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O Dever de Lançamento de Oferta Pública de Aquisição no Novo Código dos Valores Mobiliários Paulo Câmara * * Assistente da Faculdade de Direito de Lisboa e Subdirector da Divisão de Emitentes da Comissão do Mercado de Valores Mobiliários. As opiniões aqui expressas são-no a título exclusivamente pessoal. Texto desenvolvido a partir de comunicação apresentada no Centro Cultural de Belém em 16 de Dezembro de 1999, no Seminário “O Novo Código dos Valores Mobiliários”, organizado pela Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa e pela Comissão do Mercado de Valores Mobiliários.

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O Dever de Lançamento de Oferta Públicade Aquisição no Novo Código dosValores Mobiliários

Paulo Câmara *

* Assistente da Faculdade de Direito de Lisboa e Subdirector da Divisão de Emitentes da Comissão do Mercadode Valores Mobiliários. As opiniões aqui expressas são-no a título exclusivamente pessoal.

Texto desenvolvido a partir de comunicação apresentada no Centro Cultural de Belém em 16 de Dezembro de1999, no Seminário “O Novo Código dos Valores Mobiliários”, organizado pela Faculdade de Direitoda Universidade Nova de Lisboa e pela Comissão do Mercado de Valores Mobiliários.

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I.Introdução

1. A instabilidade legislativa e as influências comunitárias nodireito das ofertas públicas de aquisição

I. A intensificação dos movimentos de concentração empresarial e de reestruturação daindústria, à escala interna e internacional, impulsionados pela globalização, e asiniciativas dirigidas ao reforço dos instrumentos de protecção dos investidores e aoafinamento do governo societário, marcam, de modo conjunto, os mercados mobiliá-rios neste final do século.

É, por isso, justificado que, de entre as novidades legislativas apresentadas no Códigodos Valores Mobiliários, se dedique importância prioritária, de um lado, àreformulação do regime das sociedades com o capital aberto ao investimento dopúblico e, de outro lado, aos instrumentos de protecção dos investidores. Comoponto de cruzamento destes dois fundamentais vectores do novo diploma,concentrar-me-ei aqui na análise do dever de lançamento de oferta pública deaquisição, previsto no artigo 187.º e seguintes do Código dos Valores Mobiliários.

II. Começa-se por lembrar que o direito português das ofertas públicas de aquisiçãotem sido fustigado por diversas reformas legislativas, tendo já conhecido quatro etapassignificativas do quadro normativo do dever de lançamento de oferta.

A inauguração – pouco auspiciosa – das intervenções normativas nacionais em matériade OPAs deu-se com o DL n.º 429/83, de 13 de Dezembro, que fez depender deautorização ministerial as ofertas lançadas do estrangeiro sobre acções emitidas porsociedades com sede em Portugal, alegadamente com base no receio de umaproveitamento externo das lacunas do direito nacional sobre a matéria.

Pouco depois, a versão originária do Código das Sociedades Comerciais, datada de1986, desenvolvia o tema, oferecendo regras processuais sobre as ofertas e instituindoum dever de lançamento de oferta prévia parcial quando o lote accionista pretendidoatribuísse o domínio ou quando, somado às aquisições verificadas desde o ano civilanterior, excedesse 20% dos direitos de voto1.

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1Sobre o regime originário da oferta obrigatória, constante do art. 313.º CSC e da Portaria n.º 422-A/88, de4 de Julho, consulte-se JOÃO LABAREDA, Das Acções das Sociedades Anónimas, Lisboa, (1988), 258-264; VASCODA GAMA LOBO XAVIER, Defensive Measures against Hostile Takeovers in Portugal, in J.M.M. MAEIJER/ K. GEENS(ed.), Defensive Measures against Hostile Takeovers in the Common Market, Dordrecht/ Boston/ London, (1991), 198-200.

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anterior, independentemente da posição de partida do oferente.

A complexidade do edifício normativo relativo às ofertas de aquisição atingia, aqui,proporções reconhecidamente excessivas, o que constituiu motivo decisivo – menossubstancial que formal – para sugerir a necessidade de uma revisão de fundo.

III. É assim que chegamos ao novo regime das ofertas públicas de aquisição constantedo Código dos Valores Mobiliários, sobre o qual deve, em termos preliminares,registar-se uma característica que o marca estruturalmente.

O novo figurino legal mantém as linhas fundamentais do sistema nacional vigentedesde 1986 – um sistema que institui um dever de lançamento de oferta pública de aquisição, de fontelegal. É preservada, pois, a distância em relação ao conjunto de ordenamentos queprevêem ofertas exclusivamente facultativas – de que são exemplos os EUA4 e a Suécia5

– e, bem assim, aos sistemas jurídicos de índole auto-reguladora, como existentes noReino Unido e, embora em moldes diferentes, na Suíça e na Alemanha.

IV. Em balanço, a partir do recenseamento realizado, vê-se que em Portugal osregimes das ofertas de aquisição se sucedem à razão média de um por cada quatroanos.

Ao direito das ofertas públicas de aquisição falta ainda a espessura do tempo, pelo queeste não é caso único no contexto europeu. Basta lembrar que o principal textoinspirador do dever de lançamento de OPA – o britânico City Code on Takeovers and Mergers– é objecto de alterações em cadência ainda mais intensa, registando-se mais de dezmodificações nos seus primeiros trinta anos de vigência6.

De todo o modo, a precária sedimentação legislativa do instituto provoca sérias

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Com o aparecimento do Código do Mercado de Valores Mobiliários, aprovado pelo DLn.º 142-A/91, de 10 de Abril, seguiu-se uma fase marcada por uma problemáticacoexistência entre regimes societário e mobiliário sobre a matéria. A oferta obrigatóriaconheceu relevante alteração, aditando-se às previsões do Código das SociedadesComerciais a cominação do dever de lançamento de oferta geral, prévia e subsequente,sempre que os valores mobiliários a adquirir, ou de outro modo detidos, excedessem50% dos direitos de voto do capital social de sociedade que haja dispersado o seu capitalpelo público. Por outro lado, o apuramento da medida do controlo, individual ouconcertado, sobre a sociedade visada passou a fazer-se em termos mais sofisticados,assentando na articulação entre, de um lado, as presunções de actuação em concertaçãocom o oferente e, de outro, as ficções legais quanto ao cômputo dos direitos de votoincluídos em participações importantes e quanto aos valores contados pela lei como dooferente2.

Este mesmo Código viria a ser objecto de uma importante revisão introduzida peloDL n.º 261/95, de 3 de Outubro, que revogou o regime constante do Código dasSociedades Comerciais3. O regime do dever de lançamento de oferta, todavia, passoua apresentar uma complexidade ainda mais acentuada no tocante às previsões deofertas obrigatórias, fixando cinco limites ao longo dos arts. 527.º, n.º 1, e 528.º,n.º 2. De um lado, cominava-se a obrigatoriedade para quem detivesse mais demetade e menos de dois terços dos direitos de voto e pretendesse adquirir mais de 3%desses direitos num ano. Em segundo lugar, determinava-se a constituição do deverquando o oferente pretendesse adquirir valores que confiram dois terços ou mais dedois terços desses direitos. Por seu turno, era imposta a OPA a quem pretendesseadquirir mais de metade dos direitos de voto da sociedade visada e a quem, porqualquer motivo, houvesse ultrapassado tal fasquia. Além disso, foi estabelecida aobrigatoriedade aos que adquiram mais de 20% desde 1 de Janeiro do ano civil

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2Cfr., respectivamente, os arts. 525.º, n.º 2, 346.º e 530.º do Código do Mercado de Valores Mobiliários.Em geral, sobre o regime do Código do Mercado de Valores Mobiliários, antes das modificações introduzidasem 1995, consulte-se AUGUSTO TEIXEIRA GARCIA, Da Oferta Pública de Aquisição e o seu Regime Jurídico,Coimbra,(1995); CARLOS OSÓRIO DE CASTRO, Os Casos de Obrigatoriedade do Lançamento de uma Oferta Pública deAquisição, in Problemas Societários e Fiscais do Mercado de Valores Mobiliários, Lisboa, (1992); FERNANDO DA COSTALIMA, A Experiência das OPA em Portugal, in Anuário da Economia Portuguesa, (1995), 71-74; JOÃO CALVÃO DASILVA, Estudos de Direito Comercial (Pareceres), Coimbra, (a edição é de 1996, embora os pareceres respeitantes aesta matéria sejam anteriores à entrada em vigor do DL n.º 261/95, de 3 de Outubro), 207-246; JOSÉMIGUEL JÚDICE/ MARIA LUÍSA ANTAS/ ANTÓNIO ARTUR FERREIRA/ JORGE BRITO PEREIRA,OPA. Ofertas Públicas de Aquisição. Legislação Comentada, Lisboa, (1992); JOSÉ NUNES PEREIRA, O regime jurídico dasofertas públicas de aquisição no Código do Mercado de Valores Mobiliários: principais desenvolvimentos e inovações, in Revista da Bancan.º 18 (1991); RAÚL VENTURA, Estudos Vários sobre Sociedades Anónimas, Coimbra, (1992), 29-98.

3Cfr. ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, A Oferta Pública de Aquisição, in Direito dos Valores Mobiliários, (1997); Id.,A OPA estatutária como defesa contra tomadas hostis, in ROA ano 58 (1998), 133-145; JORGE BRITO PEREIRA, OPAObrigatória, (1998); PAULO CÂMARA, Deveres de informação e formação de preços no direito dos valores mobiliários, inCadernos do Mercado de Valores Mobiliários, n.º 2, (1998), 79-94.

4Descontam-se, claro está, os Estados federados norte-americanos que prevêem cash-out statutes (Maine ePennsylvannia), os quais funcionam como equivalente da oferta obrigatória no além-Atlântico: cfr. ARTHURFLEISHER JR./ ALEXANDER R. SUSSMANN, Takeover Defenses5, New York, (1997), 4.06 B.

5Apesar de não conhecer um dever de lançamento de oferta, a Suécia conta, desde 1988, com um conjunto derecomendações aprovadas pelo Comité de Bolsa (Näringslivets Börskommitté, abreviadamente designado pelasiniciais NBK) em matéria de ofertas públicas de aquisição, que mereceu aditamentos em 1991 para o domínioparticular dos management buy-outs. Cfr. a propósito ROLF SKOG, Does Sweden Need a Mandatory Bid Rule? A CriticalAnalysis, Stockholm, (1994), 26-41.

6Alterações verificadas em 1968, 1969, 1972, 1976, 1981, 1988, 1990, 1991, 1996, 1998 e 1999. O próprioPanel vê na revisão do City Code um processo contínuo para assegurar que o diploma reflecte a prática dosmercados (TAKEOVER PANEL, Report, (1997/1998), 12). A versão oficial do City Code é, por este motivo,editada em encadernação com folhas soltas (loose-leafs).

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particular, relativamente ao dever de lançamento de OPA, tem igualmente conduzidona Europa a indícios de institucionalização, de modo autónomo, de comissões cujacompetência principal é a de fiscalizar o cumprimento de normas relativas às OPAs.Este modelo institucional faculta, a um passo, uma vigilância mais actuante; mastambém alicerça uma maior flexibilidade do regime, uma vez que a estas autoridadessão assinalados poderes de produção de normas. O caso mais relevante e pioneiro é oencontrado no Reino Unido, no Panel on Takeovers and Mergers; diga-se porém que o CityPanel não se estrutura como entidade pública, tendo ao invés uma natureza privada deraiz corporativa9. Mais recentemente, surgem instituições criadas para fiscalizar odireito das ofertas de aquisição nas Übernahmekommissionen suíça e austríaca, surgidasrespectivamente em 1995 e em 1999.

Com algumas características próprias, podem divisar-se outros exemplos destatendência. O fenómeno da institucionalização do controlo das ofertas também sedepara na Nova Zelândia e em França, respectivamente com a autonomização doTakeovers Panel10 e do Conseil des Marchés Financiers em relação à COB – embora, neste últimocaso, apenas parcialmente receba influência desta tendência, na medida em queexistem outras atribuições confiadas àquele organismo11.

VI. A consagração de um dever legal de lançamento de oferta pública de aquisição nãoé incontroverso no plano das escolhas de política legislativa12. Além disso, apresentaimplicações com a estrutura típica de titularidade accionista e com o sistema de direitodas sociedades existentes em cada Estado, em particular quanto à demarcação doconceito de domínio. Por isso, o tema desconhece qualquer ensaio, com êxito, de harmonizaçãointernacional.

A documentá-lo, sabe-se que desde 1989 que nas instâncias comunitárias são

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consequências no tráfego, pois é adversa à segurança e à previsibilidade das decisões detomada de sociedades, que também são decisões de investimento que o direito devetutelar. Por outro lado, à luz das concepções continentais, tal coloca dúvidas sobre aapetência de tratamento do dever de lançamento de oferta pública de aquisição numinstrumento normativo carecido de estabilidade, como é caso de um Código dosValores Mobiliários.

Perante esta dúvida, uma saída possível foi ensaiada em Itália, cujo sistema jurídicoconheceu duas reformas de fundo na década de noventa quanto ao regime do dever delançamento de oferta. Por isso, o Testo Unico Finanziario de 1998, optando por umasensível desgraduação normativa do instituto, passou confiar mais espaço aodesenvolvimento regulamentar promovido pela autoridade de supervisão7.

A resposta do ordenamento português é muito próxima, assentando sobretudo numamaior depuração dos enunciados normativos para lhes assegurar estabilidade. Comefeito, na linha do que em geral caracteriza o Código dos Valores Mobiliários8, épatente a menor densidade normativa da nova disciplina, sendo reduzida a cerca deum terço o conjunto de preceitos que, sobre as mesmas matérias, se encontravam noanterior Código.

V. Deve acrescentar-se que, em múltiplos ordenamentos, a existência de um deverjurídico a cominar o lançamento de OPA tem conduzido a preocupações em assegurara eficácia das previsões de obrigatoriedade.

Um primeiro nível de resposta reside no apuramento dos enunciados normativos, porforma a servir o fundamento e a prevenir esquemas defraudatórios da estatuição dodever.

A preocupação no cumprimento das normas relativas a ofertas públicas – e, em

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7PIERGAETANO MARCHETTI/ LUIGI ARTURO BIANCHI, (ed.) La Nuova Disciplina delle Società Quotate,Milano, (1999), T. I, 182-499 (495-499); ROBERTO WEIGMANN, La Nuova Disciplina delle OPA, in F.BONELLI/ V. BUONOCORE/ F. CORSI/ R. COSTI/ P.FERRO-LUZZI/ A. GAMBINO/ P. G. JAEGER/A. PATRONI GRIFFI, La Riforma delle Società Quotate, Milano, (1998), 197-209; RAFFALELE D’AMBROSIO,Offerte Pubbliche di Acquisto o di Scambio, in CARLA RABITTI BEDOGNI, Il Testo Unico della Intermediazione Finanziaria.Commentario, Milano, (1998), 593-612; LUCA PICONE, Le Offerte Pubbliche di Acquisto, Milano, (1999); MARCOMARTINI, The New Italian Law on Takeover Bids, in Quaderni di Finanza, n.º 32 (Mar.1999), 7-13; FRANCESCOCARBONETTI, La nuova disciplina delle offerte pubbliche di acquisto, in Rivista delle Società (Set/ Out. 1998), 1352-1365(1361-1365). De entre todos, este último autor é o que se apresenta mais crítico em relação ao espaçoregulador da Consob, por considerar que as OPAs brigam com princípios, constitucionalmente sustentados,de liberdade contratual e do direito à propriedade (1364-1365).

8Sobre a reformulação formal que o novo Código pretendeu introduzir, cfr. SOUSA FRANCO, Apresentação, inTrabalhos Preparatórios do Código dos Valores Mobiliários, Lisboa, (1999), 21, e, no mesmo volume, também osdespachos ministeriais e os documentos de trabalho referidos a págs. 43-44, 46, 48-52, 92 e 104. OPreâmbulo do Código também reflecte esta preocupação de simplificação e síntese, no seu n.º 3.

9PETER LEE, Takeovers – The United Kingdom Experience, in JOHN FARRAR (ed.), Takeovers. Institutional Investors and theModernization of Corporate Laws, Oxford, (1993), 192-197.

10AMNON MANDELBAUM, Economic Aspects of Takeovers Regulation with Particular Reference to New Zeland, in JOHNFARRAR (ed.), Takeovers. Institutional Investors and the Modernization of Corporate Laws, cit., 202.

11A supervisão das ofertas públicas de aquisição, por seu turno, é partilhada entre o CMF e a COB, cabendo aeste organismo a fiscalização da informação respeitante às ofertas: cfr. MARIE-JOSÈPHE VANEL, LaRegulation des Offres Publiques en France, in Quaderni di Finanza, n.º 32 (Março 1999), 41-42.

12Cfr. a discussão a que se alude mais à frente, relativamente ao fundamento do dever: 5.º II n. 61, 2.º 9. e 3.º 10.

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dimensão lançada pela inglesa Vodafone Airtouch sobre germânica Mannesmann, a chamareficazmente a atenção de britânicos e alemães para a vantagem de harmonização deregimes das ofertas em termos europeus16. De facto, a resistência dos alemães nodesenvolvimento de um regime de injuntividade das ofertas tem também raízes naestrutura accionista concentrada nas sociedades alemãs, virtualmente invulneráveis atomadas hostis. Neste contexto, o significado do êxito da oferta sobre a Mannesmann éduplo: de um lado, veio demonstrar que as preocupações de protecção dosminoritários também colhem em solo germânico. De outro lado, simbolizou umchoque de culturas societárias e mobiliárias, pois paradoxalmente a que foi, até à data,a maior oferta hostil na Europa foi precisamente aquela em que são confrontadossistemas com perspectivas radicalmente diversas sobre o governo das sociedadesabertas, em geral, e sobre as ofertas de aquisição, em particular, como o são osordenamentos jurídicos do oferente e da sociedade visada17.

2. O enquadramento sistemático

I. No Código dos Valores Mobiliários, o tratamento do dever de lançamento dasofertas públicas de aquisição, embora merecendo regulação autónoma, sofreinfluências da reorganização normativa de que foram objecto as ofertas públicas emgeral, aproveitando-se, naturalmente, das soluções encontradas a dois níveis: na partegeral das ofertas públicas, constante dos artigos 108.º a 155.º do Código; e nasdisposições gerais reservadas às ofertas públicas de aquisição, nos artigos 173.º a186.º.

Assim, valerá também para a OPA obrigatória o dever de registo prévio na CMVM(art. 114.º), o dever de celebração de contrato de assistência e de recolha dedeclarações com intermediário financeiro (art. 113.º, n.º 1, alínea b)) e o dever deelaboração do prospecto (art. 134.º, n.º 1) – cujo conteúdo deve conformar-se com oart. 138.º. Com esta última exigência aboliu-se a figura da nota informativa, o quetem a vantagem de unificação da terminologia e do regime do documento informativoda oferta, preparando o direito nacional para uma eventual futura extensão do regimede reconhecimento comunitário do prospecto às ofertas públicas de aquisição. Talpermite, também, a unificação do tratamento da responsabilidade civil pelos danosoriginados por vícios do prospecto (arts. 149.º e seguintes) em termos que resultammais harmoniosos que os decorrentes da disciplina de 1991.

Outros dados normativos gerais que atingem as ofertas obrigatórias são,

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discutidas sucessivas propostas de directiva, visando instituir um regime mínimo nodomínio das ofertas obrigatórias, por forma a uniformizar níveis mínimos deprotecção dos accionistas minoritários da sociedade visada e a facilitar a realização deofertas públicas internacionais no espaço europeu. Nenhuma dessas propostas logrouainda, à data, converter-se em texto normativo definitivo13.

Porém, como pano de fundo da reforma legislativa nacional, do lado das influênciascomunitárias são igualmente visíveis alguns sinais de evolução. Com efeito, há agoraindícios animadores de estar em vias de aprovação uma nova proposta de Directivacomunitária em matéria de ofertas públicas de aquisição, a cominar designadamente umdever de lançamento de oferta pública de aquisição em caso de transição de controlo14.

Paralelamente ao desenvolvimento que os trabalhos comunitários têm registado, nãoserá por mera coincidência que se encontram indícios recentes que ilustram atendência expansiva do modelo da obrigatoriedade de lançamento de OPA, revelada nofacto de alguns ordenamentos tradicionalmente hostis a este dever se encontrarem apreparar, ou já consumaram, inflexões legislativas para o acolhimento do dever delançamento de oferta pública de aquisição. Neste plano, deve em particular considerar-se sintomática a aprovação em 1998, na Áustria – tradicionalmente muito influenciadapelos dados normativos germânicos –, de uma lei relativa a ofertas públicas de aquisiçãoprevendo o dever de lançamento de OPA15.

Não pode esquecer-se, por fim, que a harmonização legislativa depende, neste campo,da convergência sentida no comportamento dos mercados. A este propósito, emtermos infrajurídicos, assistiu-se no final de século a uma oferta hostil de grande

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13Entre muitos: L. S. SEALY, The Draft Thirteenth E. C. Directive on Take-overs, in MADS ANDENAS/ STEPHENKENYON-SLADE, EC Financial Market Regulation and Company Law, London, 47-59; KLAUS HOPT, Europäisches unddeutsches Übernahmerecht, ZHR 161 (1997), 379-392; Id., Einfürung, in SCHUSTER/ ZSCHOCKE, Übernahmerecht/Takeover Law, Frankfurt am Main, (1996), 180-185; JÜRGEN REUL, Die Pflicht zur Gleichbehandlung der Aktionäre beiprivaten Kontrolltransaktionen, Tübingen, (1991), 10-14; EDDY WYMEERSCH (ed.), The proposal for a 13th Company LawDirective on takeovers: a multi-jurisdiction survey in European Financial Services Law (Nov. 1996), 301-307, (Jan. 1997), 2-7;ROLF SKOG, Does Sweden Need a Mandatory Bid Rule? A Critical Analysis, cit., 8-16; FRANÇOISE BLANQUET, LesOrientations Communautaires, in Quaderni di Finanza, n.º 32 (Março 1999), 14-27.

14Já foi tornado público que a aprovação de uma nova proposta de directiva a submeter ao Parlamento Europeu seencontra apenas dependente de um acordo entre a Espanha e o Reino Unido quanto ao estatuto de Gibraltar – o que,como se percebe, é uma questão de ordem política, nada tendo a ver com a sedimentação técnica do novo textocomunitário. Cfr., sobre as evoluções mais recentes, COMISSÃO EUROPEIA, Financial Services Action Plan – Progress Report,(7.12.1999), 2, 9; KAREL LAWOO, Does Europe Need an SEC?,ECMI, (1999), 25; Les Discussions sur la Directive “Offres Publiquesd’Aquisition” se Poursuivent, in Europolitiquen.º 2372 (9.1.1999), 3; EuropeanTakeovers. Barriers to Entry, in The Economist (18.12.1999),136.

15Uma anotação à proposta de lei que esteve na base da Übernahmegesetz de 1998, que entrou em vigor em 1 de Janeirode 1999, pode ver-se em: PETER DORALT/ CHRISTIAN NOWOTNY/ MARTIN SCHAUER, Takeover-Recht,Wien, (1997), 207-284. Adiante far-se-á uma sucinta descrição do sistema austríaco: cfr. infra 3.º 10. III.

16European Takeovers. Barriers to Entry, cit., 136; JUSTIN DOEBELE, Napalm in Düsseldorf, in Forbes Global (24.01.00), 18-19.

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de condições de eficácia. Em geral, as condições nas ofertas públicas relativas a valoresmobiliários só são admissíveis se servirem interesses legítimos dos oferentes e nãoafectarem o funcionamento normal do mercado (art. 124.º, n.º 3). Ora, como é fácilde entender, esta possibilidade de condicionamento da oferta sofre uma limitaçãomais profunda nas ofertas cujo lançamento surge em cumprimento de imposiçãolegal. É no momento prévio à transposição da fasquia relevante que o interessado deveponderar possíveis eventos condicionantes ao lançamento da oferta, e não após aconstituição do dever.

Descendo a outro quadrante normativo, tem interesse mencionar que no direitosuíço se declara expressamente que as ofertas obrigatórias não podem sercondicionadas, salvo em três situações: quando para a aquisição seja necessária umaautorização de uma autoridade; quando a oferta não incida sobre valores mobiliáriosrepresentativos de direitos de voto; ou quando o oferente exija que a substânciaeconómica da sociedade visada não seja alterada19.

É de inferir que conclusões paralelas valem para o direito português20. Em particular,devem considerar-se que nas ofertas obrigatórias são proibidas as designadas cláusulas de sucesso, quefazem depender a eficácia da oferta de um número mínimo de aceitações por partedos titulares, tanto mais que no sistema actual o dever se constitui no momentosubsequente à aquisição do limiar de direitos de voto tido legalmente comorelevante21.

À mencionada incompatibilidade da aposição de condições em relação ao regime doart. 187.º apenas se excepciona o caso das condições que resultam da lei, como sucedecom a sujeição a autorizações administrativas de que dependa o lançamento da oferta.Admite-se que seja igualmente o caso da dependência de deliberação de assembleiageral para o aumento de capital, no caso de se prever também que a contrapartidatenha alternativa em valores mobiliários – embora neste último caso a não verificaçãoda condição tenha como única implicação que a oferta seja lançada oferecendo umacontrapartida apenas em dinheiro22, não legitimando, pois, a sua retirada.

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nomeadamente, os relativos à qualificação da oferta como pública (arts. 109.º e110.º), às declarações de aceitação (arts. 126.º e 327.º, n.º 2), bem como osrespeitantes à publicidade à oferta (arts. 121.º e 122.º).

II. No Capítulo III do Título III, as ofertas públicas obrigatórias são, por seu turno,tratadas em local separado das disposições gerais sobre ofertas públicas de aquisição.

Frise-se haver igualmente, neste ponto, um afastamento em relação ao Código doMercado de Valores Mobiliários. O legislador de 1991 inseriu o tratamento dasprevisões sobre obrigatoriedade na secção I, dedicada às disposições gerais (arts.523.º-ss.), no que terá sido possivelmente influenciado pelo City Code on Takeovers andMergers, que igualmente trata da oferta obrigatória (section F.) antes da oferta voluntária(sectionG.). Julga-se, porém, mais acertado considerar a matéria das OPAs obrigatóriascomo especial em relação ao tema das OPAs em geral.

Uma ilustração desta relação de especialidade reside na circunstância de, no domíniode aplicação no espaço, as regras sobre ofertas obrigatórias terem âmbito diverso,conforme nos demonstra o art. 108.º, n.º 2, confinando os arts. 187.º e seguintes àsofertas públicas de aquisição lançadas sobre valores mobiliários emitidos por sociedadesque tenham como lei pessoal a lei portuguesa. Importa ainda referir que a publicaçãodo anúncio preliminar em cumprimento do dever deve ser feita no prazo de trinta diasfixado no art.191.º, não se aplicando o art. 175.º, como adiante será retomado.

III. A existência de uma parte geral não dispensa, como é evidente, o amparo dosinstrumentos interpretativos comuns, sobretudo quando confrontada com o institutocom as singularidades próprias da oferta pública de aquisição obrigatória. Valem aqui,como em qualquer ramo jurídico, as indicações doutrinárias que recomendam que aspartes gerais dos diplomas – em particular, dos Códigos – não sejam encaradas comoferramentas de rigidez aplicativa e de irrealismo conceptualista, sendo antes veículosde construções interpretativas permanentemente renovadas, através da articulaçãosegura entre os dados normativos “gerais” e “especiais”18.

Assim, mesmo quando o legislador não o esclarece directamente, a articulação com aparte geral deve fazer-se em alguns casos cum granu salis, na medida em que certospreceitos não se ajustam a uma aplicação às ofertas obrigatórias.

O exemplo maior do que acaba de ser dito encontra-se na possibilidade de aposição

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Bid battle heralds German governance shift, in Governance, n.º 75 (Jan.2000), 6-7.

18FRANZ WIEACKER, História do Direito Privado Moderno, trad. port. de A. M. HESPANHA, Lisboa, (1980),544-548, 558-561; MENEZES CORDEIRO, Teoria Geral do Direito Civil. Relatório, Lisboa, (1988), 77-82; Id.,

Tratado de Direito Civil Português, (1999), 62-64.

19Art. 32 da Börsenordnung.

20Ressalva-se evidentemente a condição respeitante à inalterabilidade da substância económica do emitente dosvalores visados, que é assegurada pelo princípio de neutralidade da administração da sociedade visada(arts. 181.º e 182.º) e excepcionalmente, pelo instituto da alteração das circunstâncias (art.128.º).

21Cfr. infra, 2.º, 3. II.

22A contrapartida em dinheiro é sempre imposta nas ofertas obrigatórias, segundo o art.188.º, n.º 3. Cfr. apropósito infra, 2.º 9. X.

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II.O dever de lançamento de oferta pública de aquisição

3. O dever de lançamento de oferta como dever jurídico

I. O dever de lançamento de oferta pública de aquisição constitui-se quando alguémultrapasse uma das duas fasquias quantitativas, definidas pelo art. 187.º do Código dosValores Mobiliários, relacionadas com a percentagem de direitos de voto detida,individual ou conjuntamente, em sociedade aberta.

A previsão do art. 187.º repousa firmemente na técnica utilizada para a imputação dosdireitos de voto, consagrada no art. 20.º25. Relevantes serão, nestes termos, nãoapenas as aquisições que conduzam à superação dos limiares quantitativos críticos, mastambém as demais situações que o art. 20.º enuncia como determinantes paraconduzir à imputação dos direitos de voto na esfera do potencial oferente.

A partir do momento da ultrapassagem do limite relevante, a pessoa sobre a qual recaio dever tem 30 dias para a publicação do anúncio preliminar (art. 191.º), o que porseu turno a força a prosseguir o processo da oferta até final (art. 175.º, n.º 2).

II. Nesta conformação, a oferta pública de aquisição obrigatória surge agora,exclusivamente, sob a modalidade de oferta subsequente, e não de oferta prévia. Istosignifica que o lançamento de OPA por imposição do art. 187.º não é um processoobrigatório através do qual se deve efectuar a aquisição do lote accionista relevante,representando ao invés um meio de legitimar, a posteriori, uma ultrapassagem da fasquiarelevante de direitos de voto já consumada26.

Esta opção legislativa segue a maioria dos ordenamentos europeus. Genericamente, arazão da preferência pelas ofertas subsequentes deve-se ao facto de as ofertas préviasserem mais permeáveis em relação a aquisição indirectas, as quais se revestem de muitaimportância na conformação do tecido empresarial moderno.

Frise-se que, summo rigore, a lei impõe um dever de lançar uma oferta pública de

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IV. Semelhante análise pode aplicar-se em relação à regra sobre sucessão de ofertas,que impõe em geral um intervalo de doze meses entre cada oferta lançada pela mesmapessoa em relação aos mesmos valores mobiliários, de acordo com o art. 186.º. Umavez que, como adiante se explicitará23, entre nós a oferta obrigatória vem legitimaruma ultrapassagem já consumada de determinada percentagem relevante de direitosde voto, o dever sobrepõe-se ao impedimento de lançamento sucessivo de ofertas semum intervalo mínimo de doze meses. Assim, por exemplo, se um accionista lança umaoferta para legitimar a superação da fasquia do terço dos direitos de voto e, semanasmais tarde, mas após a OPA, adquire um lote suplementar que lhe faculta mais demetade dos votos, vê-se inapelavelmente obrigado ao lançamento de oferta, sem que atal obste o regime fixado no art. 186.º.

Do ponto de vista da conformação axiológica do sistema jurídico, o fundamento destaconclusão assenta na circunstância de a ratio do dever de lançamento servir objectivosmais estruturantes do que os que fundam o art. 186.º, o qual visa sobretudo acautelara regularidade da gestão da visada. Aliás, uma demonstração suplementar de que a leiconsidera valorativamente mais importante a protecção de minoritários através deoferta obrigatória do que a estabilidade da sociedade visada, reside agora nacircunstância de a CMVM poder autorizar o lançamento de oferta antes de decorridoo prazo fixado no art. 186.º, não lhe sendo em contrapartida facultado dispensar olançamento de OPA.

V. Poderiam multiplicar-se os exemplos de ajustamento aplicativo das disposiçõesconstantes da parte geral às ofertas obrigatórias. Assim, a faculdade de alteração ou derevogação da oferta em caso de alteração das circunstâncias (art. 128.º), que de si é jáexcepcional no domínio das ofertas públicas relativas a valores mobiliários, ante oprincípio de irrevogabilidade das ofertas (art. 130.º, n.º 1), deve considerar-seexpediente de utilização ainda mais remota nas ofertas obrigatórias24. No entanto nãopode afirmar-se liminarmente afastada a sua aplicação, designadamente quando amodificação do cenário que rodeou o lançamento da oferta atinja o facto constitutivodo dever.

Finalmente, o mesmo se dirá quanto às regras que permitem afixação de preço emintervalos, prevista genericamente no art. 123.º, n.º 1, alínea e). Dir-se-á que estapermissão não se mostra adequada ao regime das ofertas públicas de aquisição, porfrustrar – ou, pelo menos, dificultar seriamente – a possibilidade de surgimento deofertas concorrentes, porquanto estas dependem de uma determinação precisa dopreço apresentado em cada oferta em concorrência, como pressuposto da observânciado n.º 3 do art. 185.º.

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Cfr. infra, 2.º, 3. I-II.

24Esta constatação vai de encontro à depuração dogmática que atingiu o instituto civil da alteração dascircunstâncias para possibilitar uma utilização adequada de um instrumento que é reconhecidamente, naspalavras de MENEZES CORDEIRO, um remédio de equidade de concretização difícil e de saída imprevisível: cfr., do autor,

Da Alteração das Circunstâncias, in Separata dos Estudos em Homenagem do Prof. Paulo Cunha, Lisboa, (1987), passim (44).

25Sobre o art. 20.º, cfr. infra 3.º 13. IV-VI.

26Acerca destas duas técnicas possíveis para conceber o dever de lançamento de oferta, cfr. JOSÉ NUNESPEREIRA, O regime jurídico das ofertas públicas de aquisição no Código do Mercado de Valores Mobiliários: principais desenvolvimentos e

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mais improváveis ofertas concorrentes em relação às ofertas lançadas em cumprimentodo art. 187.º. De facto, uma vez que quem lança uma oferta forçada pretende, comesse gesto, legitimar a posteriori o domínio já atingido, torna-se remota a eventualidadede concorrência de ofertas, nomeadamente atento o facto de o oferente concorrentedever apresentar contrapartida mais favorável que o inicial.

IV.O abandono da técnica das ofertas prévias fornece novos dados sobre a estrutura dasituação jurídica subjacente à estatuição do art. 187.º, obrigando a repensar de raiz a suaqualificação. Em particular, interessará agora tomar posição quanto à recondução davinculação de lançamento de oferta pública de aquisição como ónus ou como dever29.

Recuando um pouco o plano de análise, o ponto mostra implicações com asdificuldades de delimitação notadas, em geral, em torno da figura do ónus30. A suadistinção em relação ao dever é, porém, clara, atendendo a três critérios, que cumpresumariamente relembrar.

Segundo um critério estrutural, o ónus constitui a situação jurídica em que se encontraum sujeito que deve adoptar certo comportamento para evitar consequênciasdesfavoráveis ou para lograr o exercício de um poder: o ónus tem, assim, comoobjecto um acto necessário para, enquanto que o dever toma como referência o actodevido31.

De outro lado, e consequentemente, em atenção aos efeitos atribuídos ao não cumprimento,considera-se que o ónus confere uma margem de liberdade ao sujeito a ele adstrito,não sendo susceptível de cumprimento coercivo32. Assim, a conduta que é objecto doónus, a não ser observada, não resulta num ilícito.

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aquisição, e não um dever de aquisição. Com efeito, o dever considera-se cumpridose tiver havido lançamento de oferta, ainda que não se registem aceitações pelosdestinatários. Nem pode falar-se, tão-pouco, em obrigação de meios para conduzirao maior número de adesões possíveis. Ao oferente basta cumprir o processo dedivulgação da oferta e observar o esquema processual previsto em geral por lei. Frise-se, todavia, que o oferente deve conduzir o processo até final, valendo com particularacuidade neste domínio a regra da irrevogabilidade das ofertas, plasmada no art.130.º, n.º 1. Além disso, o dever de lançamento da oferta coloca o oferente numasituação técnica de sujeição quanto à aquisição dos valores dos destinatários querespondam positivamente no período da oferta. Nessa medida, embora não seconfundam, o dever de lançamento de uma oferta geral de aquisição envolve umasujeição em relação à aquisição dos destinatários aceitantes.

Embora sedimentada, deve assinalar-se que a terminologia empregue – ao implicar alocução oferta subsequente – não é, igualmente, imune a reparos. Importadesignadamente esclarecer que, de harmonia com a técnica nacional de imputação dedireitos de voto vertida no art. 20.º, a ultrapassagem das fasquias relevantes pode nãoimplicar directamente uma aquisição. Assim, designadamente, se existe, válida eeficazmente constituído na esfera jurídica de um sócio, um direito à aquisição deacções em montante significativo, tal pode determinar a imputação dos direitos devoto nas fasquias relevantes antes mesmo da aquisição projectada se consumar, deacordo com oart. 20.º, n.º 1 e), não deixando por isso de se qualificar a oferta como subsequente27.

III.Outra decorrência da adopção da técnica das ofertas subsequentes prende-se como facto de uma oferta lançada com o intuito de adquirir uma fatia relevante dosdireitos de voto ser qualificada como oferta voluntária. Todavia, como veremos mais àfrente, há um estímulo importante para que mesmos estas ofertas sejam lançadas nostermos em que o seriam caso surgissem em cumprimento do art. 187º28.

O carácter subsequente do dever conduz igualmente a decorrências relevantes para oscasos em que a sociedade visada detém, por seu turno, o domínio de outra (s)sociedade (s) aberta (s). Nesse caso, o lançamento de ofertas deve ser simultâneo emrelação a todas estas, nos prazos legalmente prescritos.

Finalmente, no plano do direito em acção, à partida esta configuração do dever torna

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inovações, cit., 93-94.

27A articulação deste traço do regime com a excepção do dever assente na prova negativa do domínio revela,porém, consequências importantes, que adiante serão referidas: cfr. infra 3.º 10. IV.

28Cfr. infra, 3.º 11. 3.

29Na doutrina italiana, é patente uma divisão entre os autores a considerar a oferta preventiva como ónus oucomo dever: cfr. sobre este ponto GIANLUCA ROMAGNOLI, Le Offerte Pubbliche d’Acquisto Obbligatorie, Padova,(1996), 143-171; Id., Omissione di OPA Obbligatoria e Violazione della Parità di Trattamento degli Oblati: Aspetti Problematici delleConseguenze, in Rivista del Diritto Commerciale, (Jul./ Out. 1997), 621-625.

30Em Itália, as modernas construções em torno da figura do ónus surgem em reacção à tese de BRUNETTI, deinspiração neo-kantiana, relativa à autonomização do designado dever livre, pela sua ambivalência. Cfr.nomeadamente OBERDAN TOMMASO SCOZZAFAVA, Onere (nozione), in EdD vol. XXX, Milano, (1980),99-113; PAOLA GELATO, Onere, in Digesto delle Discipline Privatistiche. Sezione Civile, XII, Torino, (1995), 59-65.Entre nós, pode confrontar-se OLIVEIRA ASCENSÃO, Teoria Geral do Direito Civil, Vol. IV, (1993), 100-101;MENEZES CORDEIRO, Tratado de Direito Civil Português, cit., 144-145; CARVALHO FERNANDES, Teoria Geraldo Direito Civil2, II, Lisboa, (1996), 512-514.

31OBERDAN TOMMASO SCOZZAFAVA, Onere (nozione), cit., 108-111; ANTONIO PALERMO, Onere, inNovissimo Digesto Italiano, vol. XI, 915-920 (916).

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jurídica34. Por detrás deste dever não existe prestação – daí que se reconheça até umacerta impropriedade terminológica na designação de oferta “obrigatória”, corrente naprática e perfilhada pela lei.

Esta constataçãomostra ligações profundas com a técnica normativa empregue, em geral, nodireito dos valores mobiliários, que assenta preferencialmente na previsão de protecçõesreflexas, e não no reconhecimento de direitos subjectivos na esfera jurídica dos investidores.

Sendo uma posição jurídica absoluta, é entendimento dominante que o cumprimentodo dever de lançamento de OPA não possa, por isso, ser exigido coactivamente pelosdestinatários da oferta35. Não obstante, como já referido, o incumprimento deste dever égerador de responsabilidade civil, de acordo com o art. 193.º do Código.

4. O âmbito objectivo: os valores mobiliários visados pela oferta

I. O lançamento de oferta pública de aquisição, quando surja em cumprimento dalei, incide sobre acções e outros valores mobiliários que dêem direito à subscrição ou àaquisição de acções36 emitidas por sociedades que, nos termos do art. 13.º, sequalificam como sociedades com o capital aberto ao investimento do público.

Neste sentido, é mais rigoroso denominar tais valores como valores mobiliários visados pelaoferta do que designar a respectiva emitente como sociedade visada, expressõespopularizadas na prática e que o novo Código mantém37.

À margem da ponderação entre a comodidade e o rigor linguísticos e voltando àsubstância, o certo é que pode haver ofertas lançadas sobre valores mobiliáriosemitidos por sociedades fechadas. E podem, bem assim, aparecer ofertas lançadassobre valores mobiliários que, embora emitidos por sociedades abertas, não

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Aplicando, por fim, o critério dos interesses tutelados, dir-se-á que o ónus é autonomizadopor lhe subjazerem interesses do próprio sujeito sobre o qual incide o ónus, em cujadisponibilidade está a observância, ou não, da conduta em causa – falando-se, aí, poresse motivo, de uma forma de auto-responsabilidade33; o dever, por seu turno, visasalvaguardar interesses alheios.

V. Este punhado de indicações era importante para chegar à conclusão que o dever delançamento de oferta de aquisição representa um dever jurídico em sentido técnico, isto é, um dever deapresentação de uma proposta de aquisição de valores mobiliários ao público, atravésde um processo prescrito por lei.

Não se trata de um ónus, uma vez que o lançamento de oferta representa um actodevido por lei para a legitimação, a posteriori, da superação da fasquia relevante dedireitos de voto detidos em sociedade aberta. Admite-se que a conclusão fosse menossegura perante ofertas prévias, mas deve julgar-se assente em relação a ofertassubsequentes. Em reforço desta conclusão, veja-se que o não cumprimento do devernão conduz à invalidade das aquisições, embora tolha parte dos direitos inerentes aosvalores mobiliários adquiridos sem posterior legitimação das ofertas, nos termos do art.192.º.

As consequências decorrentes do não cumprimento do dever, por seu lado, indiciamclaramente a ilicitude desse facto. Assim, repare-se que o incumprimento do devergera responsabilidade contra-ordenacional, volvidos 30 dias sobre a ocorrência dofacto constitutivo do dever sem publicação do anúncio preliminar, como decorre daarticulação entre os arts. 393.º, n.º 2 h) e 388.º, n.º 3. Há, ainda, consequênciasindemnizatórias decorrentes do incumprimento, nos termos do art. 193.º. O mesmoresultado conclusivo é obtido a partir da consideração da amputação dos direitosinerentes às acções cuja aquisição determinou a constituição do dever, conformedisposto no já mencionado art. 192.º.

De outro lado, a oferta obrigatória visa proteger os interesses dos accionistasminoritários e dos titulares de valores mobiliários que dêem direito à subscrição ou àaquisição de acções visadas – e não, evidentemente, o interesse do próprio oferente.

Adiantando um passo mais, refira-se igualmente que a estatuição do art. 187.ºconfigura uma situação jurídica passiva absoluta, que não assenta numa relação

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32ANTONIO PALERMO, Onere, cit., 917.

33ANTONIO PALERMO, Onere, cit., 916; OBERDAN TOMMASO SCOZZAFAVA, Onere (nozione), cit., 102,108; PAOLA GELATO, Onere, cit., 60.

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Cfr., em geral, MENEZES CORDEIRO, Tratado de Direito Civil Português, cit., 145-146; CARVALHOFERNANDES, Teoria Geral do Direito Civil2, II, cit., 501-502.

35ROBERTO WEIGMANN, Le offerte pubbliche di acquisto, in COLOMBO/ PORTALE (dir.), Trattato delle Società perAzioni, vol. 10, t. II, (1993), Torino, 564-565; GIANLUCA ROMAGNOLI, Le Offerte Pubbliche d’AcquistoObbligatorie, cit., 143; Id., Omissione di OPA Obbligatoria e Violazione della Parità di Trattamento degli Oblati: Aspetti Problematicidelle Conseguenze, in Rivista del Diritto Commerciale, cit., 617-659.

36A referência à distinção entre os valores mobiliários que conferem o direito de aquisição e os valoresmobiliários conferindo direito de subscrição é justificada, dada a diferença conceptual existente entre asubscrição e a aquisição. Sobre estes conceitos, permito-me reenviar para o meu Emissão e subscrição de valoresmobiliários, in AA.VV., Direito dos Valores Mobiliários, Lisboa (1997), 210-211, 235-237.

37A observação vale sobretudo ante a circunstância de as ofertas (voluntárias) de aquisição de valores mobiliáriosdesligados do controlo da visada ser agora directamente admitida: cfr. art. 173.º, n.º 3.

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accionista fragmentada41.

Uma solução próxima é a decorrente do ordenamento belga, que recorta o dever porreferência aos valores mobiliários emitidos por société faisant ou avaint fait appel public à l’épargne42.

III. Repare-se também, na delimitação do objecto necessário da oferta, as ofertasobrigatórias incidem não apenas sobre acções – quer confiram, ou não, o direito devoto – mas também sobre valores mobiliários que dêem direito à sua aquisição ousubscrição emitidas por sociedades abertas.

Este aspecto vem traduzir, em termos substanciais, uma extensão do princípio deigualdade de tratamento aos titulares destes valores mobiliários43, dentro de uma linhaque, embora com consequências menos arrojadas, o nosso sistema jurídico jáconhecia através do art. 368.º, n.º 3, CSC. Lembre-se, todavia, que juridicamente aigualdade não equivale a uniformidade, havendo que ter em conta a categoria dosvalores mobiliários em causa (cfr., neste sentido, o art. 15.º), sendo nomeadamentejustificada a existência de diferentes contrapartidas oferecidas aos sócios e aos titularesde outros valores mobiliários com direito de aquisição ou de subscrição de acções dasociedade aberta.

Além disso, importa frisar que a delimitação do âmbito do dever, nestes termos, eraimportante, na medida em que foi recentemente aprovado um regime dos warrantsautónomos, valores mobiliários que podem ter como activo subjacente quaisquervalores mobiliários admitidos à negociação em bolsa (art. 3.º do DL n.º 172/99, de20 de Maio). Ora, nem todos os warrants autónomos conferindo o direito de aquisição deacções da visada são objecto de OPA obrigatória: apenas o são quando os warrantsautónomos são emitidos pela própria sociedade visada (art. 187.º, n.º 1). Em relação aosdemais, não há uma forçosa implicação no domínio, visto que o direito portuguêsacolhe a sensata regra segundo a qual os warrants sobre valores mobiliários alheiosconferem sempre a faculdade alternativa de cumprimento através de liquidaçãofinanceira (art. 13.º, n.º 2, do DL n.º 172/99, de 20 de Maio)44.

Assim, o universo de valores mobiliários que conferem o direito à aquisição ou

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incorporem posições jurídicas relacionadas com o direito de voto (cfr. art. 173.º, n.º3). Ambas, todavia, recebem a qualificação de ofertas voluntárias, não lhes sendoconsequentemente aplicável o regime constante dos arts. 187.º e seguintes38.

II. A sociedade com o capital aberto ao investimento do público representa, assim, areferência central para demarcação do âmbito de protecção instituído pelo dever delançamento de OPA.

Em confronto com a maioria dos ordenamentos jurídicos próximos, neste pontorevela-se uma singularidade do direito português, presente no novo diploma e emtodas as normas correspondentes anteriores desde o início de vigência do Código dasSociedades Comerciais, na medida em que o dever de lançamento de oferta não existeapenas para as sociedades com acções admitidas em bolsa, embora também valha paraestas39.

Considera-se a opção legislativa nacional compreensível à luz dos fundamentoscorrentemente aduzidos para alicerçar a existência de uma oferta obrigatória. Comefeito, a preocupação de tratamento igual dos investidores e da partilha equitativa doprémio de controlo40 colhe justificação não apenas para as sociedades “cotadas”, maspara todas que registem uma dispersão das acções representativas do capital social emtorno das quais se possa gerar um mercado de controlo. Nesta óptica, a referidadeterminação do âmbito subjectivo do dever procura que este mercado de controlo,conquanto que não revestindo a natureza de mercado regulamentado, funcioneregularmente, sem posições de favor de uns investidores em relação a outros. Estademarcação do âmbito da oferta é, assim, coerente com a técnica legislativa do novoCódigo, que autonomizou um corpo de regras dirigidas às sociedades abertas, tendoem vista adequar o regime societário geral – aplicável de princípio indistintamente àgrande e à pequena empresa – às especificidades das sociedades com uma estrutura

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38Cfr. porém as observações constantes infra: 2.º 5. III.

39As sociedades emitentes de acções negociadas em mercado regulamentado são directamente qualificadas comosociedades abertas, no art. 13.º, n.º 1 c).

40Cfr. infra, 2.º 9.

41Note-se, porém, que a circunstância de a sociedade aberta ser, ou não, emitente de valores mobiliáriosnegociados em mercado regulamentado tem consequências ao nível do regime, que se detectam napossibilidade de eliminação estatutária do limite mais baixo de obrigatoriedade, o que é apenas permitido emrelação às sociedades abertas sem acções negociadas em mercado regulamentado (art. 187.º, n.º 4). Cfr. infra,2.º, 8.

42O lugar central do conceito de société faisant ou avaint fait appel public à l’épargne no direito belga assenta no art. 15.º da Leide 2 de Março de 1989. Por delegação do 2 do mesmo diploma, a concretização deste conceito de sociedade aberta– actual ou passada – cabe a diploma emanado do Rei. Ora, é precisamente no art. 1.º do Decreto Real de 8 de

Novembro de 1989 que figura uma definição de société faisant ou avaint fait appel public à l’épargne como sendo: as sociedadescujos títulos estão admitidos ao mercado de cotações oficial ou negociados em vendas públicas através de bolsa defundos públicos e de troca do Reino; e outras sociedades com valores distribuídos pelo público.

43Antecipa-se igualmente neste ponto um aspecto ligado ao fundamento do dever, que será mais adianteexplicitado: cfr. infra, 2.º 9.

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Código revogado. Nesse tipo de situações, não poderia deixar de se considerar comodecisiva a percentagem dos votos efectivos, concluindo-se pela verificação da previsãoconstitutiva da obrigatoriedade de lançamento de oferta de aquisição.

Estas dificuldades aplicativas tornam vantajosa a nova solução, acolhida pelo Códigodos Valores Mobiliários.

V. Assim descrito, o perímetro aplicativo das ofertas obrigatórias assenta de perto emregras a impor transparência no apuramento exacto da posição de controlo sobre asociedade visada49.

A este propósito, merece realizar um exercício de comparação com o Código doMercado de Valores Mobiliários, agora revogado. À luz do direito anterior, nesteplano as regras informativas sobre meios parassociais de concertação eraminsuficientes, o que constituía uma falha séria do sistema. É certo que o art. 547.º doCódigo de 1991 obrigava ao disclosure de diversos tipos de acordos parassociais na notainformativa da oferta, fazendo o art. 553.º correlativa exigência em relação aorelatório da sociedade visada; mas a questão inspirava cuidados em relação à divulgaçãodestes meios de concertação antes de se proceder ao respectivo lançamento ou na faltadeste– momentos que, como se compreende, se afiguram como mais relevantes do pontode vista da fiscalização relativa ao cumprimento do dever de lançamento de oferta.

Além disso, apesar de o regime das OPA obrigatórias à luz do Código de 1991 seaplicar a todas as sociedades de subscrição pública, os preceitos relativos àcomunicação de participações qualificadas apenas se dirigiam às sociedades com acçõesactualmente cotadas (arts. 345.º e 346.º), o que não era senão uma parcela dassociedades qualificadas no art. 3.º, n.º 1. j) do Código do Mercado de ValoresMobiliários. Ficavam de fora do âmbito de aplicação de tais regras informativas associedades que se constituíram por apelo à subscrição pública, as sociedades queaumentaram o seu capital social por oferta pública de subscrição, as sociedades queestiveram cotadas, mas que actualmente não estão, bem como as sociedades quepromoveram vendas em bolsa para efeitos do art. 366.º50.

Procurando colmatar as imperfeições do anterior regime, no novo Código,verificam-se importantes alterações a servir a transparência da propriedade accionista

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subscrição de acções visados necessariamente pela oferta inclui: os warrants autónomosemitidos pela própria sociedade visada conferindo o direito de aquisição de acçõesrepresentativas do seu capital social; as obrigações convertíveis em acções; e asobrigações com warrant.

IV. Note-se, porém, que os valores mobiliários mencionados não relevam para ocômputo da posição accionista, na medida em que o art. 20.º do Código não fazrelevar os direitos de voto que, no futuro, possam vir a ser adquiridos em virtude doexercício de direitos de subscrição ou de aquisição de acções que lhes estãosubjacentes45.

O direito pregresso, optando por solução contrária, expunha-se a acesas críticas46. Defacto, o Código de 1991 previa que os direitos de voto potenciais respeitantes a obrigaçõesconvertíveis ou a obrigações com warrant fossem também contados como do oferente(art. 530.º, n.º 3)47. O preceito levantava profundas dificuldades aplicativas48, ao nãoresolver a questão do universo dos direitos de voto a ponderar. Por um lado, não eralogicamente aceitável que os votos potenciais apenas fossem contados no numerador enão no denominador – na medida em que tal equivaleria a contar duplamente direitosde voto. Porém, se valesse como denominador a soma do direitos efectivos e dosdireitos potenciais, o preceito deveria ser interpretado cautelosamente. Com efeito,poderiam gerar-se circunstâncias em que existia tomada de controlo efectiva (isto é, amaioria dos votos efectivos) mas sem tomada de controlo ex vi do art. 530.º, n.º 2 do

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Sobre o tema, pode consultar-se o meu Warrants Autónomos - Um novo tipo de valor mobiliário, texto disponível napágina de Direito dos Valores Mobiliários alojada no sítio da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa– <http://www.fd.ul.pt/licenciatura/dvm.htm>.

45Não pode, todavia, afirmar-se genericamente que o legislador apenas considera os direitos de voto efectivosno cômputo da posição do potencial oferente. De facto, toda a técnica que subjaz ao art.20.º supõe um juízode influência possível – ou perigo de influência – no exercício dos direitos de voto, o que designadamente mostraconcretização nos contratos preliminares de aquisição, julgados relevantes nos termos da alínea e) do n.º 1 doreferido preceito. Poderia, assim, parecer contraditória a solução legal que, a um passo, nega relevância aosvalores mobiliários que confiram direito a adquirir acções e, no mesmo Código, atribui significado aosdireitos de voto respeitantes a valores mobiliários que sejam objecto de um direito de aquisição de basecontratual. Julga-se, de todo o modo, que se trata de uma discrepância compreensível se tivermos em vista asdiferenças de raiz entre as duas situações. Não haverá de princípio, em primeiro lugar, possibilidade deantecipação do prazo de exercício do direito potestativo de aquisição em valores mobiliários deste tipo; poroutro lado, inexistirão restrições de acesso aos valores mobiliários que atribuam direito a aquisição, comobens aptos à circulação; por fim, as suas condições de exercício serão, em tese, de possível conhecimento porparte do mercado. Estas são características distintivas tendenciais que justificam a mencionada diversidade detratamento legislativo. A não serem verificadas, poderá em concreto impor-se uma leitura extensiva do art.20.º.

46Em tom igualmente crítico: CARLOS OSÓRIO DE CASTRO, Os Casos de Obrigatoriedade do Lançamento de umaOferta Pública de Aquisição, cit., 42-43.

47Cfr. um extracto de um parecer da CMVM sobre o assunto, publicado no Relatório Anual sobre a Situação Geral dos

Mercados de Valores Mobiliários, (1996), 177-178.

48O Preâmbulo do diploma que aprova o Código refere-se expressamente, quanto a este ponto, às “perplexidadesque apresentava o regime anterior” (cfr. n.º 12).

49A propósito das regras de transparência neste domínio, cf. H.-D. ASSMANN, Verhaltensregeln für freiwilligeöffentliche Übernahmeangebote. Der Übernahmekodex der Börsensachverständigenkommission, AG n.º 12 (1995), 563-575 (565-

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declaração de aceitação da oferta, o accionista, mercê das regras de rateio, pode lograrapenas alienar parte dos valores mobiliários que detém ou mesmo, no limite, podeacabar por não conseguir alienar nenhum título.

A censura às ofertas parciais funda-se também na circunstância de estas poderemimplicar distorções à liberdade de aceitação por parte dos destinatários. De facto, asofertas parciais podem, em certos casos, colocar os accionistas perante uma indevidapressão para vender53. Sabe-se que o lançamento de uma oferta, por si, constitui emrelação aos destinatários um factor de pressão superior ao que é normal estarassociado a uma vulgar proposta contratual, na medida em que poderá pesar o receiode os accionistas que rejeitarem a oferta se quedarem com um pacote minoritário deacções, o que provoca uma erosão no seu valor54. No entanto, preocupaçõesparticulares suscitam os casos das ofertas estruturalmente concebidas para forçar aaceitação.

O exemplo mais claro depara-se nas ofertas geminadas – que a literatura norte-americanadesigna de front-ended loaded two-tier bids ou simplesmente de two-tier bids. Trata-se deesquemas de aquisição de domínio envolvendo uma sucessão de ofertas apresentadaspelo mesmo oferente, estruturalmente moldadas para forçar a aceitação da ofertainicial, em virtude de uma diferença negativa no preço da segunda oferta. Éentendido que este tipo de ofertas condiciona a vontade do accionista ao daremorigem a um síndroma do dilema do prisioneiro55. Perante a possibilidade de obtenção dodomínio accionista consumada através de duas ofertas sucessivas, a primeira das quaisparcial, na falta de mecanismos de racionalização colectiva das decisões, os accionistas

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nas sociedades abertas.

De um lado, os deveres de comunicação de participações qualificadas passam a incidirsobre todas as sociedades abertas (arts. 16.º a 18.º), o que assegura a simetria entre oâmbito destes deveres informativos e o âmbito da obrigatoriedade da oferta. Frise-setambém que foram criados novas fasquias a determinar deveres de informação para associedades abertas emitentes de acções ou valores mobiliários que dêem direito à suasubscrição ou aquisição admitidas à negociação em mercado regulamentado, agoraestabelecidas nos 2 % e 5 % (art. 16.º, n.º 2).

De outro lado, foram impostos deveres de comunicação e divulgação de acordosparassociais, nos termos do art. 19.º do Código, o que resulta na prática em largamaximização da transparência no cômputo da posição de controlo sobre a sociedadevisada51.

5. Os princípios da generalidade e da universalidade da oferta

I. De acordo com o art. 173.º do Código, qualquer oferta pública, voluntária ouobrigatória, deve dirigir-se a todos os titulares dos valores mobiliários que dela sãoobjecto. Este princípio da generalidade da oferta (all holders rule) constitui uma decorrência docarácter público da oferta, vedando qualquer discriminação entre os potenciaisdestinatários. Além disso, obriga, no caso de a oferta ter em vista apenas parte dosvalores mobiliários emitidos pela sociedade visada, a proceder a rateio, em caso deexcesso de declarações de aceitação relativamente aos valores pretendidos pelo oferente(art. 112.º, n.º 2)52.

Esta circunstância demonstra claramente que uma oferta parcial não assegura a todosos accionistas a possibilidade de saírem da sociedade. Mesmo manifestando a sua

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566).

50Para uma análise mais desenvolvida, permito-me reenviar para o meu Parassocialidade e Transmissão de ValoresMobiliários, dissertação de mestrado apresentada na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, (1996,mas em curso de publicação), 386-392.

51Tem interesse mencionar que já antes da entrada em vigor do Código, havia uma disposição recomendatóriade sentido próximo nas Recomendações da CMVM sobre o Governo das Sociedades Cotadas (Outubro 1999) (recomendaçãon.º 5).

52Parece, com efeito, mais adequado propor a antinomia terminológica oferta parcial/oferta universal, namedida em que qualquer oferta é dirigida a todos os titulares: qualquer oferta é, pois, segundo o art. 112.º,

n.º 2, uma oferta geral, o que é igualmente uma decorrência do princípio da igualdade de tratamento noplano mobiliário. Apesar disto, deve reparar-se que o legislador refere-se às ofertas gerais como sinónimo deofertas universais: cfr. por exemplo o art. 187.º, n.º 3 b) e o art. 194.º, n.º 1.

53Gower’s Principles of Modern Company Law6, London, (1997), 795-796.

54LUCIEN ARYE BEBCHUCK, The Pressure to Tender: an Analysis and a Proposed Remedy, Delaware Journal of Corporate Law,Vol.12 (1987), 911-949.

55Uma clara descrição do dilema do prisioneiro, usualmente tratado no âmbito da teoria dos jogos, podeencontrar-se, numa aplicação ensaiada a propósito da conversão de acções com voto em acções preferenciaissem voto, em CÁNDIDO PAZ-ARES, ¿Dividendos A Cambio de Votos?, Madrid, (1996), 94-122.

56FRANK H. EASTERBROOK/ DANIEL FISCHEL, The Economic Structure of Corporate Law, Cambridge/ London,(1991), 179-181, 208; ROBERT CLARK, Corporate Law, (1986), 467-471; ROBERTA ROMANO, A Guide toTakeovers: Theory, Evidence and Regulation, in KLAUS HOPT/ EDDY WYMEERSCH ed., European Takeovers . Law andPractice, London et al., (1992), 38-39; JONATHAN R. MACEY, Takeovers in the United States: a Law and EconomicsPerspective, cit., 33; BRIAN R. CHEFFINS, Company Law. Theory, Structure and Operation, Oxford, (1998), 268-274.Adiantando algo que mais à frente será examinado, diga-se desde já que, à luz do direito nacional, o receioaccionista é fundado se entre a front stage bid e a back stage bid medear mais de um semestre; caso contrário, oart. 188.º, n.º 1 a), obrigaria sempre a que o preço a oferecer na segunda oferta fosse pelo menos idêntico aooferecido na primeira oferta (cfr. infra, 2.º 9.).

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significaria que a alguns sócios foi dada a possibilidade de alienarem totalmente asposições accionistas detidas, ao passo que outros veriam essa faculdade fortementelimitada58.

Exemplos semelhantes podem ser compulsados nos sistemas jurídicos continentais.Nomeadamente, deve referir-se que a Bélgica desde 1989 impõe que a ofertaobrigatória seja lançada para a totalidade dos valores mobiliários emitidos pelasociedade visada59. Por seu turno, também o ordenamento francês abandonou em1992 as ofertas parciais60.

Nesta linha, a última versão publicada da Proposta de Décima Terceira Directivacomunitária, mesmo na sua tónica minimalista e compromissória61, é hostil às ofertasparciais, embora em formulação moderada, ao dispor que a oferta obrigatória deveser lançada em relação à totalidade ou à maior parte dos títulos62.

Em Portugal, a ponderação sobre a protecção dispensada pelas ofertas parciais teveimplicações num episódio célebre. Recorde-se que a oferta pública lançada em 1994pelo Banco Comercial Português para a aquisição de 40% das acções do BancoPortuguês do Atlântico contou com uma oposição ministerial, baseadanomeadamente na circunstância de que apenas uma oferta geral protegeriaadequadamente os accionistas da sociedade visada63.

III. Estas preocupações foram corporizadas em algumas análises de reforma legislativatornadas públicas na fase que antecedeu a aprovação do novo diploma64. Emacolhimento destas ideias, o Código dos Valores Mobiliários consagrou, no art. 187.º,o princípio da universalidade da oferta (equal opportunity rule), ao dispor que a ofertaobrigatória deve abranger todas acções emitidas pela sociedade visada e os valoresmobiliários que dêem direito à sua aquisição ou subscrição65.

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podem reagir sob influência do receio que a segunda oferta seja lançada a um preçosubstancialmente inferior que a oferta dirigida inicialmente56.

Deste ponto de vista, é severamente questionada a idoneidade das ofertas parciaiscomo meio de protecção dos minoritários, sendo a OPA geral a que tutela mais eficientemente oprincípio de igualdade accionista57.

II. As reacções legislativas podem documentar esta apreciação negativa das ofertasparciais.

A posição mais adversa às ofertas parciais provém do Reino Unido. Aí, segundo a Rule36 do City Code, faz-se depender o lançamento de oferta parcial do consentimento doCity Panel. A autorização é usualmente sujeita às seguintes condições: o oferente nãopode adquirir títulos durante a oferta ou nos doze meses posteriores ao seu desfecho ecarece de aprovação por mais de 50% dos votos não imputáveis ao oferente. Além disso,o Panel não reconhece a possibilidade de lançamento de ofertas parciais se houveraquisições em quantidades importantes durante os últimos doze meses, pois tal

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57MARIO STELLA RICHTER Jr., “Trasferimento del Controllo” e Rapporti tra Soci, Milano, (1996), 59-64; MARCOPAGANO/ FAUSTO PANUNZI/ LUIGI ZINGALES, Osservazioni sulla riforma della disciplina dell’opa, degli obblighi delpossesso azionario e dei limiti agli incroci azionari, in Rivista delle Società (1998), 161; MARCO MARTINI, The New Italian Lawon Takeover Bids, cit., 10.

58PETER LEE, Takeovers – The United Kingdom Experience, cit., 200.

59EDDY WYMEERSCH, Problems of the Regulation of Takeover Bids in Western Europe: A Comparative Survey, in KLAUSHOPT/ EDDY WYMEERSCH ed., European Takeovers . Law and Practice, cit., 105-110 (108-109).

60ALAIN VIANDIER, OPA, OPE, Garantie de Cours, Retrait, OPV, Paris, (1993), 121-122.

61O texto comunitário procurou um compromisso entre os sistemas citados no texto e os ordenamentosespanhol e italiano, que mantêm previsões de OPAs obrigatórias parciais. Em Espanha e Itália, é sobretudoutilizado o argumento de que a oferta universal dificulta a transição de controlo em sociedades abertas,dificultando dessa forma o funcionamento do mercado de controlo accionista, em termos de eficiênciaalocativa (cfr. a este propósito JAVIER GARCÍA DE ENTERRÍA, La Opa Obligatoria, Madrid, (1996), 270-280,289-290; ASSOCIAZIONE DISIANO PREITE, Rapporto sulla Società Aperta, Bologna, (1997), 135-137; LUCAPICONE, Le Offerte Pubbliche di Acquisto, cit., 185-186). É claro que este formulação crítica, em última análise,não se dirige à decisão legislativa de optar por ofertas universais em detrimento de ofertas parciais,prendendo-se antes com o problema de fundo ligado à ponderação de interesses que podem conduzir, ounão, à estatuição de um dever de lançamento de oferta pública de aquisição. Ora, parece que procurarresponder às críticas dirigidas ao sistema de obrigatoriedade de oferta através da previsão de ofertas parciaisimplica a ambição de lograr um compromisso inatingível entre o modelo da oferta exclusivamente voluntária eo modelo da oferta obrigatória, que corre o risco sério de ser considerado contraditório e que pode colher osaspectos negativos de ambos os sistemas.

62O art. 10.º da Proposta alterada de 13.ª Directiva em matéria de ofertas públicas de aquisição (97/C 378/09,

in JO 13.12.97) prevê que a oferta não possa ser lançada para menos de 70% dos valores mobiliários,salvaguardando autorização em contrário pela autoridade de fiscalização. Cfr. a propósito FRANÇOISEBLANQUET, Les Orientations Communautaires, cit., 23. Trata-se, todavia, de um ponto a ser submetido a revisãona próxima Posição Comum do Conselho sobre a matéria. Cfr. COB, Présentation de la Treizième Proposition deDirective, in Bulletin Mensuel nº 338, 25-29 (26).

63Idêntica objecção não foi, como se sabe, formulada aquando do lançamento da oferta geral lançada pelomesmo oferente com a Companhia de Seguros Império, em 1995, sobre a mesma sociedade visada, queacabou por ter êxito. Escrevendo na altura, e sustentando já então, nomeadamente com base neste episódio, aabolição das ofertas parciais: FERNANDO DA COSTA LIMA, A Experiência das OPA em Portugal, cit., 73.

64FERNANDO DA COSTA LIMA, A Experiência das OPA em Portugal, cit., 73; Id., Intervenção, in MINISTÉRIO DASFINANÇAS/ COMISSÃO DO MERCADO DE VALORES MOBILIÁRIOS, Actas das Reuniões do Conselho Nacionaldo Mercado de Valores Mobiliários, (1998), 57, 171; OSÓRIO DE CASTRO, Intervenção, in Actas das Reuniões do ConselhoNacional do Mercado de Valores Mobiliários, cit., 170.

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aliás, tem reflexos na determinação das consequências do incumprimento do dever,assim como previstas no art. 192.º, n.º 3.

II. Não pode esquecer-se que, na técnica do Código, o que é relevante para o funcio-namento do instituto das ofertas obrigatórias é, nos termos do art. 20.º, a detenção dedireitos de voto, e não a aquisição de valores mobiliários.

Esta dependência da técnica de imputação de direitos de voto conduz a que possa aultrapassagem ocorrer involuntariamente, nomeadamente através de aquisição porherança ou legado.

Também pode haver superação da fasquia sem que o potencial oferente tenhaefectuado, naquele momento, qualquer aquisição – o que acontece, por exemplo,quando há redução do universo dos direitos de voto. É o caso em que um sócio quedetém 49% dos direitos de voto se depara com uma aquisição de acções próprias quefaz ultrapassar a fasquia dos 50% ou se depara com uma inibição de direitos de voto(nomeadamente nos termos do art. 192.º).

III. A circunstância de o dever se constituir sobre as pessoas que são titulares departicipações qualificadas sobre sociedades abertas mostra implicações dogmáticas quedevem, pelo menos, merecer breve aceno.

A verdade é que o dever se constitui, na maioria dos casos, perante um sócio, o qual éforçado a dirigir uma oferta sobretudo a outros sócios. Mas nem sempre será assim:para efeitos do art. 187.º, o que releva é a imputação de direitos de voto, feita emarticulação com o art. 20.º. Sendo assim, no limite, o dever pode constituir-se perante quemnem sequer é, tecnicamente, sócio da sociedade emitente dos valores visados pela oferta, pornão se exigir no art. 20.º a titularidade directa de acções. O objecto da oferta, por seulado, abrange não só acções emitidas pela visada mas também valores mobiliários queconferem o direito à sua aquisição ou subscrição.

Assim, a lógica subjacente à estatuição do art. 187.º não se insere numa relaçãojurídica, ao caracterizar-se como situação jurídica absoluta, nem tão-pouco operaatravés da constituição de um dever exclusivamente entre sócios.

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A consagração do princípio de universalidade das ofertas obrigatórias não implicou,todavia, a proibição das ofertas parciais voluntárias, sendo a sua admissibilidadealicerçada em geral no princípio de liberdade de lançamento de ofertas.

No entanto, a verdade é que a derrogação prevista no art. 189.º, n.º 1, alínea a)apenas se aplica se for observado o regime de contrapartida mínima e se a oferta forgeral. Em termos práticos, isto significa que quem lançar uma oferta parcial até 50,1%dos direitos de voto da visada, obtendo o máximo pretendido, deve lançar logo aseguir uma oferta universal para legitimar a ultrapassagem do limiar previsto no art.187.º66.

Além disso, um forte argumento para desencorajar as oferta parciais prende-se comofacto de uma oferta que incida sobre menos de um terço dos valores mobiliários darespectiva categoria emitidos pela sociedade visada não se deparar com as limitaçõesaos poderes da administração fixados no art. 182.º, n.º 1, tendo nessa circunstância oórgão de administração da visada campo aberto para adoptar medidas que possam,inclusivamente, comprometer o êxito da oferta67.

De todo o modo, a menor densidade normativa do instituto das OPAs funda oamparo dos instrumentos gerais perante ofertas voluntárias parciais. Em particular,ganha evidência o princípio de igualdade de tratamento, imposto em geral para asofertas públicas, que em ofertas parciais para a aquisição de fatia relevante do domíniopode forçar a uma aplicação do art. 188.º.

6. O âmbito subjectivo: os sujeitos do dever

I. O dever de lançamento de OPA constitui-se na esfera jurídica de quem ultrapasseuma das fasquias críticas descritas no n.º 1 do art.187.º – mesmo que tal abarque maisque uma pessoa.

Se existe uma imputação plurissubjectiva dos direitos de voto, para efeitos do art. 20.º,o dever abrange todos os sujeitos a quem é imputada a participação qualificada– embora o lançamento por apenas um deles exonere os demais.

A imputação dos direitos de voto comporta também consequências infraccionais, aonível da autoria do ilícito: a haver incumprimento, as sanções devem recair sobretodos os sujeitos que estariam obrigados ao lançamento da oferta. Esta constatação,

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65Cfr. igualmente o Ponto 12. do Preâmbulo do Código, que declara as ofertas parciais – assim como as prévias –“mais falíveis na protecção dos minoritários”.

66Acerca da não aplicação, neste caso, do art. 186.º, cfr. supra, 1.º, 2. III.

67Frise-se, todavia, que o art. 181.º – também com implicações relevantes no domínio da determinação doperímetro de admissibilidade de medidas preventivas contra ofertas hostis – sobretudo na alínea d) do n.º 2 -,não contém idêntica restrição.

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7. Continuação: as fasquias percentuais de direitos de votoconstitutivas do dever

I. O sistema nacional de ofertas injuntivas assenta fundamentalmente numaquantificação da percentagem relevante de direitos de voto para a constituição dodever de lançamento69.

Há, neste plano, novidades legislativas dignas de nota. Ao passo que o Código anteriorconsagrava cinco previsões de obrigatoriedade, atrás descritas70, os limiares depercentagens de direitos de voto a determinar a constituição do dever são agorareduzidos a dois. O dever de lançamento de oferta verifica-se quando se ultrapasse umterço e metade dos direitos de voto de sociedade aberta71.

II. Pode, sem esforço, considerar-se que estes limiares correspondem aos parâmetrosmédios nos sistemas jurídicos que adoptam um modelo de oferta pública de aquisiçãoobrigatória.

De facto, embora não exista uma convergência absoluta de soluções que, emordenamentos próximos, vigoram na matéria das previsões legais de obrigatoriedade,pode afirmar-se que o limite mais comum é o da imposição de lançamento de ofertageral entre 30 % e um terço dos direitos de voto72. Assim, para reter alguns exemplosmais significativos, pode adiantar-se que o limite de 30% é o vigente no ReinoUnido73 e em Itália74. Por outro lado, é de um terço dos direitos de voto a fasquia

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Apesar disto, não pode deixar de se analisar o dever de lançamento de OPA emconfronto com a discussão, que tem ultimamente suscitado grande atenção no Direitoda Sociedades, ligada ao reconhecimento de deveres ligados aos sócios maioritários,mesmo fora dos quadros do direito mobiliário. O tema é tratado sobretudo nosordenamentos anglo-saxónicos, sob a denominação de fiduciary duties, moldados sob amatriz paradigmática dos trustees.

Nos sistemas continentais, o ponto de partida para a sua admissibilidade não é aceitesem contestação, dada a ideia tradicional de que a qualidade de accionista apenasfunda direitos perante a sociedade, e não direitos entre si. Durante décadas, comefeito, foi considerado que a personalidade jurídica das sociedades anularia qualquerrelação jurídica entre sócios, motivo suficiente para rejeitar qualquer dever defidelidade entre eles existente; por outras palavras, pretendia-se que a personalidadecolectiva significasse o total obnubilamento da esfera privada do associado68. Talexplica que o reconhecimento de deveres de fidelidade se tenha processado lenta epaulatinamente. No momento actual, porém, pode já considerar-se vencidas asresistências doutrinárias, por forma a abrir espaço à autonomização dos deveres defidelidade (Treuepflicht) nos sistemas societários continentais mais avançados.

Por aqui se pode entender o paralelismo entre, do lado societário, o desenvolvimentodogmático da existência de particulares concretizações da boa fé nas relações entresócios e entre sócios e a sociedade e a análise, no plano mobiliário, do regime jurídicoque orbita em torno do dever de lançamento de oferta pública de aquisição. É que asprevisões legais em matéria de OPA obrigatória, não só compreendem deveres lateraisperante a sociedade, designadamente para maximizar a informação relativa aosdetentores de participações qualificadas (arts. 16.º e 19.º CVM), como tambémprojectam uma dimensão externa da qualidade de titular de participação qualificada,o que significa novo revés no carácter “anónimo” da sociedade por acções e fazinscrever sinais de uma erosão da função tradicionalmente reconhecida à suapersonalidade jurídica.

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De entre vários, cfr. MARCUS LUTTER Zur Treuepflicht des Grossaktionärs, in JZ (1976), 225-ss.; Id., Die Treuepflichtdes Aktionärs, in ZHR 153 (1989), 446-471; THOMAS BAUMGÄRTNER, Rechtsformübergreifende Aspekte dergesellschaftsrechtlichen Treuepflicht im deutschen und angloamerikanischen Recht, Peter Lang, Frankfurt/ Bern/ New York,Paris, (1990), 116-126, 205-224 e passim; CARLO ANGELICI, Note in teme di raporti contrattuali tra soci e società, in IlContratto - Silloge in onore di Giorgio Oppo - Vol.II, 569, (1992), CEDAM, 579-ss; Id., Le Azioni, 142-ss.; ALBERTOMUSSO, La Rilevanzia Esterna del Socio nelle Società di Capitali, Giuffrè, (1996); 49-ss; PAULO CÂMARA,Parassocialidade e Transmissão de Valores Mobiliários, cit., 271-294.

69Adiante compreender-se-á melhor que a prova negativa do domínio, permitida no art. 187.º, n.º 2, acabapor ter importância decisiva na conformação global do sistema nacional de obrigatoriedade: cfr. infra, 3.º, 10.I-II.

70Cfr. infra, 1.º, 1. II.

71No n.º 5 do art. 187.º, determina o Código que na subsunção às previsões constitutivas do dever irreleva ainibição de direitos de voto ocorrida, como sanção para o incumprimento do dever, por via do art.192.º. Deoutro modo, o dever de lançamento subsequente veria tolhida uma parte substancial das consequênciasassinaladas para o seu incumprimento, premiando sem justificação o infractor. Neste modo de ver, opreceito, note-se, precisa de ser interpretado restritivamente. De facto, o art.187.º, n.º 5 apenas versa ainibição do próprio sujeito obrigado ao lançamento de OPA, não se aplicando a uma inibição de terceiro.

72Como é inevitável, no texto procede-se a uma simplificação da descrição dos regimes de obrigatoriedade, quepor vezes apresentam significativa complexidade, concentrando o conspecto apresentado nas ofertasuniversais. Por exemplo, em Espanha, deparamo-nos com uma exigência de lançamento de OPA imposta aodetentor de 25% dos direitos de voto (art. 1.º, n.º 2, Real Decreto 1197/91, de 26 de Julho) – mas que nãoconsubstancia o dever de lançamento de oferta dirigida a todos os valores mobiliários da categoria dos que sãoobjecto da oferta.

73Cfr. Rule 9 do City Code on Takeovers and Mergers.

74Cfr. art.106 do recente Testo Unico in materia di Intermediazione Finanziaria.

75Cfr. art. 5-5-2 Réglement Général du Conseil des Marchés Financiers e art. 32 Börsengesetz, respectivamente. O

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mas não legitima aquisições futuras, salvo por aplicação de regras de exclusão dodever79. Se o oferente descer abaixo do nível de obrigatoriedade, volta a ter de lançaruma OPA se e quando voltar a atingi-lo.

Neste passo, em comentário ao sistema de previsões constitutivas do dever, diga-se queum argumento suplementar a conduzir à abolição das ofertas prévias dizia respeito aofacto de vigorar, no Código de 1991, uma relação de complementaridade em sentido fracoentre as ofertas prévias e subsequentes existentes à altura, concretizada nacircunstância de a violação de OPA prévia nem sempre gerar obrigação de OPAsubsequente. Tal apenas sucedia estando em causa uma OPA geral, em virtude daultrapassagem de mais de metade dos direitos de voto. Por aqui se vê que, no plano dapolítica legislativa, o novo sistema, se bem que diminuindo o número de fasquiasdeterminantes da constituição do dever, pode contribuir para aumentar a eficácia nocumprimento dos objectivos de protecção que o determinam.

8. A autonomia privada e as previsões constitutivas do dever

I. Perante o dever de lançamento de oferta, interessa sempre ponderar a margem deconformação estatutária para adaptação à estrutura accionista de cada sociedade.

Há nesse campo alguns dados fornecidos por ordenamentos estrangeiros que merecemser sumariamente descritos, antes de focar o problema em relação ao direito nacional.

II. Na Suíça, depara-se um dever de lançamento de oferta fixado por lei, mas associedades cotadas podem optar por não se submeterem a tal regime, através da

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principal a determinar o lançamento de oferta geral em França e na Suíça75.

Há, também, um ajustamento à realidade infrajurídica no limite mais baixo, uma vezque nas sociedades abertas, mercê da fragmentação da estrutura accionista quetipicamente as caracteriza, o domínio obtém-se correntemente muito aquém dos50%. Para ilustrar esta afirmação, tem interesse referir um estudo recentementerealizado pela Bolsa de Valores de Lisboa, relativo à estrutura accionista das sociedadesabertas nacionais. De acordo com esse levantamento, o accionista com maiorparticipação em sociedades com acções admitidas à negociação no mercado decotações oficiais detém, em média, 39% do capital social da sociedade em causa76.

Finalmente, anote-se ser igualmente comum o estabelecimento de um segundo limitea determinar a constituição do dever de lançamento de oferta geral em valorespercentuais próximos da metade dos direitos de voto da sociedade visada. Ajustificação deste segundo limite prende-se com a proximidade que essa percentagem,em sociedades abertas, usualmente revela em relação à influência societária –concretizando-se em grau que, na prática, denuncia a possibilidade de fazer aprovaralterações estatutárias em assembleia geral. Neste sentido, a exigência de oferta geral àultrapassagem dos 50% dos direitos de voto vigora nomeadamente em França e emEspanha77.

III. Merece ainda salientar que esta redução das previsões constitutivas do deverinsere-se na linha de simplificação dos enunciados normativos, uma vez que o sistemaanterior resultava, como referido, particularmente complexo78. De igual modo, aabolição dos limites “dinâmicos” é coerente com a linha da simplificação em que onovo Código se insere. No todo, deve ver-se neste sistema de previsões constitutivasdo dever a exteriorização de uma intenção de restringir as exigências para cumprir osobjectivos legislativos de fundo.

A relação entre os dois limites a cominar ofertas obrigatórias é de cumulatividade e nãoexclusão: quem ficar obrigado a lançar uma OPA não fica dispensado de ter de o fazerde novo ulteriormente.

Esta ideia comporta dois corolários adicionais: a OPA legitima aquisições já feitas,

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ordenamento jurídico suíço conta, porém, com uma singularidade digna de nota, em benefício daflexibilidade do sistema, ao conceder às sociedades a faculdade de se fixar estatutariamente o limite deobrigatoriedade até 49% dos direitos de voto (opting up). O ponto será adiante retomado: cfr. infra, 8. II.

76Os dados referidos apresentam um desvio padrão de 12%, tendo sido extraídos em 1998, a partir daparticipação em assembleia geral. O estudo encontra-se disponível no sítio da Bolsa de Valores de Lisboa, em:‹www.bvl.pt.›

77Cfr., respectivamente, art. 5-5-3 Réglement Général du Conseil des Marchés Financiers e art. 1.º, n.º 2, Real Decreto1197/91, de 26 de Julho.

78Cfr. supra, 1.º, 1.II.

79Cfr. infra, 3.º.

80O dever de lançamento de oferta, na Suíça, decorre da articulação da Börsengesetz de 1995 (art. 25) com aVerordnung der Eidgenössischen Bankenkommission über die Börsen und der Effektenhandel de 1997 (art. 32). Relativamente àsdesignadas cláusulas de opting out no direito suíço, cfr. MARCO GRUBER, Die Pflicht zum Übernahmeangebot im neuenBörsengesetz, Zürich, (1996), 115, 117-119.

81CARLO LOMBARDINI, La Legislazione sulle Borse in Svizzera, in BBTC ano LX (1997), V, 654-655.

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que um número importante de sociedades tenha adoptado previsões estatutárias adescer a fasquia de obrigatoriedade prevista na Lei do Mercado Mobiliário85. Na gíria,tal faculdade é vulgarmente conhecida por Nokia rule, assim baptizada em virtude aempresa finlandesa com maior capitalização bolsista – a Nokia oij – ter adoptado talalteração estatutária, estabelecendo o dever de lançamento de proposta de aquisiçãoaos sócios que atinjam os limiares de um terço e metade dos direitos de voto86.Observe-se, porém, que em solo finlandês a aceitação deste tipo de cláusulas não épacífica, havendo quem objecte que tais cláusulas servem sobretudo a perpetuação dosaccionistas dominantes, que sustentam na assembleia geral a sua introdução87.

Também na Áustria foi prevista a possibilidade de os estatutos da sociedade fixaremuma percentagem mais baixa a revelar o domínio para efeitos de ofertas públicas deaquisição, salvaguardando-se na lei que tal abaixamento não poderia situar-se aquémdos 20% dos direitos de voto88.

IV. Impõe-se todavia assentar, como conclusão provisória, que os ordenamentosconsultados dispensam, de facto, atenção directa à questão de saber se a autonomiaestatutária goza de espaço para se conceberem situações de obrigatoriedade diversosdos impostos em geral, mas na maioria dos casos depara-se com intervençõeslegislativas a resolver, de modo claro, o problema. Tal apenas não acontece no caso daFinlândia, onde precisamente o problema levanta mais dúvidas.

Além disso, o levantamento efectuado documenta uma preferência pelos limites querondam o terço dos direitos de voto como indício relevante a determinar aconstituição do dever de lançamento, que vem de encontro aos dados atrás extraídos apropósito da análise das fasquias legais89.

V. Entre nós, na vigência do anterior código, o tema das implicações da autonomiaprivada com o dever de lançamento de oferta já foi estudado. Com efeito, o panoramadoutrinário nacional animou-se em 1998 com uma discussão sobre a apreciaçãojurídica de cláusulas de contrato de sociedade que, em matéria das ofertas públicas deaquisição, instituíssem um limite de obrigatoriedade fora das previsões de obrigatorie-dade dos artigos 527.º e 528.º do Código de 1991. O debate em torno daadmissibilidade destas designadas OPAs estatutárias gerou, então, uma divisão de opiniõesnos autores que tomaram posição pública perante o problema90.

Não havendo aqui espaço para dissecar todas as coordenadas da questão, limito-me aapontar as indicações principais perante o novo Código dos Valores Mobiliários, uma

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introdução nos estatutos das designadas cláusulas de opting out80. Além disso, confere-seespaço aos estatutos das sociedades cotadas para fixar o limite de percentagem dedireitos de voto que determina a constituição da obrigatoriedade de lançamento deoferta pública de aquisição: o limite geral é de 33 1/3% dos direitos de voto, maspermite-se que os estatutos aumentem o limite até 49% dos direitos de voto (cláusulasde opting up).

Este expediente foi encontrado como fórmula de efectuar uma transição de sistemasquanto ao regime das ofertas de aquisição81. Desde 1989 vigorava no ordenamentohelvético um sistema de ofertas dispositivas, com a cominação de um dever de lançarOPA a quem detivesse mais de 50% dos direitos de voto82. Em 1 de Janeiro de 1998passou a vigorar um sistema de obrigatoriedade. Este foi precedido de algumacontrovérsia quanto ao limite que deveria fixar-se, o que é importante sublinhar paraentender o regime actual. Em 1992, havia notícia da existência de duas propostasdiferentes no tocante à determinação da fasquia a partir da qual a oferta seriaobrigatória: uma situava a obrigação do lançamento de OPA aos 33,3% dos votos;uma proposta alternativa, porém, indicava a ultrapassagem dos 50% como barreiramais significativa, muito próximo do regime então vigente83.

Cabe também referir, em balanço da recepção feita relativamente à nova disciplina suíça,que a maioria das sociedades preferiu reger-se pelo limite geral de 33,3% dos votoscomo fasquia a determinar o lançamento de oferta. Apenas cerca de 20% das sociedadesescolheram a exclusão do regime do dever de lançamento de OPA e só 4% aprovaramalterações estatutárias para incluir cláusulas de elevação do limiar crítico (opting up)84.

III. Esta solução contrasta, por simetria, com a encontrada na Finlândia. O direitofinlandês conhece o dever de lançamento de oferta pública de aquisição geral comuma fasquia relativamente elevada – dois terços dos direitos de voto. Tal conduziu a

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82Artigo 3.8: cf. HENRY PETER, Les Offres Publiques d’Achat en Suisse: Analyse et évolution, en particulier depuis l’entrée en viguerdu nouveau “Côde Suisse des OPA”, in Riv.Soc., (1990), 959-984; MARCO GRUBER, Die Pflicht zum Übernahmeangebot imneuen Börsengesetz, cit., 36-39; KLAUS HOPT, Reglementacíon europea sobre ofertas públicas de adquisicíon, in AA.VV., LaLucha por el Control de las Grandes Sociedades, (1992), 35.

83EDDY WYMEERSCH, La oferta pública de adquisicíon obligatoria. Una opinión critica, in AA.VV., La Lucha por el Control delas Grandes Sociedades, cit., 49.

84A estatística referida no texto pode ser confrontada com a informação disponível e permanentementeactualizada no sítio da Bolsa suíça (www.swx.ch), que apresenta a lista de sociedades que incluíram cláusulas deopting out e de opting up.

85TIMO KAISANLAHTI, The Finnish Perspective, in EDDY WYMEERSCH (ed.), The proposal for a 13th Company LawDirective on takeovers: a multi-jurisdiction survey, cit., (Jan. 1997), 5-7.

86Nos estatutos da Nokia Oyj (Nokia Corporation), a fixação dos limiares que vinculam os sócios à aquisição de acçõesdecorre do seu art. 13. Um exemplar destes estatutos foi-me gentilmente facultado por TIMOKAISANLAHTI, a quem consigno o meu agradecimento.

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VIII. A disciplina decorrente do n.º 4 do art. 187.º, surgida já na sequência de umdebate interno acerca da possibilidade de ofertas estatutárias, permite extrair algumasconclusões importantes.

Assim, dir-se-á, em primeiro lugar, que as sociedades com acções negociadas emmercado regulamentado não podem suprimir o limite do terço dos direitos de voto.Desta forma, se uma sociedade, antes de abrir o seu capital ao público, introduz umacláusula de abolição do limite do terço, apenas poderá ulteriormente admitir as suasacções à negociação em mercado regulamentado após a revogação da dita cláusula.

Repare-se que a lei não permitiu a fixação de limites intermédios entre o terço emetade dos direitos de voto, contrariamente ao que sucede na Suíça. Esta saída serve,a meu ver, a regularidade do mercado, facilitando a sua percepção pelos investidores ea fiscalização devida pelas autoridades competentes. Além disso, é oportuno referirque, mesmo no mercado suíço, a larga maioria de sociedades que introduz cláusulasde opting up fá-lo pelo limiar mais elevado91.

IX. Queda examinar a possibilidade de uma intromissão dos estatutos das sociedadesabertas na fixação de limites mais baixos do que os resultantes da lei. Neste plano, serádesignadamente lícito perguntar se o panorama permanece em última análiseinalterado, dado que o sistema ainda repousa em limiares quantificados. Sem que hajaespaço para ensaiar aqui uma abordagem ex professo de todas as implicações doproblema, há sinais manifestos que induzem a uma resposta negativa.

Há, em primeiro lugar, um argumento de ordem histórica, de menor valiainterpretativa mas que nem por isso irreleva, baseado na circunstância de a proposta,aventada nos trabalhos preparatórios do novo Código, de reconhecimento deliberdade estatutária para a fixação de limites mais baixos92 ter sido afastada no textolegal definitivo. Se atendermos aos sistemas legislativos atrás analisados, é patente aopção nacional por um modelo que favorece, ainda que em termos moderados, apossibilidade de elevar a fasquia mínima de obrigatoriedade, em abolição estatutáriado limite do terço; mas não o contrário. Neste sentido, o sistema nacional resulta

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vez que, como se verá, os recentes dados normativos apresentam alterações sensíveispara a análise do problema.

VI. À luz do n.º 4 do art. 187.º, as sociedades abertas que não tenham acçõesnegociadas em mercado regulamentado podem, através de modificação estatutária,suprimir o limite mais baixo a determinar a obrigatoriedade de lançamento de ofertapública de aquisição.

O dispositivo, sem precedentes no direito português, acaba por implicar que o regimede ofertas públicas de aquisição, embora valendo para a aquisição de posiçõesrelevantes em sociedades abertas, não é uniforme para todas estas. Isto é: as sociedadesabertas que não tenham acções negociadas em mercado regulamentado podem alteraros estatutos, passando a submeter-se apenas ao limite da metade dos direitos de voto.

No entanto, no art. 187.º não é determinada a permissão de suprimir o limite dos50%, o que é coerente com a ideia de que a metade dos direitos de voto indiciainilidivelmente, nas sociedades abertas, como atrás se deixou referido.

VII. Este traço do regime reforça a conclusão de que a dispersão do capital comportadiversos graus, sendo possível divisar efeitos jurídicos diversos consoante a abertura docapital seja maior ou menor.

Aliás, se tivermos na devida conta o regime das sociedades abertas, verificamos que taltambém é patente no art. 13.º, n.º 2 do Código dos Valores Mobiliários, preceito queprevê que as sociedades podem, estatutariamente, colocar a abertura do capital atravésde oferta pública de venda na dependência de deliberação social da assembleia geral.

Daí que, a partir destes pontos do regime, seja possível distinguir-se quatro categoriasdiferentes de sociedades, de acordo com a sua dispersão pelo público:

– As sociedades abertas comuns, qualificadas nos termos do art.13.º;

– As sociedade semiabertas, isto é, aquelas que por aplicação do art.187.º, n.º4,modificaram os estatutos e deixaram de se governar pelo limite do terço dosdireitos de voto;

– As sociedades que não são abertas, seja originariamente ou através de declaração deperda de qualidade, nos termos dos arts. 27.º a 29.º;

– As sociedades fechadas, em que, de acordo com o art. 13.º, n.º 2, os estatutos obrigama deliberação de assembleia geral para o lançamento de oferta pública de venda.

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TIMO KAISANLAHTI, The Finnish Perspective, cit., 6.

8822, (5) Übernahmegesetz.

89Cfr. supra, 2.º 7. II.

90ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, A OPA estatutária como defesa contra tomadas hostis, cit., 140-145; CARLOS OSÓRIODECASTRO, Daadmissibilidade das chamadas “OPA’s estatutárias” e dos seus reflexos sobre a cotação das acções em bolsa, cit., passim.

91De acordo com uma pesquisa efectuada em Janeiro de 2000, das 12 sociedades que elevaram o limiar de

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Nesta linha de raciocínio, permanece em aberto a fixação de cláusulas deste tipo emacordos parassociais – não sendo, porém, gerador de outra consequência exorbitantedo plano indemnizatório, nem vinculando, naturalmente, outras pessoas que nãofigurem como partes no contrato95.

9. O regime da contrapartida mínima

I. O regime da contrapartida representa, como é geralmente reconhecido, um traçocentral no regime das ofertas obrigatórias96. Não é um ponto totalmente abandonado àautonomia do oferente, sendo antes balizado por normas imperativas mínimas. Aooferente assiste sempre a possibilidade de oferecer um preço superior ao que decorre,como valor mínimo, da lei.

Este aspecto da disciplina da transição de domínio das sociedades abertas deve inspirarespeciais deveres de cuidado por parte de potenciais oferentes. Uma vez que, entre nós, asofertas obrigatórias são lançadas subsequentemente97, a aquisição de acções que conduzamao atingir de fasquias relevantes quanto à percentagemde direitos de voto deve ser precedidada ponderação sobre a capacidade financeira do potencial oferente perante a oferta que teráde lançar, de acordos com as regras sobre contrapartidamínima fixadas no art. 188.º98.

II. A disciplina positiva do preço da oferta constitui o terreno mais adequado para se

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intencionalmente mais próximo do direito suíço que do direito finlandês.

O aspecto mais importante, todavia, refere-se à margem de autonomia estatutáriaconferida às sociedades para se resguardarem contra investidas hostis, havendo sinaispositivos no sentido da sua menor amplitude em sociedades abertas. O art. 13.º, n.º 2,e sobretudo o art. 187.º, n.º 4, servem, no presente Código, de fundamentosnormativos para esta conclusão.

Todavia, a apresentação da questão nestes termos não é suficiente para aplicar, nageneralidade, um juízo de validade ou invalidade de tais hipotéticas estipulaçõesestatutárias. Estas cláusulas podem receber a mais diversa configuração, pelo que talapreciação deve ser feita casuisticamente, ante o concreto esquema proposto. Tendopresente o regime societário, dir-se-á que a qualificação do esquema estatutário emapreço pode merecer, pelo menos, uma de quatro qualificações: ou se trata de umarestrição à transmissão de acções; ou se configura como um ónus ou um encargo; ouse trata da imposição de uma obrigação aos sócios; ou, por fim, se apresenta comouma mera estipulação parassocial enxertada no texto estatutário93. Em termostendenciais, pode afirmar-se que quanto mais desqualificado o expediente gizado pelasociedade ou pelos seus sócios, tendencialmente maior será a probabilidade de se lhereconhecer validade – por se revelar correlativamente menor a probabilidade deofensa aos princípios e regras cogentes94.

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obrigatoriedade, 9 fixaram o limite em 49%, uma estabeleceu a fasquia de 45% e duas exerceram o opting uppara 40%: cfr. www.swx.ch.

92OSÓRIO DE CASTRO, Intervenção, in Actas das Reuniões do Conselho Nacional do Mercado de Valores Mobiliários, cit., 168;NUNES PEREIRA, ibid., 173.

93Acerca da distinção entre os elementos próprios e os elementos formais dos estatutos e, ainda, sobre ascláusulas parassociais formalmente inseridas nos estatutos, cfr. PAULO CÂMARA, Parassocialidade e Transmissão deValores Mobiliários, cit., 138-144, 167-170.

94Concretizando o enunciado do problema, quando a cláusula estatutária venha considerar inválida umaaquisição acima de determinado limite sem lançamento de uma OPA que a lei não prevê nem exige, está-seperante uma restrição transmissiva: por essas cláusulas defrontarem o princípio da livre transmissibilidade eexorbitarem o numerus clausus das limitações à transmissibilidade são inválidas, não sendo negociáveis em bolsa asacções por aquelas atingidas (art. 328.º, n.ºs 1 e 2 CSC; art. 204.º, n.º 2, alínea a) CVM). Há igualmente aapontar requisitos à eficácia desta sorte de estipulações pactícias. Assim, se implicarem restrições transmissivasou prestações acessórias, as acções atingidas devem ser todas nominativas, quer sejam escriturais ou tituladas,nos termos do artigo 299.º do Código das Sociedades Comerciais. Se envolver o aumento das prestações aosócio, a cláusula deve ser aprovada por todos os sócios, como decorre do n.º 2 do artigo 86.º do Código dasSociedades Comerciais. Na falta da verificação cumulativa destes dois requisitos, tais cláusulas contratuaisassumem-se como ineficazes, quer a terceiros, quer aos próprios sócios. Apenas não merecerão aplicação taisexigências se estiverem em causa estipulações parassociais, independentemente da sua inserção formal.

95Não é surpreendente acrescentar que os contratos parassociais beneficiam da discussão, travada em geral,relativamente a certas manifestações de eficácia externa das obrigações – o que é objecto de análise,

designadamente, no meu Parassocialidade e Transmissão de Valores Mobiliários, cit., 417-429.

96ALAIN DE FOUCAUD/ ANDRÉ GOIX, Les Règles Relatives à la Fixation du Prix en Matière d’Offres Publiques, in Revue deDroit Bancaire et de la Bourse n.º 42 (1994), 61-ss; PETER DORALT, Ökonomischer Hintergrund und Interessengegensätze beiÜbernahmeangeboten, in PETER DORALT/ CHRISTIAN NOWOTNY/ MARTIN SCHAUER, Takeover-Recht,cit., 6-7; JORGE BRITO PEREIRA, A OPA Obrigatória, cit., 355-368; PAULO CÂMARA, Deveres de informação eformação de preços no mercado de valores mobiliários, cit., 84-ss.

97Cfr. supra, 2.º, 3. I-II.

98Trata-se de um ponto que, embora se julgue resultar em geral dos sistemas de obrigatoriedade de ofertassubsequentes, mereceu directa consagração positiva na recente lei austríaca: 22, (9) Übernahmegesetz. No City Codebritânico, é consagrado um normativo de alcance paralelo, ao se prever no General Principle3. que a divulgação da oferta deve ser feita quando o oferente tem razões para crer que pode dirigir a oferta emantê-la até final: o cumprimento desta exigência é igualmente da responsabilidade do intermediáriofinanceiro. Aponta-se usualmente que o objectivo de norma com esta configuração é o de evitar a criaçãoartificial de procura em relação aos valores mobiliários emitidos pelo oferente e pela sociedade visada (cfr.TAKEOVER PANEL, Report, (1996/1997), 14-15). Não se esqueça, afinal, que o princípio da estabilidade dasofertas, entre nós consagrado no art. 130.º, n.º 1, recebe uma intensidade maior no domínio das ofertaspúblicas de aquisição.

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seu cumprimento coactivo103.

III. O confronto com o direito à exoneração deve ser conduzido até mais longe. Sebem se reparar, tendo em conta que a oferta obrigatória se dirige sempre a sociedadesabertas, em que a fluidez da disciplina transmissiva é sempre assegurada, mal seentenderia o instituto consagrado nos arts. 187.º e seguintes apenas por este lado,porque ao sócio está sempre aberta a porta para alienar as acções de que é titular,manifestando assim o seu desagrado pela transição de domínio.

Este ponto é bastante sublinhado na análise económica do direito das sociedadesabertas, sobretudo na base dos estudos de Hirschman104. O autor chamou a atenção paraa alternativa que têm os accionistas – assim como, em geral, os membros de qualquerorganização – de reagir perante factos ocorridos na condução dos destinos societáriosque motivem desordem e insatisfação. Assiste-lhes, de um lado, a possibilidade desaída da sociedade (exit); alternativamente, pode ser assumida uma participação activana sociedade, designadamente através da comunicação das razões dedescontentamento (voice), por forma a contribuir construtivamente para superar adificuldade organizativa detectada.

Sucede que a primeira alternativa é a mais imediata, por estar permanentemente

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descortinarem os objectivos de política legislativa em torno da cominação de um deverde lançamento de oferta pública de aquisição.

Com efeito, qualquer exercício de análise crítica relativamente ao fundamento dodever é metodologicamente criticável se não procede indutivamente ao recenseamentodos traços normativos principais a revelá-lo (a universalidade da oferta, já referida,constitui um deles99) e é limitado se não se concentrar na disciplina da contrapartida.

O ponto de partida para aclarar esta afirmação reside na constatação de que um dosfundamentos na base do sistema de obrigatoriedade de OPAs consiste na circunstânciade se conceder ao sócio minoritário a possibilidade de saída. De facto, ante umatransição de domínio da sociedade, o accionista pode ter justificados motivos paraquerer abandonar a sociedade. Assim, designadamente, pode o accionista nãoacreditar na capacidade de gestão do novo detentor do controlo, desconfiar dos seusmétodos, recear transacções intragrupos que sejam desfavoráveis para a sociedade,temer o desmantelamento do grupo societário em redor do qual esta orbita oudiscordar de uma inflexão no objecto social100.

Deste prisma, é tentadora a aproximação do dever de lançamento de oferta à figurasocietária do direito à exoneração101. O confronto, porém, depara-se com diversaslimitações: a exoneração define-se por consistir num direito à saída voluntária dosócio perante a sociedade, ao passo que o dever de lançamento de oferta se aplica edesenvolve como um dever constituído na esfera de um titular de uma participaçãoqualificada em sociedade aberta perante outro titular de valores mobiliários. Perante ocumprimento do dever, como perante o lançamento de qualquer oferta de aquisição,a sociedade deve observar um comportamento de lealdade102.

Por outro lado, o direito à exoneração representa uma decorrência da estruturacontratual no seio intra-societário, enquanto o dever de lançamento de OPA nãopressupõe uma relação jurídica, inexistindo, como vimos, o direito do sócio exigir o

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Cfr. supra, 2.º, 5.

100PETER LEE, Takeovers – The United Kingdom Experience, cit., 198-199; KLAUS HOPT, Europäisches und deutschesÜbernahmerecht, cit., 385-386; EDDY WYMMERSCH, Takeovers from a comparative perspective, in Quaderni di Finanza,n.º 32 (Março 1999), 62; Id., The Mandatory Bid: A Critical View, in KLAUS HOPT/ EDDY WYMEERSCHed., European Takeovers . Law and Practice, cit., 365-368; SCHUSTER/ ZSCHOCKE, Übernahmerecht/ Takeover Law,cit., 54; ROLF SKOG, Does Sweden Need a Mandatory Bid Rule? A Critical Analysis, cit., 34-36.

101A aproximação entre as duas figuras foi recentemente ensaiada pelo Professor Pedro Paes de Vasconcelos, emconferência proferida na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa no dia 30 de Novembro de 1999.

102No Código, o âmbito dos deveres de lealdade nas ofertas manifesta-se não apenas nas limitações aos poderes

da administração da sociedade visada, decorrente do art. 182.º, mas também é erigido em dever geral deprotecção no art. 181.º.

103Cfr. supra, 2.º 3. V.

104ALBERT HIRSCHMAN, Exit, Voice and Loyalty, Responses to Decline in Firms, Organizations and States, (1970); Id., Exit andVoice, in JOHN EATWELL/ MURRAY MILGATE/ PETER NEWMAN (eds.), The New Palgrave Dictionary ofEconomics, McMillan, (1988), Vol. 2, 219-223. Cf. também, a propósito, J. E. PARKINSON, Corporate Powerand Responsability, Oxford, (1993, reimp. 1996), 166-177 (174); LUIGI BIANCHI, Considerazioni introduttive, inRivista delle Società (1996), 414-415; SAN SEBASTIÁN FLETCHOSO, El Gobierno de las Sociedades Cotizadas y suControl, Madrid, (1996), 87-88.

105Na literatura nacional, cfr. EVARISTO FERREIRA MENDES, A Transmissibilidade das Acções, Lisboa, (1989),polic., Vol. II, 11-13, 44-49; MARIA AUGUSTA FRANÇA, Direito à exoneração, in Novas Perspectivas do DireitoComercial, Coimbra, (1988), 205-227 (219-224); JOÃO LABAREDA, Das Acções das Sociedades Anónimas, Lisboa,(1988), 305-320 (306-309).

106O ponto está, no entanto, a ser submetido a uma revisão doutrinária, na medida em que a exoneração tambémcumpre funções vantajosas, como instrumento do governo societário, designadamente como meio de precaveractuações abusivas dos accionistas maioritários. Tenha-se nomeadamente presente que, nos Estados Unidos, oModel Business Corporation Act e diversas legislações societárias estaduais reconhecem o appraisal right como expedienteque visa proporcionar um direito de saída, a um justo valor, por parte dos accionistas minoritários, em caso detransições relevantes do domínio (cfr. nomeadamente FRANK H. EASTERBROOK/ DANIEL FISCHEL, TheEconomic Structure of Corporate Law, cit., 145-161). Para uma apreciação deste prenúncio de inversão na literaturacontinental, tem interesse consultar um projecto de reforma normativa que foi recentemente apresentado em

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nítida em diversos ordenamentos europeus em impor um preço equitativo como valormínimo da oferta, resultante normalmente de uma média dos preços praticados nomercado em período próximo ao da oferta pública. Assim se contam as soluçõesnormativas em França e na Finlândia.

A ideia que subjaz a esta exigência prende-se com a possibilidade ocorrer umdecréscimo no preço em virtude da mudança do controlo. Esta constatação é apoiadapor estudos empíricos que dão conta que, normalmente, depois do encerramento,com êxito, de uma oferta pública de aquisição o preço das acções visadas decresce108.

Neste contexto, interessa sublinhar que o objectivo do legislador na prescrição delimitações deste jaez tem em vista a limitação de uma perda do valor accionista109. Talescopo é prosseguido preventivamente: para que os accionistas não sofram por

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assegurada nas sociedades abertas, graças à existência de um mercado em torno datransmissão das acções emitidas. É sabido até que partir daqui recolhe-se umargumento para a contestação, movida no âmbito do direito das sociedades105, a que odireito de exoneração exista, como figura geral, nas sociedades anónimas106.

Aliás, a figurar como argumento decisivo, a existência de normas imperativas mínimas abalizar a contrapartida de oferta obrigatória demonstra que o objectivo deste dever nãoé apenas o de assegurar um sucedâneo do direito de exoneração para o domínio dassociedades anónimas. Além disso, a tese que sustenta uma assimilação do dever deformulação de proposta aos minoritários à exoneração accionista (way out) assenta naimplícita convicção que as ofertas públicas de aquisição são, em si, perniciosas, o que écontrariado empiricamente pelo balanço feito sobre os efeitos económicos das OPAs107.

IV. Apesar do que fica dito, a explicação teleológica do dever de lançamento de OPAenquanto técnica sucedânea do direito de um direito de saída da sociedade podecolher alguma aceitação quando a ultrapassagem da fasquia relevante não seja operadaatravés de uma aquisição directa de participações accionistas, mas através de umareunião de direitos de voto estruturada diversamente (sobretudo, mas não só, emcasos de domínio conjunto). Todavia, não pode servir como explicação global do instituto.

Estas considerações obrigam a procurar diverso enfoque para uma explicação danatureza e fundamento do dever de lançamento de oferta pública de aquisição.

Ora, do prisma da política legislativa, existem dois fundamentos principais –relacionados, mas distintos entre si – que depõem a favor da existência de um preçolegal mínimo para as ofertas de aquisição obrigatórias: um fundamento prende-secom a necessidade de garantir um tratamento justo aos destinatários da oferta; e ooutro, por seu turno, liga-se ao princípio de tratamento igual entre os destinatários daoferta. Analisar-se-ão subsequentemente estes dois fundamentos do dever.

V. De um lado, uma vez que a oferta obrigatória visa uma protecção adequada aosinteresses dos accionistas da sociedade visada, existe uma tendência legislativa muito

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Itália, em defesa de uma ampliação do diritto di recesso: cfr. DANILO GALLETTI, Una proposta di riforma del diritto direcesso, in Giurisprudenza Commerciale (Nov. Dez.1999), 768/803-I (792-799). Para uma informada colocação doproblema, no domínio particular da faculdade de exoneração em caso de fusão, consulte-se ainda ADORACIONPEREZ TROYA, La Tutela del Accionista en la Fusion de Sociedades, Madrid, (1998), 469-567.

107Corroborando os efeitos benéficos das ofertas públicas de aquisição, com dados empíricos: cfr. FRANK H.EASTERBROOK/ DANIEL FISCHEL (para quem as OPAs foram o fenómeno económico mais estudado no século XX),The Economic Structure of Corporate Law, cit., 171-174, 193-196 (193); ROBERTA ROMANO, A Guide to Takeovers:Theory, Evidence and Regulation, cit., 4-11; JÜRGEN REUL, Die Pflicht zur Gleichbehandlung der Aktionäre bei privatenKontrolltransaktionen, cit., 151-215; J. FRED WESTON/ KWANG CHUNG/ JUN SIU, Takeovers, Restructuring and

Corporate Governance, New Jersey, (1997), 80-87, 124-145; e também ROBERTO WEIGMANN, Le offerte pubblichedi acquisto, cit., 328-345; FRANCESCO CARBONETTI, La nuova disciplina delle offerte pubbliche di acquisto, cit., 1358.

108Este, aliás, constitui um factor de pressão sobre os destinatários da oferta para a alienação, como é explicadopor LUCIEN ARYE BEBCHUCK, The Pressure to Tender: an Analysis and a Proposed Remedy, cit., 917-922.

109Este cenário pode criar, por isso, a tentação de manipulação de preços, para o lançamento da oferta a preçosmais baixos, como advertem MARCO PAGANO/ FAUSTO PANUNZI/ LUIGI ZINGALES, Osservazioni sullariforma della disciplina dell’opa, degli obblighi del possesso azionario e deilimiti agli incroci azionari, cit., 158.

110MARCOMARTINI, The New Italian Law on Takeover Bids, cit., 9-10.

111MARCO PAGANO/ FAUSTO PANUNZI/ LUIGI ZINGALES, Osservazioni sulla riforma della disciplina dell’opa, degliobblighi del possesso azionario e deilimiti agli incroci azionari, in Rivista delle Società (1998), 153.

112Na literatura, envolve-se em densa controvérsia – não cabendo nestas linhas a sua descrição em termoscompletos – a fundamentação do dever de partilha igualitária do prémio de domínio. Uma das formulaçõesiniciais do problema deve-se a BERLE e MEANS, que, na sua obra canónica, ao analisarem a transição decontrolo em sociedades de grande dimensão, deixam referências (sintéticas) concluindo que o controloconstituiria um bem da empresa: estaria, assim, aberta a porta para sustentar que deva existir uma distribuiçãoproporcional por todos os sócios (embora esta conclusão não seja directamente apresentada por estes autores[que, a um passo, afirmam que “the power going with control is an asset which belongs only to the corporation; and that payment, if itgoes anywhere, must go into the corporate traesury”], devendo-se sobretudo ao desenvolvimento que as suas ideiasmereceram na literatura subsequente: cfr. ADOLPH BERLE/ GARDINER MEANS, The Modern Corporation andPrivate Property (1932, reimp. 1991), New Jersey, 216-217). Regista-se, todavia, que esta construção, apósconhecer, durante décadas, uma recepção entusiástica pela doutrina, é agora rodeada por uma visível aura decriticismo (cfr. nomeadamente FRANK H. EASTERBROOK/ DANIEL FISCHEL, The Economic Structure ofCorporate Law, cit., 126-129; ROBERT CLARK, Corporate Law, cit., 491-498; JÜRGEN REUL, Die Pflicht zurGleichbehandlung der Aktionäre bei privaten Kontrolltransaktionen, cit., 47-51; ROLF SKOG, Does Sweden Need a Mandatory BidRule? A Critical Analysis, cit., 32-34; JAVIER GARCÍA DE ENTERRÍA, La Opa Obligatoria, cit., 167-197). Numadescrição telegráfica, há vozes que sustentam que o prémio de controlo representa a expectativa de valorizaçãoda empresa nas mãos da nova administração, o que levaria a não fundar a sua distribuição. Dependendoexclusivamente da atribuição de uma pretensa titularidade sobre o prémio do domínio, a discussão arrisca-se a ser improdutiva. Tal prende-se antes com a concepção relativa ao governo societário, devendo ser nesse contexto reapreciada. Dados

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Há exemplos de sistemas que adoptam esta lógica em termos moderados, permitindo afixação de preço em valor percentual abaixo do preço praticado pelo oferente. Tal ocaso do ordenamento Alemão e o Suíço, permitindo a fixação 25% abaixo do limiarrelevante114. Na Áustria, permite-se que o preço se quede 15% abaixo do maior preçopago pelo oferente ou pessoas em concertação: mas combina-se tal critério com o damédia dos preços em mercado, no que mostra uma curiosa semelhança com o sistemanacional115.

Tais formulações híbridas consubstanciam, todavia, um enfraquecimento doprincípio de igualdade de tratamento dos accionistas, pois consentem uma margem dedesfavor dos destinatários da oferta em relação aos sócios que alienaram o bloco decontrolo116.

VII. Como sinal evidente da exigência que emprega no regime da obrigatoriedade dasofertas e da generosidade com que acolhe as influências de ordenamentos próximos, osistema jurídico português conta com a particularidade de conceder acolhimento, no direito positivo, a ambos osfundamentos descritos.

De facto, constitui tradição legislativa nacional a imposição que a oferta respeite nãoapenas o preço mais alto pago pelo oferente ou por qualquer pessoa agindo emconcertação com este nos últimos meses mas também a cotação média ponderada dosvalores nesse período117. Salvaguarda-se, nestes termos, quer o tratamento paritário,quer o tratamento justo dos destinatários da oferta. Já assim o era perante o Códigode 1991; e é um aspecto que se mantém com o actual regime.

Com efeito, o novo Código dos Valores Mobiliários, que condensa o regime dacontrapartida mínima no seu art. 188.º, dispõe que a contrapartida de oferta públicade aquisição obrigatória não pode ser inferior ao mais elevado dos seguintesmontantes: o maior preço pago pelo oferente ou por qualquer das pessoas que, em relação a ele, estejam emalguma das situações previstas no n.º 1 do artigo 20.º pela aquisição de valores mobiliários da mesmacategoria, nos 6 meses imediatamente anteriores à data da publicação do anúncio preliminar da oferta; e o

237

antecipação este efeito, o legislador considera a média no período mais recente (enote-se que o art. 188.º apenas considera o último semestre) para permitir a saída aopreço indicado pelo mercado antes da mudança de controlo da sociedade110.

VI. Os detentores do bloco accionista de controlo usualmente logram alienar a suaposição por um preço mais vantajoso do que o que ocorreria em causa estivesse aalienação de um lote accionista minoritário. Assim, um dos fundamentosapresentados para fundamentar dever de lançamento de OPA prende-se com oobjectivo de assegurar uma distribuição equitativa do prémio de controlo,correspondendo este grosso modo aos valor dos benefícios futuros decorrentes da tomadade uma empresa, descontando os custos implícitos decorrentes da transição decontrolo111.

Aliás, o Preâmbulo do DL n.º 486/99, de 13 de Novembro aponta esta ideia comofundadora do dever, ao assentar a oferta obrigatória na partilha dos benefícios daaquisição do domínio pelos accionistas minoritários (n.º 12).

Neste contexto, é também através da fixação de uma contrapartida mínima que seprossegue o princípio de tratamento igual entre o accionista de controlo que aliena as suasparticipações e os accionistas minoritários, dando a estes a possibilidade de sair dasociedade pelo menos ao mesmo preço que os primeiros112.

Esta linha de raciocínio conduz a considerar o preço praticado pelo oferente ou porpessoas concertadas, anteriormente à oferta, como referências mínimas na oferta a serlançada (best price rule). O exemplo paradigmático de ordenamento enformado por estapreocupação é o britânico, pois o City Code on Takeovers and Mergers prevê, na sua Rule 9, que acontrapartida a oferecer em caso de oferta obrigatória não pode ser menor que o preçomais alto pago pelo oferente ou qualquer pessoa em concertação com este para acções dacategoria das que são objecto da oferta nos 12 meses anteriores ao seu início113.

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relevantes para a questão são, de um lado, o reconhecimento de que os titulares do órgão de administração sãonomeados pela maioria dos sócios, mas ainda assim a sua actuação deve ser exercida no interesse da sociedade,enquanto centro de imputação dos interesses de todos os sócios (para uma confirmação positiva, cfr. o art.64.º CSC). De outro lado, como já foi referido no texto (cfr. supra, 2.º 9 V), do ponto de vista da protecçãodos sócios minoritários, importaria reter que a repartição do sobrevalor do domínio tem uma finalidadepreventiva, procurando assegurar o equilíbrio na composição de interesses ligados à sociedade aberta, ao fazercom que os accionistas não sejam prejudicados – através da erosão do valor patrimonial das suas acções – poruma transição de domínio (a qual configura uma externalidade, na acepção utilizada no âmbito da análiseeconómica do direito). Esta ideia, aliás, nem pode considerar-se distante do núcelo central da concepçãoperfilhada por BERLE e MEANS, dado que estes também apresentavam o controlo societário como poderexteriorizável em actos aparentemente estranhos à sociedade, mas que a acabam por poder afectá-la [muitorelevante, neste contexto, é a seguinte observação: “the control may perform acts which nominally have nothing todo with thecorporation, but which in fact gravely affect the fate of the enterprise. For instance, control may be sold”: cfr. The Modern Corporation andPrivate Property, cit., 212].

113GRAHAM STEDMAN, Takeovers, London, (1993), 191-198. O sistema britânico influenciou os ordenamentosdos estados federais norte-americanos que instituíram cash-out statutes, designadamente na Pennsylvania, em queo dever de lançamento de oferta deve concretizar-se pelo menos ao preço mais elevado pago pelo oferente nosúltimos 90 dias: cfr. ARTHUR FLEISHER JR./ ALEXANDER R. SUSSMANN, Takeover Defenses5, cit., 4.06 B.

114Cfr., respectivamente, o art. 17 Übernahmekodex e o art. 38.º da Börsenverordnung de 25 de Junho de 1997.Enquadrando a solução germânica no contexto das indicações surgidas nas propostas de directiva e nosprincipais sistemas europeus, cfr. KLAUS HOPT, Europäisches und deutsches Übernahmerecht, cit., 389-391.

115

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nacional tal prescrição, embora o tenha feito apenas a propósito da transmissão deacções próprias, no art. 321.º CSC. Tal deve entender-se como afloramento geral deum princípio, tendo um âmbito aplicativo que transcende o enunciado directo do art.321.º CSC.

Mas sucede que o princípio de igualdade de tratamento tem também consagração nodireito dos valores mobiliários. Frise-se que aquela que é invariavelmente referidacomo a primeira Directiva comunitária em matéria de mercados mobiliários – aDirectiva n.º 79/279/CEE, de 5 de Março de 1979 – refere que o princípio deigualdade de tratamento constitui um dos deveres a cargo das sociedades com acções eobrigações admitidas à negociação em bolsa121. Não pode, demais, esquecer-se acircunstância de o novo Código dos Valores Mobiliários tornar muito visível aconsagração genérica de um princípio de tratamento igual, seja em relação aostitulares de valores mobiliários emitidos por sociedades abertas ao investimento dopúblico (art.15.º), seja para os destinatários de ofertas públicas relativas a valoresmobiliários (art. 112.º), alargando os quadros da sua aplicação a domínios queexorbitam claramente a relação entre a sociedade e os sócios122.

Assim, a afirmação de que o tratamento igual apenas se aplica nas relações entre asociedade e os sócios equivale a contrariar uma evidência perante o direito mobiliário,em geral, e perante as OPAs obrigatórias, em particular. Neste campo, aliás, aconcretização do princípio de igualdade surge reforçada: manifesta-se não só ao nívelda igualdade informativa e da igualdade de tratamento, como é timbre em qualqueroferta pública, mas também ao nível da igualdade de oportunidades económicas dospotenciais destinatários da oferta, concretizada nos termos em que é, a todos,assegurada a possibilidade de alienação dos valores mobiliários de que são titulares123.Como refere Hopt, a chave para ultrapassar este impasse pode estar no reconhecimentode que o problema transcende a regulação societária124, o que, do prisma do direitonacional, tem comprovação na inserção sistemática do instituto.

IX. A amparar o fundamento do dever de lançamento de oferta pública de aquisiçãono princípio de igualdade de tratamento, há que apontar todavia que este denuncia

239

preço médio ponderado desses valores mobiliários apurado em mercado regulamentado durante o mesmoperíodo.

Estes dados documentam suficientemente que o regime da contrapartida se prefiguranuma linha de continuidade em relação à disciplina constante do código aprovadopelo Decreto-Lei n.º 142-A/91, de 10 de Abril. Existem, é certo, diferenças depormenor em relação ao n.º 6 do art. 528.º do Código anterior. Assim, o novoCódigo apenas estatui regras para a contrapartida de oferta obrigatória – e apenas paraas ofertas gerais, pois deixam de existir previsões de obrigatoriedade de lançamento deoferta parcial. Além disso, o legislador reduziu para seis meses o limiar temporalrelevante para efeitos do cálculo do preço mais alto pago pelo oferente. Por fim,esclareceu-se que o recurso a auditor caso o preço não seja equitativo pode ocorrerainda quando o preço apurado se mostre excessivo (n.º 2).

A linha dominante, contudo, é a de manter as soluções já desenhadas na codificaçãoanterior, em tutela da partilha equitativa e igualitária do prémio de controlo, comoconfessado no preâmbulo do diploma118. Tarefa a empreender de seguida é a deexaminar, mais de perto, o fundamento e o alcance destas soluções.

VIII. No plano teórico, deve anotar-se que alguns autores recusam a recondução dofundamento do dever ao princípio de igualdade de tratamento, argumentando queeste apenas se manifesta nas relações entre sócios e a sociedade119.

É certo que o princípio de tratamento igual dos accionistas conta com raízesprofundas no direito das sociedades120, sendo objecto de previsão na 2.ª DirectivaCEE, no seu art. 42.º, preceito que obriga os Estados-membros a garantir umtratamento igual aos accionistas que se encontrem em condições idênticas. Nasequência deste texto comunitário, aliás, o direito português transpôs para o direito

238

Cfr. 26 ÜbG.

116EDDY WYMMERSCH, Takeovers from a comparative perspective, cit., 62.

117Este aspecto do regime mostra paralelo com as leis mais modernas em matérias de ofertas obrigatórias – aaustríaca e a italiana (cfr. quanto a esta, no domínio da apelidada oferta totalitaria obbligatoria, FRANCESCOCARBONETTI, La nuova disciplina delle offerte pubbliche di acquisto, cit., 1357; LUCA PICONE, Le Offerte Pubbliche diAcquisto, cit., 196-200).

118Cfr. n.º 12 do Preâmbulo do DL n.º 486/99, de 13 de Novembro.

119EDDY WYMMERSCH, Takeovers from a comparative perspective, cit., 62; JAVIER GARCÍA DE ENTERRÍA, La OpaObligatoria, cit., 149-150.

120

Pela ampla análise empreendida, seja ao nível do impacto deste princípio nas estruturas monossocietárias, sejaao nível do direito dos grupos, é incontornável referir JÜRGEN REUL, Die Pflicht zur Gleichbehandlung der Aktionärebei privaten Kontrolltransaktionen, cit., em particular a págs. 251-313. Entre nós, reenvia-se nomeadamente paraEVARISTO FERREIRA MENDES, A Transmissibilidade das Acções, cit., 16, nota 11; PINTO COELHO, Estudo sobreas Acções das Sociedades Anónimas, in RLJ ano 89.º, n.º 3075, 82-ss; ANTÓNIO PEREIRA DE ALMEIDA,Sociedades Comerciais - Miscelânea, (1992), 23-ss.; PAULO CÂMARA, Parassocialidade e Transmissão de Valores Mobiliários,cit., 342-346.

121Anexo C.2.a) (acções) e Anexo D.A.1.a).

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XI. A referência ao maior preço pago, feita no art. 188.º, exigirá, em alguns casos,objecto de interpretação extensiva para dar resposta ao fundamento deobrigatoriedade. O problema coloca-se sobretudo em contratos preliminares denegócios aquisitivos – sobretudo, mas não apenas, contratos de opção – relevantespara efeitos doart. 20.º, n.º 1, sobretudo quanto à sua alínea e), em que o sócio que projecta lançara oferta se vê detém o direito relativo à aquisição de um lote de acções.

Suponha-se que uma pessoa, que projecta tomar o domínio de uma sociedade aberta,obtém por parte de um accionista uma vinculação, a favor do primeiro, a uma opçãode venda de um lote importante de acções. Após a celebração deste contrato, masantes da sua execução, o beneficiário da opção de venda decide lançar uma ofertasobre a sociedade emitente dessas acções. Relevará o preço acordado para efeitos dacontrapartida mínima?

Uma vez que o contrato de opção não fora ainda executado, à primeira leitura doart. 188.º responder-se-ia em sentido negativo, na medida em que este preceito fazrelevar o maior preço pago pelo oferente. Todavia, na aplicação do preceito a este tipode casos, podem divisar-se situações em que o potencial alienante é beneficiado comum preço superior ao que decorreria da aplicação das regras do art. 188.º. Emdeterminados casos, portanto, uma interpretação literal do art. 188.º deve cederperante o entendimento de que o maior preço é o montante que é objecto docontrato aquisitivo, embora não tenha ainda, efectivamente, sido pago. Essa leituraseria, aliás, coerente com a técnica de imputação dos direitos de voto, que faz relevar ocontrato preliminar aquisitivo, mesmo antes da sua execução (art. 20.º, n.º 1 e)).

XII. Deve por fim ter-se presente que as regras existentes para a determinação dopreço em oferta pública contrastam com as indicações gerais, em matéria societária,para a avaliação das participações sociais.

No direito das sociedades, a principal referência decorre do art. 1021.º CC, quemanda fixar o valor da quota do sócio com base no estado da sociedade à data em queocorreu ou produziu os seus efeitos o facto determinante da liquidação. Apesar de seraplicável directamente à liquidação de quotas de sociedade civil, este dispositivo ocupalugar central, uma vez que é objecto de diversas remissões ao longo do Código dasSociedades Comerciais, a propósito da forma de avaliação em caso de fusão,

241

uma limitação, ligada ao seu funcionamento temporal.

Com efeito, a protecção dispensada pelo dever apenas funciona para o futuro, a partirdo processo da oferta. Ao impor uma comparação entre o preço oferecido na oferta eo preço mais alto pago pelo oferente e pessoas concertadas no último semestre, olegislador apenas se interessa com uma eventual situação de desfavor em que estejamos destinatários da oferta. Neste exercício comparativo, do ponto de vista daconformação da oferta forçada, irreleva evidentemente um eventual desfavor emrelação a quem tenha alienado antes da oferta, a preço inferior. Dito claramente: oart. 188.º só protege quem vende em OPA; e não já os que alienaram (em bolsa oufora de bolsa) antes da OPA125.

X. A tradução positiva do princípio de tratamento igual não impõe que a transiçãofeita com contrapartida em espécie corresponda uma oferta necessariamente emespécie. Assim, se alguém ultrapassa um dos limiares relevantes à custa de umaaquisição por troca de acções, constitui-se o dever de lançamento de oferta mas acontrapartida em valores mobiliários é sempre facultativa.

De facto, segundo o n.º 3 do art. 188.º, se a contrapartida consistir em valoresmobiliários, deve o oferente indicar alternativa em dinheiro de valor equivalente.Trata-se de solução que, neste ponto, é próxima da encontrada no City Code britânico(Rule 9.5).

O fundamento desta exigência pode basear-se em dois aspectos distintos,seguidamente apresentados.

Em termos económicos, o pagamento em acções do oferente corre o risco sério defazer repercutir sobre o destinatário da oferta o esforço financeiro da tomada126.

Juridicamente, encarando o lançamento da OPA como forma de permitir a saída dosócio – ideia que, como vimos tem fortes limitações – se o sócio tem receio de ficarpreso numa sociedade que tem um novo domínio, a aceitação da oferta apenas o fará“mudar de cárcere”127.

240

122Documente-se com consagrações do princípio em algumas das mais relevantes leis mobiliárias da actualidade:Art. 92 do Testo Unico della Finanza (Itália); Art. 1 do Übernahmekodex (Alemanha); Art. 24 (2) da Börsengesetz BEHG(Suíça); Rule 20 do City Code on Takeovers (Reino Unido). Em geral, merece complementar com: MASSIMOMONTANARI, Il principio di parità di trattamento fra disciplina del mercato mobiliare e diritto delle società, in GiurisprudenzaCommerciale, I, (1996), 899-918.

123Interessa referir, neste contexto, a sistematização de MAURO CUSMAI e RAFFAELE D’AMBROSIO, em

Reflessioni sull’Instituto dell’OPA Obbligatoria, in Rivista di Diritto Commerciale, n.ºs 5-6, (1995), 405-450; e ROBERTOWEIGMANN, Le offerte pubbliche di acquisto, cit., 414-ss.

124KLAUS HOPT, Reglamentacíon Europea sobre Ofertas Públicas de Adquisición, in AA.VV., La Lucha por el Control de las Grandes

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contrapartida mínima será fixada a expensas do oferente por auditor independentedesignado pela CMVM.

Ora, para aquilatar no plano sistemático o âmbito aplicativo desta faculdade, deve ter-se presente a diminuição do peso publicístico no regime das OPAs, igualmenterevelado no regime da exclusão do dever e na disciplina da inibição dos poderes deadministração da sociedade visada na pendência da oferta. Além disso, a interpretaçãodo art. 188.º, n.º 2 há-de ser congruente com o facto de, em lugar paralelo, aregulamentação da contrapartida em processo de aquisição tendente ao domínio totalter abandonado a exclusividade da referência ao juízo de auditor, ainda prevista noart. 490.º do Código das Sociedades Comerciais para sociedades fechadas. Sobra, porfim, adiantar não ser muito clara a ligação de tal expediente aos fundamentos queenformam o dever.

Perante isto, há que concluir que a faculdade prevista no art. 188.º, n.º 2, devesempre considerar-se subsidiária, sendo prioritário o apuramento do preço porrecurso aos mecanismos de mercado.

243

exoneração, amortização de quota e exclusão de sócio128.

Acontece, todavia, que a determinação do valor das participações sociais, medidacomo se o fosse à data da liquidação, é meramente contabilística. Ora, como critérioexclusivo de avaliação, essa técnica é claramente redutora quando aplicada a valoresmobiliários, uma vez que, em relação a estes, o princípio contabilístico dacontinuidade – tomando a empresa como going concern – e a expectativa de valorizaçãofutura constitui um dado incontornável na sua avaliação – o que designadamente émelhor expresso pela cotação média em mercado, que releva para efeitos do art. 188.ºCVM. Esta constatação põe a claro o que não pode deixar de se considerar como umdéfice do regime societário, que acaba por penalizar o sócio em caso de exoneração,amortização ou exclusão, sobretudo, mas não exclusivamente, em sociedadesadmitidas à negociação em mercado regulamentado.

XIII. Como já tive oportunidade de frisar noutro local129, as autoridades desupervisão mobiliárias assumem um papel decisivo na verificação do cumprimento dasnormas que prescrevem uma contrapartida mínima em ofertas públicas de aquisição.Embora aqui, como em geral, a sua actuação se manifeste em juízos de legalidade, enão de mérito, e apesar de não caber às autoridades de supervisão uma proposta depreço, o facto é que o espaço de discricionariedade é claramente dilatado quanto aocontrolo da contrapartida mínima apresentada pelo oferente.

Neste contexto, é reveladora a evolução registada sobre o tema pela jurisprudência daCour d’Appel de Paris: após uma tendência inicial em que considerava o controloefectuado pelo então existente Conseil des Bourses de Valeurs limitado à correcção de errosmanifestos da apreciação de contrapartida, sustenta agora, em formulação maisexigente, que a mencionada autoridade administrativa deve zelar para que acontrapartida proposta não seja lesiva dos interesses dos minoritários130/131.

O ponto releva para analisar o n.º 2 do art. 188.º do nosso Código dos ValoresMobiliários, segundo o qual na falta de determinabilidade da contrapartida porrecurso aos critérios referidos, ou se a CMVM entender que a contrapartida, emdinheiro ou em valores mobiliários, proposta pelo oferente não se encontradevidamente justificada ou não é equitativa, por ser insuficiente ou excessiva, a

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Sociedades, cit., 33-34

125ROBERTO WEIGMANN, La Nuova Disciplina delle OPA, cit., 207.

126Para uma análise dos motivos conducentes a uma escalada de ofertas com contrapartida em acções nos EstadosUnidos – e apontando o menor esforço financeiro pelo oferente e a sobrevalorização recente de alguns títuloscomo alguns dos motivos plausíveis para este fenómeno -, cfr. MARCEL KAHAN, Jurisprudential and Transactional

Developments in Takeovers, in KLAUS HOPT/ HIDEKI KANDA/ MARK ROE/ EDDY WYMMERSCH/ STEFANPRIGGE, Comparative Corporate Governance – The State of the Art and Emerging Research, Oxford, (1998), 691-694.

127A expressão é de FRANCESCO CARBONETTI, La nuova disciplina delle offerte pubbliche di acquisto, cit., 1363.

128Cfr. arts. 105.º, n.º 2, 240.º, n.º 4, 235.º, n.º 1. a), 241.º, n.º 2 e 242.º, n.º 4, todos do CSC.

129Deveres de informação e formação de preços no mercado de valores mobiliários, cit., 85, n.14.

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É esta a grande dificuldade que rodeia a fixação dos limites percentuais constitutivosdo dever de lançamento de OPA. Este é, igualmente, o motivo principal pelo qual emalguns ordenamentos jurídicos prescinde-se da utilização de uma fasquia quantitativaprecisa para delinear o dever de lançamento da oferta. Embora sendo uma técnica emdeclínio (a Itália abandonou-a em 1998, com a aprovação do Testo Unico135), é ainda aque é utilizada no sistema jurídico belga, relevando aqui o controlo verificado de factosobre a sociedade visada, o que é detectado através do conceito qualitativo deinfluência decisiva naquela sociedade136.

Como resulta da análise precedente, a solução apresentada pelo ordenamentonacional distingue-se claramente da vigente na Bélgica, ao assentarfundamentalmente em previsões quantitativas para detectar a constituição do dever.Veja-se, nomeadamente, que para o direito nacional não é relevante o domínioconsumado que se traduza em percentagem de direitos de voto situada aquém dolimite mais baixo consagrado no art. 187.º. Porém, no Código dos ValoresMobiliários é ensaiada uma forte aproximação ao conceito material de domínio, aqual acaba por se revelar decisiva na legitimação substancial do instituto.

Consequentemente, este aspecto, adiante analisado, singulariza o sistema nacional noplano comparatístico, acabando por situá-lo a meio caminho entre, de um lado, osordenamentos que consagram, tão-só, previsões quantitativas rígidas ligadas àpercentagem de direitos de voto detida no universo dos valores mobiliários visados e,de outro lado, os sistemas que recorrem a cláusulas gerais de domínio.

II. A aproximação ao conceito material de domínio a que se pretende fazer referência érevelada na circunstância de o art. 187.º, n.º 2, determinar que o lançamento da ofertanão é exigível quando, ultrapassado o limite de um terço, a pessoa que estaria obrigada aolançamento da oferta provar não ter o domínio da sociedade visada nem estar com esta em relação de grupo.

Este constitui um expediente de afastamento do dever que apenas vale para a fasquiado terço dos direitos de voto. O que significa que a ultrapassagem de metade dosdireitos de voto não consente o afastamento do dever mesmo para quem prove não

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III. As técnicas de exclusão do dever

10. A prova negativa do domínio

I. A técnica legislativa de exclusão do dever repousa, no Código dos ValoresMobiliários, em quatro institutos diferentes – a prova negativa do domínio, aderrogação, a suspensão e a substituição132 – com pressupostos distintos de aplicação.Preliminarmente à sua análise, e para entender a ratio que lhes está subjacente, convémrelembrar que o estabelecimento de um dever de lançamento de OPA depende deuma ponderação entre, de um lado, as preocupações de protecção dos investidores e,de outro lado, a eficiência dos mercados. Assim sucede, de resto, em toda a regulaçãomobiliária, como nos demonstra, por exemplo, o art. 352.º, que hierarquiza comoprioritários, no plano da supervisão, os princípios de protecção dos investidores e daeficiência e da regularidade do funcionamento dos mercados.

A imposição deste dever de apresentação de oferta, aliás, não traduz qualquer juízo dedesconfiança ante as mudanças de controlo de sociedades aberta, cujos efeitos – vistosà luz da análise económica do direito – acabam por ser benéficos sobretudo quanto aoincremento da eficiência alocativa no mercado133. Porém, todo o regime das ofertaassenta no reconhecimento da necessidade de salvaguardar a posição dos accionistashavendo transição de controlo, o que, do ponto de vista pré-legislativo, ganhaconforto na circunstância de a protecção dos investidores instilar confiança nosmercados, acabando por resultar em benefício duplo – dos investidores e dosmercados.

Todavia, não é aconselhável que a disciplina das ofertas denote uma severidadeexcessiva nos limites percentuais constitutivo do dever, pois que tal pode, por seulado, conduzir a um efeito perverso de inibição de ofertas e paralisação do mercadode controlo accionista134. Neste quadro, interessa atingir um fino e difícil equilíbrio,relevando atender às singularidades do mercado, à dispersão média accionista, e àsimplicações no regime societário vigente em cada ordenamento.

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ALAIN DE FOUCAUD/ ANDRÉ GOIX, Les Règles Relatives à la Fixation du Prix en Matière d’Offres Publiques, cit., 61-64;MARIE-JOSÈPHE VANEL, La Regulation des Offres Publiques en France, cit., 46.

131Em Espanha, a doutrina também sublinha a grande margem de discricionariedade que assiste à CNMV naaprovação da contrapartida, na falta de uma indicação da ponderação a utilizar entre os vários critériospossíveis. Não há, por exemplo, a necessidade de observar a média em relação a todos eles: cfr. CARDENASSMITH, Regimen Juridico de las Ofertas Publicas de Adquisicion, Madrid, (1993), 73-74.

132Quanto à substituição, esta qualificação é provisória, uma vez que, embora permitindo afastar o cumprimentopelo sujeito originário, esta figura conduz ao cumprimento do dever: cfr. infra, 3.º 15. I.

133ROBERTA ROMANO, A Guide to Takeovers: Theory, Evidence and Regulation, cit, 3-27; LAURA SCHIUMA, Controllo,Governo e Partecipazione al Capitale, Padova, (1997), 296-299.

134JONATHAN R. MACEY, Takeovers in the United States: a Law and Economics Perspective, in Quaderni di Finanza, n.º 32(Mar.1999), 35-36; MARCO PAGANO/ FAUSTO PANUNZI/ LUIGI ZINGALES, Osservazioni sulla riforma delladisciplina dell’opa, degli obblighi del possesso azionario e deilimiti agli incroci azionari, cit., 159-161.

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Em primeiro lugar, a presunção de domínio é ilidida com a demonstração de que umaccionista, numa ligação com outros accionistas que seja relevante para efeito dodireito dos grupos, detenha pelo menos o mesmo número ou mais direitos de voto nasociedade visada, em comparação com os detidos pelo interessado e respectivas pessoasconcertadas.

Em segundo lugar, na Áustria o domínio também é afastado provando-se que umaccionista, em concertação com outros accionistas, com base num acordo relativo aoexercício do voto, detenha pelo menos o mesmo número ou mais direitos de voto nasociedade visada, comparativamente com os detidos pelo interessado e respectivaspessoas concertadas140.

IV. Regressando agora ao direito português, importa procurar antever como seproduz esta prova negativa do domínio, que o art. 187.º, n.º 2, esclarece dever serfeita perante a CMVM.

Deve dizer-se, em primeiro lugar, que à luz do mencionado preceito o interessadonão precisa de provar quem detém o domínio. Na Áustria, como vimos, alinha-sesensivelmente pela mesma ideia, na medida em que é facultado o afastamento dapresunção de domínio com a mera demonstração de que outro detém idênticaparticipação, medida em termos de direitos de voto.

No entanto, a verdade é que o conceito de domínio pressupõe a exclusividade: o nosso direitoconhece o domínio plurisubjectivo – designadamente, nos contratos de grupoparitário e em sociedades cujo controlo conjunto seja estruturado na base de acordosparassociais; mas é avesso ao duplo controlo sobre a mesma sociedade, entendido esteenquanto domínio detido em simultâneo por mais que uma pessoa, não estando estasconcertadas entre si.

Assim, dir-se-á que a prova do domínio por um terceiro – individual ou concertado –não constitui elemento necessário na prova negativa do domínio, mas constituirácondição suficiente para ilidir a presunção do domínio.

Em concretização do exposto, julga-se que a demonstração da verificação, por partede um terceiro, de qualquer dos indícios previstos no n.º 2 do art. 21.º bastará paraexcluir a exigibilidade do dever de lançamento de oferta.

Porém, em comparação com o regime austríaco, pode afirmar-se que no nossodireito a demonstração de domínio por parte de terceiro não se faz exclusivamente nabase da demonstração da titularidade da maioria dos direitos de voto. A indicação

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deter o domínio. Neste sentido, pode dizer-se que a detenção de metade dos direitosde voto, na economia deste regime, acaba por resultar como uma presunção inilidível deaquisição do domínio nas sociedades abertas.

Tal resulta coerente com a técnica empregue em geral no Código dos ValoresMobiliários, quanto à delimitação do domínio, neste ponto divergente da encontradano Código das Sociedades Comerciais. Veja-se que no art. 21.º, n.º 2, alínea a), dalei mobiliária a detenção da maioria dos direitos de voto é considerada, iuris et de iure,como relação de domínio – ao passo que na disciplina societária a detenção damaioria dos direitos de voto apenas serve de presunção ilidível da existência de relaçãode domínio (art. 486.º, n.º 2, a) CSC)137.

Deste ponto de vista, a possibilidade de apresentação de prova negativa do domíniocontribui para trazer maior ajustamento à realidade infrajurídica a um modelolegislativo que assenta em ficções legais no cômputo das participações qualificadas(arts. 20.º e 21.º, n.º 2). Além disso, este mecanismo contorna os problemas ligadosà aleatoriedade do limiar mais baixo a constituir o dever de lançamento, não caindopor seu turno no sistema, dificilmente controlável pela autoridade de supervisão, dedependência única de uma cláusula de domínio.

III. Na averiguação do que poderá constituir demonstração de inexistência dedomínio para efeitos do art. 187.º, n.º 2, e antes de se examinar o direito nacional,tem enorme interesse confrontarmo-nos com a experiência do direito austríaco.

Como nos permitimos relembrar, na Áustria foi determinado um dever delançamento de oferta pública de aquisição para os detentores de uma participação queassegure o domínio, de acordo com o 22 da Übernahmegesetz138. O conceito de domínio,para efeito de tal prescrição normativa, foi concretizado através de um decreto daComissão austríaca das OPA de dois modos diferentes, cumulativos entre si, emtermos que importa explicitar.

De um lado, existe o acolhimento de indícios semelhantes aos que vigoram no nossoart. 21.º, n.º 2, CVM: o domínio é irrefutavelmente revelado através da detençãomaioritária de direitos de voto, através do direito a nomear ou a destituir a maioria dosórgãos sociais ou quando houver a susceptibilidade de exercer influência dominante139.

De outro lado, no direito austríaco presume-se a existência de domíniodesignadamente se houver a detenção de pelo menos 30% dos direitos de voto dasociedade visada. Ora, tal presunção, por seu turno, pode ser afastada através de umde dois expedientes, seguidamente descritos.

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Em defesa da solução que logrou consagração no actual texto normativo, cfr. nomeadamente ASSOCIA-ZIONE DISIANO PREITE, Rapporto sulla Società Aperta, cit., 137-138.

136Art. 5 do Arrêté Royal de 10 de Maio de 1989: cfr. a propósito EDDY WYMEERSCH (ed.), The proposal for a 13th

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submeta a uma regime de especial vigilância.

Assim, nos termos do art. 187.º, n.º 3, tal pessoa fica vinculada a dois deveres: de umlado, constitui-se o dever de informação, perante a CMVM, de qualquer alteração depercentagem de direito de voto de que resulte aumento superior a 1% em relação àparticipação anteriormente comunicada. De outro lado, é cominado um dever delançamento de oferta pública de aquisição logo que atinja posição que permita exercerinfluência dominante na sociedade visada.

Não há uma explícita delimitação do âmbito temporal do n.º 3 do art. 187.º, masjulga-se que estes deveres se mantêm enquanto a posição do interessado não descer,em termos percentuais, abaixo do terço de direitos de voto.

A estatuição do dever consagrada na alínea b) do n.º 3 do art. 187.º não se confundecom uma nova ultrapassagem do limite do terço dos direitos de voto. Se o oferente,após prova negativa do domínio, baixar do terço e depois voltar a ultrapassar estafasquia, deve novamente afastar a presunção ou lançar uma oferta – mas, neste últimocaso, se o fizer, será ao abrigo do n.º 1 do art. 187.º e não do n.º 3 do mesmopreceito.

Na alínea b) do n.º 3 do art. 187.º está em causa, por isso, que algum elementofáctico na base da prova negativa do domínio deixou de se verificar (o que sucederá,designadamente, se o terceiro dominante deixou de deter o domínio) ou se por outromotivo passar a existir influência dominante na sociedade aberta em questão (será,por exemplo, o caso de a sociedade adquirir acções próprias, fazendo aumentarrelevantemente a posição do accionista em questão, medida em termos depercentagem dos direitos de voto).

11. As derrogações

I. O tema das derrogações sofreu radicais modificações com o novo diploma, para seadequar à filosofia de simplificação do Código e para contrabalançar a redução deprevisões constitutivas do dever. De facto, o Código de 1991 arrolava extensivamentenos arts. 528.º-A e 529.º casos de derrogações e dispensas, somando, ao todo,dezasseis válvulas de escape a isentar o lançamento do processo aquisitivo.

Em claro contraste com o regime anterior, o Código dos Valores Mobiliários reduz a

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fundamental para efeitos da delimitação do conceito de domínio, resultante do art.21.º, n.º 1, reside na existência de uma influência dominante sobre a sociedadevisada.

Dir-se-á, pois, que o afastamento do dever de OPA, ex vi do art. 187.º, n.º 2, podeverificar-se através de dois meios alternativos: quer através da prova de influênciadominante de terceiro – ainda que em fundamentos diversos dos constantes do n.º 2do art. 21.º; quer mediante a demonstração da inexistência de uma influênciadominante por parte de quem ultrapassou o terço dos direitos de voto.

Todavia, neste último caso, uma vez que o elenco do n.º 2 do art. 21.º do Código nãoé exaustivo quanto aos indícios do domínio, não pode bastar ao interessadodemonstrar a não verificação dos três indícios deste preceito. Facilmente se entende,aliás, não ser designadamente bastante a demonstração da titularidade de umapercentagem inferior a metade dos direitos de voto; é que a ser de modo contrário talretiraria autonomia do limite do terço dos direitos de voto como facto constitutivo dodever. Assim, é necessário demonstrar que, além de se não atingir a metade dosdireitos de voto ou os outros dois indícios do n.º 2 e 3 do art. 21.º, não existeinfluência dominante para haver o recurso ao art. 187.º, n.º 2.

Assim, a existência de influência dominante resulta igualmente como critériofundamental na prova negativa de domínio, podendo neste particular ser aproveitadosos avanços societários que, a propósito do art. 483.º, n.º 1, CSC, têm sido patentesna densificação deste conceito.

Um campo aplicativo importante para a prova negativa do domínio diz respeito aoscontratos preliminares de aquisição – contratos de opção ou contratos-promessa decompra e venda – na medida em que a sua celebração implicará a imputação dosdireitos de voto, o que pode conduzir à constituição do dever antes de ter existidoaquisição. Pois bem: nestes casos, se o promitente comprador fizer prova da nãocelebração do contrato definitivo, poderá resguardar-se na exclusão do dever ex vi doart. 187.º, n.º 2. Note-se porém que, dado que a detenção de direitos de voto nãofunciona como critério único na aferição do que o Código entende por domínio141, ointeressado nesse caso deve demonstrar não ter antecipado a influência societária queapenas a aquisição consumará.

V. No art. 187.º, a lei não prescreve um prazo durante o qual deve ser feita a provanegativa do domínio. Atendendo ao espírito do dever e aos imperativos de certeza,julga-se que essa demonstração nunca pode ser feita além do período de 30 dias,indicado como prazo para publicação do anúncio preliminar, no art. 191.º.

VI. A demonstração da inexistência de domínio conduz a que o interessado se

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Company Law Directive on takeovers: a multi-jurisdiction survey in European Financial Services Law (Jan. 1997), 2-3; Id., TheMandatory Bid: A Critical View, cit., 352-354 (354).

137Deste ponto de vista, o regime mobiliário tornou-se mais próximo – embora em termos não totalmente

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apenas nas situações em que o oferente não crê ultrapassar os limiares deobrigatoriedade e, apostando nessa eventualidade, prefere oferecer um preço maisbaixo para uma parcela do universo de titulares dos valores mobiliários emitidos pelavisada.

Por outro lado, este regime desencoraja, na prática, as tomadas de domínioperpetradas através de duas ofertas geminadas (as já atrás analisadas two tier front-endedbids)144. Os destinatários de uma primeira oferta, perante a eventualidade de se lheseguir uma oferta que, por imposição do art. 188.º, deverá seguir um preço maiselevado, não se sentirão pressionados a vender na primeira oferta. Até pelo contrário;mais facilmente os accionistas serão, por esta via, tendencialmente estimulados aalienar na segunda oferta, até porque é certo que, por força do art. 188.º, n.º 1 alíneaa), nunca lhes poderá ser então oferecido preço inferior ao proposto na oferta inicial.A sua decisão de (des)investimento será livre, o que permite o funcionamento regulardo mercado de controlo accionista.

III. A derrogação encontrada na alínea b) tem em linha de conta que uma aquisiçãoaos preços referidos o art. 188.º pode, em certas circunstâncias, impedir osaneamento financeiro de empresas em dificuldades.

A justificação do preceito reside, além do mais, na circunstância de os planos degestão controlada implicarem uma suspensão dos órgãos sociais durante o período deexecução dessa providência de recuperação financeira, com o inerente prejuízoquanto ao exercício do direito de voto em assembleia geral145. Nesse cenário, o

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três situações as hipóteses de derrogação do dever, consagradas no art. 189.º.

Todas as cláusulas derrogatórias são de funcionamento automático, inexistindo agoraa figura da dispensa. Há, neste sentido, uma privatização do dever, na medida em que sediminui a dependência das decisões administrativas, em benefício de hard and fast rules.

II. Para efeitos da alínea a) do n.º 1 do art. 189.º, a aquisição de acções efectuadaatravés de OPA apenas beneficia de derrogação de oferta subsequente se aquela ofertacumprir dois requisitos: em primeiro lugar, deve ter sido lançada sobre a totalidadedas acções e valores mobiliários que dêem direito à sua subscrição ou aquisição; emsegundo lugar, a derrogação funcionará apenas se o preço mínimo e a alternativa emdinheiro, nos termos do art. 188.º, tiver sido respeitado na sobredita oferta.

Neste contexto, é preciso lembrar o lançamento de oferta voluntária não força àobservância do princípio da universalidade ou ao respeito das regras sobre o preçomínimo. Assim, interessa traçar o quadro de possíveis saídas, podendo uma de trêshipóteses ocorrer.

1.ª hipótese:Uma pessoa, sem estar constituída no dever de lançamento de oferta, podedecidir dirigir uma oferta pública de aquisição voluntária. Nessa circunstância, olançamento de uma oferta pública de aquisição pode realizar-se sem observância dosarts. 187.º e 188.º. Se, no apuramento dos resultados da oferta, se os valoresmobiliários adquiridos se quedarem abaixo dos limites que determinariam olançamento obrigatório de OPA, não chega a haver implicações com o dever delançamento de OPA.

2.ª hipótese:Caso seja lançada oferta voluntária sem obediência a estas directrizes, sendoultrapassado um dos limiares constitutivos do dever, segue-se uma outra oferta, destavez obrigatória, por efeitos do art. 187.º. Como vimos, neste caso, à constituição dodever não se opõe o art. 186.º 142.

3.ª hipótese: Finalmente, se forem observados os requisitos do art. 189.º na ofertavoluntária, o oferente não se verá constrangido a lançar segunda oferta, desta feitapara legitimar a posteriori a fatia de domínio adquirida pela OPA.

Este sistema conduz a resultados que podem ser avaliados positivamente de diversasperspectivas. De um lado, não estimula as ofertas voluntárias parciais, como já foireferido143; e funciona como contramotivação para ofertas voluntárias a preçosinferiores aos que resultariam da aplicação do art. 188.º. Este efeito fica prejudicado

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coincidentes – do conceito de domínio existente no art. 13.º, n.º 2, da lei bancária. O ponto não podedesenvolver-se nesta sede, mas a verdade é que a diversidade de técnicas legislativas reveladoras do domínio étão frequente quanto insatisfatória em termos da coerência sistemática do ordenamento jurídico: cfr. apropósito PAULO CÂMARA, O governo dos grupos bancários, in Estudos de Direito Bancário, Coimbra, (1999), 142-146.

138Cfr., em anotação à proposta legislativa na base deste normativo, PETER DORALT/ CHRISTIANNOWOTNY/ MARTIN SCHAUER, Takeover-Recht, cit., 265-268.

1391 Verordnung der Übernahmekommission vom 9.März 1999 zum Übernahmegesetz (1.ÜbV).

1402 1.ÜbV.

141Cfr. art. 21.º, n.º 2 do Código dos Valores Mobiliários.

142Cfr. supra, 1.º, 2. IV.

143Cfr. supra, 2.º, 5. III.

144Cfr. supra, 2.º, 5. I.

145Cfr. art. 105.º do Código dos Processos Especiais de Recuperação de Empresa e de Falência.

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visada, na medida que nesse caso os potenciais destinatários da oferta não tinhamlegitimado, com o seu voto, a concentração. A mesma conclusão, aliás, relativa àinaplicabilidade do art. 189.º é de manter ainda que a assembleia geral da sociedadeaberta venha ulteriormente a manifestar ad hoc a sua concordância com a fusãoenvolvendo um ou vários sócios, uma vez que assentir numa fusão de outrem (commenores garantias informativas e de fiscalização do processo) é hipótese claramentedistinta da manifestação de vontade para a fusão da própria sociedade – sendo queapenas neste último caso a cláusula derrogatória tem aplicação150.

12. A exclusão do dever em situações de domínio fortuito;principais modelos legislativos

I. Paralelamente à redução do número de previsões a delimitar negativamente o deverde lançamento de oferta, o art. 190.º introduziu a figura, nova entre nós, da suspensãodo dever de lançamento de oferta.

Segundo o que se prevê nesse preceito, a pessoa vinculada ao lançamento compulsivode uma oferta de aquisição pode proceder à suspensão do dever, caso se obrigue a pôrtermo à situação constitutiva do mesmo no prazo de 120 dias.

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decurso de período de saneamento poderá deparar-se com a manutenção daqualidade de sociedade aberta da empresa em dificuldades financeiras, o que – porforça do art. 109.º, n.º 3 a) – faz com que todas as ofertas dirigidas à generalidadedos accionistas se qualifiquem como públicas, com todas as consequências ao nível doregime daí decorrentes. A este propósito, lembre-se que a assembleia de credores nãopode deliberar a perda de qualidade de sociedade aberta, uma vez que o art. 27.º, n.º1, alínea c) do Código dos Valores Mobiliários dispõe que o órgão competente paraadoptar a deliberação de perda é a assembleia geral.

IV.O fundamento da derrogação fundada na alínea c) do n.º 1 do art. 189.º repousa,em primeiro lugar, na maior legitimação desta técnica de concentração, uma vez que aconcretização da fusão envolve necessariamente a aprovação por parte dos órgãos deadministração e das assembleias gerais das sociedades que serão fusionadas146. Alegitimação assenta, como é evidente, sobretudo na circunstância de haver deliberaçãodo colégio de sócios, a qual é adoptada pela maioria exigida para a alteração docontrato de sociedade, que deve pronunciar-se nomeadamente sobre a relação detroca das participações sociais na sociedade incorporante ou resultante da fusão (art.103.º, n.º 1 CSC)147.

Aliás, a fusão é estruturalmente uma técnica que mantém a dispersão, logrando atépotenciar a fragmentação da propriedade accionista. Não há, nessa medida, fora adiluição tendencial da participação accionista, uma alteração qualitativa do estatuto desócio em relação à abertura de capital da sociedade ou, mais latamente, à concentraçãoempresarial resultante da fusão.

É de menor importância a referência a que, em caso de fusão, os sócios que tenhamvotado contra o projecto de fusão podem ter assegurado, pelos estatutos, o direito deexoneração, de acordo com a possibilidade prevista no art. 105.º CSC148. De facto, –e a meu ver, lamentavelmente –, na prática societária nacional, é muito rara aestipulação estatutária respeitante ao direito de exoneração surgido neste contexto.

Importa deixar claro que esta cláusula derrogatória, valendo embora qualquer que sejaa modalidade de fusão em causa – fusão simples ou fusão por incorporação –, apenasse aplica caso a sociedade aberta seja ela própria objecto de fusão149. A este resultado chega- sepor consideração do elemento teleológico da norma em apreço, uma vez que só assimse assegura a protecção e a paridade de tratamento dos sócios que faz isentar olançamento de oferta. Por outras palavras, não beneficiaria da derrogação a fusão deuma (ou várias) sociedade(s) dominante(s) da sociedade aberta (potencialmente)

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146Não se esquece, evidentemente, o facto de ser consentida uma hipótese excepcional de consumação de fusãosem deliberação da assembleia geral das sociedades a serem fusionadas, prevista no art.116.º do Código dasSociedades Comerciais, em aplicação dos arts. 24 e seguintes da Terceira Directiva comunitária em matéria de

direito das sociedades (Dir. 78/855/CEE). Sucede, porém, que a designada fusão abreviada apenas se aplica àssociedades em relação de domínio total (que devem, demais, observar os requisitos constantes do n.º 3 doart. 116.º CSC), o que é estrutura accionista precisamente simétrica à verificada nas sociedades abertas.

147Não é indiferente reter que nestas situações o voto por correspondência não pode ser suprimido, de acordocom o art. 22.º, n.º 2 CVM.

148Sobre o tema: RAÚL VENTURA, Fusão, Cisão e Transformação de Sociedades, Coimbra, (1990), 36-40, 138-148.

149Releva mencionar que, perante cláusula derrogatória semelhante no Testo Unico, a autoridade de supervisãoitaliana, em intervenção regulamentar, sustentou a sua não aplicação a fusões de conveniência, gizadas paraescapar à constituição do dever e não para obter uma racionalização de meios e uma sinergia económica entreas sociedades fusionadas: cfr. a propósito o art.49 f) do Regulamento da Consob n.º 11971/99, e de modocrítico, ante a vaguidade do texto regulamentar, LUCA PICONE, Le Offerte Pubbliche di Acquisto, cit., 233-234;PIERGAETANO MARCHETTI/ LUIGI ARTURO BIANCHI, (ed.) La Nuova Disciplina delle Società Quotate, cit.,383-387.

150Uma análise casuística destas situações, à luz dos últimos desenvolvimentos verificados no direito francês dasofertas, pode encontrar-se em HENRI HOVASSE, La fusion de sociétés dans la réforme des offres publiques d’acquisition, inRevue de Droit Bancaire et de Bourse, n.º 71 (Jan. Fev. 1999), 3-5.

151A disposição tem antecedentes no Réglement Géneral do Conseil de Bourses de Valeurs, no seu art.5.4.6.b, sendo deutilização infrequente na vigência desta diploma, já revogado (ALAIN VIANDIER noticia apenas uma

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OPA se no prazo de seis meses após se atingir metade dos direitos de voto for realizadauma oferta pública de venda relativamente ao excedente que determinaria aconstituição do dever. Nesse caso, a oferta pública de venda não pode realizar-se apreços superiores do que aqueles a que seria lançada a OPA157.

III. Estes dados recolhidos de sistemas jurídicos próximos são importantes pararevelar um número significativo de soluções legislativas que procuram instituirprevisões de exclusão do dever em caso de detenção transitória que ultrapasse limiarescríticos. A partir daqui, infere-se que este expediente não representa uma fractura intra-sistemáticaao modelo de lançamento compulsivo de oferta, de tal modo que, só inserido nessa sistemática, pode sercabalmente compreendido.

Todavia, verificam-se algumas diferenças de regime que tem interesse assinalar,designadamente para melhor poder enquadrar as soluções nacionais. Este exercíciomostra-se igualmente útil para entender que estes expedientes de afastamento dodever, embora unificados pela transitoriedade de aquisição, visam dar resposta asituações diferentes.

Assim, repara-se em primeiro lugar que na maioria dos sistemas compulsados nãoexiste um condicionamento quantitativo das aquisições transitórias – tendência que éacompanhada pelo Código dos Valores Mobiliários português. Todavia, esta limitaçãoé introduzida no direito francês e no direito italiano, coincidindo em ambos casoscomo máxima a fasquia percentual de 3%.

De outro lado, deve anotar-se o predomínio dos sistemas que limitam temporalmentea aquisição transitória a beneficiar do desvio ao dever de lançamento de oferta públicade aquisição. Porém, a verdade é que não é coincidente o limiar temporal máximo,sendo a solução nacional mais restrita, ao dispor 120 dias como prazo máximo(art. 190.º CVM), o que a separa dos sistemas francês e italiano, que prevêem ocondicionamento temporal respectivamente a 6 e a 12 meses. São excepções, nestepanorama, os sistemas suíço e alemão, que neste contexto não especificam um lapsotemporal máximo para a detenção transitória.

Há também diferenças de estrutura na conformação do instituto, cumprindodistinguir as previsões de natureza autorizativa, com interferências jurídico-públicas, eas previsões de natureza potestativa, que se enquadram em esquemas de direitoprivado158. Dentro do primeiro grupo, em França e na Suíça, a técnica de exclusão dodever repousa numa decisão derrogatória tomada por uma autoridade de supervisão,o que se depara com os óbices que podem apontar-se à interposição de actosadministrativos, designadamente a dependência de uma possível flutuação decisória159.

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A depuração dos enunciados normativos, já detectada ao longo do Código, e aconfiança no sistema jurídico atinge aqui um dos expoentes máximos, na medida emque o legislador se limita a indicar que a eficácia da suspensão depende de umacomunicação dirigida à CMVM. A atenção no exame do dispositivo deve, pois, serredobrada.

II. A análise do regime jurídico da suspensão do dever de lançamento de oferta podeser enriquecida através do recenseamento dos antecedentes em ordenamentospróximos.

Assim, no direito francês, o art. 5-5-2 do Réglement Général do Conseil des Marchés Financiersdispõe que esta autoridade de supervisão pode autorizar, em condições a seremtornadas públicas, que ocorra uma ultrapassagem temporária da fasquia relevante, dedireitos de voto ou capital social, que não exceda 3%. O período de detenção nãopode exceder seis meses, estando durante esse período os adquirentes impedidos deexercer os direitos de voto relativos à fasquia em causa151.

Este expediente terá manifestado influências na conformação do regime italiano152,que prevê o afastamento do dever de lançamento de OPA se a ultrapassagem da fasquiacrítica de trinta por cento é superada em não mais de 3%, desde que o adquirente secomprometa a transmitir as acções excedentárias em doze meses e se vincule a nãoexercer o respectivo direito de voto153. O não cumprimento do dever é sancionadocom o dever de lançamento de oferta ao preço mais elevado que resultaria da aplicaçãodas regras sobre preço mínimo nos doze meses anteriores154.

Na Suíça, prevê-se a faculdade de derrogação do dever de lançamento de oferta se olimiar relevante é ultrapassado temporariamente, a qual será exercida se a exclusão dodever se impuser por motivos justos (aus wichtigen Gründen)155.

Não é distante a solução decorrente do direito alemão, em que se prevê um desvio àconstituição do dever se existe uma ultrapassagem temporária do limiar de metade dosdireitos de voto pelo accionista maioritário com o intuito de uma ulterior distribuiçãodos valores mobiliários a terceiros156.

Sobra mencionar que, em Espanha, não é considerado obrigatório o lançamento de

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utilização: cfr. OPA, OPE, Garantie de Cours, Retrait, OPV, cit., 226-227).

152PIERGAETANOMARCHETTI/ LUIGI ARTURO BIANCHI, (ed.) La Nuova Disciplina delle Società Quotate, cit., 380.

153Cfr. art. 49.º, n.º 1 e) e n.º 2 c), do Regolamento recante norme di attuazione del decreto legislativo, 24 de Fevereiro de1998, n. 58, relativa aos emitentes. Esta norma vem desenvolver o disposto no art. 106.º, n.º 5 d) do TestoUnico Finanziario.

154A formulação legislativa consente margem para algumas dúvidas quanto ao limiar temporal relevante, uma vezque devem articular-se os doze meses anteriores à aquisição e os doze meses de detenção legítima transitória:cfr. a propósito LUCA PICONE, Le Offerte Pubbliche di Acquisto, cit., 231.

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Além disso, em confronto com os sistemas perfilhados em ordenamentos próximos, asolução nacional repousa nos instrumentos jurídicos gerais, sobretudo ao orbitar emtorno de um direito potestativo161. Deve, por isso, convocar-se todo o direito privadopara examinar o regime jurídico da suspensão do dever, em particular quanto aosrequisitos da sua utilização, quanto à pendência da suspensão e quanto à cessação dosseus efeitos.

II. O texto preambular do DL n.º 486/99, de 13 de Novembro, fornece umaindicação no tocante ao fundamento do expediente de suspensão do dever no novoCódigo nacional, que revela decisiva importância na fixação do sentido inerente aoinstituto, em particular no tocante aos limites para a sua utilização. Tem-se em vista,segundo o que consta do preâmbulo, dar resposta às situações de domínio conjuntural162.

Assim sendo, este ponto do Código vai de encontro à evolução registada no novoCódigo no sentido de aproximar o dever de lançamento de OPA à situação que ofundamenta – a transição de domínio já consumada – o que já foi notado a propósitoda relevância atribuída à prova negativa do domínio (art. 187.º, n.º 2 e n.º 3, b)) e daqualificação da oferta em cumprimento do dever como subsequente163. O próprioPreâmbulo do Código confessa a ligação entre a suspensão do dever e o critério do domínioefectivo, como parâmetro para calcular a posição accionista relevante.

Deve, porém, ser efectuada com cautela a aproximação entre este instrumento e oconceito material de domínio, presente em outras áreas jurídicas. Refiro-me, emparticular, no direito das sociedades, às leituras doutrinárias que exigem umaestabilidade temporal mínima para revelar a existência de influência dominante. Estascoordenadas apresentam, porém, duas ordens de restrições. A estabilidade temporal éentendida em grau variável, em função do instrumento de domínio utilizado164. Deoutro lado, é também feita a ressalva – que adiante retomarei – quanto às situações emque o dominante se aproveita da sua influência para a exercer em momento decisivo,ainda que fugaz, que tal lhe aproveite165.

O ponto não deve ser descurado, porquanto esta delimitação em torno do conceito dedomínio goza de alguns reflexos no nosso ordenamento, na área bancária. Um argumento

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É por isso hipótese próxima – na sua estrutura, conquanto que não na suafundamentação – da dispensa de lançamento de oferta, que o Código de 1999precisamente pretendeu evitar. A opção do direito português por um expediente deraiz privada é acompanhada pelos direitos italiano, alemão e espanhol.

Repara-se igualmente uma falta de sintonia das disciplinas jurídicas em confronto,quanto à pendência da aquisição transitória, havendo apenas algumas jurisdições aexpressamente declarar suspensos os votos integrantes do lote cuja aquisiçãodeterminou a ultrapassagem do limiar crítico. Nesta corrente filia-se o Réglement Généralfrancês e o Testo Unico Finanziario e, também, o Código português, de acordo com o n.º 3do seu art. 190.º.

Por fim, não deve faltar uma referência à divergência de respostas normativas quantoao modo de fazer cessar a aquisição transitória. A tendência mais expressiva é a deconsiderar o efectivo termo da ultrapassagem do limiar crítico como dever doadquirente. Além disso, o direito alemão, tal como o português, impõe que adistribuição seja efectuada a terceiros – cabendo, mais à frente, dilucidar o conceitode terceiros empregue pelo direito nacional neste âmbito160.

O esquema espanhol, de seu lado, singulariza-se ao fazer impender uma mera“obrigação” de meios e não de resultado quanto ao termo da situação de domínio nãolegitimada por oferta pública de aquisição. Tem, todavia, o mérito de, neste contexto,vedar explicitamente as ofertas públicas de venda dirigidas a preços elevadospropositadamente para desmotivar a sua aceitação.

13. Continuação: a suspensão do dever de lançamento

I. Na posse destas conclusões, impõe-se apreciar ao regime previsto no art. 190.º doCódigo dos Valores Mobiliários que, como se viu, trata a situação como de suspensão dodever, no que não é acompanhado por nenhum dos ordenamentos compulsados.

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155Art. 32, n.º 2 da Börsengesetz e art.34, n.º 1, da Börsenordnung.

156Art. 16 Übernahmekodex.

157Art. 3.1.c) do Real Decreto1197/1991, de 26 de Julho, na versão modificada pelo Real Decreto 1676/1999, de29 de Outubro. Cfr. também LUIS DE CARLOS BRETRAN, Regimen Juridico de las Ofertas Publicas de Suscripcíon yVenta de Valores Negociables, Madrid (1999), 70-72.

158Atentas as conclusões, atrás extraídas, sobre a inexistência de uma relação jurídica a enquadrar o dever delançamento de oferta (cfr. supra, 2.º, 3.IV), inexiste sujeição a que corresponda simetricamente o poder de

suspensão.

159Não se pretende aqui, evidentemente, ensaiar críticas aos ordenamentos referidos no texto, que aliás seriamsempre descabidas. Pretende-se, tão-só, prevenir para algumas dificuldades de ordem aplicativa que, aosolhos de um intérprete estrangeiro, tais institutos levantam.

160Sobre a concretização do conceito de terceiro no direito nacional, cfr. infra, 14.

161

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sua eficácia; e, de outro lado, tal decorre da limitação dos sujeitos a quem ointeressado pode alienar os valores mobiliários excedentes169. Tanto o primeiro comoo segundo dos elementos literais apontados denunciam a natureza excepcional do institutoda suspensão do dever de lançar OPA, o que deve ser tido em conta ao nívelinterpretativo.

Além disso, há um argumento de ordem histórica e sistemática que, num momento detransição de códigos, não deve esquecer-se. Tendo a reforma do regime das ofertaspúblicas de aquisição sido dirigida sobretudo a um afinamento formal e de reforço deeficácia do dever, o que é revelador da continuidade substancial dos sucessivos regimes170,deve sobretudo ter-se em mente as situações de exclusão do dever estatuídas no Códigoanterior para o domínio conjuntural, designadamente aquelas em que a aquisição dosvalores mobiliários surge de modo involuntário ou inadvertido, posto que, com o novoCódigo, estas situações foram relegadas para fora das cláusulas derrogatórias.

Raciocinando através do argumento ad absurdum, acrescentar-se-á que a desconsideraçãodeste ponto – e a interpretação meramente literal do preceito – conduziria a umacontradição no modelo de protecção instituído pela OPA obrigatória com resultadosinaceitáveis, no plano da tutela dos interesses subjacentes à disciplina em apreço. Comefeito, o art. 190.º não tem como finalidade a de encontrar um outro sujeito jurídico obrigado ao lançamentoda oferta: tal resultado pode suceder, mas não é forçoso que ocorra. Assim, um entendimento literal doart. 190.º, em sustento de uma utilização irrestrita da suspensão do dever, abriria umabrecha na previsão do art. 187.º, contradizendo valorativamente o sistema que orbitaem torno do dever de lançamento de oferta pública de aquisição, o que nãocorresponde ao espírito do diploma. A utilização da suspensão deve, pelo contrário,fazer-se com extrema prudência, para não perverter o objectivo, confessado noPreâmbulo do Código, e expresso na sistemática deste, que conduziu à sua consagraçãolegal.

A consideração destes elementos não é arbitrária, antes surge como decorrência datecnicidade da interpretação jurídica e dentro dos limites da Ciência do Direito. Nãose apresenta, assim, como mera alternativa interpretativa; impõe-se ao intérpretecomo necessária.

Tudo visto, impõe-se realizar uma interpretação restritiva da proposição normativa

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de direito positivo a corroborar este ponto de vista encontra-se na Directiva n.º 95/26,cuja transposição, operada através do DL n.º 232/96, de 5 de Dezembro de 1996,originou a introdução do n.º 12 no art. 13.º RGIC, exige que o domínio seja duradoiro. É aeste propósito elucidativo o 5.º Considerando do texto comunitário, segundo o qual “osimples facto de adquirir uma percentagem significativa do capital de uma sociedade não constitui uma participação atomar em conta para efeitos da presente directiva se essa aquisição for feita apenas como investimento temporário enão permitir exercer influência sobre a estrutura e a política financeira da empresa”166.

Na transposição destes dados para a área das ofertas públicas de aquisição, é todaviaimportante ter presente que o domínio se define como potencial influênciadominante sobre uma pessoa colectiva, que se verifica mesmo antes de, na prática, serexercido167. Além disso, como já deixei apontado, mercê da ambiciosa técnica deimputação de direitos de voto, vertida no art. 20.º do Código dos ValoresMobiliários, pode existir a superação da fasquia constitutiva do dever de lançamentode oferta sem estar fundada numa aquisição por parte do potencial oferente.

Feita esta ressalva, não deixa naturalmente se relevar a efectividade do domínio, emvirtude, como se disse, da teleologia do dever, que é umbilicalmente ligada àprotecção dos investidores em situações de transição de domínio de sociedadesabertas. Trata-se, demais, de um aspecto que é confortado pela suspensão dos direitosde voto inerentes à participação adquirida transitoriamente, o que ocorreautomaticamente, durante todo o período de suspensão, por força do art. 190.º, n.º3. A este regressa-se adiante168.

III. Embora seja clara e compreensível a teleologia da suspensão do dever delançamento de oferta, tal como denunciada no Preâmbulo do Código dos ValoresMobiliários, interessa todavia notar que não existe referência expressa na letra doart. 190.º à circunstância de a aquisição se perfilar forçosamente como respostanormativa às situações de domínio fortuito.

Uma vez que, em Direito, a actividade hermenêutica não se confina ao elementoliteral da norma jurídica, esta constatação não deve embaraçar o intérprete, dado quea dependência da suspensão face a situações de domínio fortuito, além de resultar dotexto preambular, decorre igualmente, de modo implícito, de dois pontos do regime.Em primeiro lugar, tal depreende-se da necessidade de haver, por parte dointeressado, a assunção de um dever de alienação para a suspensão poder produzir a

258

Cfr. supra, 12. III.

162Cfr. n.º 12 do Preâmbulo do DL n.º 486/99, de 13 de Novembro.

163Cfr. supra, 2.º 3. e 3.º 10.

164MARCO LAMANDINI, Il “Controllo”. Nozioni e “Tipo” nella Legislazione Economica, Milano, (1995), 215-217.

165

ENGRÁCIA ANTUNES, Os Grupos de Sociedades, Coimbra, (1993), 360-365.

166Sobre a desejabilidade de se fazer uma interpretação conforme à Directiva do Regime Geral das Instituições deCrédito e Sociedades Financeiras, vd. PAULO CÂMARA, O governo dos grupos bancários, cit., 142.

167VOLKER EMMERICH/ JÜRGEN SONNENSCHEIN, Konzernrecht6, München, (1997), 41-42; MARCOLAMANDINI, Il “Controllo”. Nozioni e “Tipo” nella Legislazione Economica, cit., 60-69; ANTONIO PATRONIGRIFFI, I gruppi di imprese, in VINCENZO BUONOCORE (ed.), Manuale di Diritto Commerciale2, Torino, (1999),646-647.

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Finalmente, deve considerar-se tendencialmente abusivos os casos em que o adquirente toma ainiciativa de premeditadamente se colocar sob sua alçada para beneficiar da transmissão, em bloco, do lote dedomínio. De modo contrário, estaria aberta a porta para actuações predadoras, aenvolver adquirentes de lotes significativos projectando aquisições significativas para,logo de seguida, alienarem todas as acções detidas em mercado, por exemplo atravésde ofertas públicas de venda, logrando assim uma mais-valia à margem do sistema deobrigatoriedade das ofertas públicas de aquisição174. Lembre-se, aliás, que o expe-diente natural para fazer cessar a suspensão, ao abrigo do art. 190.º, n.º 2, consiste,tão-só, na alienação das acções que excedam os limiares críticos para efeitos do art. 187.ºdo Código.

Concede-se, em todo o caso, que nem toda a utilização premeditada fira os limites daboa fé na utilização do art. 190.º. A aquisição judicial de participações sociais, emexecução de um crédito, constitui um exemplo de uma aquisição que pode serprojectada para se lhe seguir o recurso lícito à suspensão do dever. Tal caso será,contudo, excepcional. Adiante-se também que, neste contexto, merece consideraçãoseparada a aquisição, directamente projectada, de uma sociedade que tenha, de entrediversas participações detidas, uma porção relevante de acções de uma sociedadeaberta. Aí, interessará a apurar, em termos objectivos, a relevância patrimonial daparticipação social na sociedade aberta e o peso relativo que tais participações jogamno objecto social da sociedade adquirida, assim como, em termos subjectivos, aimportância que a aquisição da participação na sociedade aberta mereceu na decisãode aquisição da sociedade gestora de participações sociais175.

Para evitar o risco de conceptualismo, a que a aplicação de institutos concretizadoresda boa fé é adversa, não é possível indicar uma lista exaustiva de situações em que orecurso à suspensão é inatacável. De todo o modo, sempre se dirá que o preceito semostra vocacionado para casos de aquisição por herança ou legado, da ultrapassagemdo limite em decorrência da aquisição de acções próprias da sociedade visada, daaquisição na sequência de contrato de reporte, tomada firme ou garantia decolocação, da aquisição em virtude da redução do universo de direitos de votodecorrente ou da aquisição judicial em virtude de valores mobiliários dados emgarantia de um crédito.

V. É conveniente deixar claro que o reconhecimento de limites à utilização dasuspensão do dever de lançamento da oferta não colide com a natureza potestativa dodireito a requerer a suspensão. Aquele problema é anterior a este, posto que a

261

que consagra este instituto. Daqui resulta que, embora o enunciado do art. 190.º onão diga expressamente, o preceito apenas se aplica às situações de domínio conjuntural171.

Fica, assim, arredada a aplicação da suspensão do dever em três situações distintas, deseguida analisadas: às situações de domínio efectivo; às situações de utilização abusiva;e aos casos de concurso entre os pressupostos da suspensão e os da substituição nocumprimento do dever172.

IV. A utilização da suspensão do dever fica, de um lado, arredada em relação àssituações de domínio efectivo. Como decorre do n.º 3 do art. 190.º, a existência deum domínio efectivo é inconciliável com o instituto da suspensão, forçando olançamento de oferta pública de aquisição. Neste caso, o sujeito vinculado ao dever delançamento não pode fazer valer-se do instituto da suspensão para prorrogar omomento de publicação do anúncio preliminar. Julga-se que esta constatação emerge,commeridiana clareza, do regime positivo, dispensando argumentos adicionais.

Por outro lado, a par de se reconhecerem os limites da possibilidade de recurso àsuspensão do dever, não pode olvidar-se que a menor densidade normativa do novoCódigo conduz a que se deva repousar nos instrumentos gerais do sistema jurídico.Assim, a boa fé poderá paralisar o recurso à suspensão, se esta se revelar abusiva ou setraduzir um exercício inadmissível de posições jurídicas.

Para uma ilustração do que ficou exposto, adiantam-se três exemplos de utilizaçãotendencialmente abusiva. Um exemplo inicial de abuso é o que resultaria de diversassuspensões em cadeia entre sucessivos adquirentes, convertendo a suspensão numamoratória prolongada ex vi do art. 190.º. A lei prevê a suspensão como remédiotransitório, forçando que no prazo de 120 dias tal situação anómala esteja resolvida.Tal prazo é improrrogável, pelo que o instituto é adverso à cumulação de sucessivassuspensões.

Demais, julga-se abusivo o aproveitamento de uma detenção transitória para atingirfinalidades relevantes relacionadas com o exercício de faculdades societárias. Tratar--se-á nomeadamente do caso de uma aquisição de um lote relevante de acções de umasociedade aberta, por parte de um accionista de referência, como manobra defensivapara fazer face a uma oferta hostil173.

260

168Cfr. infra, 3.º, 14. I.

169O tópico pode ser melhor compreendido quando for tratado adiante: cfr. infra 13. IV.

170

Cfr. supra, 1.º II-III, e o Preâmbulo do DL n.º 486/99, de 13 de Novembro.

171No patamar infra-legislativo, chama-se complementarmente a atenção para o art. 44.º do Regulamento

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II. O recurso à suspensão impõe um condicionamento do universo de pessoas a quemos valores mobiliários se podem alienar, para pôr termo à situação de ultrapassagempontual dos limiares críticos. Com efeito, o interessado apenas pode alienar a pessoasque, segundo o art. 190.º, n.º 2, não estejam em alguma das situações previstas no art. 20.º.

Assim, para um cabal entendimento da concretização aplicativa da suspensão do dever,interessa esclarecer alguns dados gerais sobre a função que o mencionado art. 20.ºcumpre no Código dos Valores Mobiliários.

O art. 20.º, embora situado sistematicamente no capítulo dedicado às sociedadesabertas, revela uma importância que se repercute por todo o diploma de base dosvalores mobiliários, transcendendo em rigor o âmbito de normas aplicáveis àquelacategoria societária.

Ao longo do Código, as múltiplas referências feitas a este preceito servem duasfinalidades distintas, que, em benefício de uma melhor compreensão analítica dodiploma, interessa considerar separadamente.

III. Em algumas previsões legislativas, a referência feita ao art. 20.º, n.º 1, do Códigodos Valores Mobiliários atinge o seu propósito directo, que é o de estabelecer umaimputação de direitos de voto.

Tal é nomeadamente o que acontece nos arts. 23.º, n.º 1 a), 27.º, n.º 1 a) e, como jáatrás aludido, no próprio art. 187.º, n.º 1, na fixação dos limites determinantes daconstituição do dever177.

Em todos estes preceitos, o legislador procede à determinação, como direitos de votocontados como de um sujeito, os direitos de voto inerentes a participações detidas poroutrem. Desta maneira se pretende evitar manobras defraudatórias que contornem ocumprimento deveres legais importantes, como o são os deveres de comunicação departicipações qualificadas e o dever de lançamento de OPA. Subjacente à utilização doart. 20.º haverá sempre, nestes casos, uma ficção legal: o conteúdo preceptivo assente nareferência ao art. 20.º impõe-se ao intérprete, ainda que da relação subjacente nãoresulte, em concreto, qualquer poder de influência em benefício do titular departicipação qualificada. Há uma utilização plena da técnica de imputação vertida no art. 20.º CVM.

Aí será sempre necessário distinguir, demais, se a imputação normativa dos direitos devoto do terceiro na esfera jurídica do participante funciona também em sentido

263

afirmação da natureza potestativa apenas significa que, verificados os pressupostos que conduzemà constituição do direito à suspensão, o interessado pode unilateralmente decidir comunicar asua utilização, o que tem como consequência imediata a suspensão da contagem doprazo previsto no art. 191.º.

Se a invocação é feita fora dos limites do direito instituído pela previsão do art. 190.º,a comunicação não é eficaz para paralisar o decurso do prazo para a publicação do anúncio preliminar e, seno prazo de 30 dias tal não vem a suceder, seguem-se as consequências aplicáveis aoincumprimento do dever.

14. Pendência e cessação do período de suspensão: o âmbito dalegitimidade dos adquirentes

I.O regime aplicável na pendência da suspensão precisa de ser explicado ante o perfilfuncional e teleológico do dever de lançamento de oferta e do respectivo esquemade suspensão. Nos termos do art. 190.º, n.º 3, durante tal período ficam suspensosos direitos de voto cuja imputação ao interessado determinou a constituição do deverde lançamento de oferta pública de aquisição.

Compreende-se, a partir daqui, que a suspensão do dever não fere os interessessubjacentes à previsão do art. 187.º. Na medida em que não houve transição dedomínio, em termos efectivos, não há igualmente prémio de domínio a partilharparitariamente entre os sócios. Ainda que o sócio, ao alienar os valores excedentáriosa terceiros, receba preço superior por esse lote, tal não representará o prémio dodomínio, porque ele não chegou a exercê-lo176.

A ser assim, deve aditar-se um ponto, aliás, quanto aos efeitos do regime dasuspensão. Em interpretação do n.º 3 do art. 190.º, deve ir-se mais longe, nosentido de que o poder de domínio não pode ser exercido, independentemente daforma que revista. Trata-se, na formulação encontrada na mencionada Directiva n.º95/26, de não permitir que se exerça qualquer influência sobre a estrutura e a política financeira da empresa.

Tal liga-se ao conceito de domínio consagrado no art. 21.º, que admite a detenção dedireitos de voto como tradução de influência dominante, deixando todavia margempara entender que podem existir outros meios de revelar o domínio.

262

n.º 10/2000 da CMVM que, na sua alínea b), reclama que seja dada divulgação pública à situação de facto quejustifica a suspensão. Trata-se de uma intervenção regulamentar de evidente importância no reconhecimento doslimites do instituto da suspensão do dever: só dentro destes limites a sua utilização será “justificada”.

172Cfr., quanto a este último, 3.º, 15.

173O ponto pode ser assimilado ao aproveitamento das faculdades inerentes ao domínio em momento decisivo,dispensando por isso a determinação da sua perenidade temporal para revelar significado ao nível do domíniointer-societário: cfr. supra, 3.º 13.II.

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determinar em que sentido se joga a influência societária. Nestes casos, remete-setão-só para um juízo relacional e não já para uma imputação de direitos de voto.Assim, aqui não está já, em sentido próprio, em causa uma ficção legal, porquanto areferência ao art. 20.º é incorporada na previsão da norma, e não já na suaestatuição179. Estamos, pois, tão-só, perante situações de utilização parcial do art. 20.º.

Vem a propósito explicitar esta dupla utilização do art. 20.º porque o art. 190.ºtambém se inclui neste último universo – ligado à demarcação relacional dos sujeitospróximos de titulares de participações qualificadas –, por motivos de seguidaindicados.

V. A circunstância de o art. 190.º, no seu n.º 2, vedar a alienação do interessado nasuspensão a pessoas que com ele se encontrem em alguma das situações previstas non.º 1 do art. 20.º revela uma importância extrema para a compreensão dofundamento e do funcionamento do instituto da suspensão do dever. De facto, estalimitação do universo dos potenciais adquirentes atinge duas finalidades distintas: aum passo, impõe que a alienação seja efectiva; paralelamente, previne a utilização da figura fora dodomínio conjuntural – no sentido, atrás explanado180, de domínio fortuito.

Quanto ao primeiro objectivo da norma, é fácil afirmar que esta impede que aalienação dos lotes accionistas sobrantes se faça a pessoas a quem os direitos de voto jáeram imputados. Com efeito, tal frustraria sequer o abaixamento dos limites de voto:não se lograria pôr termo à situação de domínio preexistente, para empregar a formulaçãoverbal do n.º 1 do art.190.º .

Mas o n.º 2 do art. 190.º confessa, de igual maneira, uma suspeição relativamente àspessoas que tenham estabelecido qualquer relação (intersocietária ou contratual) como interessado, que seja tida como relevante à luz da técnica mobiliária para aimputação dos direitos de voto. De facto, esta limitação à faculdade de alienação nãoconsente a transmissão a terceiros que estejam com o interessado em alguma relaçãodescrita no n.º 1 do art. 20.º, ainda que a estes os direitos de voto respeitantes às acções excedentáriasnão fossem imputados.

Repare-se que o art. 190.º, n.º 2 remete para um juízo relacional, ao referir-se àspessoas relacionadas com o adquirente de acordo com situações previstas no art. 20.º,omitindo qualquer referência explícita quanto ao sentido da imputação dos direitosde voto. Assim, no âmbito da dicotomia atrás desvendada181, o art. 20.º é referido naprevisão do art. 190.º como zona de influência próxima para condicionar a

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inverso. Este exercício apela para um juízo interpretativo de cada uma das situaçõesdescritas ao longo das alíneas do n.º 1 do art. 20.º, que sugerem resultadosdiversos178.

IV. A par da técnica descrita relativa à imputação de direitos de voto, existe umamiríade de previsões legislativas que se refere ao art. 20.º com objectivo diferente –aliás, não necessariamente ligadas a sociedades abertas.

Trata-se, de facto, de demarcar normativamente uma zona de influência próxima de uma pessoa,o que é feito para atingir as finalidades mais diversas. Como exemplos desta utilizaçãodo art. 20.º cumpre referir, a título exemplificativo, os seguintes preceitos:

– art. 115.º, n.º 3: na fase de instrução do registo de oferta pública, é conferido àCMVM um poder de solicitação de informações ao círculo de pessoas que estejamcom o oferente e com o emitente em alguma das situações previstas no art. 20.º;

– art. 138.º, n.º 1 e): o prospecto de oferta pública de aquisição deve indicar aspessoas que estão com o oferente em alguma das relações previstas no art. 20.º;

– art. 162.º: durante a fase de preparação de oferta pública de distribuição,cominam-se deveres de conduta ao emitente, ao oferente, ao intermediário e apessoas que com estes estejam em alguma das situações previstas no n.º 1 do art.20.º, deveres que se relacionam com a informação transmitida;

– art. 173.º, n.º 2: é vedada a aceitação de oferta pública de aquisição parcial porpessoas que estejam com o oferente em alguma das situações previstas no n.º 1do art. 20.º;

– art. 180.º: as transacções feitas na pendência de oferta pública de aquisiçãosujeitam-se a restrições quanto ao mercado onde podem ser efectuadas eacarretam deveres de informação, quando realizadas pelo oferente e por pessoasque com este esteja em alguma das situações previstas no art. 20.º;

– art. 186.º : nos doze meses após o apuramento dos resultados de uma ofertapública de aquisição, fica o oferente e pessoas que com este esteja em alguma dasrelações previstas no art. 20.º impedidas de lançar nova oferta sobre valoresmobiliários da mesma categoria.

A caracterizar transversalmente esta utilização do art. 20.º, está a cominação dedeveres de conduta, de conteúdo positivo e negativo, em relação aos quais é irrelevante

264

174O tratamento de tipos próximos destas aquisições de sociedades tem merecido algum desenvolvimento nosEstados Unidos, concluindo-se nomeadamente pela responsabilidade do sócio maioritário que culposamentealiene a sua posição a investidores movidos por intuitos reconhecidamente “predadores” (looters), queprocurarão ilicitamente delapidar o património social: cfr. ROBERT CLARK, Corporate Law, cit., 478-480.

175É propositada a utilização de critérios que já eram vertidos no anterior Código. Note-se, todavia, que o art.529.º, n.º 3 do Código de 1991 utilizava, como referência, que a participação na sociedade visada nãoultrapassasse 30 % do total do activo bruto da sociedade adquirida, critério que apresentava evidentefalibilidade, designadamente ao assentar numa percentagem fixa e ao implicar implicitamente o recurso àavaliação contabilística dos bens adquiridos.

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inferior.

VI. Fique assegurado que do exposto não resultam dificuldades na concretizaçãoaplicativa do n.º 2 do art. 190.º do Código de tal monta que tolham a utilização deuma figura que, repisa-se, constitui uma válvula de escape do sistema, tendo nestede ser integrada interpretativamente para ser correctamente entendida. Aliás, umexemplo claro de alienação a terceiro, inatacavelmente subsumível ao n.º 2 doart. 190.º como modo de cessação dos efeitos do instituto da suspensão, diz respeito àalienação em oferta pública de aquisição. Se o dever de lançamento se constitui numaaltura em que existe uma oferta pendente sobre a mesma sociedade, o interessadopode suspender o dever para alienar na OPA.

15. A substituição no cumprimento do dever

I. Uma rigorosa demarcação do âmbito da suspensão do dever de lançamento deoferta é auxiliada através da sua diferenciação, a traço grosso, em relação à substituiçãono cumprimento do dever.

No entanto, frise-se que a substituição, permitida no art. 191.º, n.º 2, do Código dosValores Mobiliários, culmina no cumprimento do dever de lançamento de oferta, nãose tratando por isso de uma técnica de exclusão do dever.

Nessa medida, a substituição do oferente não implica uma alteração ao conteúdo dodever a cumprir. Trata-se de mera vicissitude subjectiva concretizada na substituiçãoda figura do oferente, supondo o lançamento em termos pelo menos tão favoráveisquanto os que decorreriam do lançamento pelo adquirente da fasquia relevante para aconstituição do dever, designadamente quanto aos deveres de diligência envolvidos,quanto à correcção da informação exigida ao longo da oferta e quanto à contrapartidaa ser oferecida.

Este último dado, aliás, merece uma observação complementar. De facto, quando sejacalculada a contrapartida mínima no âmbito de oferta lançada em substituição, asreferências feitas no art. 188.º ao oferente devem entender-se reportadas quer ao substituto, quer igualmente à

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legitimidade dos terceiros adquirentes, em prevenção da utilização abusiva doexpediente da suspensão.

Este o modo de concretização, à luz do direito nacional, do conceito de terceiro comlegitimidade para adquirir as acções excedentárias por forma a fazer cessar a suspensãodo dever de lançamento de OPA. Embora não se exigindo o lançamento de umaoferta pública de venda, como se impõe no direito espanhol, acaba por se perfilharfórmula que, resultando próxima da encontrada no direito alemão182, mostra emrelação a este a diferença de a legitimidade do terceiro adquirente ser objecto de umadirecta densificação, empreendida pela lei.

Para ilustrar o que acaba de ser dito, pode traçar-se um quadro de situações em que alimitação do art. 190.º, n.º 2 é posta à prova. Por comodidade de análise, partir-se-ásempre da situação em que dois sujeitos (A e B) detêm directamente, cada um, acçõesrepresentativas de 15% dos direitos de voto de uma sociedade aberta. Assim:

1.ª hipótese: A e B celebraram um acordo de voto, o que – por força da imputaçãorecíproca de direitos de voto – conduz a que ambos detenham 30% dos direitos devoto183. A adquire, através de herança, mais um lote accionista representativo de10% dos direitos de voto da mesma sociedade. Caso pretenda suspender o dever delançamento de OPA, não poderá alienar a B, uma vez que tal não impediria quelhe fossem imputáveis, a ele e a B, os mesmos 40% de direitos de voto.

2.ª hipótese: As acções de que B é titular são por ele detidas por conta de A. As regrasde imputação, neste caso, determinam que a A sejam imputados 30% dos direitosde voto, mas a B apenas 15%184. Se A adquirir, através de herança, mais um loteaccionista representativo de 10 % dos direitos de voto da mesma sociedade e quisersuspender o dever de lançamento de OPA, não poderá alienar a B, uma vez este seencontra em uma das relações previstas no art. 20.º, o que justifica o receio dolegislador que tal venha a consubstanciar uma influência de A no exercício dosdireitos inerentes às acções que aliena a B.

3.ª hipótese: As acções de que o Banco B é titular são por ele detidas por conta de A.Tal como no caso anterior, as regras de imputação determinam que a A sejamimputados 30% dos direitos de voto, mas a B apenas 15%. Se o Banco B, emvirtude de um contrato de garantia de colocação, adquirir um conjunto de acçõesrepresentativo de 10% dos direitos de voto da mesma sociedade e quiser suspendero dever de lançamento de OPA, não poderá igualmente alienar a A, uma vez este seencontra em uma das relações previstas no art. 20.º. A suspeição de aquisiçãopremeditada, justificada objectivamente na relação fiduciária entre A e B, impediráde igual modo o recurso à figura da suspensão. Aliás, de modo contrário, estariaaberta a porta para que a aquisição de B fosse feita em cumprimento de instruçõesde A, hipoteticamente para que a OPA fosse lançada por aquele a um preço

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Insiste-se que, em relação ao que fica dito no texto, merece tratamento separado o caso da transmissão aterceiros do lote integral do domínio – e não apenas dos valores excedentários – que pode configurar indíciode utilização abusiva – e, como vimos, não permitida – do expediente de suspensão.

177Cfr. supra, 2.º, 3.

178Cfr. a análise pioneira de OSÓRIO DE CASTRO, A Imputação dos Direitos de Voto no novo Código dos Valores Mobiliários,

Page 38: ODeverdeLançamentodeOfertaPública ......Commentario,Milano,(1998),593-612;LUCAPICONE,LeOffertePubblichediAcquisto,Milano,(1999);MARCO MARTINI, The New Italian Law on Takeover Bids

dever. Caso contrário, estar-se-á perante o lançamento de uma oferta que nãoprovoca qualquer efeito extintivo quanto ao dever de lançamento do adquirenteanterior.

IV. Ensaiando um sintético exercício comparativo entre a suspensão e a substituição,importa ainda salientar alguns pontos distintivos entre as duas figuras.

Por um lado, a substituição envolve sempre lançamento de OPA; todavia, a suspensãodo dever pode não envolver lançamento de oferta. Como já foi afirmado, nasuspensão pretende-se ”pôr termo à situação” que gerou a obrigatoriedade, e não substituir a pessoa dooferente.

De outro lado, ainda que a suspensão envolva o lançamento de oferta pública deaquisição, pode compreender uma dilação temporal maior até à sua realização que overificado na substituição. Se houver substituição, o oferente substituto deve publicaro anúncio preliminar no prazo de 30 dias, conforme dispõe o art. 191.º; ao invés,tratando-se de suspensão, o obrigado goza de um período de 120 dias encontrar umadquirente dos valores mobiliários que determinam a constituição do dever. Se esseadquirente, por seu turno, ficar constituído no dever de lançamento de oferta emvirtude da transmissão, tem ainda o prazo do art. 191.º para lhe dar cumprimento.

Este confronto entre a suspensão e a substituição revela incontornáveis consequênciasinterpretativas em situações de potencial concurso entre os dois expedientes. Esta deixaintocados os interesses dos destinatários da oferta, representando um meio decumprimento do dever; aquela constitui uma válvula de escape ao dever, de naturezaexcepcional e de desfecho incerto. Assim, em caso de potencial concurso entre ambasas figuras, deve entender-se que os efeitos da suspensão são anulados pelasconsequências da substituição, tornando aquela figura implicitamente subsidiária em relação àsubstituição.

pessoa substituída. Só assim se logra um resultado aceitável do ponto de vista dos interessesprotegidos com a estatuição do dever, conduzindo a que o expediente substitutivo nãodefraude as exigências de contrapartida mínima, seja por parte do oferente, seja porparte do sujeito obrigado ao lançamento da oferta.

II. A substituição pressupõe que ao oferente substituto não seja imputada, por via doart. 20.º, a percentagem de votos que determinou a constituição do dever. Casocontrário, o oferente estará a cumprir um dever próprio, e não um dever alheio.

Havendo uma oferta dirigida em substituição, não pode falar-se em cumprimentopor terceiro por não estarmos verdadeiramente perante uma obrigação em sentidotécnico (não existe prestação), mas perante um dever legal. Mas, feita esta ressalva,pode dizer-se que a regra constante do art. 191.º, n.º 2, se encontra em estritaconsonância com a concessão generalizada de legitimidade activa reconhecida pelodireito português185.

Este confronto com o regime civil mostra um interessante ponto de contacto com aressalva da parte final do art. 767.º, n.º 2, CC, que impede o cumprimento porterceiro nomeadamente quando a substituição prejudique o credor. A este propósito,deve, em particular, frisar-se que da substituição não resulta prejuízo para osdestinatários da oferta pública de aquisição, em virtude do dever de prestar caução dopreço ou de bloquear a contrapartida em espécie (arts. 177.º, n.º 2 e 178.º, n.º 1). Anecessidade de oferecer uma contrapartida em dinheiro em oferta obrigatória (art.188.º, n.º 3) reforça, evidentemente, o exposto, pois torna a oferta menosdependente da pessoa do emitente, quando a OPA envolva uma contrapartidaalternativa em valores mobiliários.

III. A oferta dirigida ao abrigo do art. 191.º, n.º 2, deve assumir desde o início a suanatureza. Não pode evidentemente uma oferta em curso ser ulteriormente tida comofeita em substituição, ainda que o facto constitutivo do dever seja anterior186. Poroutras palavras, dir-se-á que a anterioridade do facto constitutivo do dever sobre aoferta funciona como condição necessária mas não suficiente para fazer funcionar oesquema do art. 191.º, n.º 2.

Adiantando um passo, pode mesmo afirmar-se que a substituição no lançamento daoferta carece de uma declaração de substituição, tal como sucede com a sub-rogação voluntáriapelo devedor.

Com efeito, para permitir concluir que o obrigado originário se consideraexonerado, é forçoso que se manifeste uma declaração de substituição no anúnciopreliminar; na expressão do Código, o oferente substituído tem o ónus de se fazersubstituir, isto é de emitir uma declaração pública de substituição no cumprimento do

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