anjos,
pode-se e deve-se deles exigir seriedade e retidão” (FREIRE, 1996, p. 65).
O diálogo foi outro princípio muitíssimo valorizado pelos ex-alunos. Além de ter sido
apontada sua importância para os momentos de nervosismo que antecedem as apresentações
públicas (cf. “A propósito das aulas, § 20), Madelon declarou que a forma como Odette
abordava os alunos para uma conversa foi algo muito marcante para ela. A professora tinha
muita facilidade na hora de conversar, de “bater um papo” informal, discutir sobre tudo, e
conclui: “eu tento me espelhar um pouco na sua atitude, é evidente que não vai ser igual”
(GUIMARÃES, 2006, p.10). Ela acrescentou que Odette tinha a capacidade de perceber seus
alunos e ter uma conversa muito proveitosa, com muita paciência e que isso foi fantástico
para sua vida, refletindo muito nas suas atitudes profissionais. Nesta direção, Sérgio também
relata que o fato de Odette estar constantemente discutindo e conversando sobre tudo, tendo
sempre opinião sobre assuntos diversos foi algo que realmente lhe inspirou muito, ou seja,
também foi assimilado em sua práxis.
137
Assim, neste contexto, saliento a capacidade de Odette perceber seus alunos, seu tato
pedagógico105, uma vez que, conforme o autor do livro “El tato en la enseñanza – El
significado de la sensibilidad pedagógica”:
A imagem do tato como uma interação especial entre as pessoas pode ser relevante para a educação e a pedagogia. [...] significa que respeitamos a dignidade e a subjetividade da outra pessoa e que tratamos de ser receptivos e sensíveis à vida intelectual e emocional dos demais, sejam jovens ou velhos.106 (VAN MANEN, 1998, p.139)
Remetendo à humildade, citada anteriormente, Nivaldo declarou que Odette lhe
ensinou muito sobre a convivência e o respeito pelas pessoas. No meio musical às vezes os
artistas se esquecem muito do valor da humildade. Entretanto, como lhe foi transmitido por
Odette, “o músico deve procurar sempre ser humilde, fazer seu trabalho da melhor maneira
possível, deixando que as outras pessoas falem a respeito dele [...] demonstrá-lo com ação,
tocando ou dando aula” (SOUZA, N., 2006, p.5). Afirma que isso o ajudou muito no
desenrolar de sua vida profissional, salientando ainda que Odette é um exemplo de vida, de
dedicação à musica, à profissão, em todos os aspectos, reiterando os depoimentos Sidnei e
Ariadne.
Outro aspecto importante para a professora é a maneira do músico relacionar-se com o
instrumento. José Evangelista revelou que se sente muito integrado à flauta e atribui isto ao
modo como ela lhe transmitiu o ensinamento de que o instrumento deve ser encarado como
extensão do corpo. 105 De acordo com van Manen: “[...] O tato tem propriedades interpessoais e normativas que parecem especialmente adequadas para as interações pedagógicas [...]. A pessoa que demonstra tato parece ter a habilidade de atuar com rapidez, com segurança, com confiança e de forma adequada em circunstâncias complexas e delicadas. É importante estabelecer desde o princípio que o tato não tem necessariamente a conotação de uma sensibilidade suave, débil ou algo semelhante [...]. Uma pessoa com tato deve ser forte, porque o tato exige que se seja franco, direto e sincero, quando a situação se faz necessária. Tato é sempre sincero e confiante, nunca falso e enganoso. O tato consiste em uma série complexa de qualidades, habilidades e competências. Em primeiro lugar, uma pessoa que tem tato possui a habilidade de saber interpretar pensamentos, as explicações, sentimentos e os desejos interiores através de meios indiretos como gestos, comportamento, expressão e a linguagem corporal [...]”. (VAN MANEN, 1998, p.137, tradução minha) 106 “La imagen del tacto como uma interacción especial entre las personas puede ser relevante para la educación y la pedagogia. [...] significa que respetamos la dignidad y la subjetividad de la otra persona y que tratamos de ser receptivos y sensibles a la vida intelectual y emocional de los demás, sean jóvens o viejos”. (VAN MANEN, 1998, p.139, tradução minha)
138
A meu ver, sua visão está relacionada com aquilo que ela sempre defendeu —
musicalidade antes de qualquer coisa —, uma vez que a flauta em si não tem vida, quem lhe
atribui vida, através do sopro, é o instrumentista. Assim, de fato ela pode ser vista como uma
extensão do próprio corpo para ganhar vida.107
Cláudia refere-se ao contexto, declarando que a principal mensagem de Odette para
ela, foi: “você sempre está num contexto, você é participante daquilo que está em sua volta”
(CASTRO, 2006, p.9). Ainda segundo ela, Odette salientava ser importante trazer
experiências de outros lugares, de outros ambientes, você participar do contexto de forma
ativa: “entrar em diálogo com outras pessoas é muito bom e positivo... você não tem que ter
medo de colocar suas idéias e de questionar idéias de outras pessoas e procurar o diálogo para
encontrar respostas” (ibid, p.11 e 13). Cláudia reitera: “Isso me influenciou muito”.
Sérgio declara que pelo fato da atuação pedagógica de Odette estar envolvida com
tudo que acontece em sua vida, a filosofia dela é mais abrangente.108 Ainda em relação ao que
compõe o contexto, às novidades, José Evangelista também diz que passou a perceber
acontecimentos e atitudes de outra maneira, com outros olhos, aprendeu a “... não ser muito
rígido”, o que remete também à flexibilidade, à abertura.
Patrícia descobriu o valor do questionamento, declarando: “Aprendi a perguntar, não
ter vergonha de querer saber mais” (CYRIACO, 2006, p.9). Ainda sobre isso, Cláudia diz que
se utiliza muito do questionamento no processo de formação de multiplicadores, porque para
ela, conforme aprendeu, ele “é a via para a elaboração de um tema e para uma possível
compreensão e resolução do mesmo” (CASTRO, 2006, p.5).
107 Sobre isso, Odette sempre me disse que apenas vendo o aluno retirar o instrumento da caixa e montá-lo ela sabe como aquele estudante se relaciona com ele. 108 A esse respeito, Berenice Menegale, também no encarte do CD “ODETTE ERNEST DIAS” comenta: “[...] Atenta ao que a vida oferece, Odette é assim também em relação à música. Tudo importa. [...]”.
139
Tudo isso comprova a visão humanista que Odette teve, e ainda tem, sobre educação,
que vai ao encontro deste pronunciamento: “Aprender a discutir, a refutar e a justificar o que
se pensa é parte indispensável de qualquer educação que aspire ao título de ‘humanista’ ”
(SAVATER, 2005, p.134).
Assim, conforme pode ser percebido, componentes como respeito, compreensão,
humildade, tolerância, flexibilidade, expressão própria, emoção, sensibilidade,
provocação, motivação, integridade com o aluno, diálogo, tato pedagógico, interação
com contexto, e incentivo ao questionamento, integraram a perspectiva pedagógica de
Odette. Além de marcantes na vida de seus ex-alunos — que chegaram a tomá-los como lição
de vida — estão sendo transmitidos através deles, às novas gerações de flautistas.
É verdade que tais componentes pedagógicos muitas vezes não são levados em
consideração, pela preocupação predominante, e às vezes exclusiva, do modelo de ensino de
instrumento ser centrado no professor, e não no aluno (cf. “Modelos de ensino de
instrumentos”, cap. 2, subt. 2.3.1). A meu ver, é fundamental que cada professor reflita sobre
seu papel de educador, sobre a influência que pode exercer sobre seus alunos, respeitando e
valorizando sempre suas origens, pensando nestes como indivíduos e artistas em formação. A
partir de tais reflexões, certamente há de se reconhecer a importância da pedagogia de Odette.
Por outro lado, é importante salientar que suas atitudes pedagógicas, que costumam ser
questionadas, não a impediram de formar vários profissionais de grande competência, seja
como músicos, seja como professores.
140
5. Discurso aberto... Raul
Após apresentar todas as informações que me proporcionaram desenvolver uma
discussão e o registro escrito das atividades de ensino cotidianas de uma professora de flauta
relevante à história desse instrumento no Brasil, delineando um possível arcabouço sobre uma
perspectiva pedagógica da flauta, a sensação é de contentamento, de paz, ainda que tenha
consciência que o processo de uma pesquisa é ad infinitum. Como sabiamente disse
Drummmod “O problema não é inventar. É ser inventado hora após hora e nunca ficar pronta
nossa edição convincente”.
Nesse processo intenso e prazeroso, mas às vezes perturbador, além de cumprir os
objetivos da pesquisa, tive oportunidades marcantes ao longo dos quatro anos. Com certeza, a
visão mais abrangente da minha personalidade como educador, flautista, indivíduo, em
virtude das reviravoltas que o mergulho na pesquisa me proporcionou, foi o resultado mais
expressivo. No primeiro ano, o desmontar-me integralmente, o entregar-me à pesquisa, à
competência dos orientadores e confiar; no segundo, a realização das entrevistas, a imersão, a
reflexão profunda; no terceiro, o lento início da emersão, a dificuldade de me reerguer, de me
movimentar, de me reencontrar, o medo e a angústia; no quarto, a fresta de luz, o ressurgir, o
retorno lentamente dos movimentos, os pequenos insigths, o enfrentamento e a determinação
para elaborar textos procurando, a todo o momento, ser convincente, ter clareza e fluidez.
Assim, ao mesmo tempo em que desenvolvi a investigação sobre a práxis de uma
educadora que se manifestou através da música e da flauta, constatando uma perspectiva
pedagógica viva, em constantes mutações, transmitindo, sobretudo, autonomia cognitiva a
seus alunos, exerci uma intensa e profunda reflexão sobre minhas próprias atividades de
flautista e professor — iniciada com de meu pai em 1973, por meio de valsas, choros e
141
cancioneiro brasileiro, e posteriormente, a partir de 1990, ao assumir a docência na UFPel.
Meu processo de investigação além de provocar-me uma espécie de upgrade, normalmente
desejado nos cursos de capacitação, reafirmou-me a opinião de que é preciso, é fundamental,
que cada profissional seja ele mesmo em suas atitudes, admitindo que a ocorrência de
transformações deve ser considerada importante e necessária.
Deste modo, nesse processo misto (intenso, perturbador e prazeroso), meu
entendimento da pedagogia de Odette deixou-me também mais convicto de que valores como
respeito, diálogo e tato pedagógico são componentes essenciais que se devem integrar à
formação do instrumentista. Isso significa atentar para o aspecto essencialmente humano da
educação, especialmente na atualidade, quando princípios, valores e costumes, como os
mencionados, têm sido relegados.
Não poderia deixar de mencionar aqui minha preocupação e responsabilidade frente ao
tema proposto nesta pesquisa. Além de ser um campo pouco explorado entre os professores de
instrumentos no Brasil, conforme mencionado, ao conceder-me autorização para desenvolver
esta pesquisa, Odette depositou em mim confiança e credibilidade, o que significou a
necessidade de agir com muito mais consideração e zelo. Como se não bastasse, o fato da
professora estar atuante e ainda considerá-la meu modelo profissional, inevitavelmente a
preocupação se acentuou, não obstante a possibilidade de contatos pessoais pudesse ter
abrandado tal apreensão.
Outra questão importantíssima que preciso registrar é minha atitude diante desta tese.
Embora ela delineie uma estrutura da pedagogia da flauta desenvolvida por Odette, ela não
teve a intenção de “rotular”, “enquadrar”, ou até mesmo “formatar” sua pedagogia, o que iria
contra seus próprios princípios. Este delineamento — surgido ao estabelecer relação entre os
discursos e a fundamentação — pretendeu ser um olhar, uma percepção das atitudes
pedagógicas de alguém que, com competência, profissionalismo, sensibilidade e dúvidas, foi
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capaz de influenciar o comportamento dos alunos. Nesta conjuntura, é preciso ressaltar que
meu olhar, minha percepção sobre a práxis de Odette podem ser alcançados através de outros
olhares, outras percepções, sendo o meu apenas um deles.
No que diz respeito ao contexto, mais especificamente ao ambiente em que desenvolvi
minha pesquisa, posso declarar que a atmosfera acadêmico-musical vivenciada em Salvador
foi muito profícua. Além do privilégio de cursar o doutorado em um Programa de Pós-
Graduação muito conceituado — e atualmente o único no país a oferecer Flauta Transversal
—, permitiu-me, dentro da área da Execução Musical, desenvolver uma pesquisa com
interface na Educação Musical, Educação e Ciências Sociais. Isso evidencia haver, tanto por
parte do Programa, quanto do Orientador e Co-Orientador, além de abertura e valorização à
transdisciplinaridade, tão defendida por pensadores e filósofos atuais, o respeito à proposta do
orientando. Ainda referindo-me ao contexto, saliento que pude desfrutar de um ambiente
musical diversificado e em constante expansão, contribuindo, de alguma maneira, para a
renovação de minha identidade.
Das dificuldades vivenciadas, três foram marcantes. A primeira foi o processo da
transcrição das entrevistas, exigindo muita atenção, concentração e disciplina. A segunda, a
elaboração do inventário de tópicos, para o qual precisei desenvolver uma estratégia, partindo
da macro à microestrutura, para que pudesse aproveitar o máximo os discursos colhidos. A
terceira, e talvez a mais estressante, foi o desenvolvimento da fundamentação. Ainda que a
Pedagogia Libertadora tivesse sido identificada nas ações pedagógicas de Odette, o processo
de organização das idéias, relacionado-as a outros autores, exigiu-me muito esforço para que
o texto, além de coerente, fosse objetivo.
Cumpre salientar aqui, a necessidade de constantes reflexões sobre o processo de
ensinar, em particular um instrumento musical. É preciso, a todo o momento, e cada vez mais,
procurar indagar, dialogar, articular e incentivar atividades artístico-pedagógico-
143
musicais, muitas vezes até de maneira mais intensa do que ensinamentos de natureza técnico-
musical. Assim, além de alimentar o espírito daquele que transmite o saber, mantendo acessa
a chama de entusiasmo, vontade, determinação e prazer, concomitantemente se transmite essa
prática aos alunos. Faz-se necessário ainda ressaltar a consciência de que o processo do ensino
de instrumento não pode ser determinado pelo imediatismo, como a sociedade contemporânea
vem sinalizando. O processo é longo, pois, como revela este texto do saudoso amigo, Maestro
e Professor Sérgio Magnani:
[...] arte é uma vocação que, em função disso, todas as coisas menos agradáveis da vida passam em segundo plano. Temos que ser marcados pela absoluta honestidade e integridade espiritual. A vida é feita de sonhos, desalentos, longo trabalho e desejo de simplicidade. São estes os caracteres que marcam o itinerário da vida humana. Para que a não hipocrisia, a força interior e a bondade floresçam — é preciso muito trabalho nesta direção.
Por fim, desejo que esta pesquisa possa ser útil a todos que estejam envolvidos com a
música — na condição de estudante, professor, músico de orquestra, banda, ou amante.
Naturalmente gostaria que os flautistas, em especial os professores do instrumento, possam
refletir sobre esta práxis pedagógica, procurando, além de conhecê-la ou repensá-la,
reconsiderar sobre sua própria práxis, princípio essencial ao processo daquele que educa e, ao
mesmo tempo, aprende. Espero ainda que esta tese possa servir de inspiração a novos projetos
e pesquisas de natureza similar, resgatando, valorizando e tornando público outras práticas de
ensino de instrumento, em especial àquelas desenvolvidas por professores do “Meu mulato
inzoneiro”.
Salvador / BA, março de 2009
144
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7. Anexos
7.1 Anexo I: Documentos referentes à metodologia
7.1.1 Relação dos ex-alunos da UnB Anexos
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7.1.2 Segunda relação dos ex-alunos da UnB
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7.1.3 Perguntas elaboradas aos ex-alunos
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7.1.4 Termo de autorização à Odette
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7.1.5 Termo de autorização aos ex-alunos
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7.1.6 Sumário do inventário de tópicos
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7.2 Anexo II: Cartas e entrevista de Odette
7.2.1 Carta de outubro de 2008 p. 1
Rio de Janeiro
23.10.2008
Querido Raul,
Estou ouvindo de novo o Vivaldi — nova e belíssima interpretação — maravilha que você me mandou. Estou muito comovida com todas suas atenções e responsabilidades para comigo e penso muito na responsabilidade que você assumiu no seu doutorado — de focalizar minha “pedagogia”. Essa palavra contém todo um mundo. É a própria transmissão do saber — não existe outra. Você me escolheu como assunto (exemplo??). Eu sinto a necessidade e a responsabilidade de falar com você e discutir (às vezes um pouco agressivamente da minha parte) o assunto. Se você tem dúvidas a esse respeito, eu também tenho as minhas, pois estou viva e continuo ensinando. O período que você retrata nas entrevistas dos flautistas de Brasília, ao meu ver, retrata um período histórico de minha vida. A minha atitude está sempre mudando, em “mutações” — pois o mundo evolui — e eu também. Me confronto todo dia com uma realidade nova, outros alunos, faixas etárias
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p. 2 diferentes (de 8 a 60 anos !) — e eu mundo nesse confronte diário com umas realidades inéditas para mim. Mas, e daí? o seu doutorado? Ele também evolui à medida que você está o trabalhando — e você muda — por isso é um “doutorado” acima das noções históricas já estabelecidas e passadas. A questão se abre como um leque imenso, maior — O que é ensinar? O que é ensinar música? A primeira linguagem do homem. Acontece que somos flautistas; nossa parte é essa. E você é o Raul, flautista excelente, professor ativo e produtivo (todos esses anos de Pelotas, onde você está voltando, um pouco angustiado aparentemente). As voltas, os caminhos sempre angustiam. Mas, como se diz, isso faz parte. Acho (achar!?) que você tem que considerar a você mesmo, a sua atitude atual e angustiada a respeito da “pedagogia”, viva, mutante, acima dos tratados teóricos, necessários, mas que tem que ser ultrapassados pela atitude humana, pessoal. O que é para mim tocar, ensinar flauta, para mim Raul, o que é Música? — Da amiga Odette — com um grande abraço
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7.2.2 Carta de abril de 2008 p.1
Rio de Janeiro, 30 de abril de 2008.
Caro Raul,
Depois de nossas conversas te mando algumas “coisas”: - umas reflexões minhas sobre “ensinar-fazer” e meu conceito de “Som” — (reflexões atuais) - umas cartas de Crunelle (dos anos 70) + umas fotos – dele com já quase 90 anos ! ou 85 anos ! (do livro Flute and Flute Makers - 1982 ) - fotos minhas – com 18 anos, em 1947, ano de minha entrada no Conservatoire. Apareceu um menino (prodígio!) Janet Puesch – e Crunelle as vezes, sabendo que eu “tocava” piano, me pedia para acompanhar. Esse foto, que talvez você já tivesse visto, ele me mandou pessoalmente. - fotos do ano de minha chegada ao Brasil 1952 – numa praça na Tijuca, com umas mocinhas amigas: uma delas (+) é Elza Uzurpator, até hoje é minha amiga e professora da Pro-Arte. Ela foi professora de todo mundo em casa — ensinou todo mundo a ler música. - uma cópia de uma parte do “Bulletin du Conservatoire” [mon époque!] para você ter uma idéia da “minha escola”. (que eu adorei – a única escola que adorei). Esperando que você se divirta com esses papeis, mando-lhes um carinhoso abraço para você, Lulude e Theo. Odette
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p.2
ensinar-fazer
— sempre ensinei o que eu fazia, experimentando sempre, até hoje, na música e na vida, daí as minhas aparentes faltas de “método”. Meu “método” corresponde à dinâmica de minha vida. Pode confundir os “alunos” que esperam um professor cheio de saber, instalados na sua “cátedra” e não numa areia movediça como eu. Eu ensino a se mover, sempre, até a morte, descobrindo, hesitando, procurando, procurando... — O horizonte recua sempre, quanto mais se caminha. O inatingível – eis a vida! Realização? o que é? o que seria isso? A experiência, o passado, serve para apurar minha percepção atual, aprofundar meu olhar sobre o mundo, levantar mais questionamentos. - Eu preciso “aferir” cada vez mais o meu instrumento, que é, que sou eu mesma. Tenho agora novos alunos entre 8 e 60 anos. Espero que eles confiem em mim, mesmo quando desconfiar é mais fácil. - Confiar nas dúvidas do outro.
É preciso ter muita “confiança” para isso!
________________
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p.3
Som
Dar a toda interpretação a continuidade do som, como no canto gregoriano onde a melodia flutua, integrada totalmente às palavras, criando uma rítmica total — que acompanha o pensamento.
— A melodia se torna pensamento — O pensamento se torna melodia
— Rítmica da vida. — Música das palavras — Palavra “logos” – Som
_______________
No começo era o “verbo” O verbo é o som universal desligado dos significados lingüísticos peculiares.
o som não tem palavras a Palavra é o Som
A criança, ao nascer, não tem palavras. Ela tem a “palavra”, universal, Som, Canto. Os seres humanos se igualam no Som. ________________
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7.2.3 Carta de julho de 2007
Carta escrita, provavelmente,
em 24 de julho de 2007.
172
p.1
Para Raul — 3ª feira - Caro amigo, lendo o seu projeto — — abrem-se questionamentos pessoais. Estou numa fase de questionamentos
renovados, apesar, ou mais exatamente, pelo fato de ter 78 anos e estar vivendo uma situação profunda, trágica e essencial.
— será que sou exatamente a pessoa que você descreve – ou então, estou sendo essa
pessoa quase que instintivamente e inconscientemente considerando a palavra “consciente” nos seus diversos aspectos —
a consciência pressupõe uma auto-observação. mas como ser ao mesmo tempo
“sujeito” e “objeto”. quem é esse “eu” que observa? seria um “eu” “frio”, desligado de emoção do “ele” — ?
Por que essa escolha sua? de meu “sistema” aparentemente “anti-sistema” de ensinar,
de viver. A Beth, outro dia, fez umas reflexões críticas sobre o resultado desse meu “ensino”. “O pessoal de Brasília é mais fraco (flautistas) não tem “técnica”, comparando com os
de São Paulo, por exemplo”. (isso ela falou mais ou menos) Uma convivência recente no último FIB, onde participei com master-class, algumas
aulas (alunos de São Paulo, Paraíba, Brasília) banca de concurso, eu notei algumas coisas – “tecnicamente” (farei algumas considerações, mais algumas, sobre esse conceito de técnica). Não observei essas diferenças tão gritantes. Mas, tive ocasião de conversar –
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p.2
bate-papos com alunos antigos – Sidnei, Paulo Magno, Maíra, Ariadne, Toninho, Serginho (dei algumas aulas para ele) a própria Beth. Constatei o quanto eles são pessoas humanas, realizadas pela música, dentro da música, com questionamentos constantes, renovados, sendo também bons “técnicos”. São pessoas que evoluem. Tive, estou tendo com eles, contatos humano, musicais.
O mesmo acontece comigo — A procura constante de uma expressão essencial, na música, na vida.
Talvez eu não tivesse consciência disso, mas sua escolha de tese de doutorado sobre
mim, me esclarece muita coisa, apesar de, ainda, me perturbar bastante. Você está vendo em mim coisas que existiam mas de que eu não tinha consciência de
uma maneira concreta. Meu comportamento, certamente como você diz, é o resultado de uma vivência, formação humana, familiar, cultural, social, que é intrínseca, vem de longe, e que, sem querer tão objetivamente, passo para meus alunos e para as pessoas que convivem comigo.
Minha inquietação, meus questionamentos são cada vez mais fortes. Meu sistema,
ausência de sistema, é “isso”. Perguntar sempre. Sou profundamente grata a você por você me proporcionar essa abertura sobre mim
mesma.
174
p.3
— alguma reflexões sobre a palavra técnica “τεχυη” – arte – artex fazer.
essa técnica é a procura do essencial, o condensado, como no “hai-kai” japonês. — é o som incisivo, cavado, minerado e não trabalhado como ourives na superfície. — a procura desse som, denso, humana, exige um estudo em profundidade, aprimorando todos os recursos de movimento, gestos, respiração e principalmente pensamento que leva à emoção e a comunicação. Essa é a minha procura constante. Com um abraço e o carinho da amiga
Odette em Aurélio: técnica seria o “lado material da arte” — discordo! — e volto ao Paul Valery - que fala da “mão prodigiosa do artista igual e rival de seu pensamento” (apud – versos da fachada do Museu do Homem em Paris) + programa da Master class + algumas notas sobre o assunto. Tive preguiça de passar a limpo! Ariadne não compareceu, estava ensaiando. O flautista tcheco assistiu e tocou – muito bom. Simpático e interessado. Assistiram outros instrumentistas.
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p.4 em resumo: — técnica não é ferramenta — ela é a própria arte — a mão inseparável do pensamento É preciso visitar o Museu da Estação em BH - Museu de Artes e ofícios – onde cada ferramenta de trabalho é, em si, uma obra de arte. Esse é o meu conceito de “técnica”. _____________ — mais alguns xerox interessantes: Jornal de Brasília 09.07.2000 Correio Brasiliense - 11.07 — última hora (desenterrei, por acaso, esse recorte) — um concerto muito interessante – 13.06.73 (devo tocar agora o quarteto de Schubert na Sala C. Meirelles, em setembro) — uma carta de Villa-Lobos – 2.2.53 — uma crítica do Estado de Minas 20.10.53 (foi esse concerto que proporcionou/motivou a história de minha flauta Louis Lot - aquele presente. — meu status de “Visiting scholar” nos USA
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7.2.4 Entrevista de janeiro de 2006
Santuário do Caraça, 22 de janeiro de 2006 Domingo à tarde - Bocaina
Em uma entrevista anterior você fala sobre “respeitar a expressão de cada um”. Gostaria que, se possível, você explicasse melhor o que você pensa exatamente sobre isto. [0:05] Cada um tem um tipo de... expressão sonora, como existe no bocal, você não pode mudar, dizer que o som dele é feio, que o som dele não é ... o som tem que ser afinado e tudo, legato e tudo, mas o timbre de cada um, pertence a cada um, isto é a expressão de cada um... né. E depois também, a mesma pessoa, a compreensão de uma frase, a questão da respiração, por exemplo, a expressão. Tem gente que tem maior facilidade para respirar e tudo. Você tem que ver onde ele vai respirar conforme a sua disposição física, a sua compreensão. Você pode discutir uma frase, você... você não é dono da verdade, entende, é preciso discutir com o aluno a questão do fraseado, a questão da respiração, a questão do volume, estou falando em termo mais técnico. Você não pode exigir de uma pessoa que ela tenha um volume calculado em decibéis, porque vai tocar numa orquestra, tem gente que tem menos volume. Você tem que saber respeitar a disposição física dela, a expressão, a ligação, a sua transformação física. Tem gente... a postura, a posição da flauta ela não é idêntica para todo mundo, tem gente que tem o ombro mais caído, a pessoa vai segurar. O comprimento dos braços, o comprimento dos dedos, toda esta parte física ela é uma maneira de se expressar na dança, a não ser naquele corpo de baile que todo mundo faz o mesmo movimento, é uma coisa muito pessoal. Então você tem que olhar a pessoa que cê tem na sua frente, isto é que eu chamo de a expressão do outro, você dialoga com a pessoa, você não vai impor uma coisa. Então, com aluno você tem que dialogar, né. Eu acho que eu transmito, eu faço isto nas minhas aulas, sabe... (grifo meu) [2:00] Por exemplo, vou pegar outro exemplo. Eu estou fazendo umas certas aulas de corpo e sugestão. Tem uma mulher maravilhosa, que é Angel Vianna, faz um trabalho de corpo. Ela não fica mostrando o movimento, ela não fica “agora faça assim, como eu”. Ela, ela vai dizer, explicar umas coisas assim sobre conformação física, articulação do braço da mão, e a pessoa vai descobrir seu movimento. Ela não te dá o modelo. Então isto que se chama respeitar a expressão de cada um. A mesma coisa, um pintor no atelier né, “pinta todo mundo igual a mim”; mas não é assim, ele tá ai, ele pode dizer que ele pensa assim, ele vai pintar desse jeito, ele vai fazer isso e aquilo, mas outro vai fazer do jeito dele. Então ... tá respondido. É, eu estou lembrando aqui o que o Lucas (Raposo) falou hoje de manhã, lá no refeitório, sobre o Guerra-Peixe. Ele pegava os alunos... [2:58] Exatamente. Eu assisti um encontro de composição do Guerra-Peixe na Pro-Arte, então, na audição final, era tempo da Bossa-Nova, cada um, o Menescal, o Castro-Neves, cada um fez uma coisa completamente diferente do outro. Então, por exemplo, eu tenho... oh, um exemplo dentro de casa: eu tenho duas filhas flautistas, né, cada uma toca do jeito diferente e diferente de mim. (Raul: certamente) [...] Vão dizer: “ah, o som da Odette”; não, a Andréa tem o som dela, a Beth tem o som dela. É a maneira de pensar, de articular, é a maneira de falar, é como a voz. Então eu nunca quis ... eu vou dar. O meu conceito de música, aquela coisa, e tudo, vão ver aquilo junto, mas eu não sou o modelo. Quando você me falava a “escola francesa”. Não, isto não existe, entende. (Raul: hoje eu entendo bem)... tipicamente da escola francesa. O vibrato. Muita gente faz vibrato, não é tipicamente francês. Então é assim. Gravação interrompida e de repente recomeça a II tomada... continuando a conclusão da pergunta sobre o “respeito a expressão de cada um”. [0:08] [...] Você tem que observar muito bem a pessoa que você tem na sua frente. Observar muito bem o aspecto físico, a voz da pessoa né, a maneira de olhar. Aí, ai você começa, a... né. Bom. O que eu queria te perguntar é o que você pode dizer sobre aquilo que talvez você possa considerar como sua característica principal ou seu diferencial na sua conduta pedagógica, evidente, durante o seu tempo como professora na UnB? O quê que você acha que mais marcou para você ? [0:42] No meu tempo da UnB?! Lá na UnB realmente apareceram alunos de todo o tipo, de toda formação. O primeiro aluno era o Norberto, ele era da aeronáutica, tocava piston. Aí, depois o Nivaldo, já um flautista tarimbado. Então, o que marcou mais na UnB, uma universidade nova né, sem “tradição”, então tudo foi criado. O que marcou muito assim é essa questão da coisa muito... muito individual, até para eu criar, talvez eu tenha chegado a uma certa unidade, né. O que marcou?
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[1:32] Eu peguei aluno de formação mais diversa. Ce vê oh, gente que não sabia absolutamente nada, e outro como o Nivaldo que já era um flautista profissional, tem outros assim. Mas o que marcou o pessoal com que, ali tem... , mas o pessoal que estudou comigo eles têm, eu acho que todos eles, não funciona sabe, nem todo mundo, tem gente que fez doutorado, tem gente que toca na orquestra, aquela coisa, mas tem uma certa unidade no comportamento em relação à musica, de gostar do que eles fazem, como eu gosto de tocar. Então eles têm uma união, eu vejo o pessoal lá na Escola de Música lá em Brasília, eles se entendem né, no sentido em que eles são curiosos, são pessoas que procuram novidade, procuram repertório novo, tudo isso eu passei para eles, tocar algumas coisas contemporânea, interesse também pela música brasileira; então isso aqui, essas coisa, curiosidade né, de saber passar por cima dos preconceitos, talvez é uma coisa que eu passei para eles, seja a unidade eles têm, de formação, de preparo... diferenças de idades diferentes também, mas essa questão de unidade do grupo que estudou comigo, realmente essa questão da ausência de preconceito, curiosidade, a modernidade, o prazer de tocar. Esse prazer, inclusive no que a Berenice citou no CD que você me deu agora,[vide encarte do CD ODETTE ERNEST DIAS, Selo Rádio MEC] ela fala nisso, né, que mais do que ensinar você mostrou aos alunos o prazer de tocar, né. Eu acho também que tem muito disso, de envolver a natureza, igual a gente ta aqui agora, neste momento. [3:22] Cê que vê... teve um dia lá em casa me telefonou o Kim, o Toninho, o Franklin, e acho que o Mauro também apareceu, tava todos lá em casa e cada um ficou tocando uma coisa, mas pouco tempo, tocando assim, só pelo tocar, para se reunir, como esses encontros que a gente teve aqui no Caraça, pelo prazer de tocar, de procurar também, pra sair de uma certa rotina acadêmica né, então valorizar a coisa pela coisa, como diz os espanhois, “ la cosa hecha” ...” valorizar o que está se fazendo. Raul: Agora isso, evidentemente acho que... [4:02] Porque eu poderia dizer, “não, meus alunos todos ganharam concursos internacionais”. Começa que não seria verdade. Tem uns que ganharam concurso mas não é meu objetivo, porque tem gente que dá aula para preparar o aluno pra um concurso, especialmente no olimpo pianística, só fazem concurso para poder se firmar no mundo dos solistas. Agora o pessoal que estudou comigo praticamente são muito poucos aqueles que saíram da música. Cada um tá fazendo sua atividade, não vou dizer trabalho que não gosto, suas atividades como professor, como você, por exemplo, tocando também, você é pesquisador, tem gente que, a Maura, por exemplo, ela não toca essas coisas assim, ela é muito nervosa para tocar, mas ela é uma sumidade na pesquisa, na educação musical. Todo mundo cresceu. Eu vejo que meus alunos todos cresceram. E você acha que essa maneira de ser, essa sua conduta pedagógica, vamos dizer assim, você desenvolveu a partir do que você percebeu em BSB, do desenvolvimento da sua personalidade ou você acha que teve uma influência da psicologia instintiva, da pedagogia que Crunelle te passou ? [5:22] Não, não, não. Crunelle primeiro nunca falou que era um psicólogo. Quando eu estudava ninguém falava em psicologia nem, sei lá. O bom professor ele era sincero com você, não tinha teoria psicológica. [...] Ele era um profissional, era um homem vibrante que gostava muito de tocar, fazia questão da gente tocar, não era um teórico da psicologia, mas ele passou isso aqui, o interesse pela coisa, a presença né, a coragem, tudo, muita coisa que ele passou, eu já falei pra você, né. Raul: Sim, inclusive... [6:03] Odette: Não é só em Brasília, no Rio também, antes de ir pra Brasília, o pessoal que estudou comigo. Olha, o Mauro Senise, o Marcelo Bernardes, eles são uma sumidade. O Mauro Senise, conhecido internacionalmente, estudou música comigo e com o Paulo Moura só. O Franklin, não estudou assim, mas entrou em contato. Olha, o Marcelo Bernardes toca com o Chico, é maravilhoso, entende, [...] o tem outros músicos que estudaram comigo, como que é, o [...], o Marcelo Alonso, muitos que tocam assim têm a visão, o próprio Danilo Caymmi, todo esse pessoal estudou comigo, todo mundo. [6:50] Quando eu cheguei em BSB, uma realidade diferente, que você esta dentro de uma coisa, de uma universidade, mas uma universidade muito, muito iniciante, uma universidade iniciante, moderna, com muita liberdade. Então foi diferente, mas na Pro-Arte... Eu não sei se é realmente uma coisa acadêmica sabe? Se eu entrasse, eu não ia ficar. Você disse, na entrevista que a gente fez e foi publicada no Pattapio, o seguinte: “Mais do que um roteiro estabelecido, mais do que um conteúdo rígido e histórico, [estou me referindo ao Crunelle] ele formava os alunos para serem músicos, executantes presentes. Dotado de psicologia instintiva, ele ensinava como estudar, insistia na concentração, na memória, na presença física. O ensino de Crunelle era um capítulo a parte ...”
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Gostaria que você falasse um pouco mais sobre esta maneira de ensinar e, se possível, ao mesmo tempo, fizesse um paralelo com você, tentando observar os fundamentos e os procedimentos pedagógicos utilizados por ele, com os fundamentos e procedimentos pedagógicos utilizados por você, especificamente na UnB. [8:13] Ah, mas você está sendo muito teórico, né. [...] Raul: Não... não, não... [8:16] Odette: ‘péra aí o... O negócio que eu fiz, já te falei, foi confrontado em uma realidade diferente, né. Eu não posso, [...] me via naturalmente na aula, muitas vezes até uma frase do Crunelle, mas eu não tive ele como modelo porque, inclusive o que eu encontrei era uma coisa diferente do que tinha lá em Paris, muito diferente, né. Então realmente a pessoa vai se influenciar, mas talvez ele me influenciou na idéia de eu ser eu mesma, [Raul: ah...] cê entende, mais do que tudo né, [Raul: isso], mais do que tudo. Ele deixou essa coisa da liberdade, da confiança né, a confiança também, a sua idéia de poder, de poder tocar... tocar, tocar Raul: as borboletas aqui presente [9:12] Odette: as borboletas estão me destraindo, né. Não é porque me apoiei tanto em Crunelle. Quando me referi a ele é porque vinha naturalmente, porque ... ah, eu assimilei as coisas dele, eu não precisava de me lembrar o que o Crunelle falava, vinha assim, normalmente aquela coisa, ele dizia: “C’est toi qui joues”, “é você que está tocando”. Eu falo isso com meus alunos porque passou pra mim, não é que quando o aluno está tocando eu vou me lembrar do que o Crunelle falou pra mim, não, tá entendendo?! O modelo sim, o modelo do que eu assimilei, eu incorporei algumas coisas, mas muitas outras coisas me confrontei com coisas completamente diferentes, o que ele nem, nem teria... talvez, se ele tivesse vindo no Brasil, ele teria conhecimento da música no Brasil. ... ah, ele conheceu Villa-Lobos, tem um negócio, Crunelle foi um dos primeiros intérpretes do Villa-Lobos, né. Quando toquei para ele as música do Guerra-Peixe, as Melopéias, ele adorou. Uma vez eu toquei uma valsa pra ele, brasileira, ele gostou muito, a curiosidade, porque ele também, a experiência dele pequena, ele tocou flautim no circo, assim que ele começou, numa bandinha, no circo. A formação dele não era tão acadêmica. Depois foi pro Conservatório [...] Tomada III Odette, você falou para mim uma coisa muito linda, naquela entrevista, última carta que você mandou para mim, carta que eu chamo de “carta entrevista”, você diz alguma coisa mais ou menos assim, que não vou lembrar exatamente, mais que: “mais do que formar flautistas, você formou seres humanos felizes”. Alguma coisa assim. [0:22] É porque, olha, uma das coisas pior que eu vejo assim é a pessoa que diz: “tô trabalhando, tô trabalhando” Cê vê uma pessoa, como você está? “Ah, naquela correria”. Naquela correia. Eu falei, bom, essa palavra eu elimino do meu vocabulário. Pra mim não tem correria. Quando estou fazendo uma coisa, estou fazendo aquela coisa, não estou correndo atrás de outra coisa. Se você está correndo né, você não está presente, entende. Então, essa questão, o prazer de fazer as coisas é você estar ali, se você está comendo um negócio, você tá comendo um doce, não tá comendo uma batata frita, tá comendo um doce, tá entendendo? Se você está amando uma pessoa, você não pode amar uma outra pessoa. É... bom, isso é uma maneira de dizer. Mas você tem que estar presente naquilo que você faz. Por exemplo... Eu vou te dar um exemplo, o negócio do zen. O meu pai era assim. Aí ele era um... . Bom, não gostava de dizer, mas ele era um intelectual, falava não sei quantas línguas, sabia muita coisa. Gostava de cozinhar. Então ele tava lá, cortando uma cebola, preparando uma comida indiana, né?!. Ai eu falei: “o que você está pensando?” Ele falou: “estou cortando uma cebola”. Então isso é tipicamente é zen, é você está aqui, ali, você estar presente. Estou vendo o homem aqui dentro água, estou vendo a água na frente de você. Eu não estou nem ali na igreja do Caraça, agente vai estar lá depois. Entende, são essas [...] isso é saber viver, oh “Artur”, isso eu passei para as pessoas [...] Eu chamei o pessoal, cê vê, aqui no Caraça, no nosso encontro. As pessoas não ficam pensando nem ontem nem hoje, eles atenderam ao chamado, porque sabia que ia acontecer uma coisa assim nos momentos bons que você tem, uns momentos felizes, porque a felicidade é você saber captar os momentos felizes, isso que é a felicidade e não de fazer projeto. [...] Não... fazer projeto de vida? Como fazer projeto de vida pô, “eu fiz um projeto de vida daquela casa do Ibitipoca e ... ”. Não adianta, você tem que saber captar né o momento, se você captar aquele momento então você vai ser feliz. [Raul: certamente, né] Então acho que isso eu passei para o eu pessoal, porque eu [...] a questão é saber desfrutar exatamente o momento de vida, sabe, espontaneidade é outra coisa, espontaneidade é outra coisa. Raul: Ok Odette, obrigado. Agora eu vou aproveitar o momento e gravar o som dessa água e dá um mergulho ai.
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7.2.5 Carta de abril de 2005
Caro Raul A Deda é portadora deste “Documento” – para você ler, pensar e ... criticar. Um beijo Odette Rio 30.04.2005
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Para Raul Algumas Reflexões
— não fazer de mim um “exemplo”
um sistema único um “método” único de ensino.
________ exemplos de alguns expoentes da flauta - Moyse Crunelle Rampal Galway Lavaillotte praticamente autodidatas – empirismo. eles não tiveram “escola” aos seus “debuts”. O conhecimento que eles já tinham foi ratificado no Conservatoire de Paris.
— o sistema deles - se é que existe (ou existiu) nasceu de sua prática individual e não é produto de uma “linhagem” – de uma escola.
a linhagem deles é — ausência de linhagem — de referências bibliográficas
tudo isso veio depois ao longo da prática, do individualismo, da sua curiosidade, das circunstâncias sociais. — investigar como “eles” ensinavam seria interessante.
— como eu mesmo vim ao ensino, como me tornei professora - eu não estudei especificamente para isso – veio normalmente ao decorrer das solicitações – Me torno professor a cada dia – com experiências novas, gratificantes ou não – novos alunos – novas situações – novo contexto. (até agora, numa escola primária municipal com crianças de favela, na sua maioria. “Dona Marta” escola México).
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— eu saberia ensinar? — não sou infalível. — sou alvo de críticas (por ex: não ensino técnica pura) – para mim técnica é
inseparável da arte “τεχυη” techné (grego) significa arte – fazer. A técnica é inseparável da musicalidade, da sensibilidade, da emoção. — ex: a beleza do estudo das notas longas, das escalas, acordes, intervalos; — eu aprendo ensinando. Meu sistema, se é que existe, é justamente a ausência de sistema – ainda mais aqui no Brasil, onde a experiência individual é básica, diferenciada, por isso mesmo riquíssima. Isso pede o maior respeito. Eu dividiria minha vida em quatro fases, como se fossem quatro movimentos de uma sinfonia.
I. Paris – infância, aprendizagem – tradição: Prelúdio II. Rio de Janeiro - entrar na vida – pessoal e profissional – atividades múltiplas –
Allegro III. Brasília – despojamento, nudez – céu aberto – horizonte, contemplação – produção
nova – Adagio IV. Rio de Janeiro – volta – decantação procura da essencialidade – deixar a carga, o
passado para trás – Alegria – Allegro Stretto final
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O período brasiliense
1974 – 1994 chegada a UnB – depto de Música – praticamente sem alunos:
— Norberto – trompetista da banda da aeronáutica (querendo aprender flauta) — Nivaldo, flautista experimentado da banda da PM. — aparecem alunos de perfis os mais variados possíveis – a maioria completamente
iniciantes (não existia ainda prova específica para música) — Procurar nivelar? ou considerar a individualidade de cada um? cada aula adaptada a
cada um?
— Hoje em dia, em Brasília, existe um grupo muito grande de flautistas que se formaram na UnB, sob minha orientação e que tem umas características em comum: uma grande abertura sobre “o que é Música”, repertório, atividades – e que são quase todos ótimos pedagogos, instrumentistas atuando nas orquestras na EMB, na UnB – alguns com mestrados e doutorados no exterior. — Alguns deles já formaram novos profissionais. São pelo menos três gerações:
Como e porque isso tudo pode e pode acontecer quando a “raiz” é tão pouco “acadêmica”. — Isso tudo não é devido à minha personalidade, somente – mas ao contexto de Brasília durante esses vinte anos, e à maneira como me adaptei (ou não!) e como me encaixei/ou não! Obs. Em Brasília fiquei mais livre. Não tocava mais em orquestra. Tinha férias maiores – licença sabática – (fui prof. convidada nos USA UT – Texas um semestre), possibilidade de viajar – participar de encontros.
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p.4 Eu assisti na semana passada ao retrospecto dos filmes documentários (na maioria sobre Brasília) do cineasta e colega da UnB Wladimir Carvalho. — São críticas muito duras à cidade — mas ele pode fazer os filmes! Naquela repressão toda – O que sobressai é uma força expressiva extraordinária. Naqueles anos 70 e início dos 80 a repressão política foi muito forte, mas, ao mesmo tempo, a necessidade do Brasil “aparecer” tornava certas coisas mais fáceis do que hoje. — Os professores da UnB (músicos) tinham uma circulação relativamente fácil nos meios políticos, sociais, administrativos, diplomáticos, da cidade. A música na UnB se tornou um “cartão de visita” da instituição. Era fácil conseguir verbas para pesquisa, viajar nacional e internacionalmente. — Os protestos, greves – manifestações existiam até prisões – mas, da mesma forma que Villa-Lobos “se aproveitou dos governos Vargas” sem nenhuma compactuação (de que foi acusado injustamente!) a música na UnB pode ter um desenvolvimento bastante expressivo. — Foi uma época de circulação em festivais, de cursos ministrados em outros estados e no exterior, de viagens internacionais dos conjuntos e solistas, de convites feitos a artistas estrangeiros (ex. P.-Y. Artaud) e nacionais (como por ex. os participantes do Projeto Pixinguinha) Eu poderia citar nomes de artistas e conjuntos, relatar pesquisas e seminários * A definição da UnB, seguindo os princípios
* se precisar citarei
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p.5 de seus fundadores, permanecia, apesar da repressão:
— A interdisciplinaridade
— A pouca burocracia nos contatos com a administração permitiam uma circulação fácil.
— A minha própria personalidade se definiu naqueles anos – adquiri uma visão panorâmica do Centro, Planalto Central, para o horizonte de 360°.
— Partindo praticamente do nada em 1974, posso dizer que houve uma multiplicação não “de flautistas”, mas de seres humanos felizes e atuantes, caracterizados pela sua liberdade. Basta abrir os olhos, ouvidos e o coração. Como dizia Crunelle: “De flauta, você sempre vai saber o bastante. Importante é a personalidade !” __________________
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p.6
Comportamentos ou “métodos” de ensino meu
sempre provocar, incentivar a curiosidade dos alunos em relação ao universo musical, fazer deles músicos “atuantes”.
como ? provas? concursos? festivais? apresentações públicas? ___________repertório (:) provas – eu não aplicava provas – existia no departamento uma pauta para apresentações públicas dos alunos. Eu falava para eles se inscreverem quando tivessem vontade e com um repertório preparado – convocávamos os colegas professores, alunos, amigos, parentes para o “concerto”, que fazia parte da avaliação durante o ano todo. Não era uma prova, um concurso, não tinha banca. Da mesma forma, o recital de formatura se tornava uma festa – às vezes comes e bebes. repertório – as “ementas” eram flexíveis – figuravam mais pro forma. Sempre abertas a repertório novo, contemporâneo – obras de jovens compositores do departamento, música “popular”, choro – música eletro-acústica.
festivais-encontros foram promovidos por mim, com apoio total do departamento, dos colegas e alunos e das entidades oficiais (Cnpq, Capes, Embaixadas) – vários cursos e encontros nacionais e internacionais – com execuções e concertos ao vivo – pelos alunos e professores, e colaboração dos adidos culturais das embaixadas —
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p.7 Música Contemporânea (convidado Pierre-Yves Artaud – apoio Cnpq – embaixada da França)
francese e brasileira (apoio) — Festivais Villa-Lobos 20 anos da morte – 1979 – com a presença da D. Arminda – a Mindinha – 100 anos do Villa – 1987 — Música francesa do séc. XX – apoio embaixada * Festival Bach – 1985 – 300 anos do seu nascimento. — Música africana – apoio embaixada africana. Nigéria – Gana Costa do Marfim — pesquisa – filmagem – Bumba meu-boi – Sobradinho Catira – Planaltina (apoio Cnpq) Diamantina - encontro de musicologia: convidados de todo o Brasil – (Cnpq) - concursos nacionais de música de câmara – jovens (3 concursos) apoio Funarte * análise da obra para flauta “A flauta na obra de J. S. Bach – sonatas et. - curso de órgão barroco (apoio embaixada da Bélgica) - master classes do Rampal, Wendy Rolfe P.-Yves Artaud HERMETO PASCOAL ______________ Raul, estou citando essas atividades para você ter uma idéia da minha atividade na UnB. Os alunos de flauta que eram também na sua maioria alunos da matéria “ELEHA III” (Elementos de Estética e História da Arte) e tb de Introdução à Musicologia
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p.8 eram chamados a participarem com “flautistas” tb da atividade geral.
- tivemos publicações: - livro de pesquisa Bumba meu Boi e Catira (colaboração do departamento de desenho) - gravações em fita de rolo, K7. - filmagens super 8 – vídeos (colaboração dpt de comunicação, cinema, CPCE) colegas prof. de outros dpto. - livro — pesquisa Carlos Gomes - Orientações: bolsa de iniciação científica – Cnpq - elaboração de catálogos-classificação musicais - iniciação a informática - participação da primeira feira de informática na UnB. - exposições na Biblioteca Central (V. Lobos, Santoro, África) Colaboração e apoio: depts biblioteconomia, física, matemática, embaixada. ____________________
Meu ensino era e é esse – ultrapassa o terreno da flauta, da execução musical instrumental -
durante esses 20 anos, tive uma vivência intensa com os alunos e os professores (meu duo com Elza, até hoje) que marcou, acho eu, a vida dela e continua abrindo a minha cabeça e coração.
FIM ( provisório !) Favor: tire cópia desse “Documento” se você quiser, é domingo de manhã. Não pude xerocar. Obrigado
Odette
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7.2.6 Carta de junho de 2003
Rio 11.06.2003
Raul,
Escrevi um livro !
Pode cortar o que você quiser.
________
Passei ligeiramente sobre o
assunto discos
viagens
recitais
et...
Isso você sabe e pode falar se quiser.
Obrigado por tudo de coração
_________
evitei, propositalmente, citar alguns nomes de alunos, de pessoas em geral
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p.1
Introdução
A minha vida pessoal e musical em particular sempre foi e ainda é marcada pela descontração e o cosmopolitismo.
Meus pais, minha família e minha casa não eram exatamente representativos de um ambiente tipicamente francês.
Meu pai nasceu em 1892, na Ilha Maurício, Oceano Indico, colônia britânica, ex-colônia francesa, terra de imigração de indianos, chineses, malgaches, malásios, africanos, pluricultural, plurilinguística e religiosa. Ele era um “creóle”, mulato filho de indiano e malgacha; muito culto, falava muitas línguas, e, de sua pequena ilha, tinha uma visão do mundo das mais abertas que eu conheci. No início do século passado, entre 1910 – 1914, trabalhou na África do Sul como professor e diretor de uma escola fundada por Gandhi, colocando seu idealismo a serviço da luta contra o racismo. Veio a Europa em 1920, depois da I Guerra Mundial, para estudar medicina, primeiro em Montpelliér na França e depois na Inglaterra. De temperamento inquieto andou vários países e enfrentou situações adversas que o fizeram abandonar a medicina. Se dedicou ao ensino das línguas (em particular latim, grego e inglês) e à sua visão do que deve ser a educação no plano mais amplo possível. Em Paris, encontrou minha mãe, nascida em 1897, na Alsácia, fronteira com a Alemanha. Ela também chegou em Paris depois da guerra, foi viver com sua irmã mais velha (eles eram 13 irmãos).
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Nascida alemã, de língua e cultura germânica, ela carregava no coração o amor a França, pois em cada geração, a Alsácia fronteiriça, mudava de nacionalidade. Ela era loura, de olhos azuis muito transparentes, muito bonita, falava francês com um forte sotaque alemão.
Em nossa casa em Paris circulavam pessoas bem diferentes, de diversos países e línguas, mas, para mim era uma coisa normal, ouvir francês, inglês, alemão, dialetos “creóles” e alsaciano − O meu ouvido e coração sempre souberam, quase intuitivamente, que o mundo era maior de que um só país, que a nacionalidade (que pode mudar sempre) não representa uma cultura, que as fronteiras são linhas fictícias e arbitrárias, que a cultura nasce dos gestos, das falas, das musicas, das culinárias, das religiões, representativos e equivalentes no mundo inteiro.
A música na minha vida nasceu e se desenvolveu normalmente dentro desse ambiente da minha casa que acabo de descrever. Um outro traço importante e que, pelas datas de nascimento de meus pais, pode se entrever uma parte do mundo musical do século XIX, que me fascina até hoje: o gosto pelas operetas, as valsas, polcas, danças de salão, gosto que impregnou o mundo inteiro, particularmente o Brasil. Meus pais cantavam: meu pai canções “creóles”, árias de operetas francesas, minha mãe, canções folclóricas alemãs (de Natal, sobretudo), dançavam; ele o “segá”, (parecido com o samba, lá da Ilha Maurício) e ela a polca e a valsa, que ela me ensinou.
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Não sendo uma especialista em dança, até hoje adoro dançar e, modéstia parte, danço muito bem uma valsa vienense. Também não tive dificuldades a me adaptar ao samba (não no pé, ainda).
Ele tocava clarinete e ela bandolim. Ele fazia a gente (eu tinha dois irmãos) cantar e dançar, pular, reconhecer ritmos da rua. Esse foi o ambiente da minha primeira infância; não tínhamos piano, nem rádio, nem discos, não assistia concertos (muito caros) − mas a música estava no cotidiano, no corpo. Cedo aprendi a ler as letras e as notas musicais. Quando fui para a escola, eu já sabia – aprendi em casa.
Considero que, desde a infância, tive a sorte de aprender e viver em casa o que é a cultura e a música, vividas e não assistidas, o que define, acho, minha atitude de hoje.
O piano, comprado as duras custas, entrou em casa, eu devia ter 7 ou 8 anos, antes das guerra − Antes do piano, meu pai tinha descoberto um professor de canto, Monsieur Tirel, que nos deu umas aulas. Eu tinha uma voz de soprano muito afinada ! (sumiu!). Através de Monsieur Tirel, conhecemos Madame Marguerite Laueffer-Heumann, primeiro prêmio de piano no Conservatório de Paris, que foi nossa primeira professora em casa. Por coincidência fiquei sabendo mais tarde, que ela tinha sido colega de Guiomar Novaes, ambas alunas do prof. húngaro Philip − Madame Heumann vinha em casa, uma
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vez por semana, e nos ensinava tudo − teoria − solfejo, ditado, leitura à primeira vista – e como ela tinha um casal de filhos que eram artistas de music-hall, a visão musical dela incluia canto e dança, isso também fazia parte do seu ensino: duos e canções folclóricas e populares, pequenas encenações teatrais − (eu fui a Branca de Neve, cantada) − As audições de Madame Heumann eram uma festa − No final ela mesma tocava uma Rapsódia de Liszt – e maravilha ! Tinha doces e uma geladeira de sorvete!
Veio a guerra, em 1939, e suas perseguições. Em 1942, sob a ocupação alemã, Madame Heumann e sua família, eles eram judeus, fugiram para a Suiça. Eles tinham recursos (o marido dela era comerciante de móveis, no Marais, centro de Paris) e conseguiram essa fuga. Muitas alunas judias dela, do mesmo bairro, e de famílias menos abastecidas, acabaram presas e morreram em campo de concentração. Estávamos tão cercados de tragédias e horrores com que tínhamos de conviver diariamente que, às vezes, nem enxergávamos a situação. Tinha que sobreviver; meus pais foram da “Resistance”, mais por convicções humanas de que propriamente patrióticas. Hoje eu sei, olhando o passado com uma visão mais distante e ampla, e olhando o presente, que o homem nunca deve se
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acostumar à violência e à repressão.
Eu mesma fui criada em um ambiente bastante duro, mas não repressor e completamente livre de qualquer preconceito racial, religioso, cultural e nacional.
Meu pai achava, ele era antes de tudo um educador, que a música como o esporte e a preocupação com a saúde (ele foi médico, e precursor na sua época, e também devido à sua própria cultura, da medicina natural, yoga, exercícios de respiração, higiene, cuidados corporais e com a alimentação), eram uma base da educação (eu mesma fiz esgrima!).
Meu pai achava que era bom tocar um outro instrumento, (ele mesmo tocava flautim em uma banda na Ilha Maurício, clarinete, violão, um pouco de violoncelo) e começamos: meu irmão mais velho, Philippe, o violoncelo, o mais novo, Jacques, o violino, e eu, a flauta; isso durante a guerra de 1942. Eu tinha treze anos − Meu início na flauta coincidiu com a fuga de Madame Heumann; nós não tivemos mais aulas de piano. Apareceu uma outra professora, russa, que não deu certo. Mas continuei tocando piano, por conta própria, fazendo trio com meus irmãos: (a rua inteira conhecia o trio de Haydn em ré maior, que tocávamos – ou massacrávamos!) – todo dia, para deleite de meu pai. Também fui chamada por uma moça vizinha, que cantava, mas estava imobilizada por que tinha tido paralisia infantil.
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Ela me “contratou” para acompanhá-la. Li muitos “lieder” de Schubert, canções francesa do século XVIII, e ... ela me pagava. Foi meu primeiro salário de música. Isso me proporcionou uma boa leitura ao piano, e até hoje adoro acompanhar meus alunos e cantores quando aparecem, mesmo não sendo nenhuma virtuosa. A leitura harmônica, a capacidade de reduzir um acompanhamento, e a maneira de respirar com o cantor, principalmente, ou com qualquer outro instrumentista, tudo isso foi e é fundamental na minha formação musical – e é básico – é como dançar com outra pessoa.
Meu primeiro contato com a flauta foi no atelier do Marigaux que era amigo de meu pai (um de seus múltiplos amigos de todo tipo!). Vi a flauta num estojo preto forrado de veludo azul e fiquei fascinada! Marigaux falou: “uma dia você vai tocar isso”. Vi o instrumento no atelier – Até hoje adoro ficar nos ateliers de meus amigos Franklin, no Rio, e Luiz Tudrey, em São Paulo – Ver o trabalho das mãos, ligado a música.
Lucien Lavaillotte, que era solista da Ópera de Paris e da Société des Concerts do Conservatoire − as maiores orquestras da cidade, e amigo de meu pai, foi meu primeiro professor. Eu tinha treze anos. Só tive alguns meses de aula. O relacionamento com ele era muito difícil e eu era muito tímida –
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mas ele me ensinou algo essencial.
Na primeira aula, primeiro com o bocal e depois com a flauta inteira, dedilhando a nota si, ele falou: “sopra” – naturalmente e nada mais – nada de explicações sobre produção do som, acústica et... et ... somente “sopra” – e até hoje faço o mesmo, com excelentes resultados: todo mundo sabe instintivamente como “soprar”. O sopro é vital, místico. Aqui no Brasil, nos meios da música popular, se falava “esse flautista tem um sopro bonito”, e não um som bonito.
Chego nisso ao meu conceito de “som” bonito, escola bonita? escola francesa? escola alemã? Dá para perceber que não me considero uma representante da dita escola francesa, nem de nenhuma escola − sou da escola do sopro que é de todas as culturas e escolas.
Toco um instrumento de sopro, em francês é “instrument à vent” (vento) − prefiro o “sopro”.
Voltei à flauta em 1945, logo depois da guerra. Por uma coincidência feliz, através de umas amigas encontradas na Normandia numa das praias no D day (junho de 1944), fiz uma
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aproximação com Crunelle (Gaston Crunelle), o prof. da classe de flauta no Conservatoire N. Sup de Paris, em aulas particulares que resolvi pagar de meu próprio bolso com minhas atividades de baby-sitting (comuns entre os estudantes europeus!).
Eu estava indecisa quanto ao meu futuro − Acabando o “baccalaureat”, pensava em fazer medicina. Mas Crunelle achava que eu estava indo muito bem e sugeriu “Porque não se apresentar ao Conservatoire?” Eu concordei, mas sem muita esperança. Pensava: vou fazer, se não passar, faço mesmo medicina. Mas nesse ano e meio de aulas com Crunelle, tinha me envolvido com uma orquestra de jovens e uns pequenos conjuntos e meu interesse estava crescendo. Mas, não pensava realmente ainda na música como uma profissão para mim. Estudei com ele particularmente de janeiro de 1946 a outubro de 1947, quando fiz o concurso de entrada no CNSM. Para minha surpresa, entrei! Existiam 3 vagas para quase 40 candidatos – Marcel Moyse estava no juri e ficou assombrado quando, ao seu pedido, mostrei a minha flauta, sem marca, horrível! Ele falou “você tocou a Fantasia de Fauré com isso!” Essa flauta, comprada com sacrifício por meu pai, tenho até hoje. Nas classes, Crunelle me emprestou uma Couesnon dele mesmo. O ano seguinte, com mais sacrifícios, meu pai me
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deu uma flauta Marigaux de prata, feita pelo Martial Lefévre (1º operário da Louis Lot - Marigaux) com que fiz todo meu curso, concurso de Genebra e com que vim para o Brasil. Essa flauta passou pelas mãos de minha filha Andréa (Deda) e está agora com minha neta Clarice, a quem dou aulas.
A respeito de instrumentos, sou uma pessoa muito sortuda! O meu flautim Marigaux
nº 19, excelente, (agora com a Deda) me foi entregue pelo próprio Marigaux em Paris quando vim para o Brasil, nas condições de pagar quando e como eu pudesse.
Quando meu filho Jaime nasceu, em 1957, meu pai me mandou uma flauta Louis Lot
feita pelo M. Lefevre, sob encomenda dele, de prata com porta lábio de ouro. Em 1978, estando nos USA, meus grandes amigos, grandes músicos, Luis Carlos e Bridget Moura Castro, achando que eu tinha de ter uma flauta Haynes, se comprometeram numa compra, para eu pagar como eu pudesse!
Toco em uma flauta Louis Lot nº 1.152 – feita provavelmente por volta de 1860 (pelos catálgos) de prata, com porta lábio de ouro – raridade preciosa, cobiçada até por flautistas estrangeiros e colecionadores. Essa flauta me foi dada postumamente por um flautista de Belo Horizonte que me ouviu tocar lá em 1953. Me identifico inteiramente com esse
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p. 10 instrumento e não pretendo trocá-la por nada ! _______________
O Conservatoire de Paris
Ao oposto de que se diz o “Conservatoire” não tinha nada de conservador. Tive a sorte
de estudar durante quatro anos de 1947 – a 1951, numa instituição onde circulavam os maiores nomes da música, tanto no ensino quanto na composição: Messiaen, Darius Milhaud, Nadia Boulanger (que me convidava a ilustrar suas aulas públicas de análise da obra de Bach), Pierre Boulez e Pierre Schaeffer (assisti as primeiras experiências de piano preparado). Fiz mais dois cursos: o de História da Música superior com Norbert Dufoureq - grande especialista de Bach - e Estética e Pedagogia, com Roland Manuel (historiógrafo de Ravel e Manuel de Falla) e Marcel Beaufils, especialista em cultura germânica, e autor – mais tarde, de um livro sobre Villa-Lobos.
Vivia quase 24 horas dentro do Conservatoire, prédio de aparência triste no 14 da rue
de Madrid, mas, fervendo por dentro, apesar das salas imensas estarem ainda sem calefação, no tempo de racionamento prolongado no pós-guerra – a gente congelava.
As aulas do Crunelle correspondiam à sua personalidade vibrante, elegante, caloroso e discreto ao mesmo tempo, envolvido na vida profissional – ele era solista da orquestra da Opera-Comique, da orquestra Pasdeloup, e membro do Quinteto Jamet (trio de cordas, flauta e harpa) muito envolvido com compositores contemporâneos. Na classe, tive a possibilidade de conhecer pessoalmente
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André Jolivet, Dutilleux, Pierre Sancan, George Enesco (com quem eu toquei Cantabile e Presto, ele ao piano). Eles vinham assistir a execução de suas obras.
Eu era a mais nova da turma de 12 alunos e a única “mulher” (femme, como se dizia nos concursos: hommes – femmes), muito tímida. − Mas o concurso era único − Os alunos homens, quase todos tinham sido militares, participaram da guerra. Crunelle os tratava com muito respeito. Até fumavam na aula – ele também fumou e tocou flauta até mais de 90 anos!
O ensino de Crunelle era, como já disse, ligado a sua personalidade expressiva e comunicativa de músico profissional atuante.
Mais de que um roteiro estabelecido, mais do que um conteúdo rígido e histórico, ele formava os alunos para serem músicos, executantes, presentes. Dotado de uma psicologia instintiva, ele ensinava como estudar, insistia na concentração, na memória, na presença física. O ensino de Crunelle daria um capítulo à parte. Durante esses quatro anos eu não estudei o “repertório” total da flauta (aliás era impossível e também muitas peças como, por exemplo, a Sonata de Poulenc, foram escritas depois de minha vinda ao Brasil) mas eu estudei o “como estudar”, tanto é que nunca mais tive outro professor e todo repertório que eu toco estudei sozinha com as partituras.
Crunelle tinha um assistente Fernand Caratgé, também da orquestra da Opera Comique que o
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substituía quando ele viajava em tournées. O ensino de Caratgé, mais analítico, completava admiravelmente o de Crunelle.
Preparação aos concursos
Para os instrumentistas de sopro era sempre escrita uma obra nova, a ser tocada de memória. (par couer!). Depois de ter passado por dois concursos eliminatórios durante o ano, em janeiro e maio, você chegava perto do “Concurso” público, divulgado em todos os jornais.
Três semanas antes Crunelle anunciava: “chegou o morceau de concours ”, está no editor “Max Eschig” rue de Rome. Vocês vão lá e compram a peça (nada de cópia ou xerox, que nem existia).
A classe de 12 alunos era dividida em dois grupos de 6 – Cada grupo assistia obrigatoriamente a duas aulas por semana – de 9 às 12 (não podia sair). Crunelle dava assim doze horas de aula e os alunos assistiam cada um a seis horas. A distribuição do tempo de tocar dos alunos era a critério do Crunelle, mas ele sabia da necessidade da cada um; quem não tocava ouvia e se beneficiava também.
No tempo do concurso final os doze alunos tinham que assistir as 12 horas, 4 aulas por semana. Crunelle não dava aulas particulares aos seus alunos do Conservatoire. Em último caso, quando mais perto da prova, surgiu algum problema mais sério, ele chamava, de graça para casa dele, para acertar algum detalhe. Ele era extremamente dedicado.
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As três semanas pré-concursos
No fim da primeira semana, todo mundo tinha que ter a peça decorada. A gente
tocava, solfejava até entrar na memória.
Na segunda semana − se estudava a parte técnica, interpretativa, apontava-se os momentos “perigosos”- enfim o conteúdo da peça.
Na terceira semana − acho que aquilo devia parecer uma concentração de futebol. Era “como se apresentar, como jogar o jogo”. Tocávamos a peça de ponto a ponto com a pianista, sem parar.
Nos três últimos dias ele levava a gente na sala de concertos onde o concerto ia se realizar (no meu 1º prêmio foi na Salle du Ancien Conservaitorie – centro de Paris, construído no tempo da Revolução Francesa, fins do séc. XVIIII e de acústica primorosa −
Ele falava: entra no palco, é você que toca − “C’est toi qui joues” − Toque para aquele que está com o mínimo de interesse em você, que entrou porque está chovendo lá fora, esqueça o juri, − o palco é seu − não fuja!
Ele insista até no aspecto físico “caprichar na roupa”, não comer nada indigesto, no dia do concurso dar um pequeno passeio, respirando pensando na música, não estudar mais!
Ele ficava vermelho de emoção − como ficou até o fim de sua vida quando eu o visitava em Paris, no seu apartamento da rua Raynouard. Eu telefonava - ele dizia
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“vem tomar um whisky comigo” – Levava flores que ele adorava e o encontrava de pé com seus 90 anos, elegante com seus cabelos brancos e seus olhos azuis brilhantes, a flauta preparada em cima do piano. Eu tocava sempre algo para ele. Ele se entusiasmou pela Melopéia nº 3, de Guerra-Peixe.
Uma das grandes qualidades de Crunelle era de respeitar a personalidade e o som de cada um. Ele não tentava mudar a maneira de cada um se expressar, insistindo evidentemente na afinação, legato e timbre. Ele falava “de flauta vocês vão saber bastante, importante é a personalidade”.
“C`est toi qui jouers”
__________
Ganhei o meu primeiro prêmio (premierè nommée, primeiro da lista, era uma
distinção!) com um Concertino de Antoni Szalowski, muito difícil que nunca mais toquei.
No mesmo ano, set 1951, fiz o Concurso Internacional de Genebra onde ganhei, por unanimidade, a Primeira Medalha. De uma certa forma foi até surpresa, pois não me preparei especialmente para esse concurso. Depois do primeiro prêmio em Paris, fui passar férias na Espanha e na volta Crunelle insistiu para que me inscrevesse em Genebra, quase em cima da hora.
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Depois desses dois concursos, continuei em Paris onde fazia parte da Orquestra de Câmara Taffanel e do Quatuor Instrumental de Paris (flauta, violino, cello e cravo) com que fizemos algumas viagens na França, Alemanha, Espanha, Itália, Marrocos. Tocava às vezes em recital na Radio France e fazia substituições na Orquestra Radio Sinfônica, cujo regente era o Maestro Eugene Bigot. Queria muito viajar.
Recebi um convite maravilhoso da Orquestra de Winterthur na Suiça, regente Herman Scherchen. Infelizmente, por questões administrativas o convite foi cancelado. As cotas de imigração fecharam e fui avisada por carta, que as mulheres estrangeiras eram as primeiras a saírem das cotas (Suíça, país machista!).
Na minha decepção fiquei pronta para qualquer eventualidade.
Através do Maestro Eugene Bigot que tinha contato com Luis Heitor Correa de Azevedo, representante do Brasil na Unesco em Paris, conheci o Maestro Eleazar de Carvalho que estava na Europa procurando músicos novos para a OSB. Aceitei o convite imediatamente e foi assim que vim para o Brasil.
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Minha vida no Brasil é bastante conhecida dos colegas e alunos.
O que faço hoje é o resultado de anos de vivência musical e, sobretudo, humana que me permitiram desenvolver as sementes que recebi desde minha infância: uma visão do mundo.
No Rio toquei na OSB, na OSN, na Rádio Nacional, Rádio Tupi, Rádio Mayrink Veiga, TV Globo. Participei de inúmeras gravações com cantores populares, desde o samba-canção até a bossa-nova. Tive e tenho contato com os maiores nomes da música brasileira erudita e popular.
Dava aulas na Pro-Arte, gravava muito − Depois de dois anos no Rio, onde vivia sozinha, encontrei o mineiro Geraldo Waldomiro Dias com quem me casei e tive seis filhos (cinco são músicos profissionais). Conseguia, com apoio incondicionado dele, conciliar a vida atribulada de mulher, mãe e musicista.
Em 1974, fui convidada para a UnB, Universidade de Brasília, departamento de
música. Aceitei o convite que representava uma mudança
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de vida (o que achava e acho até hoje muito positivo), uma abertura especialmente se tratando da Universidade de Brasília, com programas interdisciplinares, possibilidades de pesquisa e também uma vida mais calma com maior contato com a família.
Os alunos
Na Pro-Arte, como eu era ligada a vida profissional bem diversificada, com conhecimentos da música popular, do choro em particular, meus alunos recebiam essas informações − posso dizer que introduzi o choro nessa escola, com sucesso − audições lotadas. Meus alunos daquele tempo são hoje músicos de projeção tanto na área popular quanto na erudita.
Em Brasília, o departamento que tinha passado por altos e baixos por causa das pertubações politiques, era pequeno, com poucos alunos. Hoje são muitos. Fiquei 20 anos na UnB e posso dizer que houve uma multiplicação impressionante de flautistas que tocam, ensinam, pesquisam, trabalham em produção.
Um de meus maiores pontos de orgulho é de constatar que muito poucos dos alunos que tive, principalmente em Brasília, se desviaram do campo da música.
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A minha maneira de ensinar
muito ligada, constato isso hoje, à maneira de Crunelle. Respeitar a expressão de cada um.
Vou citar um exemplo. Quando estava na classe de flauta em Paris, apareceu um
flautista suiço que tocava de uma maneira diferente, sem nenhum vibrato (tido como característica da “escola” francesa). Ele ganhou o primeiro prêmio no primeiro ano. Os alunos criticaram: “ele tem o som feio, et...” Crunelle mandou calar e disse: Ele é um artista.
Quando cheguei no Brasil e quando ouvi os flautistas populares, de choro ou regional, como se dizia, fiquei fascinada pela sua maneira de tocar: improvisando, com articulações diferentes como se fosse modelar o som, como uma fala (por exemplo Eugênio Martins, Dante Santoro, Altamiro, Copinha) e percebi que na realidade não existiam “escolas”, mas sim “músicos e música”.
O que eu acho essencial no meu ensino é descobrir a personalidade de cada um, ouvir e procurar desenvolvê-la. Um outro ponto de orgulho meu é que meus alunos tocam todos de uma maneira diferente uns dos outros (até minhas filhas) e atuam em ambientes diferentes
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p.19 Talvez seja isso a minha “escola”.
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o que eu acho essencial no estudo da flauta é ter alguns elementos básicos de estudo de sonoridade primeiro − estudo de intervalos procurando a maior continuidade e expressividade no som —
− exercícios de articulações e ritmos baseados em escalas tonais e modais
− criação de exercícios apropriados às dificuldades de cada peça, cada um no seu estilo
− análise das peças − conhecimento das partes de piano ou dos outros instrumentos nos conjuntos orquestrais e camerísticos
− concentração no tempo de estudo: 20 minutos concentrado é o bastante − saber parar, relaxar [e depois recomeçar, isso evita tendinite!] confiar no adquirido − memorização
− desenvolver o prazer de tocar
− tocar em conjunto, em muitos ambientes, uns para os outros ; tocar é uma festa.
O mercado profissional
O músico hoje está preocupado demais em registrar suas atividades. As lojas estão repletas de CDs invendidos, que muitas
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vezes, no caso dos independentes, representam investimento a fundo perdido.
O músico tem que insistir nas apresentações ao vivo − insubstituíveis − pagas ao vivo, conforme as tabelas sindicais. Multiplicar as ocasiões e espaços, praças, igrejas, autarquias, ministérios, fábricas, shoppings. Conseguir contato direto com os promotores de eventos. Ligar a música à educação. Educação e cultura juntas − Não separar o professor do executante (o licenciado do bacharel em instrumento) − quem toca ensina, quem ensina toca deve tocar! mexer nas instituições. Pesquisar significa estar atento, procurar a novidade no passado, no presente e no futuro. Pesquisar é criar algo novo.
Hoje toco com três parcerias
Elza Gushiken, pianista − no ano de 2004 completam 30 anos de parceria e amizade. Jaime Ernest Dias, violão, quase 20 anos. Roberto Rutigliano, bateria, 3 anos de atividades descobrindo novos sons.
Tenho feito pesquisas no Rio (Mathieu-André Reichert), em Diamantina, sobre a tradição musical da cidade − 20 anos.
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Tenho vários discos gravados L.P e CD (para Raul: você pode citar os títulos se julgar necessário, mencionando o CD a sair pela Rádio MEC, com obras, na sua maioria para flauta solo, de autores brasileiros contemporâneos, dedicadas a mim ou de que fiz a primeira audição)
Minha atividade de hoje está sendo por um sorte incrível ligada exatamente aquilo que penso e sinto a respeito da música.
Dou algumas aulas e participo de festivais e congressos no Brasil e no exterior e em
alguns recitais. Agora, o mais importante:
Em termos de mercado de trabalho estamos recriando uma sociedade camerística no Rio para desenvolver mais as execuções ao vivo.
Minha vida atual está se religando aos ideais de meu pai, seu pensamento sobre educação e a maneira como fui educada. Estou em contato com um movimento internacional de orquestras jovens. Fui solicitada por uma ONG para criar uma atividade musical numa escola pública do Rio de população em grande parte favelada.
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Insisto na necessidade de colocar um instrumento de música nas mãos das crianças, e
de incluir na educação de base exatamente da forma que fui educada. O som musical criado ao vivo é mágico, emociona quem toca e quem escuta. Nessa emoção profunda não existe lugar para violência.
Música é vida.
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7.3 Anexo III: Discografia de Odette
A respeito de sua discografia, pode-se mencionar 10 discos gravados — entre Long
Plays e Compact Discs — tanto com intuitos artísticos quanto acadêmicos, uma vez que
alguns dos discos produzidos foram frutos de pesquisas musicológicas. Além dos LPs e CDs,
também foi produzido um DVD. São eles:
a) LONG PLAYS
1) RECITAL Gravação: Sala Cecília Meireles, Rio de Janeiro
Lançamento: 1976 / 1977 – Produção: Frank Justo Acker
Intérpretes: Odette E. Dias (Flauta) & Elza Kazuko Gushiken (Piano)
Repertório: Mozart, Couperin, Bach, Messiaen, Guerra-Peixe, Pixinguinha e Glück
2) SARAU BRASILEIRO
Gravação: Escola de Música de Brasília nos dias 2 e 3 de junho de 1979
Lançamento: 1980
Intérpretes: Odette E. Dias (Flauta) & Elza Kazuko Gushiken (Piano)
Participação Especial: Jaime Ernest Dias (Violão)
Repertório: S. Neukomm, Anônimo (Lundum, recolhido por Mário de Andrade), J. A. S.
Callado, Clemente Ferreira Jr., Anônimo (Duas Modinhas, localizadas em arquivos de
Mariana/MG, pela pesquisadora Conceição Rezende) Ernesto Dias, Bernadino de Souza,
Clemente Ferreira Jr., Carlos Tobias, Bernadino Belém de Souza.
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3) HISTÓRIA DA FLAUTA BRASILEIRA - REVELAÇÕES
Gravação: Estúdio Eldorado/SP, em fevereiro de 1981
Lançamento: 1981/ 1982 (?)
Intérpretes: Odette Ernest Dias (Flauta), Norah de Almeida (Piano) e Alencar (Violão 7
Cordas)
Repertório: M. A. Reichert, J. A. S. Callado, Viriato F. da Silva e Catulo da Paixão, Agenor
Bens, Carlos Gomes, R. J. Kinsman Benjamin, J. Briccialdi.
4) AFINIDADES BRASILEIRAS – M. A. REICHERT
Gravação: Sala Cecília Meireles, Rio de Janeiro, em 13/09/1985
Lançamento: 1986 - Apoio: UnB ; CNPq
Intérpretes: Odette E. Dias (Flauta) & Elza Kazuko Gushiken (Piano)
Participação Especial: Jaime Ernest Dias (Violão)
Repertório: Obras do flautista belga, Mathieu-André Reichert, que chegou ao Brasil em 1859,
contratado por D.Pedro II.
5) MODINHAS SEM PALAVRAS
Gravação: Estúdio Eldorado Ltda, 1986(?)
Lançamento: 1987
Intérpretes: Odette Ernest Dias (Flauta), Elza Kazuko Gushiken (Piano) e Jaime Ernest Dias
(Violão)
Repertório: Carlos Gomes
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6) SONATAS DE BACH
Gravação: Sala Martin Pena, Teatro Nacional de Brasília 11/1986.
Lançamento: 1987 - Produção independente Odette Ernest Dias
Apoios: Teatro Martins Pena (Brasília); UnB
Gravação e apoio: Frank Justo Acker
Intérpretes: Odette E. Dias (Flauta) & Elza Kazuko Gushiken (Piano)
Participação Especial: Jaime Ernest Dias
Repertório: Sonatas p/ flauta solo e flauta e cravo de J. S. Bach
b) COMPACT DISC
1) LE ROSSIGNOL
Gravação:1997
Lançamento: 1997 - Selo L’Art Produções Artísticas Ltda
Interprétes: Odette Ernest Dias (Flauta) e Bridget Moura Castro (Piano)
Participação Especial: Andréa Ernest Dias
Repertório: Gluck, Couperin, Blavet, Loeillet, Leclair, Boismortier, Hotteterre, La Barre,
Wendling
2) SONATAS DE BACH (Lançado em CD em 2001 / versão idêntica ao LP)
Gravação: Sala Martin Pena, Teatro Nacional de Brasília 11/1986.
Lançamento: 1987
Intérpretes: Odette E. Dias (Flauta) & Elza Kazuko Gushiken (Piano)
Participação Especial: Jaime Ernest Dias
Repertório: Sonatas p/ flauta solo e flauta e cravo de J. S. Bach
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3) PAISAGENS NOTURNAS
Gravação: Julho de 2000, na Chácara de Brasília/DF
Lançamento: 2001 - Selo KARMIM - Belo Horizonte
Intérpretes: Odette Ernest Dias (Flauta) & Jaime Ernest Dias (Violão)
Repertório: Anônimo, João Baptista Macedo, Pedro José Palau, Ruy Quaresma, Avena de
Castro, Villa-Lobos, Pixinguinha, Pixinguinha e Vinícius de Moraes, J. S. Bach, Mauro
Giulianni, Paulinho da Viola
4) ODETTE ERNEST DIAS
Gravação: AMENSTUDIO / USA, ano
Lançamento: 2005
Realização: Rádio MEC
Repertório: Debussy, Hermeto Pascoal, E.Widmer, Kim Ribeiro, Villa-Lobos, Cláudio
Santoro, Radamés Gnatalli, Ronaldo Miranda, Raul do Valle, Roberto Victorio, Guerra-Peixe,
Nelson Macedo, Jorge Antunes, Avena de Castro, Jean-Victor Foureaux, Lindenberg
Cardoso.
5) O JOVEM MOZART
Gravação: 2006
Lançamento: 2006
Selo: L’Art Produções Artísticas Ltda
Interprétes: Odette Ernest Dias (Flauta) e Bridget Moura Castro (Piano)
Repertório: Sonatas de Mozart (KV 10, 11, 12, 13, 14, 15) e Concerto em Sol M
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6) SONATAS DE BACH (Remasterizado em 2008 – Selo “Fina Flor”)
Gravação: Sala Martin Pena, Teatro Nacional de Brasília 11/1986.
Lançamento: 1987/ 2008
Intérpretes: Odette E. Dias (Flauta) & Elza Kazuko Gushiken (Piano)
Participação Especial: Jaime Ernest Dias
Repertório: Sonatas p/ flauta solo e flauta e cravo de J. S. Bach
PARTICIPAÇÃO ESPECIAL
Sempre PIXINGUINHA 100 Anos - Kuarup Discos / 1997
Participação na Roda de Choro: Naquele Tempo, Oscarina, Segura Ele, Devagar e Sempre,
Soluços, As Proezas de Sólon, Vou Vivendo
c) DVD
“A Vida na Flauta”
Produção: Sérgio Bloch / ABBAS Filme
Ano: 2006
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7.4 Anexo III: Relação das composições dedicadas à Odette PARA FLAUTA SOLO: Raul do Valle CONTRASTES Lindembergue Cardoso ESTUDO P/ FLAUTA EM DÓ, FLAUTA EM SOL E FLAUTIM, Op. 51 Jorge Antunes REDUNDANTIAE II Jorge Antunes LE JOUR DE CHORINHO EST ARRIVÉ Nelson Macedo FANTASIA SERESTEIRA Eduardo Bértola TRASLACIONES Kim Ribeiro LA BÊTE GRENOIR Roberto Victorio CHRONOS II PARA DUAS FLAUTAS: Ronaldo Miranda TRÊS INVENÇÕES PARA TRIO DE FLAUTAS: Ruy Quaresma POUR ODETTE PARA FLAUTA E VIOLÃO: Ruy Quaresma POUR ODETTE Avena de Castro DIVINA FLAUTA PARA FLAUTA E PIANO: Lindembergue Cardoso FLAPI PARA CONJUNTO DE FLAUTAS Lindembergue Cardoso SEIS ASPECTOS DE OURO PRETO* Raul do Valle CONTRASTES (p/ solo ou flautas)
* À Odette Ernest Dias e Berenice Menegale
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7.5 Anexo IV: Títulos de artigos e publicações
- M. A. REICHERT – Afinidades Brasileiras
Artigo apresentado no II Encontro Nacional de Pesquisa em Música, entre 4 a 8 de
dezembro de 1985, em São João del Rei / MG.
- Presença Musical da França no Brasil – Traços aculturados
Artigo apresentado no III Encontro Nacional de Pesquisa em Música, entre 5 a 9 de
agosto de 1987, em Ouro Preto / MG.
- Mathieu-André Reichert UM FLAUTISTA BELGA na Corte do Rio de Janeiro
Livro, editado em Brasília pela Editora da UnB, em 1990. 96 páginas, em três idiomas:
português, francês e inglês.
- Mathieu-André Reichert – Vol. I (Piano)
Partituras. Edição organizada pela Profª. Odette, editado em Brasília pela Editora da
UnB, em 1990. 134 páginas
- Mathieu-André Reichert – Vol. II (Flauta)
Partituras. Edição organizada pela Profª. Odette, editado em Brasília pela Editora da
UnB, em 1990. 82 páginas
- Música “Pura” ou Mestiçagem Musical?
Artigo publicado na PAPIA - Revista de Crioulos de Base Ibérica – Vol. 2 Nº 1,
Thesaurus Editora, Brasília, 1992, p.104-106.
- O Virtuosismo Instrumental: o caso do flautista Mateus-André Reichet
Artigo apresentado no VII Encontro Anual da ANPPO, entre 29 de agosto a 2 de
setembro de 1994, em São Paulo / SP.
- Crioulização Cultural no Brasil: O Bumba-meu-boi de Brasília
Artigo publicado na PAPIA - Revista de Crioulos de Base Ibérica – Vol. 4 Nº 1,
Thesaurus Editora, Brasília, 1995, p.85-88.
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- La Musique “des garimpeiros” cherceurs de diamants à Diamantina
Palestra ilustrada no VIII COLLOQUE INTERNATIONAL DES ETUDES
CREOLES – Le métissage des langues et des représentations. Pointe-à-Pitre Guadeloupe, 5-
10 mai 1996
- Musique et Image Rio de Janeiro
Resumo do trabalho apresentado no 124e Congrès des Sociétés Historiques et
Scientifiques – Nantes, 19 au 24 avril, 1999, p.23.
- Voyage set métamorphoses d’une souris verte
Palestra ilustrada no IX COLLOQUE INTERNATIONAL DES ETUDES CREOLES
– Les études créoles à l’aube du troisième millénaire. Aix-en-Provence, 24-29 juin 1999.
- FlautatualF: uma análise subjetiva, uma interpretação
Artigo publicado no livro Uma Poética Musical Brasileira Revolucionária, organizado
por Jorge Antunes. Publicado em Brasília, pela Editora Sistrum, em 2002, páginas 43 a 54.
- Le musicien joue. Travaille-t-il ?
Resumo do trabalho apresentado no 127e Congrès des Sociétés Historiques et
Scientifiques – Le travail ler les hommes – Nancy, du 15 au 20 avril 2002, p.176.
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7.6 Anexo VI: Diplomas recebidos
7.6.1 Primeiro Prêmio em Flauta / Conservatório Nacional de Paris, 1951
220
Tradução juramentada
221
7.6.2 Concurso de Genebra, 1951
222
Tradução juramentada
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7.6.3 Título de “Chevalier de l’ordre des arts et des lettres”
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7.7 Anexo VII: Ementas das disciplinas
7.7.1 Flauta I
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7.7.2 Flauta II
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7.7.3 Flauta III
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230
7.7.4 Flauta IV
231
232
7.7.5 Flauta V
233
234
7.7.6 Flauta VI
235
236
7.7.7 Flauta VII
237
238
7.7.8 Flauta VIII
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