Odisseia de Egoika No País Do Sacrifício

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ODISSEIA DE EGOIKA NO PAÍS DO SACRIFÍCIO Egoika não imaginou que fosse ser tão doloroso se desfazer de sua pena de pavão. Deitada sobre a enxerga de palmeira, fitando as rachaduras que evoluíam na taipa, tentava se convencer que valera a pena dessa vez, assim como das outras vezes em que se viu obrigada a abrir mão de cada uma das gemas de sua coleção e lançar ao vento o suado quinhão de bronze em pó. Se dissemos que ela se viu obrigada a adotar tais atitudes, não estamos nos referindo a uma obrigação institucional, em que, caso venha a ser contrariada, temos já as represálias arroladas e sistematizadas de antemão nos caputs da lei. Ao contrário do que possam julgar os espíritos azafamados, ansiosos por veredictos antecipados, no País do Sacrifício essa obrigação, sustentada pelas ferramentas físicas de exercício da força, não se fazia presente nem mesmo para os casos mais gritantes de vaidade, como era mesmo o caso de Egoika quando ela pôs os pés nessa terra pela primeira vez, vinda da Terra dos Abutres. A obrigação aparece aqui em forma de culpa, uma ferramenta invisível muito mais incisiva que os porretes. Não se trata de uma culpa imediata, sucedânea de uma ação que apenas retrospectivamente irá ser entendida como vil ou repugnante: não. A culpa é um pressuposto coletivo no País do Sacrifício, é algo que, assim como as palavras, foram inventadas por outrem, mas frequentemente serve como carapuça até às menos rigorosas das almas, até àquelas almas que dissimulam e relutam em captura-la para vesti-la: sim, a culpa é como as palavras por aqui. Mas Egoika não teve escolha. Na verdade, se ela acreditasse em destino, ou em Deus, ou em qualquer coisa que não fosse nela mesma, diria que foi precisamente um tremendo truque armado, uma engenhosa arapuca que a aguardava desde o dia em que veio à luz para lhe apanhar

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Texto em que se discute a relação indivíduo / coletividade com uma metáfora.

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ODISSEIA DE EGOIKA NO PAÍS DO SACRIFÍCIO

Egoika não imaginou que fosse ser tão doloroso se desfazer de sua pena de pavão. Deitada sobre a enxerga de palmeira, fitando as rachaduras que evoluíam na taipa, tentava se convencer que valera a pena dessa vez, assim como das outras vezes em que se viu obrigada a abrir mão de cada uma das gemas de sua coleção e lançar ao vento o suado quinhão de bronze em pó. Se dissemos que ela se viu obrigada a adotar tais atitudes, não estamos nos referindo a uma obrigação institucional, em que, caso venha a ser contrariada, temos já as represálias arroladas e sistematizadas de antemão nos caputs da lei. Ao contrário do que possam julgar os espíritos azafamados, ansiosos por veredictos antecipados, no País do Sacrifício essa obrigação, sustentada pelas ferramentas físicas de exercício da força, não se fazia presente nem mesmo para os casos mais gritantes de vaidade, como era mesmo o caso de Egoika quando ela pôs os pés nessa terra pela primeira vez, vinda da Terra dos Abutres. A obrigação aparece aqui em forma de culpa, uma ferramenta invisível muito mais incisiva que os porretes. Não se trata de uma culpa imediata, sucedânea de uma ação que apenas retrospectivamente irá ser entendida como vil ou repugnante: não. A culpa é um pressuposto coletivo no País do Sacrifício, é algo que, assim como as palavras, foram inventadas por outrem, mas frequentemente serve como carapuça até às menos rigorosas das almas, até àquelas almas que dissimulam e relutam em captura-la para vesti-la: sim, a culpa é como as palavras por aqui.

Mas Egoika não teve escolha. Na verdade, se ela acreditasse em destino, ou em Deus, ou em qualquer coisa que não fosse nela mesma, diria que foi precisamente um tremendo truque armado, uma engenhosa arapuca que a aguardava desde o dia em que veio à luz para lhe apanhar precisamente ali, no País do Sacrifício, onde o ouro tem o mesmo valor que a poeira, e a beleza vale bem menos que o carvão, ela diria que ela chegara ali pela sobreposição de sendas que se ofereceram como possíveis, mas que, ao fazer sua escolha, ela jamais sabia que fim teria a senda – na verdade, não sabia nem mesmo que fazia escolhas -, ao cabo da qual, lá estaria o destino, ou Deus, com um sorriso esparramado dizendo: te peguei. Mas ela não acreditava nessas metáforas. A culpa dela era diferente: era sua.

Então por que Egoika deixou a Terra dos Abutres? Ela não teve escolha. Diferente do País do Sacrifício, em que a bem dizer era uma terra do anarquismo, porque não havia rei, mas não da anarquia, porque sobrava ordem, na Terra dos Abutres desde a infância, o Estado, aparelhado com porretes e pranchetas, vasculhava sem prévio aviso todos os centímetros das imensas habitações que povoavam as paisagens, com o objetivo de contabilizar, qualificar e registrar todos os pertences sob posse dos seus cidadãos. Caso o cômputo feito fosse inferior ao cômputo anterior, de acordo com a conclusão que viessem a chegar comparando os dados que se

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dispunham nas pranchetas, aí então empunhariam sua outra ferramenta, o porrete, histórico instrumento de ensino-aprendizagem, e devastariam as costas dos nobres cidadãos para que levassem mais a sério a tarefa diária de buscar mais bens, ou, ao menos, bens com qualidade suficiente para compensar a carência da quantidade. Com isso, os infantes aprendiam, primeiramente, a deter aquilo que já haviam conquistado pelo maior tempo possível, e, à medida que as costas iam se tornando mais maciças, mas, ao mesmo tempo, mais cansadas e astutas, saíam dos limites de suas moradas e iam à caça de coisas melhores, maiores ou, simplesmente, de mais uma coisa.

O primeiro pertence da vida de Egoika foi uma pena de pavão, que delicadamente invadiu a janela do seu quarto, pairou sobre seu dorso esticado na cama e soprou em seu ouvido, fazendo-a despertar num rompante com os arrepios que se espalharam até as extremidades de seu corpo pueril. Um êxtase logo suplantou o aborrecimento da vigília e seu primeiro impulso foi gritar ao mundo eu tenho uma coisa, mas argutamente conteve a voz que já pressionava a garganta, compreensivelmente temerosa de que um eventual cidadão desesperado ouvisse sua alegria, prontamente a situasse na cartografia da cidade e sorrateiramente invadisse a janela do seu quarto para lhe roubar seu primeiro bem. Ela sabia que, no escalão das qualidades, uma pena não valia lá essas coisas. Foi-se o tempo em que os mais competentes detentores do lugar se embrenhavam em lutas encarniçadas em nome de uma boa pena como a de pavão, pois história contada de boca perde-se no vento que sopra, mas a história contada com a pena era a que gozava de duradoura verdade. Mas isso foi em outros tempos, porque ela sabia que agora já se escrevia com outras ferramentas, como a máquina, e sobre outros assuntos, como o futuro. O que interessava é que havia conquistado o seu primeiro bem. Imediatamente após a alegria sobreveio-lhe o peso da responsabilidade que o acaso lhe designara em forma de uma pena de pavão: estava inaugurada a contagem dos seus pertences, da próxima vez que viessem com a prancheta contabilizariam a pena em seu nome e, numa segunda visita se nada houvesse sido acrescentado ao seu patrimônio, seria possível que a fizessem sangrar: as primeiras lições são sempre as mais dolorosas.

Egoika mostrou-se bastante capaz à medida que ia amadurecendo, apanhou rapidamente as estratégias, descobriu cedo os caminhos mais curtos que a levariam para um patamar acima do que se encontrava. Prova de sua extraordinária competência foi o próprio reconhecimento feito pelo Estado que consagrou três vezes o Prêmio da Dedicação Cidadã, e nunca é demais lembrar que a agulha com pingente do brasão nacional era um bem de ilustríssima distinção. Esses reconhecimentos, ao invés de assentarem a ansiedade que Egoika, a estimulavam a multiplicar as metas e arquitetar as mais elaboradas estratégias para se apropriar de tudo que lhe aparecesse no campo de visão, até o dia em que ficasse velha e no seu corpo magro, curto e arqueado não se encontrasse mais espaço para se enfiar agulha e ela morresse, e fosse enterrada e então sua cova seria objeto de cobiça dos cidadãos que a disputariam ao

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longo das madrugadas enluaradas, fincando a pá, ora nos córneos dos que despontassem como concorrentes, ora no chão, até alcançarem os sete palmos, de onde roubariam do amontoado de vermes e ossos em que tivesse se transformado seu corpo todas as agulhas que lhes fora oferecidos quando ainda o sangue passeava pelos seus dutos e artérias, e quando acabassem as agulhas, atacariam o resto de roupa que não tivesse sido ainda corroído pelos bichos, pois a essa altura tudo que lhe pertencera em vida significaria algo: esse trapo era do blusão de Egoika diriam, e já teriam o bastante para a próxima vistoria do Estado, já que tudo que estivesse ao seu nome atrelado, seria de superior valor. Ao imaginar esse futuro, Egoika salivava e era esse quadro que pintava para si que a estimulava todos os dias sair à caça de outros pertences.

Havia várias maneiras de ampliar o patrimônio na Terra dos Abutres, sendo a primeira, e mais elementar, a produção dos próprios bens. O que inviabiliza a dedicação exclusiva a este módulo é o tempo que ele exige para se tornar realidade. Imagine aguardar seis meses para que uma leguminosa dê resultado: dentro desse período as suas costas mais parecerão carne moída e, se ao cabo é dito aos vistoriadores que agora sim a sua posse cresceu e mostra-os uma dúzia de rabanetes, é possível que eles ofereçam cacetadas extras ao seu já desmanchado dorso. Outra alternativa é a troca: troca-se um volume de produtos pouco conceituados por outros de maior valia, negocia-se correspondências etc.. Aqui exige muito da genialidade de cada uma das partes, pois, como num jogo de pôquer, são mutuamente avaliados o histórico, os movimentos corporais, a acumulação atual de pertences, o perfil – se receoso, agressivo ou se manipulador consciente dos próprios sinais que emite-, o blefe, as agulhas que detêm etc.. São muitas as variáveis para se levar vantagem e é certo que, assim como no pôquer, a sorte volta e meia passeia pelas mãos de incompetentes somente com o intuído de atraí-lo de modo que a ingênua presa, uma vez vitoriosa, avançará eternamente com a mesma sofreguidão para a teia de tarântulas. Uma terceira maneira que, apesar de menos recorrida nos vemos na obrigação de ao menos citar, é o roubo. E a quarta forma de acumulação de pertences, essa sim bastante popular já que notoriamente vantajosa quando calculada a complexa proporção entre esforço, tempo e tamanho do ganho, é o furto. O furto é um dispositivo tão acionado que, ao apreendermos o longo prazo, vemos que o equilíbrio da distribuição dos pertences se mantém razoável, já que, uma vez que um cidadão tenha conseguido se destacar dos demais, ele passa a ser um permanente alvo dos seus pares, bastando uma noite de sono, um piscar de olhos ou um cadarço desamarrado para que sejam subtraídos os pertences que juntara e seja, assim, esgotada sua deferência.

Egoika era especialista nas quatro modalidades e ainda soube desenvolver um atributo não menos valioso que as boas estratégias de ataque: ela sabia proteger o que tinha. Não que fosse fácil: Deus sabe o trabalho que é saber se posicionar entre o

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medo da perda e a frieza metódica, entre os pertences contáveis e os aparatos de segurança, entre a obtenção e a retenção, entre o projeto e o já dado. Quantas noites pensou em ganhar as ruas à procura dos descuidados, dos distraídos e dos medrosos, quão forte era o impulso que a impelia para tal tarefa e que ela se via na obrigação de contê-los e reserva-los para ocasiões mais oportunas, sob o risco de tornar vulnerável seu venerável patrimônio. A certa altura, a mansão de Egoika era permanentemente atacada por bandidos que escalavam os muros da suntuária fortaleza onde ela tentava resguardar os bens de uma vida inteira de dedicação, mas não só de dedicação, é claro, também de invulgar competência. Aos poucos ela se viu obrigada a desenvolver mecanismos cada vez mais sofisticados para intimidar os larápios que eram persistentes como formigas, resolutos como formigas, muitos como formigas, esperançosos como o peixe que abocanha a isca. Entre as muralhas e a sede construiu um calabouço e o povoou com répteis, sanguessugas e enguias. Mas não foi o bastante: muitos foram os cidadãos que ainda assim alcançavam os parapeitos e os alpendres internos, de modo que ela se viu obrigada a plantar lanças afiadas em suas sacadas e janelas e a ensinar o ódio a cães atléticos que se espalhavam por toda a casa. Mas não foi o bastante. Trancou tudo que coubesse em seu porão e trancou-se também ali, enquanto ouvia os barulhentos embates entre os cidadãos e os cachorros vindos de cima. Muitos dos pertences que ficaram no primeiro, no segundo, no terceiro e no quarto pisos foram subtraídos, ainda que poucos tenham conseguido atravessar o caminho de retorno em meio aos répteis, sanguessugas e enguias ficando secretamente largados no fundo do calabouço. Certa feita, Egoika se deu conta que há muito não vinham os agentes do Estado e ela tinha certeza que todos os seus últimos feitos eram mais que dignos de uma nova congratulação oficial. Deixando sobressair não mais que a cabeça sob a porta do alçapão, o primeiro objeto que conseguiu reconhecer do limitado ângulo que sua posição oferecia foi uma prancheta sobre a qual restos de papéis estraçalhados deixavam entrever o formidável brasão do Estado. Pouco mais além, um corpo, outro corpo, três corpos uniformizados e devidamente identificados sangravam entre dentes de cães enfurecidos de fome.

Prontamente, Egoika recolheu tudo que pudesse carregar em seu trançado de alpaca, e então lançou os seus pertences dentro da carruagem guiada por seus quatro cavalos rajados vestidos em seda, deixando o castelo em meio à tempestade que corroía as estradas de barro e pedra. Os cavalos eram, no entanto, valentes e, como se reconhecessem a urgência da demanda, aplicavam toda a força que a generosa natureza lhes dera para vencer o pesado solo encharcado. Egoika bradava de pé sobre o banco do carro e lançava desmedidas chibatadas nas ancas dos animais como se estes já não estivessem à beira da completa exaustão. Nunca saíra da Terra dos Abutres. A água que caía turvava sua vista e o cinza do horizonte, idêntico ao do firmamento, provocava o pavor do completo desconhecimento de onde estava. Há quanto tempo viajava? Três horas? Um dia? Abrandaram as chicotadas, arrefeceu o ritmo enquanto ela ponderava ganhos e perdas de sua fuga repentina, concluindo que,

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na bandeja dos ganhos, estava a distância das implacáveis sanções a que ficaria sujeita caso fosse recolhida pelos agentes do Estado que a essa altura certamente se esparramavam à sua busca. As sanções implicariam não só os dispositivos disciplinadores já conhecidos, traduzidos na eficiência incontestável do porrete, dispositivos estes que, levando em conta a lei da proporção entre delito e punição, possivelmente a levaria à morte. Muito pior que isso: caso não viesse a expirar tudo que era seu seria confiscado e ela ficaria reclusa no alto da Torre da Miséria, alheada de qualquer possibilidade de recompor seu patrimônio. Estes temores aprumaram seu semblante para adiante, arrancaram dos seus pulmões um brado rouco e castigaram as ancas dos animais com contundentes chibatadas, vindas da renascida força que povoava Egoika, o que fez com que os bichos gritassem como vira-latas apavorados e acelerassem novamente os passos para fugirem da pungência dos golpes. Mas quanto mais andavam, quanto mais corriam e ganiam, mais apanhavam como incompetentes, como se infinitos fossem. Um violento vento pincelado de flocos de neve atacava a face molhada de Egoika, que mal enxergava os cavalos à sua frente. O frio não existia, porque quem rege o corpo não são as intempéries, mas o sangue: e o sangue de Egoika fervia. Até que o caminho, com o solo amolecido pelo aguaceiro, cedeu, pois não pôde suportar o peso da carruagem que por ali trilhava carregando muito do riquíssimo patrimônio de Egoika, seguramente o maior jamais construído em toda a história da Terra dos Abutres, mas cujas honras e reconhecimentos que dele se poderia esperar, não seriam gozados, pois os cães do castelo haviam devorado o próprio Estado capacitado para concedê-los. Agora ela via o pavor nos olhos duros dos equinos que vagarosamente deslizavam ribanceira abaixo e debatiam as patas desesperadamente, sem perceber que sua sofreguidão só destruía com mais pressa o caminho que já não era mais caminho nenhum: gritavam como fantasmas. Vendo a inevitabilidade do deslizamento, Egoika aferrava-se na baliza do carro até perceber que ele também viria abaixo e, claro, o carro e suas duas comportas onde estava resguardada toda a fortuna: um manto de alpaca, uma saca de lantejoulas, um vaso de mármore recheado de bronze em pó, sua completíssima coleção de pedras raras, uma casaca de couro onde ficavam dependuradas as suas agulhas, dois candelabros, um escapulário, quatro dúzias de rabanetes, pilhas de roupas, seis xícaras de mogno, sal, dois cobertores de plástico, oito peças de jogo da dama, a sua pena, um rádio a pilha e outro a laser, um sapato, três botinas e um par de meias. Ela não poderia perder tudo isso para o destino. Até porque o destino não existe. O carro tombou e ela então pegou impulso na anca de um dos cavalos e abriu as comportas puxando com os braços tudo que podia enquanto os cavalos aterrorizados, auxiliados pela gravidade, levavam tudo para a ribanceira. Alguns segundos duram anos. Línguas dizem que assim são os últimos instantes da vida: veríamos todos os anos em que estivemos na Terra não deixando escapar um sequer detalhe. Mas não restaram testemunhas que pudessem ratificar ou desmascarar esse boato, nem mesmo os cavalos que a essa altura já rolam congelados junto às águas do rio que corta essas paragens.

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Testemunhas têm, e abundantes, dos que não chegaram a passar para o outro lado, mas que a certa altura se depararam com a certeza da morte imediata, enfrentando pela primeira vez de maneira franca a absoluta ausência de esperança. Deste instante Egoika acaba de tornar-se testemunha. Apoiada de quatro ela tem a cabeça pendendo para o rio que, agora que a chuva já vai amenizando, é possível enxergar. Seus membros tremem: ela não consegue se mover, apesar da ansiedade que sua visão da longínqua correnteza provoca. Ela precisa sair dali, a qualquer momento a trilha pode voltar a ceder e ela entrará para aquele outro grupo que conhece o último instante e que já não tem mais voz para relatá-lo: ela não consegue, seus braços estão rígidos, suas pernas moles. Atrás de si está o manto de alpaca com os pertences que ela conseguiu salvar: a sua pena, o vaso de mármore, o casaco com as agulhas, as gemas raras, o rádio a pilha e alguns rabanetes. Foram vários minutos até que ela se afastasse do abismo e se pusesse de pé.

Com o que tinha de força levou o trançado de alpaca às costas e foi com vagar pelo estreito caminho que ameaçava ruir a cada passo. As nuvens se entreabriam e agora ela podia olhar sem franzir o cenho e enxergar um horizonte límpido. Descobriu uma escada com degraus de pedra e barro que pareceram mais firmes que a própria trilha. Egoika estava exausta. Considerou retornar para o caminho em que estava por ser mais plano, contudo na tentativa de descer um degrau, percebeu que o peso da sua carga poderia empurra-la e ela implacavelmente reencontraria os cavalos que iam mortos carregados para o mar. Retomou, portanto, a subida, retirando do sol que incidia com toda sua majestade no cume calmo para o qual se dirigia. Por fim ela venceu os degraus e recebeu o calor na face. Deitou-se de bruços e, acalentada pelos raios da tarde que se apresentava ao dia, adormeceu.

Que lugar é esse? Quem são essas mulheres? Quando despertou estava dentro de um cubículo quente, onde quatro mulheres vestidas com longas roupas negras se debruçavam sobre ela: passavam-lhe nas têmporas um pano umedecido com álcool e a abanavam. Sorriram quando ela enfim abriu os olhos. O calor era insuportável e descia da testa das mulheres caudalosos trilhos de suor que, após percorrerem as ravinas das rugas, escorriam-lhe pelo queixo e pingavam no chão: não obstante não abriam mão de sua pesada indumentária negra.

-Ela acordou – disse uma delas entreabrindo a porta, o que fez com que uma corrente de ar fresco trouxesse finalmente Egoika de volta aos seus sentidos.

Após o anúncio, entraram no quarto quatro homens trajando roupas tão densas quanto à das mulheres - a manta de lã cobria a cabeça, não se via as mãos porque as mangas das batas cor de grafite sobravam para mais de um palmo –, e assim que entravam mudos no recinto saíam as mulheres caladas. Quando a última enfim pôs-se para fora do recinto um quinto homem velho apoiado numa bengala de braúna com a suave expressão marcada pelo tempo estampada no meio dos panos que

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envolviam seu corpo, adentrou o quarto, tão rápido quanto a sua perna de pau lhe permitia, ou seja, tão lento quanto um rigoroso teste de paciência. Ele sentou-se à beira do leito de Egoika e, depois de um quase imperceptível sorriso, disse:

- Bom dia, minha filha. Descansou o quanto seu corpo pôde e precisava.

A voz roufenha do velho pôs Egoika num estado de alerta. E ela logo lembrou dos seus pertences. É claro que aquela gente estranha havia se aproveitado da sua condição, das suas horas – ou seriam dias? - de inconsciência para usurpar-lhe tudo quanto pôde salvar do terrível acidente com a carruagem no qual ela havia perdido os seus cavalos e as sedas que os ornavam, bem como um tanto do seu patrimônio que a essa altura já iam à deriva Atlântico afora. Soergueu-se bruscamente e procurou com os olhos o trançado de alpaca.

- Está ali – disse o velho apontando para um canto do quarto.

Violentamente ela se precipitou para os seus bens, desfez o nó da manta e conferiu seu conteúdo surpreendendo-se que nada havia sido tomado. O velho riu-se e disse:

- Você veio da Terra dos Abutres, não é?

- Onde eu estou?

- Você está no Paraíso de Ninguém. Fique à vontade. Poderá ficar aqui. Não é a primeira pessoa que foge da raiva do Estado da Terra dos Abutres. Teve sorte de ter atravessado a cordilheira com vida. Teve sorte das nossas aldeãs terem te encontrado. O seu destino era ser salva. O nosso destino foi te dar uma oportunidade.

Egoika passou em mente todos os acontecimentos que podia se lembrar desde a saída de sua terra natal e concluiu que seria por bem aceitar a oferta daquele povo: ficaria ali, recomeçaria seus feitos e retomaria o fio da sua história. Mas ela não confiava no desinteresse dos aldeões por bens tão preciosos quanto as agulhas do Estado e as pedras raras. Tinha para si que aquele aparente descaso por tudo que portava não passava de uma artimanha para que ela se descuidasse na confiança e era certeza que tão logo juntasse novamente um patrimônio quantitativamente invejável e qualitativamente raro, aqueles abutres viriam subtrair-lhe tudo quanto pudessem. Jogou o jogo. Fez-se calma, apanhou o trançado de alpaca e lançou-o às costas. Ia saindo do quarto sem dizer palavra quando o velho falou:

- Para ficar basta se comprometer com a única regra do Paraíso de Ninguém.

- Qual?

- Jamais sair daqui.

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Ela então foi pelas ruas daquela terra estranha em que as pessoas pareciam não saber andar sozinhas, e, no entanto não se importavam que ela o fizesse, em que todos andavam selados por grossas mantas negras, não obstante o implacável e constante sol que parecia brotar do céu, do chão e de todos os lados, mas tampouco se importavam que ela transitasse trajando não mais que uma bata de seda branca, encardida de fuga, lama e medo. Não tardou para que se tranquilizasse, para constatar ser aquele povo gente de paz: todos andavam de um lado para o outro numa mansidão desinteressada de tudo que se passava à sua volta. Ótimo. Perfeito. Não teria problemas para colher os frutos do seu trabalho que deveria começar o quanto antes.

A primeira coisa que cuidou de fazer, assim que descoberto um sítio para se instalar, foi furtar da vizinhança uns quantos galos parrudos para que fizessem a guarda de sua nova morada. Fez para eles esporas de chumbo e ensinou-lhes a odiar estranhos, tal como fizera com os cães que haviam devorado os homens do Estado da Terra dos Abutres: jamais evoluir sem prevenir, era um dos seus lemas. Aos poucos retomou o ritmo de acúmulo, recobrando as técnicas ora desenvolvidas em três dos ramos que eram sua especialidade: o roubo, o furto e a criação. A troca, mecanismo mais pacífico e sabidamente menos exigente, incrivelmente não era de conhecimento daquela gente gregária. À pena, ao vaso de mármore recheados de bronze em pó, ao casaco com as agulhas, às gemas raras, ao rádio a pilha e aos rabanetes, que a essa altura azedavam, somou uma enxerga de palha, um travesseiro de areia, um lustre artesanal, um cabideiro e quatro quilos de alho, além dos galos e das esporas de chumbo, tudo somente na primeira semana no Paraíso de Ninguém. Via com orgulho multiplicar seu patrimônio. Orgulhosamente plantou um segundo andar à sua até então humilde morada e cravou no topo da construção uma flanela que passaria a ser sua assinatura e por ela gostaria de ser referida e lembrada.

Ia à caça dos bens nos finais de tarde e depois passava toda a noite à espreita, ajoelhada diante da janela do segundo andar. Porém ninguém parecia se preocupar com toda a sua riqueza, ninguém vinha perturbar sua ostentação, nem mesmo para justificar toda a sua cautela e zelo. Certa feita, um casal transitava, com o vagar que Egoika já se acostumara a ver, rente à cerca de sua casa, sem sequer olhar para sua obra, nem para admirá-la, menos ainda para cobiça-la. No entanto os galos aprenderam o ódio e até então não haviam tido azo para dar vazão ao que sabiam. Ainda que o casal estivesse inteiramente desinteressado nos pertences de Egoika, os galos alvoroçados desferiam furiosos golpes de espora na cerca de arame que os separavam daqueles estranhos, até que conseguiram rasga-la e puderam enfim descarregar a violência na tenra carne do incauto casal. Egoika, desesperada e impotente, via tudo do segundo andar: os golpes, o sangue, as penas, os berros e por fim o silêncio. Os galos ganharam as ruas e corriam ansiosos para o centro da aldeia onde mais carne os esperava. Egoika viu repetir-se o terror de quando os cães

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mataram aqueles homens do Estado, mas logo lembrou-se do que disse o ancião naquele quarto minúsculo: a única regra que tacitamente se comprometera era jamais deixar o Paraíso de Ninguém, não lhe falara nada sobre assassinatos. Horas depois do incidente, uma carroça empurrada por quatro homens encapuzados veio recolher os corpos para enterrá-los em local propício e honrado. Não foi feita qualquer sanção à Egoika pelo descuido com os seus galos armados. A regra era literalmente única: jamais sair daqui.

Ela então experimentou abrir mão dos mecanismos de proteção que com tanta expertise elaborara, para evitar novos sobressaltos e eventuais represálias, ainda que improváveis. Resolveu fazer um teste para melhor compreender o comportamento daquela gente. Plantou em frente à sua casa um pé adulto de abacate, já com bonitos frutos dependurados em suas galhas, e pôs-se à espreita, certa de que nem mesmo os frios moradores do Paraíso de Ninguém resistiriam à coisa tão gratuitamente ofertada. No dia seguinte um grupo de pessoas parou diante do abacateiro para observar os frutos. Era agora: agora era a hora dela agir em defesa do seu bem. Mas o grupo se retirou e instantes depois voltou carregando uma tina d’água e uma saca de estrume: regaram a planta, adubaram o pé, aplaudiram o feito e se retiraram sem sequer cogitarem furtar uma fruta.

Jamais sair daqui, dissera-lhe o velho. Mas de que servia toda a sua ambição sem a concorrência? De que servia a sua cobiça sem a cobiça dos outros? O sucesso sem a contenda? Jamais sair daqui. Não, ela não era mais capaz de cumprir a clara e elementar regra daquela terra. As comichões cada vez mais frequentes eram o agouro de sua fuga, da traição à norma da gente que diligentemente lhe oferecera um resto de vida, que era, porém, incapaz de lhe propiciar a plenitude. O grande problema seria atravessar a fronteira, porque lá estava um batalhão de guardas espalhados por toda sua extensão, debruçados em suas armas que não eram como os miseráveis porretes da sua terra, já que estas cortavam facilmente a carne humana e dizia-se que algumas até sabiam cuspir fogo. Ressalte-se que os guardiões todos eram cegos, mas não por isso falhos no cumprimento da missão de vigiar, tanto que plenamente merecedores da fama de bravos, eficientes e justos que tinham no Paraíso de Ninguém. E não porque os outros quatro sentidos tenham se desenvolvido sobremaneira, como sói ocorrer aos cegos ordinários, e sim porque detinham o dom de uma poderosíssima intuição, ao que muitos denominam genericamente de sexto sentido, classificação bastante imprecisa já que também usada para dar nome a devaneios e déja vus, e que, ademais, de forma alguma pode ser chamada de sexto sentido para se referir aos guardas, uma vez que estes não se dispõem, como já dissemos, da visão. A intuição dos guardas é tão aguçada quanto o olfato dos urubus e a audição dos morcegos e está inteiramente à disposição da caça aos fujões do Paraíso de Ninguém. Não se noticia fatos como um urubu que morre de fome porque deixou de perceber um banquete que gratuitamente se apresentava ao seu alcance ou de um morcego que, confuso

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com o próprio eco, chocou-se contra a parede e veio a óbito, não obstante seja certeza que estes eventos ocorrem, ainda que se desconheça um motivo. Pois aquele grupo de guardas não intuiu que a sua madrugada estava sendo vigiada por Egoika a apenas alguns metros do posto, dentro do qual dois guardas jogavam xadrez em plena escuridão. O terceiro guarda, sentado num banco ao relento, segurava molemente a corda que amarrava um burro. Pior que isso: Egoika não tardou a perceber que ele displicentemente roncava e então concluiu que se conseguisse correr até lá, ainda poderia apanhar o burro para que a fuga se desse com maior celeridade. Foi exatamente o que fez. Com um puxão arrancou a corda do guarda e montou no animal que, assustado, pôs-se num galope invejado mesmo pelos grã-finos garanhões, de modo que, quando os guardas atinaram para o ocorrido, uma longa distância já separava o Paraíso de Ninguém de sua mais nova inimiga.

Por horas seguiram viagem, o burro, Egoika e seu patrimônio, até o romper do dia, quando então se depararam com um onipresente pântano que os envolvia como um oceano. Ela teve de descer do animal, pois percebeu o esforço que ele fazia para, a cada passada, retirar da lama a sua pata. A sorte é que por esses tempos não tem feito outra coisa senão sol por essas bandas, o que faz com que a andança sobre este solo seja apenas penosa, e não impossível. Pensava exatamente nisso Egoika, no limite entre o pouco e o nada em que pouco é apenas outro nome para tudo, quando percebeu que há algum tempo andavam, ela e o burro, sem que saíssem do lugar. A bem dizer, o burro teria percebido bem antes, pois há muito esperneava sem que Egoika se desse conta. A lama já chegava aos joelhos quando ela buscou calma para tomar a melhor decisão, que por sinal era a única, qual seja: debruçar-se no burro procurando não mexer as pernas atoladas até que conseguisse altura para saltar para fora da poça faminta. Novamente em solo seguro, ela assistia ao bicho chafurdar em grande velocidade, porque sacudia as quatro patas cada vez mais avidamente: pare de se mexer, chegou a gritar Egoika antes de se lembrar que o burro não entendia a sua língua. Ela então se aproveitou de um ipê que despontava a poucos passos dali, arrancou uma corda do cipó que o parasitava, lançou-a entre os vãos das galhas e amarrou uma das pontas na cela do animal. Puxava a outra ponta com toda a força que lhe restava, força esta que se renovava ao perceber que aos poucos o animal emergia e assim o foi até que ele conseguisse chegar ao seu lado, ao pé da imensa árvore, no justo limite em que o couro da cela rompia-se e caía, junto com o cipó, no centro da poça. Feliz com a proeza, logo Egoika retesou a expressão e, encarando o burro disse:

- Para que eu te salvei?

De fato em nada ajudaria um quadrúpede para a travessia de não sei quantos quilômetros de um terreno pesado como o daquele pântano, mesmo em se tratando de um animal forte e corajoso como aquele mostrara ser nas últimas horas. Afinal de contas, a trajetória rumo ao seu objetivo máximo, ser reconhecida como a mais bem

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sucedida cidadã da história, prescindia absolutamente de andar salvando as vidas dos asnos. Além disso, não ficaria bem que a história descobrisse que em seus êxitos a participação de um animal ignóbil, como os burros em geral, e encardido, como aquele em particular, teve incomensurável importância. Para sua decisão final construiu o seguinte pensamento: se este animal de forma alguma pode se locomover pelos terrenos que o destino lhe ditou, e se eu, que o posso, me unir a ele, então seríamos dois chafurdados e um desperdício. Se o destino o trouxe até aqui caberá a si criar as saídas, e deixou o burro no sítio em que estava e seguiu caminho, consciente ou inconscientemente omitindo parte essencial do raciocínio que seria, mesmo que aqui não haja pastos, nem frutas e que logo virá a chuva que fará de todo o horizonte uma só lagoa. Ao burro restou a resignação. Ele até considerou tentar segui-la, mas interessou-lhe mais uma nesga de água límpida que escorria num tronco de árvore tombado.

Não por abrir mão de carregar o animal a viagem se tronou mais fácil: não devemos esquecer que o trançado de alpaca era um inescapável castigo para as doridas costas de Egoika, e o esforço que aquele solo denso exigia de seus músculos e nervos mais parecia uma urgência impossível de se cumprir, uma muralha impossível de se ultrapassar, um carnaval eternamente adiado. Não esqueçamos que muito da reserva de calorias havia sido inutilmente desperdiçada na hercúlea e mal calculada tarefa de safar o bicho da poça de lama, pelo que, agora, com o sol a rachar-lhe a cabeça e com as pernas bambas, ela sentia culpa. Sua culpa.

Foi então que ela encontrou um imenso pé de cajá carregado de frutas, que mereceriam todo o esforço não só para incrementar o patrimônio, mas também para alimentá-la. Do alto do cajazeiro emocionou-se ao vislumbrar, não muito distante dali, uma imensa vila com ruas, gente e casas monocromáticas. Ao menos havia perspectiva de sair daquele chão hostil e dar paz a seu corpo castigado.

Apenas chegou ao País do Sacrifício, ganhou a atenção de todos que como vespas os cercavam por todos os lados, ela e seu patrimônio. Arrefeceu uma vez mais a alegria de Egoika que prontamente ativou seu instinto de cautela, trazendo para o peito o manto de alpaca que até então tinha nas costas.

- O que traz nessa saca? – indagou um menino.

- Não é assim que se aborda um estranho, meu filho – interveio uma mulher jovem que envolta num sobretudo feito de lã parecia esconder-se do pecado. – Veja, ela está com a roupa molhada. Venha, deixe-me te ajudar – e dando um passo à frente despiu-se da vestimenta ficando nua em pelo sem por isso chamar a atenção de qualquer pessoa senão de Egoika.

Egoika sentia frio e, mesmo que dissesse o contrário, os lábios roxos e trêmulos a denunciariam.

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- Vamos, dispa-se e aceite o meu socorro – disse a mulher.

Egoika não pretendia abrir mão dos pertences que tinha seguramente entre os braços e a cada passo da incógnita mulher aferrava-se cada vez mais à suas coisas sob os olhares cada vez mais interessados de todos os presentes.

- Ela veio da Terra dos Abutres – gritou uma voz grave do meio da multidão.

E como a Egoika parecia não pretender abrir os braços para receber o sobretudo ofertado, a mulher nua lançou-o sobre o dorso da relutante estrangeira que, à revelia, sentiu-se acalentada. Assim que vestida um casal de mãos dadas com uma criança aproximou-se oferecendo-lhe casa, cama e leite quente.

- Não é muito o que temos, mas há de se acostumar.

Egoika deixava-se conduzir pela suave pressão que a mulher do casal exercia sobre seu ombro. Não podia deixar de aceitar a casa para se proteger do relento, não podia refutar a cama para se recompor dos descomunais esforços do último dia, menos ainda poderia negar o leite que todo o seu ser pedia como fonte de vida.

Não teve sequer tempo para se impressionar com a simpleza das construções, e das vestes, e dos banguelas, e do soalho de terra fresca por onde aquela gente manchava os pés, e dos magérrimos perros, e das bocas rachadas, dos maxilares ossudos, dos olhos saltados, das rugas, do leite aguado, pois bastou fechar os olhos para que adormecesse com a cabeça sobre o manto de aplaca sem qualquer inquietude que os alucinantes acontecimentos do último dia pudesse ter lhe causado. Enquanto dormia, moradores faziam o sacrifício de retirar das suas já parcas residências de taipa desdentada, blocos de argila, e das já permissivas coberturas, pentes de palha faziam as vezes de telhado, com o fim de construir um recanto para a novata, coitada, tão deslocada e solitária. Ainda que sem luxo ou evidência de privilégios, nitidamente se notava que a casa erigida em favor da estrangeira era a de pé direito mais alto, a das paredes mais largas, a da cobertura mais densa, a mais ampla e com a enxerga mais macia, o que, aplicada a lei da relatividade e resguardado o zelo pelo raciocínio contextual, constituíam sim luxo e evidências de privilégios, ainda que não se pudesse dizer a causa de tais concessões.

- Ela está acordando – disse uma voz grave, mal Egoika abriu os olhos. – Eu me chamo Paulo, essa é a minha esposa, Maria. Aqueles são nossos filhos, Paulo, Maria e Pedro. Aquela na porta é a nossa vizinha, a Maria.

Egoika, ainda confusa, sentiu-se repentinamente tranquilizada pelo tom da voz que surgia como um sussurro, e pelo sorriso desenhado no rosto do senhor que fazia as introduções.

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- A Maria, nossa vizinha, tem muita fome, e não temos nada mais para oferece-la – como a estrangeira não esboçava resposta, ele prosseguiu. – Enquanto dormia, escapou pela abertura de seu trançado uma fruta e pedimos, por caridade, que a ofereça à nossa vizinha.

Egoika viu o cajá no chão e se precipitou para apanhá-lo. Jogou-o dentro do manto de alpaca e driblou os moradores da casa que a fitavam com apreensão. Aquele senhor: o tom da sua voz, o sorriso plástico, os cuidados, ela conhecia muito bem seus trejeitos. Não foi a sofrível dormida e o manso acolhimento no Paraíso de Ninguém que a fizeram esquecer das marcas daquele tipo de interação: ele estava negociando, e por ingenuidade negociava com a mais astuta especialista do ramo jogando com sinais dissecados e ultrapassados pelas técnicas mais modernas da arte da usurpação. De nada valia a experiência e os cabelos brancos de Paulo, pai de Paulo, Pedro e Maria, vizinho de Maria, esposo de Maria.

- Troco a fruta por um abrigo meu, só meu – retrucou Egoika.

- Mas – ia explicar Paulo, o pai, que sua morada já estava pronta e disponível para usufruto exclusivo, resguardado a ela o direito de permitir ou negar a entrada de quem quer que fosse e que, se o sofrimento de Maria, a vizinha, não fosse o bastante para impingir-lhe a obrigação de ceder uma fruta, em nada isso afetaria no direito concedido, líquido e certo do gozo da sua casa feita com pedaços das casas dos outros. Porém apareceu um jovem na porta de entrada do recinto com um sorriso escancarado em no meio dos ossos que despontavam pela sua cara magra a dizer com a euforia de quem dá vivas e graças:

- Estrangeira, sua casa está pronta. Fui eu que costurei a enxerga com o material das três enxergas que havia lá em casa: a minha, a de minha esposa e a de minha mãe. Venha, vou te mostrar.

Egoika, ainda sem tirar os olhos de Paulo, o pai, largou um cajá no chão e deixou a casa sem dar as costas, até ter certeza que ninguém dali a perseguiria com o intuito de furtar-lhe frutas, ou o que seria infinitamente pior, as suas agulhas. Conforme tivemos oportunidade de dizer, a morada não proporcionava o luxo que Egoika projetava para os seus dias, mas ao menos era um espaço seu, onde ela poderia exercer absoluto controle e procurar inspiração para arquitetar os planos de ampliação do patrimônio. Não tardou para que lhe batessem à porta, no entanto. Era João:

- Desculpe-me o estorvo, estrangeira. Mas o parente Paulo disse que a senhora salvou Maria da fome ainda há pouco. Meu filho, senhora estrangeira. Meu filho tem fome e não arranjei nada para alimentá-lo durante todo o dia. A senhora não teria mais daquelas frutas?

- Sim, eu tenho. E o senhor, o que me oferece em troca?

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- A paz de espírito, minha senhora.

- Paz de espírito terei se o senhor afaga-lo com uma contraparte à altura da fome de seu filho.

- Se a minha súplica não for o bastante, ofereço também minha gratidão. No mais, nada posso oferecer.

- Tampouco eu, nesse caso.

E João se foi à procura de outro alguém que pudesse sacrificar parcela da despensa para salvar seu filho. Contudo, apenas instantes depois começaram a surgir murmúrios ao redor da casa de Egoika, que ela podia ouvir do interior do abrigo sem identificar o que diziam. Colocando a cabeça para fora da minúscula basculante e tentando bisbilhotar pelas brechas oferecidas pela argila mal ajustada das paredes reconheceu Paulo, Pedro, Maria, Paulo, Maria e Maria, além do jovem magricela acompanhado de sua mãe e esposa.

- Forneça ao senhor João uma fruta para que salve o filho, nossa estrangeira. Não faremos nada se não o puder, mas suplicamos para que o faça – disse Maria, a vizinha.

Logo apareceram outras dezenas de figuras mal vestidas que repetiam, em termos semelhantes, o pedido de Maria, como uma ladainha, como uma dor verbalizada, como um pranto de angústia viva e forte canalizado para os cálculos do rogo. Egoika temeu que a multidão invadisse a casa e tomasse as frutas, a roupa e tudo o mais. Não existia aquela técnica na Terra dos Abutres: a técnica do pelamordedeus, que, aplicada coletivamente poderia proporcionar grandes ganhos, não obstante as dificuldades da divisão dos bens auferidos entre os membros do grupo. Lembrou-se de um adágio usado em raros casos de urgência em sua terra natal que dizia às vezes ser preciso dar um passo para trás para ser possível dar dois à frente. Lembrou-se do adágio sem se dar conta que era justamente o que vinha fazendo desde que abandonara o adro do seu castelo para esconder-se no porão, depois a fuga desesperada em meio à tempestade, depois o tempo de restabelecimento no Paraíso de Ninguém, depois a fuga pelo pântano com o asno, a perda do asno e por fim aquela espelunca em que mal podia se sentir segura. Resolveu lançar pela basculante três cajás para que o povo a deixasse em paz, viva a estrangeira, gritavam vozes exultantes e aos poucos passos anunciavam que debandavam os suplicantes.

De madrugada, quando até as plantas parecem fazer silêncio, Egoika deixou o abrigo e saiu em busca de bens. Sabia ser pouco provável conseguir algo de qualidade superior por aquelas bandas, o que não poderia, de todo, dispersá-la da trilha de seu projeto nem tampouco abrandar o ímpeto de cumpri-lo. Bastava que somasse, somasse e somasse indefinidamente e logo recuperaria sua deferência. Via os cães

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amansados pela fome, enraivecidos com a sarna, e logo os imaginava sãos, vigorosos e seus. Via as poças d’água rasas e logo enxergava navios suntuosos e bem armados. Via os casebres miseráveis e imaginava a inveja. Seu primeiro alvo no País do Sacrifício foi aquela casa, a primeira da vila e a mais próxima do pântano, em que sequer havia porta e cujos moradores incautamente passeavam pelas terras de Morfeu. Cuidadosamente puxou a coberta do homem que roncava e tomou de cima de um tamborete meia vela de sete dias de cor alaranjada. Saiu apressadamente e em seguida voltou para buscar também o tamborete.

Na manhã seguinte uma multidão se formava ao redor da casa assaltada e gritos exasperados eram disparados em solavancos. O mago do local, que era também o médico, furou o aglomerado e avaliou o homem furtado que jazia no parco leito sofrendo de calafrios e intercalando o bater dos dentes com frases alucinadas.

- Amanheceu descoberto, mago. Parece ter pegado febre.

- Não precisa ser mago, nem médico, para fazer tal dedução – respondeu autoritariamente o próprio mago.

- O que ele tem?

- Você mesmo já disse: febre - e como ninguém ousou fazer nova observação, a autoridade prosseguiu. – Meu papel não é diagnosticar sintomas e sim apontar a cura.

- Louvado seja! E existe cura, mestre?

- Sempre o haverá desde que se disponha do material necessário e do saber necessário. Pelo saber garanto que o doente pode se dar por salvo. Pelos recursos ele será dado por morto.

- Oh, mestre! De quais recursos precisa para salvá-lo? Atravessaremos o pântano para buscar o que for preciso.

- No pântano não se encontrará, pois o que é preciso é uma porção de ágatas, outro tanto de ametistas e mais um bocado de safira, para o fabrico do chá de pedras raras. Não existem jazidas no pântano.

- A estrangeira – gritou alguém na multidão.

-A estrangeira – repetiu o mago.

Todos, exceto o mago, se dirigiram para a casa de Egoika que àquela altura dormia com a coberta do moribundo. Experimentada com a técnica do pelamordedeus, percebeu que o melhor seria atender o quanto antes o grupo de suplicantes e ela o fez através da do quadrado minúsculo que formava a basculante.

- O que querem?

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- Não temos certeza se poderá ajudar o senhor João da morte, assim como ontem a senhora fez em nome de seu filho. As frutas, sabemos, arranja-se aos montes à beira das estradas desse mundo grande. Mas as pedras preciosas não se oferecem aos olhos e às mãos de todos.

- De quais pedras precisam?

- Safira, ametista e ágata.

- Sim, as tenho.

- Viva a estrangeira!

- Ontem mostrou o bom coração ao ceder os cajás, estamos certos que hoje não será diferente em nome da vida de João.

- O que vocês me oferecem em troca?

- A paz de espírito e a nossa gratidão.

- Pois saibam que a paz de espírito não me serve para nada.

- Nem a gratidão?

- A gratidão sim, se vier como coisas que possam se somar ao meu patrimônio.

A categórica refutação dos pedidos não foi o suficiente para espantar toda a gente que parecia crescentemente mais ciosa vida de João, mais sedenta do sacrifício de Egoika.

- Oferecemos nossa confiança – gritou alguém a certa altura.

Por algum motivo desencadeado por essa frase Egoika decidiu lançar pela báscula toda a coleção de pedras que trouxera da Terra dos Abutres, coleção desfalcada, é bem verdade, se considerarmos que em seu antigo castelo um andar inteiro servia exclusivamente para a alocação das gemas. A multidão saiu exultante das mediações de sua casa a gritar cada vez mais alto:

- Viva a estrangeira! Viva a estrangeira!

João estava salvo. Novamente de pé foi até Egoika para agradecê-la pessoalmente. Dizia-se preocupado porque, apesar de vivo, certamente logo a febre o pegaria de novo já que a coberta que o confortava nas noites frias havia desaparecido:

- Não posso aceitar a manta dos meus vizinhos, por mais que eles em ofertem. Tenho também a minha cota de sacrifício.

- Não se preocupe, João. Eu tenho uma coberta que posso fornecer.

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E, apercebendo-se de mais um ato de sacrifício a ser realizado pela estrangeira, um pequeno grupo acompanhou João e Egoika até a casa desta onde foi doada a manta outrora roubada deste mesmo beneficiário.

- Viva a estrangeira!

Aqueles eram tempos de inverno que, comparados com o vigor dos frios polares, não significava muita coisa. Seria mais próximo se comparado aos ventos dos Pirineus e do Cabo da Boa Esperança: constantes, violentos, implacáveis. Geralmente os vendavais ocorriam à noite quando surgia de forma muito mais branda do que as vezes em que resolvia invadir o período diurno, aí sim verdadeiramente catastróficos, levantando plantas, derrubando casas.

- Só há uma solução para pararmos os vendavais do dia – propalou o mago.

- Qual seria, mestre?

- Lançar ao vento porções de bronze em pó até que cesse de ventar.

- A estrangeira.

- À estrangeira.

Mas a estrangeira não estava tão disponível para ceder um dos seus mais queridos pertences como fizera com os cajás, com as gemas raras e com a manta roubada do miserável João. Oferecer a porção de bronze em pó que carregava no vaso de mármore não seria apenas um passo para trás. Seria uma maratona inteira contra a caudalosa corrente dos seus objetivos grandiosos. Com a parcimônia de tudo e todos na vila dos sacrifícios demoraria uma vida e meia para encontrar um bem de tamanha magnanimidade ou para juntar fiapos e farrapos em volume tal que viesse a substituí-lo com alguma decência. Todos, exceto o mago, rodeavam seu abrigo.

- Não, não fornecerei o meu bronze a não ser que me ofereçam contraparte de semelhante ou superior quilate imediatamente.

- Oh, estrangeira! Tende piedade. O vento já carrega os cães magros que não tiveram tempo de se abrigar.

- Que aprendam a voar.

- O vento já vandaliza nossa já paupérrima plantação.

- Que criem raízes mais fortes.

- O vento já esfarela toda a argila das nossas casas.

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- Que vivam sob a areia – ao dizer isso as palhas do telhado de Egoika voaram, mas ainda assim ela não abriu mão de seu bem e abraçou ainda mais fortemente o vaso de mármore.

Então apareceu o mago em meio à multidão e todos se calaram ante a presença rara de figura tão fundamental para a manutenção da vida no País do Sacrifício, que jamais saía de sua gruta a menos que sob bem justificada solicitação, porém dessa vez as circunstâncias foram o bastante para convencê-lo da jornada. Ele disse:

- Sou mago, médico e conselheiro deste país, o que exige de mim permanente disponibilidade às mais inconvenientes reclamações que pedem diariamente que eu deixe minha meditação, meus bichos e meu recanto. Sou também um estrangeiro, vindo do Cortiço das Almas, onde desenvolvi o dom que não escolhi ter. Conheço bastante essa terra para dizer que não há nada que possamos oferecer em troca do bem pelo qual é demonstrado tamanho apreço pela senhora. Sou testemunha única, mas suficiente para dizer que se não fosse por meus sacrifícios essa terra teria se desmanchado no fio do tempo e sei que, por conta do povo ter percebido isso, vejo-me constantemente lembrado. Por isso suplico que ceda a porção de bronze que tem ou que deixe o País do Sacrifício imediatamente para que possamos vivenciar nosso apocalipse particular.

Ela deteve-se nessas palavras como quem recebe um golpe de inspiração. Não a ameaça propalada pelo mago a estimulava, como ocorreu com os quatro cavalos massivamente golpeados pela chibata de uma Egoika fugida, mas o que a apreendeu foi um detalhe, uma informação, de todo apenas uma informação auxiliar e de função puramente retórica pelo fazedor do discurso, qual seja, a de que aquela figura era constantemente lembrada pelos seus pares a cada sacrifício seu. Segundo Lucas, Jesus teria dito que quem se humilha será exaltado, no capítulo dezoito, versículo catorze, e, mesmo se considerarmos a hipótese do apóstolo ter confundido, entendido mal, ardilosamente modificado alguma parte da sentença, acrescentando aqui, resumindo acolá, ou ainda se implicarmos com a hipótese não menos plausível de o texto atual ser resultado de inumeráveis palimpsestos rasurados sob os interesses das majestades ao longo dos milênios isentando, portanto, o testemunho de Lucas da suspeita de má-fé, ainda assim a parábola tal como consta nos registros tem seu quê de verdade eterna, como está para comprovar a agora desprendida Egoika, pois quem se exalta será humilhado, conclui a moral do evangelho. Ela compreendeu que não era o patrimônio em seu volume e forma que gozava do apreço daquele povo culpado, mas o ato de oferecer, a condição de não ter era o caminho para ocupar um lugar na memória dos homens.

Feita a constatação, Egoika abriu a porta portando o vaso de mármore e, em meio ao choro discreto caminhou em direção ao mago, sem perceber que parte da

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parede da sua casa seguia para o norte com o vento inexorável. Entregando seu pertence ao mago, disse:

- Se é pelo valor da vida dos meus pares, sacrifico - palavras bastantes para a polvorosa de toda a população.

- Mil vivas à estrangeira!

No instante em que o mago lançou o material ao vento, este como que satisfeito de uma fome comensal, apaziguou-se e deu lugar a um renovado sol.

- E para que não volte nunca mais – prosseguiu o mago com a cerimônia – entrego ao vento o mármore, pedra dos mortos, para que se esqueça da tormenta dos viventes – e o vaso partiu-se no chão.

Em meio às contabilizações dos estragos causados pelo inverno à população do País do Sacrifício, foi a própria Egoika quem sugeriu uma força tarefa para a confecção de mantos, cobertas e vestes com todo algodão e toda a lã que se pudessem juntar, com vistas a auxiliar as famílias que, não por sacrifício, mas por pura ocasião da intempérie, não tinham nada para passarem as noites frias.

- São muitos, estrangeira. São tantos os que precisam de algo para tapar-se que será impossível que consigamos realizar tal empreitada sem consideráveis perdas para as doenças trazidas pela exposição ao frio.

- Não se tivermos saberes e ferramentas suficientes – respondeu Egoika.

- Saberes temos todos. Nos faltam as ferramentas.

- Pois, se careço do saber do tear ágil e preciso, ferramentas tenho de sobra – e ofereceu ao seu público o casaco coberto de agulhas que ora não significavam nada com a ausência do Estado que as fabricou. – Comecem por retalhar o casaco e dar as partes às crianças. Com estas agulhas que sacrifico e com algumas dezenas de mãos teremos a solução para nossa penúria.

- Viva a estrangeira!

E então ela também resolveu desfazer a sua enxerga luxuosa, composta com o material de três outras enxergas, ficando com um único trançado de palha com o qual pudesse se deitar sem tocar o barro umedecido do chão. Além disso desmontou seu próprio telhado para oferecer aos mais expostos, bem como retirou das suas paredes a argila e o bambu para que servissem de alento a quem nada tinha, transformando sua própria morada em um abrigo em que mal se podia ficar de pé sem curvar-se, e não se podia deitar se não fosse em posição fetal.

- Viva a estrangeira!

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Com o banquete que roubara de João fez uma fogueira à beira da qual poderiam se acalentar os despossuídos enquanto a força tarefa dava conta de seus cobertores. Não foram todos os que sobreviveram, obviamente, posto o grau de miséria de um vultoso volume de gente que, cumprindo sua trajetória na vida terrena, sucumbiu ao peremptório frio. Aos mortos, Egoika ofereceu a vela alaranjada que um dia iluminara a família de João, e foi ovacionada pelos vivos:

- Viva a estrangeira!

Findada a força tarefa, com exceção daqueles que não tiveram ânimo bastante paro o aguardo e vieram a expirar, todos haviam novamente recomposto as vestes, protegido os corpos esquálidos das lâminas afiadas do frio noturno, prevenido sua fraqueza de uma pneumonia trazida pelas correntes de ar. O novo problema era o abastecimento: o ralo pasto e a mísera plantação haviam sido carregados pelos ventos de inverno, e Egoika pôs-se a pensar novamente nos limites entre o pouco e o nada, em que o pouco significa o absoluto, e o nada significa simplesmente nada. Foi Maria, a vizinha de Paulo, quem percebeu que àquela altura a estrangeira havia sumido dos esforços conjuntos que conformavam o cotidiano dos últimos tempos: havia dias que ela não saía de sua casa, a mais humilde casa do País do Sacrifício.

- O que se passa, estrangeira? Se sente bem?

E uma voz fraca, minimamente audível, surgiu das paredes falhadas:

- Entrem.

Lá estava a estrangeira, deitada em sua estreita enxerga, encolhida debaixo do único trapo que lhe sobrara depois de toda sua doação. Com o espaço minúsculo não coube mais que meio corpo de Maria e algumas cabeças de curiosos a tentarem decifrar a cena. Aliás os curiosos se multiplicavam e olhos atentos procuravam espaço entre as falhas da argila. Maria se debruçou sobre a enxerga e repetiu:

- Se sente bem?

- Sinto-me duas vezes bem.

- Não compreendo.

- Sinto-me bem por todo sacrifício que fiz e também pelo sacrifício que faço.

- Está pálida, parece fraca.

- Querida Maria, bem sei as vicissitudes por que têm passado, mas a pior de todas é a fome, pois é a única que retira do homem toda a força e coragem. A escassez de alimento é a realidade nessa terra desde o rigoroso inverno que atravessamos e por

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isso ofereço minha parte para o bem de quem quer que seja. Deixo de comer para que comam outros.

- Ora, mas então se não come quem desfalece é você, o que no fim das contas será uma perda, tão perda quanto qualquer outra perda.

- Então sinto-me três vezes bem, pois o padecer do meu corpo me apraz quando lembro que outrem está com isso sendo salvo da privação de manter-se vivo.

- Obrigada, estrangeira.

- Não é por isso que sacrifico, Maria. Faça-me um favor. Chame o mago.

Prontamente o mago compareceu e tão logo adentrou o casebre de Egoika disse:

- Não existem poções que possam salvá-la. O que padece é de fome.

- Disso eu sei, querido– sua voz era cada vez mais fraca e o senhor fazia extremo esforço para poder ouvi-la, sendo às vezes frustrado pelos ruídos que a multidão à volta da casa inevitavelmente emitia. – Tenho aqui comigo uma pena de pavão, que foi o primeiro bem que tive na vida.

- De nada te servirá se não convencer-se de comer o mínimo.

- O que quero é que você escreva a história desse povo, contando os mínimos detalhes de como ele soube se desvencilhar de seu apocalipse particular.

- Mas foi graças a você que nos salvamos, estrangeira. O que seria de João sem o sacrifício das pedras? O que seria dos desabrigados sem o sacrifício do fogo, das agulhas e da taipa? O que seria de nós sem o sacrifício do bronze e do mármore?

- De forma alguma deverá ser atribuída responsabilidade a mim sobre qualquer feito. Sacrifico meu nome e minha obra para que todos os outros possam ganhar o primeiro plano.

- Mas de que valerá, então, seu sacrifício? – indagou o mago ansiosamente, ingênuo mago comprovadamente portador de vícios que trouxera do Cortiço das Almas, pois ali era outra terra, era o País do Sacrifício e foi isso o que disse o sorriso que deu Egoika sem mexer os lábios, sorriso de olhos, argutamente interpretado pelo sábio. – Tudo bem, estrangeira. Com essa pena escreverei a história em que você não existirá, e que não existiria sem você. –e agachando-se sussurrou em seu ouvido: - Obrigado, estrangeira.

Daí em diante uma fila constante formou-se à porta do miserável abrigo de Egoika, que comportava somente um aldeão por vez. Cada um deles trazia nas mãos uma porção de farinha, um tanto de leite, um quinhão de frutas, peixe, pão,

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leguminosas e tudo o que pudesse se oferecer no magro repertório das despensas que aos poucos se recuperava. A cada negativa da estrangeira, a visita emitia um educado muito obrigado. A cada muito obrigado, o resto de Egoika que se sustentava vivo vibrava emocionadamente, regozijava-se pleno envolto pelo calor daquela multidão cujos sacrifícios jamais seriam suficientemente grandiloquentes quanto os seus: daquela multidão ela seria permanentemente credora. Entoavam cantos à sua volta, sacrificavam noites no velamento do seu sono, sorriam agradecidos, agraciados. Egoika cumpriu seu objetivo maior: se transformou em santa, a santa entre as santas no País do Sacrifício.