Ódio e cuidado de si no punk
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dio e cuidado de si no punk
Everton de Oliveira Moraes
Os sentimentos de indignao e dio constituem uma das bases da
cultura punk. Pode-se dizer que a revolta, motivada pelo sentimento de dio, foi
para esta, desde o incio da dcada de oitenta, o operador tico da
transformao de si e da atualidade. Destruir o sistema, destruir a religio, a
transformao social e subjetiva desejada sempre aparecia sob o signo da
destruio, do desfecho final da ordem vigente, dos valores estabelecidos.
Porm tudo leva a crer que essa destruio reivindicada era apenas um
recurso retrico, ou antes, uma energia bruta, uma potncia, a qual seria
preciso domar, dar uma forma. Para que se tornasse produtiva, a energia
desse dio no deveria ser apenas destrutiva, rancorosa e catica, ela deveria
ser submetida e contida dentro de uma forma para que se pudesse chegar aos
resultados desejados. As energias brutas deveriam se transformar em ao
poltica:
Esprito crtico, pensamento criativo, bah! No so sadas
fceis. So caminhos que decidimos trilhar. Caminhos
que nos levam a beira do precipcio. Como Nietzsche,
voc olha para o abismo e ele olha de volta para voc.
(...) no podemos desistir (...) Acho que da raiva, da
frustrao e do dio deve surgir algo de bom. Devemos
canalizar isso para algo construtivo. Algo que mude.
Estou cansado de autodestruio, pena de si mesmo,
desespero. Vai de ns decidirmos se os sentimentos vo
apenas virar rancor ou se vo virar algo concreto,
palpvel, construtivo e bom. (...) Nossas energias tm
que virar algo alm de dio para ns mesmos e nossas
aes. Algo alm de algum sentado na cama chorando
a noite. No sou ingnuo, nem tolo. Mas no h porque
ser amargo. Acho que ser hardcore/punk andar nessa
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linha, essa corda bamba (oh no, mais um chavo...).
Os dois levam ao fracasso. O importante o equilbrio. A
revoluo tem que comear dentro de ns.
APOCALYPSE WOW n4, Curitiba: 1998.
Se a energia do dio e da revolta sozinhos levam a destruio niilista ou a
autopiedade; se, como diz Michel Onfray, a violncia aparece no momento em
que a energia transborda e se resolve na destruio e no negativo, era preciso
que a energia desses sentimentos fosse, ento, domada e contida dentro de
uma forma para que ento se transformasse em algo construtivo, ou seja, uma
subjetividade autnoma e equilibrada, liberada das diversas sujeies que a
coagiam do exterior e de dentro. Do exterior pela crueldade do sistema, pela
alienao imposta por ele, seus mecanismos de controle social, suas
estratgias que tentam fazer da vida objeto de uma dominao cada vez mais
totalizadora, pois atuam em todos os lugares e a todo momento na vida das
pessoas. De dentro porque eram sujeies que exigem dos indivduos no
apenas a sua dedicao total, mas tambm sua alma; cada vez mais as
pessoas agem segundo esquemas de comportamento pr-definidos.
Submeter essa fora uma forma, transformando-a em estilo (de vida) ,
portanto, uma maneira de se antecipar aos assujeitamentos e escapar a essas
sujeies que o atingiam, de resistir a elas, de encontrar sadas l onde o
poder pretendia-se impermevel. E para tanto necessrio realizar esse
trabalho de domnio de si mesmo atravs da escrita, isto , para que se
tornasse produtiva, a energia desse dio no poderia ser apenas destrutiva,
rancorosa e catica, ela deveria ser submetida e contida dentro de uma forma
para que se pudesse chegar aos resultados desejados.
Para domar essa energia do dio era necessrio um trabalho do sujeito
sobre si mesmo, um trabalho de cuidado de si, de governo das potencias que
se agitam em si; era preciso um ascetismo, no sentido conferido por Michel
Foucault ao termo como esquemas que o indivduo encontra na sua cultura e
que lhe so propostos, sugeridos e impostos pela sua cultura, sociedade e seu
grupo social.. Tratam-se de formas de relao consigo, prticas e tcnicas
atravs das quais o sujeito visa a sua prpria transformao, seja ela espiritual
ou corporal. O asceta tanto pode integrar-se e reproduzir uma determinada
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formao cultural, aceitando passivamente esses esquemas, quanto
transform-la, ressignificado-os e fazendo de si uma obra singular.
Esse ascetismo , portanto, uma tentativa de refletir sobre aquilo que
acontece consigo mesmo. A partir de um sentimento de exploso o indivduo
pe-se a escrever para refletir sobre esse mesmo sentimento, assim como
sobre aquilo que o provocou. Mas o que isso que provoca essa exploso?
So angstias e inquietaes, os dios e revoltas provocados pelo mundo em
que se vive, pelas condies em que nele se vive: Voc j parou pra pensar
no mundo em que voc vive? A maneira como voc e as pessoas ao seu redor
se comportam?" (STRAIGHT AHEAD, Curitiba, 1998). Ele se pergunta sobre as
prprias formas de vida, sobre o poder que perpassa as relaes consigo
mesmo e com os outros. Contra esse poder deve ser levada a cabo uma
guerra movida pela revolta e pela indignao com os modos de viver que
somente depreciam a vida. Como afirma Nildo Avelino: "No basta estar
convencido de um ideal, preciso quer-lo e desej-lo a ponto de transformar
a prpria existncia pessoal atravs de critrios de estilo. (...) Essa efetuao
do pensamento em vontade possui como operador tico a revolta. na revolta
que se d um estado de tenso que exclui o indivduo de toda autoridade que
lhe exterior. (...) A revolta (...) acontece atravs d (...) experincia do
insuportvel, (...) pressupe o afastamento dos objetivos dominantes e dos
padres vigentes que passam a ser considerados arbitrrios, fazendo-os
perder com isso seu poder de sujeio e legitimidade".
E a conteno em que venho insistindo aquilo que torna vivvel essa
revolta. Era necessria uma suavizao das formas de atuao ou, mais
precisamente, uma conteno em formas que pudessem conciliar a vivncia
cotidiana no espao social com um estilo de vida que lhe fazia uma crtica
profunda. a partir dessa tentativa de conciliao que vai surgir uma discusso
que transforma o punk de uma srie de gestos de transgresso de resistncia
para uma esttica de existncia crtica dos modos de vida prescritos pelas
sociedades ocidentais capitalistas contemporneas. Trata-se da criao de
uma cultura da crtica constante de si mesmo e dos significados do punk
atravs da escrita (tema que ainda ser abordado neste trabalho), o que
mobiliza uma srie de processos autnomos de subjetivao.
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Se a escrita e a msica punk esto intimamente ligados a idia de que se
deve tornar sua prpria existncia uma guerra (STRAIGHT AHEAD, Curitiba,
1998), elas no so apenas uma expresso dessa guerra. Elas so, sobretudo,
algumas das armas com as quais se luta. A reflexo sobre as formas de vida
de nossa atualidade, seja na forma de narrao de experincias pessoais ou
no, funciona como um modo de transformar em acontecimento, em
contingncia, tudo isso que nos acostumamos a viver como necessidade.
Empreende-se, desse modo, uma guerra na e pela existncia.