OEHLER_Crise Dos Signos_in O Velho Mundo Desce Aos Infernos_parte 2

15
bro, o projeto de uma lei de anistia é submetido pela primeira vez à Assembléia Nacional, tema de que trata Marx na Neue Rheinische Zeitung do dia 22 do mesmo mês. 457 Ele chama atenção, contudo, para o fato de essas exigências sempre botarem o Parlamento em polvorosa. 458 Dela também toma ciência a imprensa liberal, um tan- to irritada: "esse eterno Lagrange [... ] volta à carga para pedir anis- tia aos insurrectos de junho" :59 resmunga Alexandre Dumas em Le Mois, por ocasião de uma das muitas intervenções do deputado lio- nês. Os partidários da anistia repartiam-se em dois campos: num exortava-se a um perdão mútuo - como fazia George Sand, solici- tando também ao "pauvre Jacques" que esquecesse, como faziam os poetas operários Dupont e Festau -, a estender-se "um véu de esquecimento sobre esse doloroso espetáculo";460 noutro, rejeitava- se categoricamente a idéia de uma anistia para "os assassinos da ordem" e polemizava-se, como Louis Ménard em seus lambes, con- tra os covardes defensores do compromisso, cujo propósito era con- vencer os vencidos a que renunciassem à vingança. O recalque dos acontecimentos de junho não foi tematizado somente com Baudelaire ou Flaubert, ou mesmo com Sartre; embo- ra a noção de recalque ainda não existisse e seu mecanismo não fos- se consciente aos contemporâneos, ele é um tema implícito e, algu- mas vezes, explícito da literatura de junho. Alexandre Dumas o confessa, com um cinismo inconsciente, na frase citada acima sobre a transformação vertiginosa do horror em divertimento. Hemi Boucher - ele chegara da província, como jovem estudante, a 30 de junho de 1848 - escreve em suas memórias: "Não se faz idéia da tranqüilidade despreocupada que reina em toda parte; parece que as temíveis jornadas de junho pertencem a uma outra época, ainda que as conversas recaiam de preferência sobre elas" .461 A melhor ilustra- ção dessa nota contemporânea às próprias jornadas de junho é a des- crição feita por Flaubert da soirée dos Dambreuse, no curso da qual, salvo algumas invectivas fanáticas, só se graceja com o passado recente. A explicação de Boucher para esse rechaço rumo à noite dos tempos do traumatismo de junho - a légereté e a faculdade de esquecimento tão típicos do caráter parisiense - não é suficiente, 122 '.!. pois toda a França, toda a Europa se apressava em esquecer o cho- que de junho. Muito mais pertinente, ao contrário, é a censura l,i~a- da às palavras remorso e arrependimento. Ela se acha quer na llflca operária, quer na literatura elevada: "Vocês, que jamais chegar~o ao remorso" ,462 afronta Charles Gilles os vencedores; e Eugene BaIllet, que toma o levante como um erro, diz, interpelando o povo: "A ordem [... ]/ Metralhou teus corpos frios sem piedade, sem remor- so".463Em seu prefácio a Cadio, George Sand ressalta que os guar- das nacionais de sua cidadezinha interiorana não sentiram nenhum remorso de sua ação sanguinária, que ela dá a conhecer ao público uns bons quinze anos mais tarde; e o que George Sand somente rela- ta, seu amigo Flaubert transforma em ação romanesca, de m~do a tocar diretamente o público: o assassinato brutal, a sangue-fno, de um prisioneiro de junho pelo Pere Roque; sua exclamação, na noite . ("E 't '1 !") 464seu do mesmo dia, ao sentIr-se mal u sou mUI o senSlve. , sarcasmo sobre a fraternidade republicana e sua veneração pelo sacrifício "sublime" do arcebispo de Paris, com que ele se sobressai na casa dos Dambreuse. Mas Flaubert concebe Roque como o pro- tótipo de uma sociedade cuja conduta se revela nas demais figuras do romance, por meio de gestos inofensivos, quase cômicos: o ban- queiro, que obviamente não sujou as próprias ~ãos,' ~az desapar~cer, após a vitória de Cavaignac, o quadro revolucIOnano de Pellenn; o próprio pintor repudia sua estética do progresso; Hussonet consa- gra-se, segundo a nova palavra de ordem dos co~se~v~dores, a,se~s "canhões do espírito"465 e lança um panfleto reaCIOnano; e o propno herói da Éducation, essa personificação da inescrupulosidade melindrosa, reprime os acontecimentos in statu nascendi, ao retirar- se para o campo; depois do junho, ele também espera, naturalmen- te, sua parcela no lucro prometido pelo triunfo da ordem. "A civilização não obriga os conservadores franceses a absolu- tamente nada; com sua moral de araque, suas frases retóricas, sua cortesia estereotipada, eles são cruéis e impiedosos, e o remorso lhes éestranho" ,466sentencia Alexander Herzen. De novo, isso corres- ponde quase a um clichê da parte dos vencidos. Menos rude, Baude- laire resume a moral do recalque, característica da segunda metade do século, na abertura de Les Fleurs du mal: "Et nous alimentons nos aimables remords j Comme les mendiants nourrissent leur vermi- 123 - -v

Transcript of OEHLER_Crise Dos Signos_in O Velho Mundo Desce Aos Infernos_parte 2

bro, o projeto de uma lei de anistia é submetido pela primeira vez àAssembléia Nacional, tema de que trata Marx na Neue RheinischeZeitung do dia 22 do mesmo mês.457Ele chama atenção, contudo,para o fato de essas exigências sempre botarem o Parlamento empolvorosa.458 Dela também toma ciência a imprensa liberal, um tan-to irritada: "esse eterno Lagrange [... ] volta à carga para pedir anis-tia aos insurrectos de junho" :59 resmunga Alexandre Dumas em LeMois, por ocasião de uma das muitas intervenções do deputado lio-nês. Os partidários da anistia repartiam-se em dois campos: numexortava-se a um perdão mútuo - como fazia George Sand, solici-tando também ao "pauvre Jacques" que esquecesse, como faziam ospoetas operários Dupont e Festau -, a estender-se "um véu deesquecimento sobre esse doloroso espetáculo";460 noutro, rejeitava-se categoricamente a idéia de uma anistia para "os assassinos daordem" e polemizava-se, como Louis Ménard em seus lambes, con-tra os covardes defensores do compromisso, cujo propósito era con-vencer os vencidos a que renunciassem à vingança.

O recalque dos acontecimentos de junho não foi tematizadosomente com Baudelaire ou Flaubert, ou mesmo com Sartre; embo-ra a noção de recalque ainda não existisse e seu mecanismo não fos-se consciente aos contemporâneos, ele é um tema implícito e, algu-mas vezes, explícito da literatura de junho. Alexandre Dumas oconfessa, com um cinismo inconsciente, na frase citada acima sobrea transformação vertiginosa do horror em divertimento. HemiBoucher - ele chegara da província, como jovem estudante, a 30 dejunho de 1848 - escreve em suas memórias: "Não se faz idéia datranqüilidade despreocupada que reina em toda parte; parece que astemíveis jornadas de junho pertencem a uma outra época, ainda queas conversas recaiam de preferência sobre elas" .461A melhor ilustra-ção dessa nota contemporânea às próprias jornadas de junho é a des-crição feita por Flaubert da soirée dos Dambreuse, no curso da qual,salvo algumas invectivas fanáticas, só se graceja com o passadorecente. A explicação de Boucher para esse rechaço rumo à noite dostempos do traumatismo de junho - a légereté e a faculdade deesquecimento tão típicos do caráter parisiense - não é suficiente,

122

'.!.k·

pois toda a França, toda a Europa se apressava em esquecer o cho-que de junho. Muito mais pertinente, ao contrário, é a censura l,i~a-da às palavras remorso e arrependimento. Ela se acha quer na llflcaoperária, quer na literatura elevada: "Vocês, que jamais chegar~o aoremorso" ,462afronta Charles Gilles os vencedores; e Eugene BaIllet,que toma o levante como um erro, diz, interpelando o povo: "Aordem [... ]/ Metralhou teus corpos frios sem piedade, sem remor-so" .463Em seu prefácio a Cadio, George Sand ressalta que os guar-das nacionais de sua cidadezinha interiorana não sentiram nenhumremorso de sua ação sanguinária, que ela dá a conhecer ao públicouns bons quinze anos mais tarde; e o que George Sand somente rela-ta, seu amigo Flaubert transforma em ação romanesca, de m~do atocar diretamente o público: o assassinato brutal, a sangue-fno, deum prisioneiro de junho pelo Pere Roque; sua exclamação, na noite

. ("E 't '1 !") 464seudo mesmo dia, ao sentIr-se mal u sou mUI o senSlve. ,sarcasmo sobre a fraternidade republicana e sua veneração pelosacrifício "sublime" do arcebispo de Paris, com que ele se sobressaina casa dos Dambreuse. Mas Flaubert concebe Roque como o pro-tótipo de uma sociedade cuja conduta se revela nas demais figurasdo romance, por meio de gestos inofensivos, quase cômicos: o ban-queiro, que obviamente não sujou as próprias ~ãos,' ~az desapar~cer,após a vitória de Cavaignac, o quadro revolucIOnano de Pellenn; opróprio pintor repudia sua estética do progresso; Hussonet consa-gra-se, segundo a nova palavra de ordem dos co~se~v~dores, a,se~s"canhões do espírito"465 e lança um panfleto reaCIOnano; e o propnoherói da Éducation, essa personificação da inescrupulosidademelindrosa, reprime os acontecimentos in statu nascendi, ao retirar-se para o campo; depois do junho, ele também espera, naturalmen-te, sua parcela no lucro prometido pelo triunfo da ordem.

"A civilização não obriga os conservadores franceses a absolu-tamente nada; com sua moral de araque, suas frases retóricas, suacortesia estereotipada, eles são cruéis e impiedosos, e o remorso lhesé estranho" ,466sentencia Alexander Herzen. De novo, isso corres-ponde quase a um clichê da parte dos vencidos. Menos rude, Baude-laire resume a moral do recalque, característica da segunda metadedo século, na abertura de Les Fleurs du mal: "Et nous alimentons nosaimables remords j Comme les mendiants nourrissent leur vermi-

123

- -v

ne" [Enós alimentamos nossos amáveis remorsos/ Como os mendi-gos nutrem seus parsitas], anunciando um dos temas do volume. Soba Segunda República, dois de seus amigos, cada um a sua maneira,haviam tentado reavivar de forma ainda mais direta a consciência ea memória da burguesia vitoriosa. Um, Ménard, ao se fazer de cronis-ta da carnificina em seu Prologue d 'une révolution e aopintar aNême-sis nos lambes - "o crime é rápido, o remorso é lento" - ;467o outro,Castille, ao promover o encontro, no sonho de um recruta, de doishomens mortos em junho: "Por que essa sombra me surge como umremorso?", pergunta-se aquele que morreu pela ordem, e recebecomo resposta: "Não me reconheces? Foste tu que me mataste".468Uma tal clareza, cujo preço foi o exílio para Ménard e o pseudôni-mo para Castille, era por assim dizer impensável sob o SegundoImpério, de modo que, no lugar de uma lembrança direta, nasceuuma recordação dissimulada, insinuante.

Sartre salienta com razão que o acontecimento do junho de 48a ser recalcado eram os massacres, e não a batalha de junho comotal. Isso já o sentiam vivamente os contemporâneos, na medida emque simpatizavam, embora remotamente, com os derrotados. Oestudante Pardigon, único sobrevivente a tratar do assunto;69julgasintomática a pressa em apagar os vestígios do chamado massacredu Carrousel, que, por um instante, suspendeu o fôlego de toda aFrança e causou espécie no resto da Europa. Nessa matança notur-na, causada por um mal-entendido, que Gallois chama o "epílogo dogrande drama de junho" ;70cerca de cinqüenta prisioneiros perde-ram a vida e alguns dos guardas foram mortos por engano. No diaseguinte a essa catástrofe, Pardigon constata que uma espessa cama-da de areia recobria "essa praça fatal, avermelhada por nosso sangue[... ] para logo apagar da superfície do solo o que não se apagará tãorápido de nossa memória" "71Contra tais tentativas de reduzir aosilêncio os próprios locais do crime insurgiu-se Pardigon, que orga-niza seus Épisodes desjournées de Juin - livro injustamente esque-cido, mas cujo esquecimento é significativo - de acordo com ageo-grafia dos locais de martírio na Paris daqueles dias, a exemplo deMénard, que, em seu catálogo das execuções e atrocidades, procedetopograficamente por ruas, praças e bairros. O poeta operárioAdrien Delaire - Brochon o chama de "o principal cancionista

124

entre os 12 mil incriminados";72 isto é, os prisioneiros de junho -também apela ao testemunho dos locais contra "os burgueses": "Eufarei depor contra vós certos porões/ Onde bem desempenhastes oofício de algozes;/ E na Place du Carro useI eu indicarei o local/ Quefará detestar todos de vossa raça".473Anos mais tarde, depois deNapoleão UI beneficiar alguns combatentes de junho com sua anis-tia de 1859, Baudelaire, em sua crítica poética dessa anistia repudia-da soberbamente por Hugo, não pode atrever-se a lembrar tão semrodeios esse banho de sangue; ele o faz, porém, na imagem evocató-ria do cisne sedento que, ao tempo em que a velha Paris ainda nãofora demolida, o poeta viu banhar suas asas na poeira da Place duCarrousel, a qual, mais tarde, as obras de desobstrução tornaramirreconhecível. Que este símbolo tenha permanecido indecifrado,até mesmo depois do maio de 68, mostra uma vez mais como a his-tória de junho de 1848 foi recalcada na memória coletiva. O europeucultivado conservou, como o velho Stechlin,* uma lembrança nebu-losa do junho, que se confundia com a de outras datas revolucioná-rias: "Em setenta, quando eclodiu a revolução de setembro em Paris,na América se sabia umas horas antes que a revolução corria solta.Eu disse setembro. Mas pode ser também que fosse uma outra. Umafoi em junho, outra emjulho - quem não tem uma memória de ele-fante acaba se embaralhando" "74Só têm "memória de elefante" pararevoluções aqueles que lhes conferem uma necessidade histórica;no que respeita especificamente à revolução de junho, todavia, épreciso estar disposto a recordar também os massacres que a suce-deram: quem não se postara ao lado dos vencidos ou não guardaraum forte ressentimento dos vencedores lembrava-se, quando muito,do terror que se apossara repentinamente da sociedade no mês dejunho. Assim, o pensamento com que Tomasi di Lampedusa apazi-gua o herói de seu Gattopardo, o conde Salina, às vésperas da Re-volução Siciliana de 1860, possui uma grande plausibilidade histó-rica: "Aconteceriam muitas coisas, mas tudo seria comédia; umacomédia ruidosa, romântica, com algumas manchas de sangue nasvestes dos bufões. Este era o país do bom entendimento, aqui não

(*) Personagem e título do último romance de Theodor Fontane, de 1898.(N.T.)

125

A arte cifrada de Daumier (1). Inconveniente de comprar umjornal que publica as notícias doze horas antes dos outros (LeCharivari, 29 de junho de 1848). Zomba-se da memória curta eda miopia do burguês, explicitadas no diálogo: "Mas como, eucompro vosso jornal e não encontro as notícias de hoje!/ Ora,doutor, as notícias de hoje estavam no jornal de ontem!".

havia a fúria francesa; aliás, mesmo na França, com ressalva do ju-nho de 48, teria havido alguma vez algo de sério?".475

Todos os grandes jornais da Europa haviam relatado, aindaque da forma mais distorcida, os massacres de junho. Mas a razãoestava com os que previram que eles logo seriam esquecidos. Par-digon termina seu livro sobre o junho com uma constatação desa-

126

jeitada: "A lembrança desses dias ruins vai se enfraquecendo, poisa cada dia o passado recua, e tudo se desgasta na soc.icdadc" :IH,Sabe-se, e não é de hoje, que os massacres e genocídios caem fac iI·mente no esquecimento. Os Faurisson, que contestam a existênciadas câmaras de gás, têm seus predecessores na boêmia fustigadapor Flaubert, que acredita ter de zombar "dessa velha lorota da noitede São Bartolomeu"477 e para quem a história vivida, por mais trá-gica que tenha sido, permanece motivo de piada.

O que acaba de ser dito apenas aparentemente contradiz o fatode se ter sublinhado universalmente o caráter inesquecível das jor-nadas de junho. Foram detalhes, muitas vezes, que marcaram inde-levelmente as testemunhas dos episódios parisienses, detalhes orasignicativos, ora secundários ou mesmo insignificantes. Para Toc-queville, o acontecimento de junho resume-se no espetáculo dosguardas nacionais armados e dos soldados de linha que, um mêsantes, na Festa da Concórdia, desfilavam diante dos deputados daAssembléia Nacional, que acabara de ser salva: "O espetáculo des-sas 200 mil baionetas nunca sairá de minha memória [ ... ]. Elas for-mavam, para o olho, uma superfície plana e ligeiramente ondulante,que reluzia ao sol e fazia o Campo de Marte parecer um grande lagorepleto de aço líquido".478 Hugo introduz sua descrição virtuosa dasduas barricadas de junho, em Les Misérables, com esta observação:"Aqueles diante dos quais se ergueram, sob o radiante céu azul dejunho, estas duas pavorosas obras de arte da guerra civil, não asesquecerão jamais".479 Durante os próprios combates, ele certificaraa Juliette Drouet: "Jamais esquecerei o que vi de terrível nessas últi-mas quarenta horas" .480Que sua memória tenha sido falseada peloseu interesse de classe é o que lembra Marx, e de certa maneira tam-bém Baudelaire, com a dedicatória irônica de seu Le Cygne ,481mastambém o próprio Hugo, de forma inconsciente: ao narrar, na suaHistoire d 'un crime - do ponto de vista da solidariedade burguesa,é claro -, como retrucou ao operário que lhe explicava, na manhãdo golpe de Estado, que seus companheiros não iriam às barricadasporque o junho lhes servira de lição: "Em junho tudo era obscuro,hoje tudo é claro" .482

127

Hugo jamais deixa escapar se foi testemunha dos massacres.De outros contemporâneos, isso se deduz de alusões, a maioria dasvezes envergonhadas. Paul de Molenes, por exemplo, mal se recor-da, curiosamente, daquilo que viu, mas claramente daquilo queouviu seus "pequenos e valentes guardas móveis" lhe gritarem - aele, um de seus capitães - no calor da batalha: "O senhor devia tê-lo visto, meu capitão! Ele estava pálido como um lençol, e seus cabe-los se puseram de pé; ele nos dizia: 'Não me matem!' O cabo lhe deuum golpe de baioneta. Agora ele não fará mais barricadas. Quantasvezes eu ouvi essas frases! Alguns de nossos prisioneiros, os rostosensangüentados e as mãos enegrecidas, conservavam com orgulhosua atitude e pareciam os demônios da revolta" .483 A eloqüente con-fissão de Molenes, que a Revue de Deux-Mondes publicou seismeses após os combates, revela a monstruosa falta de consciênciasocial dos vencedores. Mais sensível foi a reação do jovem Renan,que se pôs a investigar o rumor das execuções no Jardim de Luxem-burgo: "Ah! Era tudo verdade, e se não o vi com meus própriosolhos, vi algo ainda mais assustador, que jamais se apagará de mi-nha memória, e que, se não me elevasse a um ponto de vista maisgeral, deixaria em minha alma um ódio eterno" .484 Alexander Herzenfoi testemunha auricular das execuções, embora fosse incapaz, éclaro, de adotar "um ponto de vista mais geral": "Na noite de 26 dejunho [... ] ouvimos salvas regulares, com breves intervalos. [... ]Todos se entreolharam, com os rostos verdes. [... ] 'São mesmo fuzi-lamentos' , dissemos a uma só voz, e cada um foi para seu canto. Eupressionava a mão contra os vidros. Por tais minutos, odeia-se pordez anos, o resto da vida só se pensa em vingança. Ai daqueles queperdoam tais minutos!" .485 Qualquer um em Paris há de ter passadopor tais experiências, mas poucos se atreveram a lembrar-se dela empúblico. Louis Ménard foi o único a ter coragem de pesquisar demaneira sistemática os horrores das jornadas de junho e descrevê-los detalhadamente, primeiro numa série de artigos no Le Peuple ,deProudhon, depois em forma de livro, o que lhe valeu uma pena detrês anos de reclusão e uma pesada multa (ele escapou à puniçãofugindo para o exterior). Ao reeditá-lo no começo desse século,Charles Peguy denominou o Prologue d'une révolution "um monu-mento da perpétua exploração do povo pela burguesia, do perpétuo

logro do povo pela burguesia, do perpétuo massacre do povo pelaburguesia" .486 Essa era mesmo a intenção de Ménard, que, sobretu-do em seus poemas de junho, vinculara a memória dos massacres àidéia de expiação e vingança.

Aresolução de não esquecer, de lembrar, na perspectiva da des-forra posterior, caracteriza a literatura daqueles que se põem belico-samente a serviço do proletariado. "Ah, sabei que somos daquelesque se recordam!" ,487 exclama cheio de raiva o primeiro historiógra-fo do junho depois da Comuna, Victor Marouck. A memória coleti-va dos vencidos representa uma ameaça para os vencedores; quan-do os primeiros afirmam que haverão de se lembrar, querem dizerque tiraram uma lição da derrota. Nesse sentido, Rosa Luxemburgoainda utiliza a fórmula das "carnificinas de junho" ou dos "massa-cres de junho que permanecem eternamente inesquecidos" .488

Segundo a vontade do partido da ordem, a repressão dos insurrectosdevia servir de lição. Essa lição, retrucam os socialistas, foi efetiva-mente aprendida. Pensando nisso, Marx comenta a reticência dosoperários em junho de 1849, quando a Montanha quis arrebatá-lospara uma ação: "A memória do junho de 1848 rondava mais viva doque nunca as fileiras do proletariado parisiense [... ] .Os operários deParis haviam freqüentado a escola sangrenta do junho" .489 Porémesse aprendizado não implicava afastar-se, em princípio, da idéia darevolução pela força, mas apenas um resguardo diante dos provoca-dores e uma desconfiança em relação à "pequena burguesia demo-crática". Nesse último ponto, ao julgamento otimista de Marx eEngels opõe-se a eterna queixa de Blanqui sobre a credulidade e amemória fraca do povo; para Blanqui, o povo está sempre a deixar-se iludir pela retórica demagógica de seus pretensos amigos, "essepovo, sempre ridicularizado, mas sempre crédulo, porque sempreignorante e infeliz" .490 Por essa razão seria preciso relembrá-lo, semdescanso, dos horrores de junho. "Ora! Então se esqueceram do dra-ma de junho? [... ] Paris desarmada, garroteada, amordaçada, con-vulsiva, retorcendo-se sob o ultraje que lhe fora poupado pelas hor-das estrangeiras, senhoras de seus muros!" .491 Em outra ocasião, eleafirma: "Não nos esqueçamos da raça dos vampiros, que é tambémados camaleões" .492 O que ele quer dizer com isso infere-se das notassobre as eleições de 1863, nas quais ele põe sob a lupa o passado

128 129

político de candidatos democratas: "Como disse, é um novo milagredos jesuítas que o ex-redator do Bien Public, um dos grandes pontí-fices do extermínio, seja eleito como mandatário pelos filhos dosexterminados. Que povo mais esquecido! Mas não, estou errado.Para esquecer é preciso ter sabido, e ele não vê, não ouve nem lê -como saberia, como poderia saber?" .493Argumentos análogos são ode Vermorel em 1868, em seu Les Hommes de 1848, o de Bakuninem 1870, em O império cnuto-germânico e a revolução social, e ode Valles, no mesmo ano, a propósito da eleição de Pascal Duprat, ohomem que, em 1848, instigara a decretação do estado de sítiO,494sobre o que ainda se queixa Marouck: "Paris, demasiado esquecidado passado" , elegera deputado um Duprat.495

Observa-se, portanto, a coexistência de dois topoi por parte daesquerda revolucionária: de um lado, exprime-se a esperança, oumesmo a certeza, de que a memória de junho iluminará o proletaria-do durante gerações; de outro, deplora-se essa ausência de lucidez econstata-se que os trabalhadores permanecem tão suscetíveis quan-to antes a mistificações políticas. A lembrança de junho é sempreuma tentativa de pôr diante da vista da classe trabalhadora a neces-sidade de auto-organização, para imunizá-la contra o que era cha-mado de "canto das sereias" dos republicanos, dos liberais ou dos"jesuítas". Talvez se possa dizer que o primeiro topos, o topos oti-mista, era o mais difundido imediatamente após os combates de ju-nho - lembro as canções já várias vezes citadas de Baillet, Gille,Leroy ou Delaire - , ao passo que o segundo topos, o topos cético,impôs-se só aos poucos, depois das outras decepções da DeuxiemeRépublique e do Second Empire.

JUNHO: A MAGIA DE UMA DATA

Desde 1789, a revolução tinha os seus aniversários e feriados,dias em que o povo ou alguns de seus representantes haviam se des-tacado como heróis ou mártires. Nos annales révolutionnaires ounos fastes révolutionnaires, tais journées eram dias consagrados àmemória de triunfos ou derrotas, e sua mera evocação estimulava,reforçava a resolução revolucionária. Na consciência do povo de

130 t

1848, ainda era presente sobretudo a memória de todas essasjour-nées que Paris vivera desde as Trais Glorieuses, as jornadas de julhode 1830. Épor isso que Flaubert, no início da terceira parte da Édu-cation, a 24 de fevereiro de 1848, faz entrar em cena um veterano darepública, com o barrete frígio, que protesta: "Sempre cumpri commeu dever, em 1830, em 32, em 34, em 39! Hoje temos luta, é preci-so que eu lute" .496Da tradição dos aniversários republicanos resulta-va, a cada momento crítico, o imperativo da ação revolucionária. Oscombatentes de junho também se inscreviam nessa tradição, e acélebre anedota segundo a qual eles lembraram ao velho Arago, naPlace du Panthéon, como em junho de 1832 as pessoas haviamerguido juntas as barricadas497 revela uma confiança quase religiosana eficácia mobilizadora das datas. Em junho de 1848, porém, a tra-dição republicana e revolucionária vai pelos ares. Se o 24 de feve-reiro ainda era um dia de festa reconhecido por todos, os velhosrepublicanos da estirpe de Arago, que Marx denomina "republica-nos burgueses", os representantes da Montanha de Ledru-Rollinbem como os socialistas democratas de Louis Blanc recusam aopovo toda legitimidade insurrecional e republicana, qualificam ainsurreição como crime ou, na melhor das hipóteses, como errocrasso. EmLes Misérables, Hugo empresta a esse veredicto a formade uma metáfora: a grande barricada de junho, na praça da Bastilha,parece-lhe "um Ossa sobre Pélion de todas as revoluções; 93 sobre89, o 9 termidor sobre o 10 de agosto, o 18 brumário sobre o 21 dejaneiro, vendemiário sobre prairial, 1848 sobre 1830".498O junhonão seria, com isso, o prolongamento da boa tradição histórica, massua ruptura caótica. É significativo que Hugo glorifique também ojunho de 1832 - o junho dos republicanos -, e não o junho de1848.499Essa substituição da data perigosa pela menos contestada jáse encontra, embora com intenção contrária, cerca de uma décadaantes de Les Misérables, em dois esquecidos romances populares daSegunda República,Le Mont Saint-Michel ,de Blouet, publicado em1849 no Le Peuple de Proudhon, eLes Ambitieux, de Castille: osautores querem, ao falar do junho de 32, abordar de forma satirica-mente velada a história tabu, ou pelo menos extraordinariamentemelindrosa, do junho de 48.

131

George Sand - que em 1867, no prefácio a Cadio, rompe osilêncio sobre os massacres de junho e narra um atentado sangrento,típico dos guardas nacionais de província-de certo modo chama asi mesma à razão e conclui abruptamente seu relato com ajustifica-tiva de que a arte tem de ser imparcial e, além disso, "essas coisasestão ainda muito próximas de nós para serem lembradas sem fazerapelo a paixões e ressentimentos". 500Somente na véspera da revolu-ção de 1870 multiplicam-se as lembranças do terror de junho, eCastille, na edição em separata dos capítulos correspondentes de suaHistoire de la Seconde République française, de 1869, o mesmo anoda publicação da Éducation sentimentale, põe o dedo na ferida logono título: Les Massacres de juin de 1848.501Uma tal franqueza seriaimpensável no período autoritário do Segundo Império. Na época,as pessoas se arranjavam para evocar seja a data, ao situar a palavra"junho" num lugar de destaque - no título, no início de um texto,na data de um prefácio ou de um posfácio etc. -, seja a atmosferadas jornadas de junho, mas sem mencionar a data. A primeira formade alusão aparece, por exemplo, no poema Les Soleils de Juin, deAuguste Lacaussade, no necrológio de Cavaignac por Valles, quecomeça com a constatação: "Enquanto existir um mês de junho,lembraremos seu nome"502(logo a seguir o autor explica que nãopode estender-se sobre esse tema: "Gemo pelo silêncio que me éimposto, e hoje acho minha profissão bem triste"),503ou no prefáciode Reine à edição francesa de seus Poemes et légendes, assim data-da: "Paris, ce 25 juin 1855", o que dificilmente seria produto do aca-so, já que, tanto no prefácio quanto num ciclo do próprio volumeintitulado Livre de Lazare, Reine retoma em detalhes as experiên-cias de 1848.504A segunda forma de alusão tem a preferência sobre-tudo dos poetas, e entre eles, novamente em perfeita maestria,Baudelaire e Reine; mas também se pode compreender os Poemesbarbares, de Leconte de Lis1e, como uma evocação das lutas san-grentas do passado recente e, ao que tudo indica, assim foram com-preendidos, como dá testemunho, sempre de modo alusivo, umaresenha de Valles de outubro de 1864.505

Ao longo da Segunda República, a extrema esquerda aindaconsagrou um culto público à memória de junho. Em seus Revolu-tioniiren Studien [Estudos revolucionários], Alfred MeiBner discor-

132

A arte cifrada de Daumier (2): Um serão parisiense no mês dejunho de 1853. O mundo distinto evoca tudo, menos seu passa-do; o esquecimento político é a chave da festa imperial.

re sobre um banquete da república vermelha: "Num estandarte pre-to, debruado de longos crepes de luto, lia-se em letras vermelhasuma única palavra: Juin 1848" .506O junho era tanto mais fervorosa-mente invocado quanto mais a reação tentava difamá-lo. CharlesGille, numa notável distribuição de maiúsculas e minúsculas, subli-nha a continuidade, ou mesmo a intensificação, entre fevereiro ejunho: "Esse fevereiro que nos é endeusado/ É filho do povo, masJunho foi povo também!" .507E do fundo de sua prisão, Blanqui pro-testa com uma imagem próxima, ainda mais patética, contra a difa-mação dojunho e dos combatentes de junho: "Metralhem, senhores,não caluniem! O 26 de junho é um desses dias nefastos que a revo-lução reivindica aos prantos, como uma mãe reclama o cadáver deseu filho".508Aqui, a própria data transforma-se no crucificado, e arevolução, na Pietà. Na primeira edição alemã de Vom anderen Ufer[Da outra margem], há um intertítulo que ocupa toda uma página:"23.24.25.26. Juni" .509Na edição póstuma, ampliada, de suas Let-tres de France et d'Italie, Rerzen descreve com quais sentimentosele constata em 1850, pelo carimbo de seu passaporte ao cruzar a

133

fronteira para a Itália, que ele voltava as costas à França exatamen-te "no terrível dia 23 de junho" .510Tais recordações têm o caráter deiluminações. Muitos autores, como foi dito, ficam à espera do mêsde junho para derramar uma luz adicional sobre o público, à força dadata. Pardigon acrescenta sob o capítulo introdutório de seu livro:"Londres, ce 23 juin 1852";511a data que Heine apõe ao prefácio dosPoemes et légendes já foi mencionada; o prefácio de Marx à segundaedição do Dezoito Brumário termina num lacônico "London, 23. Juni1869";512e Charles Péguy ainda faz publicar sua nova edição do Pro-logue d'une révolution, de Louis Ménard, a 28 de junho de 1904.513

Tanto a "esquerda" aproveita cada oportunidade para relem-brar a data fatal quanto a parte contrária se guarda de sugeri -la. Mes-mo nos Petits Traités de l'Académie des Sciences Morales et Politi-ques - lançados expressamente para combater as idéias quehaviam conduzido à insurreição de junho, para demolir as "barrica-das do erro" -, evita-se tanto quanto possível chamar o aconteci-mento pelo nome, datá-lo. Em vez disso, ele é designado por circun-lóquios como "rios de sangue são vertidos para abater, em nome dopovo, o governo do povo" ,514"à cólera se junta o sofrimento, ele [opovo] mata, deixa-se matar e decuplica seus males";515 fala-se deuma "luta de gigantes contra o CéU"516ou simplesmente de "uma vin-gança desesperada".517 Apenas o estranho doutor Lélut, ridiculariza-do por Blanqui e Baudelaire,5J8 não hesita, no prefácio de seu Traitéde légalité, em recordar pormenorizadamente o dia da insurreiçãode junho: "No ano passado, quase nesse mesmo dia, a mais aterra-dora de todas as guerras, a guerra civil, assombrava e ensangüenta-va Paris" .519Pelo que se sabe, Lélut é o único dos autores de tratadosmorais que data seu texto: "Paris, 28 juin 1849" .520Mas com certezaessa data só é pensada como uma homenagem ao comitente, o gene-ral Cavaignac, que a 28 de junho de 1848 renunciara espontanea-mente ao poder ditatorial que lhe havia confiado o Parlamento. Arepública "honesta" , moderada, fez de tudo para apagar no espíritodos contemporâneos a lembrança da data de junho, e o SegundoImpério deu seguimento metódico a essa política. Eram os adversá-rios da burguesia triunfante, socialistas democratas ou artistas anti-burgueses, que mantinham acesa a lembrança de junho. Foi assimque o junho de 48 tornou-se ao mesmo tempo uma Grande Date du

134

:1::'

f!

~iU

I'I

Alusão CIOS massacres e seu desmentido no relato gráfico: Tomada dasbarricadas na praça da Bastilha.

socialisme, como o título da monografia de Marouck, e um ponto deinflexão na estética da modernidade, o que Benjamin, Sartre e PeterWeiss ressaltaram com maior ou menor clareza.

"Junho, data sinistra! Sombria batalha!" ,521exclama Valles emjunho de 1865, também no necrológio de um dos protagonistas de1848, Pierre-Joseph Proudhon. Por si só tal abreviatura era entãouma audácia; quando muito, permitia-se citar a data de junho numcontexto apologético, numa condenação da revolta ou do comunis-mo. "Compreende-se [... ] que ainda agora, no mundo operário fran-cês, palavra alguma suscite tanta raiva ou humilhação quanto a pala-vra 'junho'. Pois junho significa a lembrança de todos os horrorescometidos pela burguesia contra o proletariado; a palavra recorda aoproletariado que ele se empenhara com violência em reformar asociedade, que ele lograria de tal modo, presumia ele, desfrutar a

135

vida livremente, e que nisso ele fora derrotado de maneira ignomi-ll.iosa".522Assim explica Sigmund EngHinder, em 1864, o efeito cau-sado pelo nome desse mês, no qual "foi arrancada ao socialismo suapresa venenosa".523 Eram os estrangeiros que podiam aludir maisexpressamente à magia dessa data e ao tabu no qual ela foi conver-tida pela sociedade oficial.

Quem quer, na própria França, recordar-se do junho - pelomenos nos anos anteriores à liberalização do império - busca fazê-lo por intermédio da datação indireta. Le Cygne ilustra de maneiraexemplar um tal procedimento. Esse poema sugere o drama de junhopor meio de um jogo sutil entre a indicação concreta de um lugar comdiversos marcos temporais de efeito poético e uma ação simbólicaaltamente evocatória. Baudelaire se vale do fato de que, na tradiçãorepublicana, os nomes de lugares correspondem muitas vezes adatas, ajournées (o Cloitre Saint -Merry aos combates sangrentos dejunho de 1832, a rue Transnonain à repressão de abril de 1834, aCroix -Rousse ao levante dos tecelões lioneses etc.), para evocar, coma fómula provocadora "le nouveau Carro usei" ironicamente modu-lada, os massacres de junho de 1848, que, como vimos, tiveram napraça do Carrossel seu ponto culminante. Mas o poema não se con-tenta com alusões; ele precisa, mediante uma refinada série de indi-cações temporais metafóricas, o momento histórico exato do encon-tro com o cisne, de modo a excluir qualquer confusão, por exemplo,como dezembro de 1851ou o fevereiro de 1848524.Notodo,Le Cygnepode ser lido como uma lembrança-anteparo ou uma lembrançasucedânea, poética, de composição magistral, destinada a todosaqueles que se sentiam vítimas do recalque da Paris insurrecionalpela nova Paris, imperial e burguesa. Essa Paris velha e melhor, der-rotada em junho de 48, desmantelada por Raussmann, essa Paris queBenjamin chamava um "maciço perigoso e ameaçador, um junhosempre ativo da revolução" ,525é evocada no poema talvez mais belode Baudelaire, e ao lado dela a nova Paris parece uma ilusão.

A lembrança-anteparo estilizada com arte é, em Baudelaire e noReine das Inquietações babilônicas ou no Flaubert da Éducation,uma imitação irônica dessas lembranças involuntárias e sucedâneasdos contemporâneos de junho, das quais encontramos vestígios tan-to na literatura de folhetim quanto na literatura elevada. Uma anteci-

136

Meissonier: A barricada.

pação desconcertante mas ingênua daquilo que Baudelaire faz em LeCygne parece achar-se no relato das testemunhas oculares, sob for-ma epistolar, que Amed- Bouis compôs logo após as jornadas de ju-nho para um jornal americano;526 o autor começa sua reportagem dis-correndo longamente sobre um esquilo que ele vira abandonado emsua gaiola, depois menciona uma cena do Macbeth em que Banquovê andorinhas rodeando as ameias do castelo, o que o leva às andori-nhas que, durante as batalhas no Panthéon, voavam sobre as barrica-

137

das: "Durante o ataque ao Panthéon,elas voavam rente às barricadase mergulhavam na fumaça espessa, fazendo mil ondulações [... ].Ouviam-se de longe seus gritos de alerta quando elas roçavam asbaionetas dos temíveis guardas móveis, impassíveis diante de tantasmães banhadas em lágrimas. Pobres criaturas inocentes!... O mes-mo chumbo ensangüentado que acabara de atravessar peitos huma-nos crivava o frontão do vasto monumento erguido às glórias daFrança, destruindo os vossos ninhos, as vossas ninhadas, as vossasesperanças mais caras!".527A relevância dessa passagem consiste emmostrar como, no próprio instante do acontecimento histórico, ele édistorcido metaforicamente em razão de sua atrocidade. Tal como emLe Cygne, o espetáculo concreto do massacre é substituído pelo sim-bólico, o pathos é concentrado em figuras que são personagens mar-ginais, mudos, do acontecimento propriamente dito: sobretudo nosanimais, nas mães em prantos, nos monumentos. Soma-se a isso, tan-to no artigo de jornal quanto no poema, a reminiscência literária sig-nificativa. A diferença entre o texto trivial do verão de 48 e o poemacomposto por ocasião da anistia de Napoleão III é que o primeirositua-se no começo de um processo histórico de recalque, o segundoem seu ápice - pois a anistia de 1859 é o triunfo da França novasobre a velha -; que o primeiro, por meio de sua simbolização par-cial, inaugura a desrealização do acontecimento, ao passo que osegundo busca justamente anular esse processo, levando a extremosa codificação e fazendo desaparecer a data proscrita no gesto do ani-mal, isto é, buscando superar o recalque dos massacres por meio damímica do recalque. (E como Benjamin diz tão bem em seu ensaiosobre Kafka, os animais servem muitas vezes "como receptáculos doesquecimento [... ], como cifras de uma culpa enigmática" .)528

Vestígios desse trabalho de recalque, desses deslocamentospara outras configurações de sentido, num simbolismo enigmático,são visíveis por toda parte na literatura de junho. A atenção dos con-temporâneos atém-se ao acessório, quando não ao absurdo, como auma tábua de salvação, a fim de não registrar os próprios massacres.Nesse aspecto, as memórias de Paul de Molenes,já mencionadas,são particularmente impressionantes: ele não faz mistério de que oscapice(s) obstiné(s) de sua percepção e de sua memória durante oscombates o encheram de espanto. Por algum tempo, dois versos de

138

Hugo não lhe teriam saído da cabeça, pois a visão da Notre-Dulllc ()teria impressionado como nenhuma outra jamais o faria; ao fi nul,um refrão tolo, cantado por seu batalhão, ter-se-ia arraigado na suamente: "Mustico, dar dar, tire lirel Cli, elo, ela, la lirette, la liron" .~l<)

Molenes haveria tentado muitas vezes, apaixonadamente, lembrar-se do resto da canção, sem dúvida porque a essência de sua experiên-cia de junho nela estava contida.

Na memória de muitas testemunhas oculares persiste uma ten-dência a ofuscar totalmente o humano - são apenas coisas que nelaainda se manifestam: barricadas, inscrições, fachadas de casas oucartazes de teatro dilacerados pelas balas, animais errantes, uma bor-boleta branca que esvoaça sobre a rua, como em Les Misérables, 530"um relógio de parede, um poleiro de papagaio, gravuras" ,531na Édu-cation. Tocqueville constata que aquilo que mais o impressionoudurante as jornadas de junho foi a visão da rue Saint-Honoré total-mente deserta.532Os vencidos são como que extirpados da memóriada sociedade; para as vítimas não foi previsto nenhum lugar na histó-ria. Eis o que preserva a memória oficial: a lembrança edificante dosheróis da ordem. Essa observação é confirmada pela iconografia dejunho, que só é realmente expressiva quando mostra lugares semhomens. O quadro de Meissonier, La Barricade, constitui uma exce-ção; mas mesmo para Meissonier, o espetáculo das vítimas somenteé possível depois de elas serem coisificadas pela morte. Os comba-tentes mortos de Meissonier não têm a expressão dos homens queDelacroix pintara em seu Massacre de Seio, nem, como a famíliaoperária assassinada do Massacre de la rue Transnonain, de Daumi-er, um pathos social inequívoco. Para se interessar por esses homenstombados, é preciso saber quem eles são - é preciso, como PeterWeiss na Estética da resistência, 533ter uma idéia da história a que elespertencem. Do contrário, eles permanecem isolados, uma curiosida-de atroz, tal como esse próprio quadro dentro da obra do artista.

ANALOGIAS HISTÓRICAS

O fato de os contemporâneos sentirem o acontecimento de ju-nho como novo e incomparável não os impediu de buscar analogias

139

Profecias de Grandville: Crês mesmo que isso é para os cossa-cos? Que belo parisiense tu me saíste! Isso te esfolará vivo, se tunão concordares com o governo! (28 de junho de 1833).

históricas ou fazer associações mais ou menos espontâneas. Essasanalogias, sem dúvida, poucas vezes têm valor explicativo; antesexpressam o temor de uma recaída inesperada em épocas que se con-sideravam superadas. Representativa é a constatação de La Revuedes Deux-Mondes: "Nós retornamos de um golpe à Idade Média" .534Em razão da crueldade inaudita dos massacres - que na maioria dasvezes são imputados ao adversário -, evocam-se por comparaçãoas guerras religiosas,535 a guerra entre Armagnacs e Bourguignons ,536as dragonadas,537 a Jacquerie5J8 ou o Terror da Revolução Francesa,e não raro vários desses acontecimentos de um só fôlego. O parale-lo com o Terror revolucionário é bastante apreciado, e nele quase

140

sempre os insurrectos, mas só excepcionalmente os vencedores, sãodesacreditados como os piores perpetuadores dos assassinatos desetembro. Ernest Renan, por uma fração de segundo um radical, vol-ta~se contra os vencedores: "A classe burguesa provou ser capaz detodos os excessos de nosso primeiro Terror, com um grau a mais dereflexão e egoísmo" .539Herzen vai ainda mais longe quando conce-de ao Terror de 1793 uma necessidade histórica, condenando as"orgias" dos boutiquiers como obra de pura infâmia.540 GustaveLefrançais estabelece um vínculo entre a reação de prairial (20-22de maio de 1795) e a repressão do levante de junho.54!

Tão difundida quanto a analogia do Terror parece ter sido a danoite de São Bartolomeu. Blanqui foi um dos que, logo depois dosmassacres de Rouen, preveniram sobre uma "noite de São Bar-tolomeu dos operários parisienses" .542Tal como o ano de 1793, anoite de São Bartolomeu era uma verdadeira obsessão na consciên-cia dos franceses do século passado, muito ventiladajá nos agitadosprimeiros anos da Monarquia de Julho, mas também na atmosferacarregada do início do verão de 48. Em geral, a comparação entre osmassacres de junho e o da noite de São Bartolomeu reporta-se àdimensão e crueldade da carnificina, sendo que muitas vezes éexpresso o sentimento de que os horrores do presente faziam som-bra a tudo o que ocorrera no passado, inclusive o terror de 1572."Creio que jamais aconteceu algo de semelhante na França, nemmesmo na noite de São Bartolomeu":543 a frase tirada de uma cartade Gustave Courbet tem, como salientou com razão T. J. Clark, todoo caráter de um estereótipo;544 é uma dessas comparações negativaspelas quais se exprimem, simultaneamente, o caráter inconcebíveldos acontecimentos e uma simpatia pelas vítimas. Mais refletida eresoluta é a maneira de Baudelaire ligar implicitamente, em 1855 e1857, os massacres de junho à noite de São Bartolomeu pela esco-lha da epígrafe de Agrippa d' Aubigné para Les Fleurs du mal, como que ele se distingue de Victor Hugo, que reservara a analogiaexclusivamente para o golpe de Estado de Luís Bonaparte.545 Con-ceber as jornadas de junho como retorno da noite de São Bartolomeusignificava, por um lado, exprimir sua indignação diante dos massa-cres - e não, por exemplo, diante da própria revolta - e, por outro,interpretá-los como o prolongamento das repressões sangrentas de

141

II

que ojuste-milieu se tornara responsável em 1832 e 1834 e que, naépoca,já haviam sido comparadas à Saint-Barthélémy.546

A 28 de junho de 1848, num momento em que ainda não pode-ria ter conhecimento dos massacres, Friedrich Engels escreve naNeue Rheinische Zeitung: "A história oferece apenas dois momentossemelhantes ao combate que provavelmente ainda se desenrola emParis: a guerra dos escravos em Roma e a revolta dos lioneses de1834" .547 A analogia funda-se aqui no momento ativo, no comporta-mento dos trabalhadores, que, pelo seu próprio grito de guerra, pren-diam-se à tradição das revoltas dos tecelões de seda: "O velho adágiolionês, 'viver trabalhando ou morrer combatendo' , reapareceu subi-tamente depois de catorze anos e foi inscrito nas bandeiras" .548 Con-tinuidade da tradição insurrecional, de um lado, continuidade darepressão, de outro: Proudhon, a exemplo do que já fizera Blanqui noinício de maio de 1848, censura a reação por retomar, depois de sufo-cado o levante, "a execrada tradição de Saint -Merri e da rue Transno-nain" .549 Na Éducation, Flaubert alude a esse contexto histórico comextrema cautela e uma ironia ambígua ao fazer Rosanette Bron, vul-go "La Maréchale" , filha de pais proletários que galgou ao demi-monde parisiense, recordar sua infância lionesa durante o idílio na flo-resta de Fontainebleau e narrar a seu amante, esquecido do mundo,como sua mãe a vendera, ainda jovem, a um senhor elegante. Ao retra-çar a cronologia desse relato, deduz-se que a prostituição de Rosa-nette data de 1834 e que o momento no qual ela confidencia sua his-tória pregressa a seu amante recai justamente num daqueles dias dejunho que, no romance, parecem prolongar-se estranhamente,esten-der-se mesmo até a eternidade - dias nos quais era decidida em Parisa batalha entre a república burguesa e a república vermelha.550

Outra analogia, que se encontra por exemplo em Engels55l ouem Sainte-Beuve,552 concerne sobretudo ao tópico estratégico: atomada de Zaragoza pelas tropas de Napoleão (1809). Para dar umaidéia da magnitude dos combates, Engels os compara também àBatalha das Nações de Leipzig (1813),553 e vários cronistas acen-tuam que, durante as jornadas de junho, caíram mais generais do queem qualquer outra batalha do império.

Existem outras analogias além das tiradas da história daFrança: Engels cita, como vimos, a revolta dos escravos romanos, o

142

I

que então não era extraordinário; bem antes de 1848, ESp~rlI\Cll "riuma figura simbólica do povo, que será fortalecida após o k Vlllll~ de'

. junho. Hugo, Lamartine, Tocqueville, cada um com suas pl'(IPl'illN

nuanças, qualificam a insurreição como guerre servi/e. Não I'l'slll

dúvida de que textos tão diferentes como o diálogo publicado em1849, L'Esclave Vindex, do ultramontano Louis Veuillot, o pocnuldramático Les Esclaves (1855), do republicano Edgar Quinet, cmesmo Salammbô (1862), de Flaubert, devem ser correlacionadosa essa analogia estereotipada. Alexandre Dumas lança mão de umoutro clichê em sua macabra Catilina, a peça malograda que causousensação no outono de 48, na qual o junho é comparado a uma con-juração catilinária, e os mentores da revolta, com avatares de Catili-na. Sob a rubrica "Bárbaros" já tive ocasião de falar sobre o "gran-de paralelo"; ele constitui uma outra analogia central, que todaviaextrapola do acontecimento da insurreição, tal como a da queda doImpério Bizantino.554

Geralmente, essas analogias não são forjadas ad hoc; trata-se,antes, de jargões ao alcance de todos, típicos da época, que são apli-cados apenas ao último acontecimento, quase sempre para confir-mar um julgamento preconcebido sobre a marcha da história e sóraramente para corrigi-lo. O significado do momento histórico vivi-do não se demonstra pela qualidade de novos modelos de explica-ção, mas pela intensidade do retorno a antigos modelos preexisten-tes. Imediatamente após o acontecimento que se trata de explicar;variações originais, significativas, sobre analogias que se tornaramclichês são extremamente raras; nenhum autor, praticamente, tomadistância dos lugares-comuns da época. No período de junho de 48,Karl Marx é certamente o único que dispõe de uma linguagem pró-pria, na qual o jargão do tempo é superado dialeticamente, e que, porseu lado, está prestes a criar um sistema de jargões explicativos, decréer un poncif, para falar como Baudelaire. A reelaboração de 1848- como a lograriam mais tarde, cada qual à sua maneira, Heine eHerzen, Baudelaire e Flaubert - consiste em despojar-se, em des-fazer-se do jargão, que, em todo caso e sem prejuízo de sua filiaçãoideológica, é jargão. Os poemas da Révolte de Baudelaire, mais ain-da que as Cartas da Itália e da França de Herzen ou seu Da outramargem, marcam um estágio primário, comparativamente ingênuo,

143

desse trabalho, na medida em que eles se dão por satisfeitos, sob oinfluxo de Proudhon, em simplesmente inverter os clichês de 1848de forma paradoxal e provocadora, em vez de abandoná-los.Podemos supor que a nota introdutória de Baudelaire a esses poe-mas na primeira edição de Les Fleurs du mal, segundo a qual elesseriam "um pastiche de argumentações da ignorância e do furor" , émais do que um jogo de esconde-esconde com a censura, já que aopoeta maduro tais peças pareciam ainda muito apegadas às metáfo-ras e às ilusões da revolução; mas por outro lado, elas eram para elemuito sintomáticas e, na sua agressividade, também muito queridas,para que ele desejasse fazê-las desaparecer sem traços. E assim, domesmo modo que estes poemas representam um estágio de transi-ção na obra de Baudelaire, os escritos de Herzen do período daSegunda República não são sua última palavra sobre as experiênciasde junho: sua contenda com a revolução estende-se por toda suavida. Em Herzen também há essa piedade diante dos próprios errosde juventude, que combina muito bem com uma crítica implacável.

METÁFORAS DE TEATRO

Já sob a Monarquia de Julho ou durante o Vormiirz,* era comumcaracterizar a história contemporânea com metáforas de teatro: comocomédia, farsa, bouffonne rie sang lante , como peça cômica ou trági-ca.555Em 1848, a metáfora teatral torna-se o meio predileto de carac-terizar o momento histórico; cada qual parece sentir-se herói, ator ouespectador do drama da revolução. Incerteza e desacordo reinamapenas sobre a questão de saber em que ato, ou mesmo em que peça,as pessoas se encontram. Será que se trata de uma tragédia, ou entãode uma comédia, de um melodrama ruim, de uma paródia de revolu-ções reais do passado? Por um momento, ao menos em junho, pare-ce quase incontroverso o gênero do espetáculo, e o sentimento de vi-ver uma tragédia é largamente difundido. As divergências de opiniãosobre o peso e o alcance dessa vivência refletem-se em variações

(*) Período histórico referente à era do sistema conservador de Mettemich,entre o Congresso de Viena (1815) e a Revolução de 1848. (N. T.)

144

muitas vezes imperceptíveis das metáforas, que, de resto, não S~'Onem sequer utilizadas de maneira lógica e coerente nos textos de ummesmo autor. Aqui o levante é uma tragédia, lá ele é a tragédia, emseguida ele é apenas um ato, somente uma cena, clímax trágico de umdrama que terá necessariamente um final feliz etc.

Entre os que falam da "tragédia de junho" está Marx. Ele vê a"tragédia sangrenta entre o trabalho assalariado e o capital"556embu-tida na comédia da Segunda República, que seria, na verdade, uma"farsa", uma "caricatura" da tragédia da Revolução Francesa.557

Num de seus primeiros artigos sobre a revolução de junho, a NeueRheinische Zeitung chegara a esta peculiar constatação: "A tragédiaeuropéia só começa com este segundo ato da Revolução France-sa" .558Três dias mais tarde, Engels ataca a dupla de editores da Kol-nische Zeitung por se enganar de registro no julgamento da insurrei-ção: "E tu crês [ ... ] haver elevado os atores, os espectadores dopavoroso drama ao rebaixá-los a uma tragédia de empregadosdomésticos à Kotzebue".559 Após outros três dias, ele se dirige comos seguintes sarcasmos à política interna da Prússia: "Depois da tra-gédia o idílio, depois do trovão das jornadas de junho em Paris orufar de tambores dos conciliadores berlineses" .560Isso condiz per-feitamente com a tradição satírica da arte da oposição republicana esua antítese entre heroísmo burguês e heroísmo proletário. Já emDaumier e no Heine recém-chegado a Paris, as grandes ações deEstado do juste-milieu são essencialmente cômicas, mas o pathostrágico-heróico é visivelmente reservado aos representantes dascamadas inferiores que lutam e sofrem. Nessa tradição inscreve-sea distinção nada original de Marx entre a tragédia de junho e a farsageral de 1848: quase que invertendo as regras clássicas, adota-se oestilo elevado quando o povo se torna ator do drama histórico, aopasso que a peça resvala no ridículo tão logo entrem em cena seusheróis das classes altas ou médias. Nos conservadores, ao contrário,as metáforas obedecem às regras da poética clássica, segundo asquais uma peça de teatro em que os plebeus representam os papéisprincipais nada pode ter de sublime .561É por isso que, desde o início,a revolução parece a seus adversários como uma farsa ou uma peçade terror. Aessa visão das coisas convertem-se, emjunho, tambémaqueles que admiraram, em fevereiro, a sublimidade do povo - os

145

republicanos moderados como La Boullaye, que escreve: "Hordasde bandoleiros/ Ousam parodiar as duas grandes semanas/ Em queo povo francês, por duas vezes, rompeu suas correntes".562 Contratais tentativas de depreciação amparadas em metáforas do teatroergue-se a tese de Proudhon, segundo a qual o sentido do drama darevolução independe do nível estilístico em que ele se move ou dasqualidades de seus intérpretes: "O espetáculo, em vez de ser uma tra-gédia, poderia ser um melodrama; o sentido, a moralidade da peça,continuaria o mesmo" .563Isso também soa como uma tentativa derefutar a exclamação com que o guarda nacional Mérimée pensapoder desacreditar os insurrectos: "Pobre povo, que extrai seus sen-timentos de honra do teatro cômico-ambíguo" ,564e que nada mais édo que uma frase armada como chiste, à disposição de qualquersemiletrado.

É notável, também, o quanto divergem as respostas à questãode saber em qual momento do drama situar a revolta de junho. Ajulgar pelo Proudhon das Confessions d'un révolutionnaire, seriano quarto e quinto atos, pois ele afirma que, com a decretação doestado de sítio, o pano descera sobre o quarto ato da revolução.565

Assim, ele toma a peça inteira por uma tragédia, o que é confirma-do tanto pelo apontamento já citado dos Carnets - "uma novaTebaida" - quanto por uma frase do Le Représentant du Peuplede 5 de julho de 1848: "A espantosa carnificina a que assistimosassemelha-se a essas tragédias antigas, nas quais o dever e o direi-to se acham em oposição e dividem os deuses" .566Para Herzen, "oquinto ato da tragédia" já havia "começado em 24 de fevereiro";567Ménard e outros, ao contrário, entendem o período entre fevereiroe junho de 48 como o "prólogo" de uma revolução: "De agora emdiante, o povo será o único ator do drama revolucionário, e ele sóatuará em sua devida hora" ,568profetiza Ménard ao fim da exposi-ção daquele mês. Daniel Stern oscila entre duas possibilidades deexplicação que não se excluem necessariamente: "Será este o últi-mo ato de uma revolução política? Será o prólogo trágico de umaluta social?", pergunta ela nas Lettres Républicaines.569 Marxescreve após a queda de Viena: "Em Viena acaba de terminar osegundo ato do drama cujo primeiro ato foi encenado em Paris, sobo título 'As jornadas de junho'. ( ... ] Em breve viveremos em

146

Berlim o terceiro ato" .570A todas essas indicações de lugares écomum a convicção de que o movimento social, embora dramáti-co, avança em última instância de modo uniforme e que a históriatem sentido e objetivo; a metáfora das tragédias é perfeitamentecompatível com a fé no progresso.

As metáforas épicas, sobretudo paralelos com o Inferno deDante, reportam-se na maioria das vezes ao que Pardigon denomi-nou a história subterrânea de junho, os massacres em oposição aoscombates de rua e das barricadas. O próprio Pardigon escreve: "Euprecisaria, para o que resta narrar, da pena com que Dante Alighieridescreveu os nove círculos do Inferno";57I Castille e outros apresen-tam declarações análogas. Em Baudelaire e Flaubert, essas metáfo-ras tornam-se estrutura: o circulus vitiosus caracteriza o movimen-to de Les Fleurs du mal, que lembram ao mesmo tempo, pelaseqüência dos ciclos, uma tragédia e, pelo número centenário dospoemas, o épico de Dante. (Le Cygne refere-se ao mesmo tempo àEneida de Virgílio e à Andrômaca de Racine.) E Flaubert tambémtraduz as metáforas teatrais em estrutura, ao fazer da parte referenteao junho na Éducation um idílio que recobre ironicamente a tragé-dia histórica. No seu romance, em vez de um desenvolvimento dra-mático, ou mesmo apenas romanesco, existem somente os coups dethéâtre do mundo exterior, que de tempos em tempos arrancam oherói de seus sonhos, sem que por isso ele se torne mais inteligente.O eu lírico de Le Cygne reconhece exatamente, com clareza visio-nária, a história que a juventude sonhadora de 1848 - cujo protóti-po é Frédéric Moreau - deixara passar.

COINCIDÊNCIAS E CORRESPONDÊNCIAS

As relações curiosas, muitas vezes fraturadas pela ironia, quese produzem nos grandes momentos de crise da história entre odestino coletivo e o destino individual surpreenderam de tal formaos contemporâneos de 1848 que eles deduziram uma espécie deprincípio de composição, uma correspondência sistemática dasesferas pública e privada, secularizando, por assim dizer, os teore-mas místico-românticos das correspondances, inspirados no pri-

147

meiro socialismo, e aplicando-os à própria situação histórica. Oensejo dessa reflexão renovada sobre as correspondências ou asrelações possíveis entre o mundo social exterior e o mundo priva-do interior fora dado por todos aqueles acasos peculiares que, noano revolucionário de 1848, mesclaram história e biografia indivi-dual e que os próprios envolvidos conceberam muitas vezes comopiada de mau gosto do destino. Escritores espirituosos comoMérimée, Musset ou Heine rebatiam tais piadas, por sua vez, comoutra piada - os dois primeiros com pura malícia contra o mundocontemporâneo atrasado, o último com humor negro, o humor deseu Lázaro. Mérimée rebaixa o levante a um gracejo, por trás doqual se dissimula a autocomiseração, quando zomba do fato de queseu dia onomástico, 25 de junho, fora celebrado com tantas salvasde canhão.572Musset vinga-se da peça que lhe pregou a história, aoarruinar-lhe uma estréia, com um gracejo macabro e hipócrita: oprêmio de incentivo aos jovens, que lhe fora concedido no lugar doesperado assento na Académie française, ele transmite às "vítimasde junho" - as honestas, é claro.573Inúmeros testemunhos - car-tas e memórias - de 1848 dão notícia de que a vida dos indivíduosprendia-se então à história numa constelação mais ou menos dolo-rosa, ainda que eles não tivessem tomado parte direta dos aconte-cimentos. As correspondances só se tornam curiosas nos textosdaqueles que, na verdade, não têm relação alguma com os eventos:Renan, que reprime sua revolta contra a reação porque deseja pre-parar-se para um exame decisivo em sua carreira; Auguste Comte,que se retira ao quarto mais remoto de seu apartamento para, aoabrigo dos ruídos da batalha, poder compor o relatório anual queele lerá sobre o túmulo da falecida Clotilde;574Gustave Flaubert,em Rouen, que confidencia a um primo temer que seu cunhado, umdoente mental, tenha partido para Paris junto com a GuardaNacional; Balzac e Sainte-Beuve, que, fartos da agitação de Paris,enviam cartas para sondar o terreno e averiguar se não poderiamprosseguir no exterior, sem contratempos, sua atividade de escri-tores; Berlioz, cuja carreira de regente de orquestra em Londreschega ao fim e que é obrigado então a regressar ao inferno de Paris.Mas essas simultaneidades só são pensadas apres coup como cor-respondências. (Uma exceção é a morte de Chateubriand, que

148

serve para considerações tão edificantes quanto beatas sobre o fimnão somente do romantismo, mas da literatura em geral, como seos insurrectos de junho houvessem baixado ao túmulo o homem eo que ele encarnava.) São só os grandes textos da literatura pós-junho que transformam tais experiências contingentes num siste-ma coerente de co rrespondances , e isso ao esgotar as possibilida-des poéticas que os tropos de 1848 ofereciam abundantemente.Heine, que numa carta de 25 de junho zombava: "Mes jambesn'ont pas survécu à la chute de la royauté et je suis à présent cul-de-jatte",575pode assim, no Romanzero, sob o manto de Lázaro,lamentar sobre si mesmo e em nome de todos os derrotados dasrevoluções européias; Baudelaire pode fazer à Liberté uma heréti-ca declaração de amor, ao dotar com seus atributos alegóricos umatranseunte anônima da nova Paris ou ao desvendar sua relação como despotismo imperial como servidão sexual;576Flaubert poderepresentar em Madame Arnoux e Rosanette as duas figuras emque se divide a república de 1848: a figura ideal, inacessível, comquem se sonhara até o verão, e a dubiamente "honesta", que emjunho impõe a derrota definitiva ao ideal. É claro que o Lázaro deHeine, a transeunte de Baudelaire e a Madame Arnoux de Flaubertsão mais do que simples alegorias ou símbolos; nelas, o particularnão é reduzido a estágio de transição para o universal: o universalou, se assim se preferir, o alegórico, é a aura com que o artistaenvolve o particular, uma aura que ele faz brilhar a seu redor. Masa correspondance entre as duas esferas revela-se apenas na inter-pretação; só excepcionalmente ela é acessível à primeira vista.Muitas vezes são as coisas que fornecem os meios de interpreta-ção; nelas parece concentrar-se, para os contemporâneos de 48, aironia da história: edifícios e lugares dispõem de uma capacidadelatente de recordação, remetem secretamente ao inalcançado, aoperdido e ao recalcado. Enquanto não reina a censura, proclama-se abertamente: "Ora, que nada! Não é nos palácios dos reis que osrepublicanos, vencedores de fevereiro, vão expiar sua primeiravitória?" .577Essa é a pergunta de Pardigon, indignado com o encar-ceramento dos combatentes de junho nos porões das Tulherias. ANeue Rheinische Zeitung assim relata, no outono de 1848, a festada Constituição da república burguesa: "Sob o baldaquim onde se

149

postava Marrast, alguém afixara a ridícula inscrição: 'Amai-vosuns aos outros!' . E justamente atrás do baldaquim encontra-se osubterrâneo do Jardim das Tulherias, no qual a Guarda Móvel,depois do combate de junho, fuzilara durante três noites seguidasos insurrectos aprisionados".578 A mesma correspondance irônicacom o local do evento é também subjacente ao Le Cygne de Baude-laire, ainda que de maneira apenas alusiva. E todo leitor da Édu-cation conhece as inúmeras correspondências de coisas que sina-lizam a conduta mentirosa dos protagonistas, como aquela calecheque serve primeiro de aconchegante veículo para o amor e depois,quando Frédéric lê sobre o ferimento de Dussardier, de simplesmeio de regresso precipitado a Paris.

O significado das correspondances para a poética de Baudelaireé notório; mas o célebre soneto permanece bastante genérico quantoàs implicações históricas dessa doutrina. Muito mais inequívoca éuma nota de trabalho de Flaubert para a Éducation: "Mostrar que osentimentalismo [no seu desenvolvimento posterior a 1830] segue apolítica e reproduz suas fases" .579Mas a formulação clássica da expe-riência específica das correspondências de 1848 acha-se no homempara quem o junho de 48 significou a catástrofe política e familiar desua vida, no revolucionário russo A1exander Herzen, que constataresumidamente em sua autobiografia: "Aquilo que vemos no grandepalco dos acontecimentos políticos repete-se em escala microscópicaem todo lar" .580Disso segue que a confissão mais íntima também sem-pre diz algo decisivo sobre as esferas públicas. Após 1848,de fato, aconfissão toma-se um gênero predileto, um refúgio dos escritores, umabrigo a partir do qual escritores ameaçados de proscrição, comoProudhon e Heine, Baudelaire e Herzen, tomam novas iniciativascontra a sociedade honesta. Como a polêmica e a sátira estão proibi-das, a literatura debruça-se cada vez mais, visivelmente, sobre a con-fidência privada, aquele mode de confessionnal que Jules Laforgueconsidera uma das inovações mais importantes de Baudelaire.581 Arepresentação de si mesmo, que vai até a exibição despudorada dospróprios vícios e fraquezas em Heine, Herzen e Baudelaire, e sob umacapa romanesca também em Flaubert, é em sua implacabilidade umacrítica exemplar, a crítica mais pertinente da sociedade; seu valorespecífico consiste na sua veracidade analítica, no fato de ela ser mais

150

do que uma simples acusação velada: um processo de aprcnd iI',adodoindivíduo sobre si próprio bem como sobre os laços que o prendem àcoletividade histórica e social que o viu nascer. Mas a prova da honra-dez dessa literatura está no fato de que, cedo ou tarde, ela ousa enca-rar nos olhos a história reprimida de 1848.

151