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O ENFORCADO

 Título Original: POLIKUCHKA

 Tradução de Gália e Otto Schneider

Ilustrações de Renate Eggers

EDIÇÕES MELHORAMENTOS

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LEW NIKOLAIEVITCH TOLSTOI

Traços biográficos e literários

O Conde Lew Nikolaievitch Tolstoi (1828-1910) nasceu na aldeia de lásnaia Polia.no.,perto de Tuia. O fundador de sua família, Piotr Andreievitch Tolstoi, companheirod'armas de Pedro, o Grande, descendia de um emigrante alemão de nome Dick(gordo). Traduzido para o russo, Dick transformou-se em Tolstoi.

O pai do escritor, Nikolai, casou-se com uma princesa, Maria Vol-konskaia , a qual, senão era jovem nem bela, tinha uns lindos olhos e trazia, na, qualidade de únicaherdeira, a fortuna de um dos nobres mais ricos da Rússia. Dos cinco filhos dessecasamento, o pequeno Lew (Leão) foi o caçula. Mal este contava três anos, sofreu omais bárbaro choque de sua vida na hora em que o conduziram para junto do cadáverde sua mãe que acabara de falecer. O menino rompeu num grito terrível e fugiu doaposento, tomado de pânico. Seis anos mais tarde morreu-lhe o pai. Essas duas notas detrágica dissonância marcar-lhe-iam a vida e a obra. Não podendo fugir ao terror damorte, Tolstoi procuraria objetivá-la em páginas imortais, como as "Três Mortes", "AMorte de Ivan Ilitch" e "Polikuchka", ou seja, a novela que se vai ler sob o título de "OEnforcado".

Órfão aos nove anos, Lew, juntamente com os irmãos, ficou sob a tutela de uma tia, e,após a morte desta (1840), aos cuidados de preceptores russos, franceses e alemães.Em 1844 matriculou-se na universidade de Kazan, sem passar de estudante medíocre.Decepcionado com o saber académico, voltou para lásnaia Poliana a fim de cultivar suasterras f entrar em contato com os camponeses. Fracassou por nada entender deagricultura, e foi passar alguns anos em Moscou (1847-1851), onde se entregou a umavida dissipada e contraiu tamanhas dívidas, que resolveu refugiar-se no Cáucaso. Talvezpor influência de um irmão, ali aquartelado, Lew Tolstoi alistou-se num corpo deartilharia. Foi quando começou a sentir os primeiros indícios da mesma transformaçãointerior que o levaria a procurar expressão através da literatura. Escreveu nesse período"Infância", "A Manhã de um Fidalgo", "Adolescência" e outros pequenos trabalhosmarcados de um realismo preciso, entre os quais sobressai uma das suas mais belasnovelas líricas: "Os Cossacos".

Tomou parte na guerra contra a Turquia, lutou heroicamente em Sebastópol, e,terminado o conflito, foi entrar em contato com os círculos sociais e literários dePetersburgo, onde então pontificava Turgue-niev, escritor fortemente ocidentalizado,com quem Tolstoi teve sérios atritos.

Entre 1857 e 1861 visitou três vezes a Europa, dcmorando-se principalmente na  Alemanha, interessado em conhecer os modernos métodos pedagógicos eimpressionado com os primeiros jardins de infância fundados por Frõbel, eminenteeducador germânico. De regresso a lásnaia Poliana, fundou ali diversas escolas a fimde difundir a instrução.

Em setembro de 1862, Tolstoi casou-se com Sofia Behrs, f ilha de médicomoscovita. Tinha (lê então í't anos, e ela 18. A seguinte década e meia foi a maisabençoada da sua vida. A esposa, dotada literariamente, ajudava o escritor , tomava-lheos ditados e passava a limpo os rascunhos. Nasceram-lhe nesse tempo não só amaioria dos treze filhos, mas também seus dois maiores romances: "Guerra e Paz"

(1864-1869) e "Ana Karénina" (1873-1877).

Começou então o período mais crucial da sua longa vida. Enveredando pelo terrenodas ideias religiosas, filosóficas e sociais, e, levando-as ao extremo, entrou cm conflitocom a igreja ortodoxa que acabou por excomungá-lo. Desse período datam a novela"Sonata de Kreutzer", "O que é a Arte", "O que Devemos Fazer", "Ressurreição", "OPoder das Trevas", e outros trabalhos, entre os quais algumas peças teatrais.

  A situação paradoxal cm qut: se encontrava, como profeta da pobreza e daabstinência e viver na abastança, f£z com que, em fins de outicbro de 1910,abandonasse em sfgrf.do sua casa e família e empreendesse uma viagem sem rumocerto, que era mais propriamente uma fuga. Poucos dias depois adoeceu em

 Astapovo. Acamado no quarto do chefe da estação desse lugarejo, ali morreu a 8 denovembro de 1910, mais que octogenário. Foi sepultado em lásnaia Poliana, semfunerais cristãos.

Num ensaio sobre o grande escritor russo, Stefan Zweig resume-lhe assim a vida

fecunda e torturada:"Durante trinta anos, dos vinte aos cinquenta, Tolstoi vive para a produção de suas

obras, despreocupado e livre. Durante outros trinta anos, dos cinquenta até a morte,ele não v ive senão para compreender o sent ido da vida, lutando com oincompreensível... Jamais homem algum empreendeu com tal tenacidade a lutacontra o inexplicável, contra a angústia primitiva da criatura; ninguém encarou mais

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resolutamente o problema que o destino impõe ao homem, o problema dahumanidade interrogando o seu destino".

Otto Schneider.

— Será conforme ordenardes, senhora! Mas, os Dutlov sãode lastimar-se. Uns belos rapazes, todos eles. Entretanto, senão mandarmos um dos serviçais, não resta outra saída:terá que ser um deles — dizia o administrador — mesmoporque já estão sendo apontados por todo mundo. Em todocaso, a senhora é quem manda...

Assim dizendo pousou a mão direita sobre a esquerda,mantendo-as diante do ventre, inclinou a cabeça para o outrolado, encolheu os lábios finos (não os estalando por pouco),revirou os olhos e calou-se com o evidente propósito demanter-se em silêncio por longo tempo e ouvir sem ob j ecoestodas as sandices que a senhora ia proferir a propósito daquestão.

  Tratava-se do administrador que, de barba feita,envergando sobrecasaca comprida (à moda das usadas pelos

administradores), se apresentava numa tarde de outonoperante a sua "bárina" (*) para a costumeira prestação decontas. Para a senhora, essa

(*) Feminino de "bárin" — senhor de uma propriedade ou feudo e que tinha

habitualmente sob as suas ordens um número maior ou menor de servos ou criados. — N.

 T.

prestação de contas consistia em ouvir a relação dos trabalhosrealizados e determinar os que deviam ser empreendidos emseguida. Para o administrador, le-gor Mikhailovitch, significava

uma cerimónia que consistia em ele ficar em posição desentido, os pés virados para fora, num canto, o rosto voltadopara o divã, ouvir uma porção de tolices fora de propósito econseguir, por todos os meios, levar a senhora a um pontoem que ela exlnmasse rápida e impacientemente: "Está bem,está bem!" a todas as sugestões de legor Mikhailovitch.

Desta vez, a questão girava cm torno do recrutamento. Aaldeia de Pokrovskoie tinha de fornecer três recrutas. Dois,fora de dúvida, já pareciam escolhidos pelo próprio destino,pela convergência de condições familiares, morais eeconómicas. Quanto a eles, não cabia a menor dúvida ou

discussão, quer por parte da assembleia da aldeia, quer dasenhora, quer da opinião pública. Sobre o terceiro, porém, nãose chegava a um acordo. O administrador queria poupar ostrês Dutlov e mandar um dos serviçais, de nome Polikuchka(*) homem casado e dono de uma triste reputação, apanhado

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repetidas vezes roubando sacos, arreios e feno. A senhora,contudo, que acarinhava frequentemente os filhosmaltrapilhos de Polikuchka e procurava corrigir os costumesdo pai por meio de admoestações evangélicas, relutava ementregá-lo. Ao mesmo tempo, porém, não queria prejudicar osDutlov a quem não conhecia

C*) Polikuchka é diminutivo do sobrenome Polikei. — N. T.

nem sequer de vista. Mas, não havia meios de ela entender —e o administrador não se decidia a di-zê-lo claramente — que,a menos que fosse Polikuchka, teria de ir um dos Dutlov.

— Não quero a desgraça dos Dutlov — dizia movida desinceridade.

"Se é assim, basta pagar trezentos rublos por um

substituto" — era a resposta que cabia no caso. Mas oadministrador achava de boa política não dar essa resposta.

Por conseguinte, legor Mikhailovitch manteve-se em silêncio.Encostou-se até, furtivamente, ao umbral da porta,conservando no rosto a expressão submissa e observando osmovimentos dos lábios da senhora, as pregas da touca e assombras na parede. Achava desnecessário penetrar nosentido das palavras da senhora que falava com prolixidade.legor sentiu esboçar-se uma contratura de bocejo atrás dasorelhas, mas habilmente a transformou em tosse, levando amão à boca e pigarreando hipocritamente.

(Observei, certa vez, Lord Palmerston sentado e de chapéuna cabeça, enquanto um membro da oposição arrasava oministério. Levantando-se de repente, replicou com umdiscurso de três horas a todos os pontos atacados peloadversário. Presenciei a cena sem me admirar, porquemilhares de vezes eu vira cenas idênticas se desenrolarementre legor Mikhailovitch e a senhora).

Quer fosse pelo receio de adormecer, quer porque lheparecesse estar ela se empolgando demais, ele transferiu ocentro da gravidade do corpo da perna esquerda para a

direita e começou a falar, iniciando a arenga com aintrodução de sempre:

 —  A senhora é quem manda, mas... a assembleia daaldeia se encontra reunida diante do meu escritório eprecisamos chegar a uma conclusão. Diz a ordem que osrecrutas devem ser levados à cidade antes da festa de NossaSenhora. Dentre os camponeses, os únicos apontados portodos são os Dutlov, mais ninguém. A assembleia não zelapelos interesses dos Dutlov e pouco se importa que osarruinemos. Sei quanto eles têm lutado. Desde que souadministrador, vejo-os vivendo sempre em pobreza. E agora,

mal o sobrinho mais novo está crescido, pelo que o velhotanto anelava, eis que vão ser arruinados outra vez. A senhorasabe que cuido de seus bens como se fossem meus próprios.É uma pena, senhora. Mas, será como quiserdes. Não sãomeus irmãos, nem compadres, nem coisa alguma, e nada

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recebi deles... —  Nem pensei uma coisa dessas, legor — interrompeu a

senhora, admitindo, porém, intimamente, que ele forasubornado pelos Dutlov.

 —  A pequena propriedade deles é a mais bem cuidada de

toda a Pokrovskoie. São lavradores temeníes a Deus etrabalhadores. Há trinta anos que o velho é "stárosta" (*) daigreja, não bebe, não pragueja e vai à missa. (Oadministrador conhecia os pon-

(*) O chefe leigo da comunidade de fiéis, posto de honra que cabe sempre a umdos mais idosos do lugar. — N. T.

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tos fracos da senhora). O principal, porém, é que só têmdois filhos; os restantes são sobrinhos. A assembleia oapontou, mas com justiça ele devia tirar a sorte entre os doisfilhos. Outros que têm até três filhos dividiram as terras entreeles, porque não sabem administrá-las, de maneira queestão isentos do recrutamento, enquanto os Dutlov vão sofrerpelo fato de serem os mais virtuosos.

A esta altura, a senhora já não entendia mais coisa alguma.Não sabia porque se deveria tirar a sorte entre dois filhos, e oque isso tinha a ver com a virtude. Ouvia só sons e olhava osbotões pretos da sobrecasaca do administrador. O botão decima parecia ser abotoado menos vezes, porque ainda estavabem preso, enquanto o do meio pendia frouxo e há muito

devia ter sido pregado de novo. Mas, como todos sabem, numaconversa, sobretudo de negócios, não importa entender o quenos dizem, basta pensar naquilo que nós próprios temos adizer. E era exatamente assim que a senhora procedia.

— Afinal de contas, por que é que não me queres entender,legor Mikhailovitch? — disse ela. — Não quero, em absoluto,que um Dutlov seja recrutado para soldado. Tu me deviasconhecer o bastante para saber que faço o mais possível paraajudar meus camponeses, e que não lhes quero mal. Sabestambém que eu estaria disposta a sacrificar tudo para livrar-

me dessa triste contingência e não ter que entregar nem oDutlov nem o Polikuchka. (Ignoro se ocorreu aoadministrador que, para a senhora livrar-se dessa tristecontingência não era necessário sacrificar tudo, masbastavam trezentos rublos. É bem possível que a ideia lheocorresse.) Digo-lhe apenas uma coisa: não entrego o Polikei demaneira nenhuma. Quando, depois daquela história do relógio,ele próprio me confessou tudo entre lágrimas, jurando que seemendaria, conversei muito tempo com ele e notei o quantoestava comovido e sinceramente arrependido...

("Bem, já começa de novo!" pensou legor Mikhai-lovitch e

pôs-se a examinar o refresco que se achava num copo; seriade laranja ou de limão? Concluiu que devia ser amargo.)

— Daí para cá se passaram sete meses; nunca mais seembriagou, e tem se comportado admiravelmente. A mulher

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dele me disse que ele ficou outro homem. Como estásquerendo que o castigue, agora que ele se emendou? Nãoseria desumano mandar assentar praça um homem com cincofilhos, dos quais ele é o único arrimo? Não, legor, é melhornem falar nisso...

E a senhora tomou um gole do copo.

legor Mikhailovitch observou como o líquido ia descendo pelagarganta, e então respondeu concisa e secamente:

— Então, ir-á Dutlov?

A senhora torceu as mãos:

— Ainda não me entendeste? Pensas que eu desejo adesgraça de Dutlov ou que tenho alguma coisa contra ele?Deus é testemunha de que estou dis-

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posta a fazer tudo por eles. (Ela olhou para o quadro nocanto, mas lembrou-se de que não era uma imagem de Deus:"Não tem importância, e não vem ao caso", pensou. Éestranho que, ainda desta vez, não lhe ocorressem ostrezentos rublos.) Mas, que posso fazer? Por acaso eu sei oque fazer? Como é que vou saber? Bem, conto contigo. Jásabes o que eu quero. Arranja as coisas de tal maneira quetodos fiquem satisfeitos, e sem ferir a lei. Que se há defazer? Eles não são os únicos. Todos têm suas horas difíceis. Sónão é possível entregar o Polikei. Entendeste? Seria terrível seeu fizesse isso.

Ela continuaria falando toda a vida, de tão emocionada queestava, se nesse momento não entrasse a criada.

 —  Que é, Duniacha? —  Está aí fora um mujique que manda perguntar a

legor Mikhailovitch se a assembleia deve continuaresperando — disse Duniacha, lançando um olhar zangado

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sobre legor Mikhailovitch. ("Também, esse administrador —ela pensou — foi irritar a senhora, e agora, mais uma vez,ela não me deixará dormir antes de uma da manhã!")

 —  Então, vai legor, —disse a senhora — e faça tudo da melhor forma possível.

» —  Às suas ordens (Não se referiu mais a Dutlov.) E a

quem a senhora quer mandar para buscar o dinheiro do jardineiro? —  O Petruchka (*) ainda não voltou da cidade?

 —  Não, senhora. —  E o Nikolai não pode ir?

 —  Papai está de cama com lumbago — disse Duniacha. —  A senhora não quer que eu mesmo vá amanhã? —  Perguntou o administrador. —  Não, és necessário aqui, legor.

A senhora ficou pensativa um instante, e então indagou: —  Quanto dinheiro? —  Quatrocentos e sessenta e dois rublos. (*)

 —  Manda o Polikei — disse a senhora, olhando legorMikhailovitch com ar decidido.legor esticou os lábios sem mostrar os dentes, como que

num sorriso, porém sua expressão não se alterou.

 —  Às suas ordens, senhora. —  Manda-o vir aqui. —  Às ordens, senhora.

E legor Mikhailovitch saiu rumo ao escritório.

(*) Por um evidente descuido, nas diversas vezes que se refere a este malfadadodinheiro, Tolstoi ora diz que são 462, ora três vezes 500, ora 1.617 rublos. Como apresente tradução se baseia fielmente no original ^russo, resolvemos manter o lapso do autor,mesmo porque, conforme se verá pelo desenrolar da história, a importância exata não vemao caso. — N. T.

(* ) Petruchka é diminutivo de Piotr (Pedro). — N. T.

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Polikei, como homem insignificante e de má fama que era e,além do mais, provindo de outra aldeia, não gozava deproteção nenhuma da governanta, nem do chefe da cozinha,

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nem do administrador nem da criada, e embora sua famíliaperfizesse um total de sete pessoas (ele, a mulher e osfilhos), ocupava o pior recanto (*) da casa. Os recantos haviamsido construídos ainda pelo falecido "bárin", e da seguintemaneira: no meio de uma casinha de pedra de dez archin

ao quadrado ficava uma estufa russa circundada por um"colidor" (conforme os criados chamavam ao corredor), e emcada canto da casa, havia um recanto separado por tabiques. Oespaço era, pois, exíguo, sobretudo no recanto de Polikei, quese localizava  junto à porta de entrada. A cama de casal tinhaum acolchoado e travesseiros com fronhas de algodão. Alémda cama, havia um berço ocupado gelo menorzinho, umamesa de três pés sobre a qual se preparavam as refeições,lavava-se roupa, colocavam-se todos os objetos domésticos, ena qual trabalhava o próprio Polikei que era veterinário.

 Tinas,

C *) Toda a criadagem vivia numa só casa, cabendo a cada família uma partodenominada "recanto" (úgoí), separada por tabiquos. — N. T.

roupas, galinhas, um bezerro e a própria família de setepessoas atulhavam completamente o "recanto", e certamentenão poderia nem se mexer se não dispusessem também doespaço correspondente a uma quarta parte da estufa coleíiva,sobre a qual se colocavam coisas e deitavam-se as pessoas. (*)Eventualmente podiam ir também ao patamar da escadaexterna, ou não podiam, pois no mês de outubro faz frio e, emmatéria de roupa quente, só havia um casaco de pele decarneiro para toda a família. Em compensação podiam se

esquentar: as crianças, correndo; os adultos, trabalhando; ouentão se estendessem em cima da estufa, onde havia até uns40 graus de temperatura.

Parece terrível viver em tais condições. No entanto, eles nãoachavam isso tão mal assim; enfim, sempre dava para se viver.Akulina lavava e costurava para os filhos e o marido, fiava,tecia e branqueava o linho, cozinhava e assava na estufacoletiva, brigava e bisbilhotava com os vizinhos. As provisões deboca, oriundas do pagamento em espécie, não só bastavampara os filhos, como ainda davam para alimentar a vaca. A

lenha e as rações para o gado não eram pagas. Até o fenovinha da cocheira da "bárina". Tinham uma pequena horta. Avaquinha dera cria. Pertenciam-lhes também algumasgalinhas. Polikei trabalhava na cocheira: cuidava dos doiscavalos gara-

(*) Cabe esclarecer que nas zonas rurais da Rússia as estufas, geralmente construídasde tijolo, costumam ser espaçosas e, além de aquecer os aposentos, servem ainda de fornoe fogão & o topo, de alcova onde dormem og habitantes. — N. T.

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nhões, sangrava os cavalos e o gado bovino; limpava oscascos, abria os tumores e aplicava pomadas de sua própriafabricação. Ganhava, em troca, um di-nheirinho emantimentos. Também sobrava sempre um pouco de aveiadestinada a alimentar os cavalos da "bárina".

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Na aldeia havia um camponês que, em troca de duasmedidas de aveia, dava regularmente, uma vez por mês, vintelibras de carne de carneiro. A vida não seria, afinal, tão ruimassim se não houvesse um desgosto grande para toda afamília.

Quando jovem, Polikei estivera em outra aldeia, trabalhandonuma coudelaria. O moço da cavalariça, ao qual estavasubordinado, era o maior ladrão da redondeza, e por issomesmo acabou em degredo na Sibéria. Foi com esse moço decavalariça que Polikei teve seu primeiro aprendizado e, sendomuito jovem, de tal modo se habituou a surripiar "miudezas",que, mais tarde, embora se esforçasse, não conseguiu perder ohábito. Moço e fraco, sem pai nem mãe, não tinha quem lhemostrasse o bom caminho. Polikei gostava de um traguinho,e não resistia à tentação das coisas dispersas. Quer setratasse da correia de uma coleira, de uma sela, dumafechadura ou cavilhas de varal ou mesmo de alguma coisa &emais valor, Polikei sempre encontrava meios de dar-lhesaplicação. Por toda parte havia pessoas que aceitavam essascoisinhas e pagavam com cachaça ou dinheiro, de acordo coma combinação. Diz o povo que esses ganhos são os mais fáceis,pois não exila

gem estudo, nem trabalho, nem nada, e quem experimenta osistema uma vez, não mais quer saber de outro. Existe apenasum inconveniente nesse sistema de ganhar a vida: emboratudo seja barato e fácil de se obter, acontece

inesperadamente aparecer alguém que vai estragar todo onegócio. E então não há outro remédio senão pagar por tudo,e de uma só vez, e a vida perde a graça.

Foi o que sucedeu com Polikei. Ele casou-se e Deus ocumulou de felicidade: a mulher, filha de tratador de gado,vendia saúde, era sensata e trabalhadeira. Nasceram-lhes osfilhos, um melhor que o outro. Tudo corria às maravilhas. Umdia, porém, inesperadamente, bateu-lhe a má sorte: foiapanhado por uma ninharia: carregara as rédeas de courode um camponês. Descobriram-se as rédeas roubadas, o

ladrão foi surrado e o acontecido levado ao conhecimento da"bárina". A partir dali, passou a ser severamente vigiado.Apanharam-no mais uma vez, e uma terceira. O povo começoua injuriá-lo. O administrador ameaçou-o com o serviço militar.A "bárina" repreendeu-o, enquanto a mulher chorava e seafligia. Em resumo, tudo corria mal.

Entretanto, Polikei não era má pessoa, mas apenas umfraco: gostava de um trago, e a«tal ponto se viciara nessehábito que não mais conseguia largá-lo. A mulher começou abrigar com ele e mesmo a bater-lhe quando voltava bêbedo.

Polikei rompia em pranto:

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 — Sou um infeliz! Que vou fazer? Quero ficar cego se voltar a beber!

Mal passava um mês, e Polikei tornava a cair na bebedeira, sumindo por dois dias.

 — De alguma parte ele há de tirar o dinheiro para as suas bebedeiras... — dizia o povo.

Seu caso mais recente foi o do relógio do escritório. Existia no escritórioum relógio de parede que, havia muito, não andava. Aconteceu ter Polikei deentrar sozinho no escritório que estava aberto. Viu o relógio, carregou-o evendeu-o na cidade. Sucede, porém, que o homem da loja que comprou orelógio era cunhado de uma das criadas da senhora e, indo num dia de festaaté à aldeia, falou sobre o relógio. Começaram então a apurar o caso em cujoesclarecimento o administrador estava particularmente interessado, e ele nãogostava de Polikei. A história toda veio à luz e foi levada ao conhecimento da

senhora. Esta chamou Polikei que, imediatamente, caiu de joelhos e com palavras comovedoras, confessou tudo, conforme o instruíra a mulher. Saiu-sealiás muito bem. A senhora admoestou-o, falou, falou, pregou-lhe umsermão, apelando para Deus, para a bondade, a vida eterna, a mulher e osfilhos, e, finalmente, tendo-o comovido até às lágrimas, disse:

 —  Perdôc»te, mas quero a tua promessa de que nunca mais farás umacoisa dessas!

 —   Nunca mais! — jurou Polikei, chorando desesperadamente. — Que aterra me trague, que se me rompa o peito se tornar a cometer tão grandefalta!

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Chegando a casa, Polikei passou o dia inteiro chorando feito um bezerro, enão saiu de cima da estufa. A partir desse dia, Polikei nunca mais deu quefalar.

Sua vida, porém, não era divertida. O povo considerava-o ladrão e, quandochegou a época do recrutamento, todos o apontaram.

Polikei, como já foi dito, era veterinário. Como e quando ele, de repente, setornara veterinário, é coisa que ninguém sabia, nem ele mesmo. Na coude-laria, onde trabalhara em companhia daquele moço de estrebaria que foi

mandado para a Sibéria, ele não fizera outra coisa senão retirar o estercodas baias, limpar de vez em quando os cavalos e carregar água. Alicertamente não podia ter aprendido o ofício. Em seguida trabalhara comotecelão; depois, como jardineiro, limpando alamedas. Finalmente, comocastigo, tivera que rachar pedra. A seguir, fora admitido contra pagamento deum tributo e trabalhara como serviçal em casa de um negociante. Assim,

 parece que em nenhum desses lugares teve ocasião de transformar-se emveterinário.

Mas, durante a sua última permanência no lar, não se sabe de quemaneira e   por que, começou a espaltiar-se a sua fama de veterinárioexcepcional, quase sobrenatural. Fazia várias sangrias,, derruba vá um animal

e cutucava um pouco a coxa do cavalo, fazia cangar outro e cortava aranilha até jorrar sangue, embora o cavalo se debatesse violentamente c atégemesse. Justificava essa manobra dizendo

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que ela fazia "sair o sangue acumulado sob o casco". Explicavadepois aos camponeses ser necessário sangrar pelas duasveias por ser assim mais fácil, e batia com o martelo sobre alancêta cega. Passava por baixo da barriga do cavalo doadministrador o chalé de sua mulher, tratava todas as feridas

com vitriol, derramava nelas um líquido qualquer e davapara uso interno o que quer que lhe viesse à cabeça. Equanto mais maltratava e até matava os cavalos, tanto maiora fé que despertava e maior era o número de cavalos quelevavam até ele.

Penso que não cabe a nós, que pertencemos às classessuperiores, rirmo-nos de Polikei. As manobras de quelançava mão para inspirar confiança eram as mesmas queagiram sobre nossos pais, agem sobre nós, e agirão sobre osnossos filhos.

O camponês que se desespera com a doença da sua únicaégua que constitui não apenas sua riqueza, mas praticamentefaz parte de sua família, e contempla com fé e terror o rostocheio de rugas significativas de Polikei e suas mãos secascom as quais aperta propositadamente o lugar onde dói paraentão cortar audazmente a carne viva com o pensamentooculto: "Vamos ver onde vai dar isso...", enquanto finge saberonde está o sangue, o pus, o nervo e a veia e segura entreos dentes o paninho salvador ou o fras-quinho de vitriol, —esse camponês não pode imaginar que Polikei seja capaz delevantar a mão sem ter a necessária competência. Ele próprionão estaria em condições de fazê-lo, mas também, uma vez

fei-

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to corte, ele não se queixa de ter mandado cortar cm vão.Ignoro as experiências dos outros; passei por um transeidêntico com um médico que, a pedido meu, martirizoubarbaramente pessoas que me são caras. A lancêta e omisterioso frasquinho branqui-cento com sublimado e aspalavras: tumor, calculo-se, sangria, pus, etc., não são amesma coisa que nervos, reumatismos, organismos, etc.?

Wage du zu irren und zu trãumen! (*) não se refere tantoa poetas como a médicos e veterinários.

C*) "Que tenhas ousadia para errar e sonhar!" Cem alemão no original). — N. T.

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Naquela mesma fria e úmida tarde de outubro em que aassembleia, incumbida de escolher o recruta, fazia algazarradiante do escritório, Pol ikei estava sentado na beirada dacama, junto à mesa, e tr iturava em cima desta, com umagarrafa, um remédio que ele próprio não sabia bem o que era,

contra uma doença de cavalo que ele também não conhecia.Consistia o remédio numa mistura de sublimado, enxofre, salde Glauber e uma erva que Polikei apanhara, porque um dialhe dera a ideia de que devia ser excelente contra pulmoeira,achando que não era mal dá-la também contra outras doenças.As crianças já estavam deitadas; duas sobre a estufa, duas nacama e uma no berço, junto do qual se achava Akulina sentadae tecendo. Um toco de vela que tinha sobrado das velas "malvigiadas" da casa senhorial, ardia num candieiro de madeiracolocado sobre o peitoril da janela. Akulina levantava-.se devez em qua:ido para endireitar o pavio, a f im de que o seumarido não fosse perturbado na sua importante ocupação. Havia

livres-pensadores para os quais Polikei não passava de mauveterinário e sujei to inútil . Os demais, — sem dúvida amaioria, — consideravam-no mau

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indivíduo, embora grande entendido no seu ofício. Akulina,apesar de brigar amiúde com o marido, e de espancá-lo até,tinha-o na conta de veterinár io número um, e a melhorpessoa do mundo.

Polikei despejou na palma da mão um pó qualquer. (Nãousava balança, e referia-se com ironia aos alemães queuti lizavam tal instrumento, dizendo: — "Isto aqui não éfarmácia!") Avaliou o peso da substância na mão, maspareceu-lhe insuficiente e acrescentou uma porção dez vezesmaior.

— É melhor botar logo tudo de uma vez. Assim, cura maisdepressa... — resmungou.

Akulina olhou imediatamente para o seu amo e senhorquando lhe ouviu a voz, à espera de alguma ordem. Mas,

percebendo que não era com ela, encolheu os ombros:

— Que grande sábio! Onde será que ele aprendeu todasessas coisas? — murmurou e voltou a tecer.

O papel, do qual Polikei tirara o pó acrescentado à mistura,caiu debaixo da mesa. Akulina não perdeu

a ocasião:

— Aniutka, — gritou — papai deixou cair alguma coisa debaixo da mesa. Vai apanhá-la depressa!

Aniutka fez aparecer as finas perninhas nuas sob o:tapoteque a cobria e, como uma gatinha, deslizou para debaixo damesa e apanhou o papel.

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 —   Toma, papai, — disse e voltou a mergulhar na cama, comos pèzinhos gelados.

 —  Deixa d e me empurrar! — re clamou a irmã zinha menor,com voz sonolenta e falaciciosa.

 —  Olhem que já vou aí! — advertiu Akulina, e as duascabecinhas sumiram imediatamente por baixo do capote.

 —  Se ele me der três rublos — murmurou Polikei,arrolhando a garrafa — eu lhe curo o cavalo... E ainda ébarato. Afinal, a gente se quebra um bocado a cabeça!...Akulina, vai pedir um pouco de tabaco ao Nikita, que amanhãlhe devolvo.E Polikei tirou do bolso da calça um cachimbo de tília, que,

em outros tempos, estivera pintado, e possuía uma boquilha delacre. Ajeitou-lhe a cabeça, enquanto Akulina largava o fuso esaiu.

Polikei abriu um armàrio/.inho, colocou nele a garrafa eencostou à boca uma garrafa vazia de aguardente. Nem umagota! Fran/.iu a testa, mas quando a mulher trouxe o tabaco,esquecem n garrafa vazia, foi encher o cachimbo e pôs se afumar. Em seguida, sentou-se na cama, o rosto irradiando asatisfação e o orgulho de um homem que termina a lidadiária.Seja porque pensava om como no dia seguinte agarrariaa língua do cavalo e lho despojaria dentro da boca essamaravilhosa tisana, seja porque meditava sobre como a umapessoa útil nada só recusa, pois Nikita, apesar de tudo, lhemandara o fumo; ele sentia-se à vontade.

De repente, abriu-se a porta que estava presa por um sógonzo, e entrou uma criada da casa senhorial. Não a segunda,mas a terceira, aquela pequena que era mantida só pararecados. A criadinha chamava-se Aksiutka, e voava semprecomo uma bala de espingarda enquanto seus braços, sem sedobrarem, acompanhavam como pêndulos o compasso dosmovimentos. O rosto da pequena estava sempre maisvermelho do que o seu vestido côr-de-rosa. Sua língua semovimentava com a mesma velocidade das pernas. Entrouvoando no quarto e, segurando-se por um motivo qualquer na

estufa, começou a balançar o corpo. De repente, sem fôlego,parecendo esforçar-se por não dizer mais de duas ou trêspalavras de cada vez, dirigiu-se a Akulina.

— A patroa manda dizer que Polikei compareçaimediatamente lá em cima... (parou para tomar fôlego),legor Mikhailovitch esteve com a madama, falaram dosrecrutas, mencionaram Polikei Ilitch...Avdótia Mikolovnamandou... (voltou a respirar fundo) que Polikei Ilitch fosseimediatamente.

Durante bem um meio minuto Aksiutka olhou para Polikei,

para Akulina, para as crianças que espiavam por sob ocobertor, apanhou uma casca de noz que estava sobre aestufa, jogando-a em Aniutka, e disse mais uma vez:

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— Mandou que fosse imediatamente... — e partiu feito umremoinho, enquanto os pêndulos, com a velocidade habitual,se balançavam em direção oblíqua à sua trajetória.

Akulina levantou-se e foi apanhar as botas do marido. Erambotas de qualidade inferior, tíomo as usadas pelos soldados,além de arrebentadas. Tirou de cima da estufa o cafetã eofereceu-o a Polikei, sem fitá-lo.

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 —  Não vais mudar de camisa? -- perguntou. —  Não — disse Polikei.Akulina não o fitou uma única vez enquanto ele, em

silêncio, se calçava e vestia. E fez bem em não olhá-lo. O rosto

de Polikei estava pálido. O queixo lhe tremia, e nos olhostinha aquela expressão de choro, submissa e profundamenteinfeliz que só se encontra nas pessoas boas, fracas eculpadas. Penteou-se e já ia sair, quando a mulher o retevepara endireitar-lhe a camisa que sobressaía do casaco.Finalmente pôs-lhe o gorro.

— Então, Polikei Ilitch, a madama mandou chamar-te? —ouviu-se a voz da mulher do carpinteiro, perguntando atravésdo tabique.

A mulher do carpinteiro, ainda na manhã desse dia, tiveraum feio desentendimento com Akulina por causa de uma tijelade barreia que os filhos de Polikei haviam derramado. Agora,no primeiro momento ficou satisfeita ao saber que a "bárina"mandara chamar Polikei. Não havia de ser para boa coisa. Demais a mais, a "bárina", era uma dama sutil, politiqueira e umtanto maldosa. Ninguém como ela sabia despachar umapessoa com uma única palavra. Pelo menos, era o que elaprópria pensava.

— Com certeza vão mandar-te à cidade fazer compras —continuou. — Penso que a madama quer mandar alguém deconfiança, e por isso te escolheram. Neste caso, compra-meum quarto de libra de chá. Ouviste, Polikei Ilitch?

Akulina mal continha as lágrimas, enquanto encrespava oslábios com expressão maldosa. Deu-lhe vontade de agarraraquela biltra pela cabeleira imunda. Mas, quando levantou osolhos para os filhos, e pensou em que eles iam ficar órfãos, eela uma viúva de soldado, esqueceu a venenosa mulher docarpinteiro, cobriu o rosto com as mãos, sentou-se sobre acama e deixou cair a cabeça nos travesseiros.

 —  Mamãezinha, está me machucando — gemeu baixinhoa menina de fala ciciosa e puxou o vestido por sob o cotovelodá mãe.

 —  Seria melhor que morrêsseis todos! Só vos pus nomundo para serdes desgraçados! — prorrompeu Akulina ecomeçou a soluçar tão alto que se ouviu por toda a casa,

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para grande satisfação da mulher do carpinteiro que aindanão tinha esquecido a barreia da manhã.

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Passou-se meia hora. A criança menorzinha começou achorar. Akulina levantou-se e deu-lhe os seios. Já nãosoluçava. Apoiando o rosto ainda belo numa das mãos,Akulina fitou a vela que já bruxo]cava, e pensamentos várioslhe turbilhonavam na cabeça: afinal para quê ela tinhacasado? Para quê o governo precisava de tantos soldados! Ecomo se vingaria da mulher do carpinteiro?

Ouviu passos do marido. Depressa apagou os vestígios daslágrimas e levantou-se para deixá-lo passar.

Polikei entrou com ar de triunfo, atirou o gorro sobre acama, respirou fundo c começou a afrouxar o cinto.

 —  Então, que foi? —  Ora, já se sabe! O Polikuchka é o último dos servos

da casa, mas quando se trata de um negócio mais sério,para quem" é que apelam? Naturalmente para o Polikuchka!

 —  Que negócio?Polikei não se deu pressa em responder. Tirou uma baforada

do cachimbo e cuspiu.

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 —   Terei que ir à casa de um negociante apanhar dinheiro. —  Então vais buscar dinheiro? — perguntou Akulina.Polikei deu uma risadinha e acenou com a cabeça,

afirmativamente.

— E como ela sabe dizer as coisas! Tens a fama, disse ela,de não merecer confiança. Mas eu acredito mais em ti do queem qualquer outro! (Polikei falava alto, para que os vizinhosouvissem.) Prometeste que ias emendar-te, e agora vou tedar a prova de que acredito em ti: vai à casa do negociante,recebe o dinheiro e o traze aqui. Respondi-lhe então:"Bárina", todos nós somos os vossos servos, e devemosobedecer-vos como obedecemos a Deus. Estou disposto afazer qualquer coisa para servir-vos e jamais recusarei um

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dever meu. Ó que a "bárina" ordenar, eu farei, porque sou oseu escravo.

Novamente surgiu-lhe nos lábios aquele sorriso peculiar depessoa fraca, boa e culpada. Prosseguiu:

— Então ela perguntou: farás tudo como deves? Estáscompreendendo que todo o teu destino depende dessaincumbência?... Ora, como não havia de compreender quetudo depende de mim? É verdade que andaram falando mal ameu respeito, mas isso pode acontecer a qualquer um. Mas eu jamais, nem sequer em pensamento, fiz algo que pudesseofender a "bárina"... E falei e argumentei tão bem que asenhora acabou ficando completamente macia... E ela disse:Ainda serás o meu homem de confiança!

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Ele calou-se um instante, e aquele sorriso voltou a aflorar-lheaos lábios.

 —  Eu sei muito bem como se deve falar com os patrões.Antigamente, quando ainda me achava admitido contra opagamento dum tributo, não era raro berrar alguém comigo.Mas era só eu conversar um pouco com ele, e logo ficavamacio como seda. —  É muito dinheiro? — quis saber Akulina.

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 —    Três vezes quinhentos rublos — respondeu Polikeidisplicentemente..

Ela meneou a cabeça.

 —  E quando vais partir?

 —  Ela mandou que fosse amanhã. Disse que podiaapanhar o cavalo que quisesse, passasse pelo escritório efosse com Deus.

 —  Louvado seja Deus! — disse Akulina, levantando-se efazendo o pelo-sinal. — Que Deus te ajude, Ilitch! —acrescentou baixinho, para que não a ouvissem do outro ladodo tabique, enquanto o segurava pela manga da camisa. —Ilitch, escuta: peço-te em nome de Deus nosso Senhor, antesde partir jura sobre a cruz em como não vais botar nem umagota de vodca na boca!

*- Então eu vou beber, com tanto dinheiro no bolso? —

rosnou ele. — Alguém estav,a lá tocando piano lindamente —acrescentou, sorrindo após breve silêncio. — Deve ser asenhorita. Eu estava parado diante da "bárina" junto àquelearmário de vidro, e a senhorita lá atrás da porta tocavapiano. Tão li-

geiro, tão ligeiro, e um som combinava sempre tão bem como outro que era uma beleza. Eu também gostaria de tocar,bem seria capaz de aprender. Para essas coisas tenho jeito...Dá-me uma camisa limpa amanhã. Em seguida, foram dormirfelizes.

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Enquanto isso, a assembleia fazia uma algazarra enormediante do escritório. Na realidade, o caso não era para menos.Os camponeses estavam quase todos reunidos, e enquantolegor Mikhailovitch fora ter com a senhora, a maioria tinhacolocado o gorro. As vozes aumentavam de volume, ealgumas faziam se ouvir ao mesmo tempo. O concerto dasvozes graves, de vez em quando interrompidas por outrasmais estridentes, enchia o ar e chegava, com o bramido do

mar, até às janelas da senhora, produzindo nela umainquietação nervosa, semelhante à provocada por fortetrovoada: um misto de terror e aborrecimento. A todomomento lhe parecia que as vozes se tornavam maisnumerosas, e que alguma coisa ia acontecer. "Como se nãofosse possível tratar dessas coisas com mais silêncio, maiscalma, sem discussão e sem tanto berreiro — refletiu ela —conforme as leis cristãs do amor fraternal e da humildade!"

D

Ouviam-se muitas vozes ao mesmp tempo, mas quem mais

berrava era Fiodor Rezun, o carpinteiro. Tinha dois filhos eatacava impiedosamente os Dutlov. Então o velho Dutlovpassou a defender-se. Colocou-se em frente à multidão (até aí permanecera na ré-

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taguarda) e, falando fanhoso, precipitadamente, gesticulandocom veemência e afagando a barba, atrapalhou-se de talmaneira que ele próprio teria dificuldade em entender o quedizia. Seus filhos e sobrinhos, todos belos mocetões,comprimiam-se atrás dele, de maneira que o velho Dutlovfazia lembrar a galinha choca do jogo do gavião (*). No caso, ogavião era Rezun, e não só este, mas todos os pais de doisfilhos ou de um só, praticamente toda a assembleia,apertavam o velho.

Em resumo, a questão era a seguinte: havia já uns trintaanos, o irmão de Dutlov tinha sido recrutado. Por isso, o velhonão queria ser contado entre os pais de três filhos, e exigiaque se creditasse em seu favor o serviço militar prestado peloirmão. Em outras palavras, pretendia que o colocassem entreos pais de dois filhos e que, dentre todos eles, fosse sorteadoo terceiro recruta. Além de Dutlov, havia mais quatro pais de

três filhos. Mas um deles era o "stáros-ta" (alcaide da aldeia),desobrigado pela "bárina". A outra família já tinha fornecidoum recruta por ocasião do último recrutamento, e dentre asrestantes duas famílias já haviam sido designados dois. Umdeles nem sequer comparecera à assembleia, e só sua mulher,visivelmente acabrunhada, lá estava parada atrás de todos,alimentando a vaga esperança de que a roda da fortunaaijida viesse girar em seu favor. O outro dos dois recrutas jásorteados, o ruivo

(*) O jogo do gaviSo era uma brincadeira muito apreciada entre as crianças russas:

enquanto um gavião procura raptar os pintos, a galinha os defende. — N. T.

Roman, com o paletó roto embora não fosse pobre, recostara-se à escadaria, não dizia palavra e só de raro em raro fitavacom atenção um ou outro que falasse mais alto. Em seguida,deixava novamente pender a cabeça. Toda a sua figurairradiava desgraça.

O velho Semeon Dutlov era um homem a quem — bastandoconhecê-lo um pouco — qualquer um confiaria a guarda decentenas, milhares de rublos. Homem digno, temente a Deuse abastado. Demais, era o "stárosta" da igreja. Tanto mais asua visível exaltação causava espécie.

O carpinteiro Rezun, ao contrário, era um sujeito alto,moreno, rixento, beberrão, metido a valente e muitodesembaraçado na hora de discutir e argumentar nasassembleias e feiras, fosse com os operários ou os

negociantes, fosse com os camponeses ou mesmo com ossenhores. Agora estava calmo, mordaz, e com sua magníficaestatura, com todas as forças da sua voz sonora e seu talentode orador, acossava o "stárosta" que arfava e se encontravacompletamen-te fora do seu habitual equilíbrio.

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Participavam também da discussão o jovem e robustoGaraska Kopílov, cara redonda, cabeça quadrada e barbacrespa. Era um dos oradores da nova geração que falaram

depois de Rezun, e se-v distinguiu por suas expressõesincisivas, conquistando certa influência na assembleia. Depois,foi a vez de Fiodor Mielnitchnii, camponês de cara amarelada,magro, alto, curvado e ainda moço. Tinha a barba rala, os

olhos pequenos, era de porte curvado, sempre bilioso e triste,descobria em tudo um lado mau, e não raro confundia aassembleia com suas perguntas e observações inesperadas eásperas. Os dois faziam coro com Rezun.

Além destes, dois tagarelas imiscuíam-se de vez em quandona discussão: Chrapkov, dono de uma cara bonacheirona evasta barba ruiva, que dizia sempre e a propósito de tudo:"Meu caro amigo..." E outro, baixote, com feições de ave, denome Jidkov, que dizia a toda hora: "Resulta, meus carosirmãos..." Falava bonito, mas suas frases não diziam coisa com

coisa. Ambos estavam ora do lado de um, ora do lado deoutro, mas ninguém lhes prestava a menor atenção. Haviaainda vários outros do mesmo tipo, mas esses dois gritavammais e remoinhavam no meio do povo, assustando a "bárina".Quase ninguém os escutava, mas atordoados pelo vozerio e abaru-Iheira, entregavam-se com arrebatamento ao palavreado.

Levaria longe enumerar todos os tipos da assembleiareunida: havia os sombrios, os tímidos, os indiferentes e osamedrontados. Havia também algumas mulheres que seconservavam atrás dos seus maridos. Desses todos", se Deusquiser, vou falar da próxima vez.''O grosso da multidão, porém,era constituído de camponeses que se comportavam como naigreja, e às costas dos oradores, em voz baixa, trocavam ideiassobre assuntos puramente domésticos, como seja: quando sedeve empilhar a lenha cortada  na floresta — ou agardavamem silêncio o fim daquele berreiro.

Havia também os camponeses prósperos a quem aassembleia não podia em absoluto aumentar ou diminuir aprosperidade. Um deles era lermila, de cara larga e lustrosa,a quem, por ser abastado, os muji-ques chamavam"barrigudo".

Outro que pertencia a essa categoria era o "stáros-ta(*) daaldeia; trazia no rosto a expressão de auto-satisfação de umhomem plenamente consciente do seu poder: "Digam o quequiserem, pois nada me atinge! Sou pai de quatro filhos, enenhum deles será sorteado".

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Quando, de raro em raro, esses homens prósperos eramapontados pelos livres-pensadores como Kopílov e Rezun,respondiam tranquilos e com firmeza, na total consciência dasua invulnerabilidade.

Se Dutlov fazia lembrar a galinha choca do jogo do gavião,seus rapazes não se pareciam muito com os pintinhos: nãocorriam de um lado para o outro, nem piavam, masconservavam-se calados atrás do velho. O primogénito, Ignat,andava pelos trinta. O segundo, Vassili, também já eracasado, mas era inapto para recruta. O terceiro era Iliucha,(**) sobrinho do velho, recém-casado, ,de tez clara, corado. Eracarroceiro e usava um belo casaco de pele de carneiro.Parado, olhava aquele povo, coçava-se de vez em quando anuca debaixo do gorro, e todo aquê-

( * ) Chefe, espécie de burgomestre. N. T.

( * * ) Diminutivo de llia, nome masculino. — N. T.

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lê berreiro parecia não ter a mínima relação com a suapessoa. E justamente a ele é que os gaviões pretendiamagarrar.

 —  Meu avô foi soldado, — dizia um deles — Porconseguinte, não vou entrar no sorteio! Lei assim não existe,meu velho. Na última convocação levaram o Micheitchev, eentretanto o tio dele até agora não voltou.

 —  Nem teu pai nem teu tio serviram ao czar — interveioDutlov, quase ao mesmo tempo — e tu tampouco serviste aossenhores ou à comunidade. Vives a esbanjar teus bens, a talponto que teus filhos já requereram a partilha. E porqueninguém te aguenta, acusas os outros. Durante dez anos fuiguardião, e finalmente "stárosta" da igreja. Minha casa pegoufogo duas vezes, e nunca ninguém me socorreu. Agora, porquenas minhas terras se vive em paz e honradez, quereisarruinar-me? Devolvei-me o meu irmão! Com certeza jáperdeu a vida. Assembleia de gente ordotodoxa, julgai de

acordo com a justiça e conforme a vontade de Deus, e nãosegundo o que diz um beberrão!Guerássim voltou-se imediatamente para Dutlov:

— Estás invocando o caso do teu irmão. Entretanto, ele nãofoi recrutado pela assembleia. Foi o Vbárin" que o entregouem consequência do seu desleixo. Não, esse não serve comodesculpa!

Nem bem terminara Guerássim quando o alto e amareladoFiodor Melnitchnii, dando uns passos para a frente, começoua falar com voz triste:

— É isso mesmo; os patrões entregam a quem lhes passapela cabeça, e depois é a assembleia que tem de acertar ascoisas. O "mir" (*) escolheu o teu filho, e se isso não teagrada vai falar com a "bárina". Talvez ela determine que eu,

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que estou completamente só, seja sorteado para servir noexército. E isso se chama lei! — acrescentou com expressãobiliosa. E, fazendo um gesto vago com a mão, voltou ao seulugar.

O ruivo Roman, cujo filho já era apontado, levantou acabeça, exclamando:

— É assim mesmo!

Dominado pelo desgosto, foi sentar-se num degrau daescada.

Havia ainda outras vozes que falavam ao mesmo tempo.Afora os aparentemente desinteressados das últimas filas queconversavam sobre seus assuntos particulares, os tagarelasmantinham-se agitados.

— Realmente, assembleia ortodoxa, — dizia o pequeno  Jidkov, repetindo as palavras de Dutlov — devemos julgar deacordo com os preceitos cristãos. Por conseguinte, é pelosconceitos cristãos que devemos julgar, meus irmãos.

- T, Temos que julgar conforme a consciência, meu caro amigo,— disse o bondoso Chrapkov, fazendo coro com Kopílov epuxando o casaco de* Dutlov. — Foi a vontade dos patrões, enão uma decisão da assembleia.

(*) Mir = assembleia da comunidade. — N. T.

 

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 —  É isso mesmo! Disse toda a verdade! — confirmaram vários outros. —  Quem é o beberrão tagarela? — interveio Rezun. — Acaso me deste

de beber? Ou teu filho, aquem encontram caído na rua, me chamará beberrão?Temos que decidir, meus irmãos. Se quereis poupar Dutlov, tereis queindicar não só os pais de dois filhos, como também os que não têm filhos, eele vai rir-se às nossas custas.

 — Dutlov tem que ir! Chega de discussão! —    Naturalmente! Os pais de três filhos têm que tirar a sorte em primeiro lugar! — gritaram vários outros.

 —  Vamos ouvir primeiro as ordens da patroa. legor Mikhailovitch disseque iam mandar um dos criados — lembrou uma voz.

Esta observação atenuou um pouco a discussão, mas bem depressa elavoltou a inflamar-se e recomeçaram as questões pessoais.

Ignat, de quem Rezun afirmara que fora encontrado caído na rua, acusouRezun de ter roubado uma serra a uns carpinteiros que estavam de passagem,e que, embriagado, por pouco não matara sua mulher a pancadas.

Rezun respondeu que ele surrava a mulher quer estivesse bêbedo ou não,e que essas surras ainda eram poucasj provocando o riso geral. Quanto àserra, porém, zangou-se ao extremo, aproximou-se de Ignat e perguntou-lhe:

 — Quem foi que roubou?

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 —  Ora, tu roubaste! — volveu corajosamente o robusto Ignat,aproximando-se por sua vez.

 —  Quem foi que roubou, hem? Não foste tu? — gritou Rezun. —   Não, tu a roubaste! — respondeu Ignat aos berros.

Depois da serra vieram à baila um cavalo roubado, um saco de aveia, um

trato de horta, e até um cadáver encontrado. Tantas e tais disseram-semutuamente os dois camponeses, que, ainda se fosse verdade apenas umacentésima parte do que se acusavam, deveriam ser mandados, sem perda detempo, — de acordo com a lei — para a Sibéria, pelo menos como colonos.

Enquanto isso, o velho Dutlov adotara outro meio de defesa. Não gostou do berreiro de seu filho e procurava contê-lo:

 — Isso é pecado! Deixa-o em paz!

E procurou demonstrar que os pais de três filhos não são apenas aquelesque têm três filhos juntos, mas também aqueles cujos filhos já receberam a

 partilha. E apontava para Starostsin.

Este sorriu levemente, pigarreou e, acariciando a barba à maneira doscamponeses ricos, disse em resposta que isso dependia da vontade dos

 patrões. Se não o haviam indicado era porque certamente assim o merecia.

Quando às famílias separadas, Kopílov derrotou o argumento de Dutlov,dizendo que a partilha deveria ter sido proibida, a exemplo do uso em vigor notem-

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pó do velho "bárin" já falecido. Agora, entretanto, o mal jáestava feito, e por isso não era justo sortear indivíduosdesligados da família.

 —  Por acaso, eles se desligaram da família porprazer? Por que haviam de ser arruinados agora? —intervieram alguns diretamente interessados, fazendo coro com eles alguns tagarelas.

 —  Se não estás de acordo, por que não comprasum recruta? Bem que estás em condições de fazê-lo!

— disse Rezun a Dutlov.Este abotoou desesperadamente o seu cafetã e foi postar-seatrás dos outros camponeses.

— Por acaso contaste o meu dinheiro? — disseenfurecido. — Ouçamos primeiro o que legor Mikhai-lovitch tem a dizer-nos da parte da senhora.

6

legor Mikhailovitch, efetivamente, nesse momento saía dacasa senhorial. Todos tiraram os gorros à medida que oadministrador se aproximava, pondo à mostra algumascabeças calvas, outras brancas, ruivas, louras e castanhas. Asvozes foram baixando até se fazer silêncio completo.

legor Mikhailovitch postou-se no alto da escadaria dando aentender que queria falar. Na sua comprida sobrecasaca, as

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mãos enfiadas desajeitadamente nos bolsos dianteiros, o gorroempurrado para a frente, pernas abertas, plantadassolidamente no patamar de onde dominava as cabeças namaioria velhas, barbadas e bonitas, levantadas para ele, legorMikhailovitch tinha um aspecto completamente diverso do que

assumia diante da senhora. Estava simplesmente sublime.„— Por conseguinte, minha gente, eis o que a senhora

decidiu: não irá nenhum criado da casa. Tereis que escolher umdos vossos. E precisámos agora de três. Ou, melhor, dois emeio. Esse meio mandaremos adiantado. Afinal de contas, oresultado é o mesmo: se não for agora, terá que ir dapróxima vez.

 — Muito bem! É isso mesmo! — observaram várias vozes.

 —  A meu ver, — prosseguiu legor Mikhailovitch — o Khoriuchkin eVaska Mitiukhin vão ter que ir, pois assim parece ser a vontade de Deus.

 — É isso mesmo! Muito bem! — responderam

alguns.

 —  O terceiro será um Dutlov, ou então um das famílias de dois filhos.De acordo? —  Dutlov! — exclamaram novamente várias vozes. — Os Dutlov são

de três filhos.Recomeçou então o velho berreiro, voltando à tona a questão da serra, do

trato de horta e de certos sacos surripiados da casa senhorial. legor Mikhailovitch já administrava a propriedade havia bem uns vinte anos, eera pessoa experimentada e inteligente. Ficou parado, ouvindo, durante umquarto de hora, e então ordenou de repente que todos se calassem. Emseguida disse aos Dutlov que tirassem a sorte para ver qual dos trêsdeveria ir. Prepararam os bi-Ihetinhos. Chrapkov tirou um deles do gorroque um outro sacudia. A sorte caiu sobre Iliuchka. Todos

emudeceram.

 — Então sou e? Deixa ver! — falou Iliuchka com

a voz engasgada.

O silêncio era compíeto. legor Mikhailovitch mandou então que* no diaseguinte, trouxessem o dinheiro para os recrutas: sete copeques por 

 propriedade. Deu tudo por encerrado e dissolveu a assembleia. A multidão pôs-se em movimento. Depois de dobrarem

a esquina, começaram a colocar os gorros nas cabeças. Ainda por algumtempo se ouviam suas vozes e passos, enquanto o administrador continuava parado a entrada da casa, olhando para os que se retiravam.

Depois de os jovens Dutlov terem sumido da sua vista, chamou para  junto dele o velho que ali ficara, convidando-o a acompanhá-lo até oescritório.

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 — Sinto muito, meu velho, — disse legor Mikhailovitch, afundando na poltrona diante da mesa. — Mas, é tua vez. Vais comprar um substituto para o

teu sobrinho?

O velho, sem responder, lançou a legor Mikhailovitch um olhar significativo.

 —   Não há outro jeito — respondeu o administrador àquele olhar. —  Bem que gostaríamos de remi-lo, mas não temos com quê. Os

dois cavalos, neste verão, me custaram os olhos da cara. Casei meu sobrinho.Vivemos honestamente, e o resultado está aí... Para ele é fácil falar (disseisso com referência a Rezun).

legor Mikhailovitch esfregou o rosto com a mão e bocejou. Parecia jáfarto de tudo isso, e estava na hora de tomar o chá.

  — Olha, meu velho, isso é pecado! Dá uma bus-cab debaixo dastábuas do assoalho, e com certeza vais encontrar uns quatrocentosdaqueles antigos ru-blozinhos de prata. Eu te comprarei um belosubstituto. Ainda há pouco se ofereceu um.

  — Neste distrito? — perguntou Dutlov. Por distrito ele entendia

cidade.

 —  Então, queres comprá-lo? —  Compraria com prazer, juro por Deus, mas...legorMikhailovitch interrompeu-o rispidamente:

 —  Escuta aqui, meu velho: que o Iliuchka não me façanenhuma loucura! E que esteja pronto quando o forembuscar, hoje ou amanhã. Tu mesmo vais trazê-lo, e ésresponsável por ele. Se lhe acontecer alguma coisa, o queDeus não permita, irá teu filho mais velho. Estamosentendidos?

 —  Mas, legor Mikhailovitch, não seria possível mandaralguém das famílias de dois filhos? Isso é muito duro —disse depois de um silêncio. —  Já morreu um irmão meucomo soldado. E agora me levam o filho. Por que toda essadesgraça veio cair sobre mim?Estavam na iminência de chorar e cair de joelhos aos pés

do administrador.

— Ora, vai embora — respondeu legor Mikhailovitch. — Nãohá nada a fazer. A ordem é essa e tem que ser cumprida.Cuida bem do Iliuchka. És responsável por ele.

Dutlov foi-se embora para casa enquanto batiapensativamente com o cajado nas pedras da estrada.

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7

No dia seguinte, de manhã cedo, em frente à entrada da casados criados, estava parado o carro habitualmente empregadopara viagens (usado também pelo feitor) ao qual se achavaatrelado um cavalo de forte ossatura e cor castanha, cujonome, não se sabe por que, era Baraban. (*)

Aniutka, a filha mais velha de Polikei, apesar do misto dechuva e granizo e do vento gélido, estava parada, descalça, aalguma distância do cavalo, enquanto, com visível medo,segurava com uma mão as rédeas e, com a outra, por cima dacabeça, um casaquinho verde-amarelo que, na família,desempenhava as funções de cobertor, pelica, touca, tapete ecapote.

No "recanto" de Polikei reinava grande lufa-lufa. Aindaestava escuro. Pela janela, tapada aqui e ali cqm tiras depapel, mal penetrava um bocadinho da luz matinal de um diachuvoso. Akulina deixara de lado, por algum tempo, os seuspreparativos de comida e as crianças (as menores ainda

estavam deitadas e com frio, uma vez que o cobertor tinhasido requi-( * ) Baraban = tambor. — N. T.

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sitado como vestimenta e em seu lugar possuíam apenas o xaleda mãe) e ocupava-se com os arranjos de viagem do marido. Acamisa estava recém-lavada. As botinas, porém, achavam-seem estado lastimável: gastas e "escancaradas" na frente.Antes de mais nada, ela descalçou seu único par de grossasmeias de lã e deu-as ao marido. Em seguida, de uma cobertade cavalo, que estivera "jogada" na cavalariça e que Polikei

anteontem havia trazido para casa, ela confeccionou umaspalmilhas para tapar os buracos das botinas, esperando assimproteger contra a umi-dade os pés do marido.

Polikei estava sentado na cama, ocupado em ajeitar o seucinto de tal maneira que não tivesse aspecto de corda suja.E a menininha (a de fala ciciosa) vestira a pelica que eramuito grande para ela e por isso lhe tolhia os passos, e amando de mamãe fora ao Nikita pedir emprestado o gorro.

A confusão era aumentada pelas criadas que vinham pedir aPolikei toda sorte de encomendas: uma queria agulhas de

coser, outra chá, uma terceira azeite, um quarto tabaco, e amulher do carpinteiro queria açúcar. Esta já preparara osamovar e, para agradar Polikei, veio trazer-lhe umabeberagem que ela dizia ser chá. •

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Nikita recusou-se a emprestar o gorro, de maneira quePolikei teve que consertar o seu próprio. Com uma agulha deveterinário fez o possível para coser os buracos depois deempurrar para dentro os chumaços de algodão que sobravampor todos os lados.

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Depois, teve que fazer muita força para calçar as botinas,porque as grossas palmilhas confeccionadas da coberta decavalo mal deixavam os pés entrar. Enquanto isso,completamente regelada, Aniutka por pouco não soltara oBaraban, tendo que ser substituída por Machka que vestira apelica. Em seguida, Machka também teve que tirar a pelica, ea própria Akulina foi segurar o cavalo. Por fim, Polikei vestiupraticamente toda a roupa da família, deixando ficar só o

casaquinho verde-amarelo e os chinelos. Uma vez pronto,subiu ao carro, aconchegou mais o capote, ajeitou o feno,tornou a apertar o capote para que o abrigasse da melhormaneira possível, e então tocou o cavalo.

Seu filhinho Michka viera correndo até em frente à casa epedia insistentemente que papai o levasse a passear.Machka, a que ciciava, também queria ir, dizendo que já nãosentia frio, mesmo sem a pelica. Polikei freou Baraban, sorriucom aquele seu sorriso vencido e fez Akulina colocar os filhosno carro, e desse momento aproveitou-se a mulher parainclinar-se sobre ele e murmurar-lhe que se lembrasse do

 juramento de não tomar nada pelo caminho, i Polikei levouas crianças até o ferreiro, onde as fez apearem. Entãonovamente ajeitou a roupa, endireitou o gorro, e prosseguiusozinho, fazendo o cavalo manter um passo leve e moderado.A cada solavanco as bochechas lhe estremeciam e seus pésbatiam contra a carroçaria.

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Machka e Michka puseram-se a correr para casa, descendo descalços omorro escorregadio e soltando tais guinchos que um cão da aldeia, que davasuas voltas pelo pátio da casa senhorial, metendo o rabo entre as pernas elatindo, fugiu rápido. Isso fez aumentar ainda a corrida e os guinchos dosherdeiros de Polikei.

O tempo estava ruim. Ora nevava, ora chovia, e o vento era cortante. Polikeisentia-se açoitado pelo granizo no rosto e nas mãos que ele procurava abrigar,

  juntamente com as rédeas, nas mangas do capote. Baraban, por sua vez,abaixava a velha cabeça e semicerrava os olhos.

De repente, o granizo, a chuva e a neve cessaram e o tempo clareou. Nocéu apareceram nitidamente as nuvens e o sol pareceu querer penetrar, masindeciso e sem alegria, como era o sorriso do próprio Polikei. Não obstante,

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este achava-se mergulhado em pensamentos agradáveis. Ele, a quem pretenderam enviar como degradado para a Sibéria, a quem ameaçaram com orecrutamento, a quem só não xingava e batia quem tinha preguiça de fazê-lo,a quem sempre empurravam para o pior lugar, — agora incumbido de ir 

 buscar uma soma de dinheiro, uma soma grande, e a "bárina" confiava nele.

Estava até viajando no veículo do administrador, puxado pelo Baraban, nomesmo carro que era utilizado pela senhora. Viajava feito um proprietário,segurando nas mãos rédeas de couro.

Polikei endireitava o corpo, ajeitava o forro de algodão do gorro e apertavao capote. No entanto, se Polikei se imaginava com aparências de rico

 proprietário, estava redondamente enganado. Todo mundo sabe que também

mercadores que possuem dez mil rublos, viajam em carros pequenos puxados por cavalos com arreios de couro. As aparências são as mesmas, mas não é bema mesma coisa. Assim, por exemplo, um comerciante barbado, com um cafetãazul marinho ou preto, viaja sozinho com um cavalo bem nutrido: basta umúnico olhar, e pelo estado do cavalo, pela aparência abastada do dono, pela sua

 postura, pela maneira de atrelar o cavalo, pelo estado de conservação docarro, pelo modo de enrolar o cinto, imediatamente se percebe se o homemtransacio-na com centenas ou milhares de rublos. Qualquer pessoaexperimentada que olhasse para Polikei, para as suas mãos, o rosto, a barbameio crescida, o cinto, o feno jogado de qualquer maneira dentro do carro, omagro Baraban, os aros gastos das rodas, sem dificuldade reconheceria que

ali ia um reles servo, e não um rico negociante, ou um mercador de gado, oucamponês abastado, ou pessoa que possuísse mil, cem ou mesmo dez rublos deseus. ,Mas Ilich Polikei não pensava assim. Iludia-se e era agradável iludir-se. Iria buscar, trazendo-os cuidadosamente no bolso, três vezes quirfhentosrubros. Se quisesse, faria Baraban ir para Odest em vez de retomar o caminhode casa e iria onde bem entendesse. Evidentemente não faria uma coisa dessas.En-

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tregaria o dinheiro à patroa e diria que já tinha transportadoconsigo somas muito superiores àquela.

Passaram perto de uma taverna, e Baraban começou apuxar as rédeas para a esquerda, na evidente intenção deparar. Mas Polikei, apesar de levar consigo o dinheiro dascompras, fustigou Baraban e prosseguiu. Fez o mesmo diantede outras tascas, até que ao meio dia, desceu da viatura eentrou na casa de um comerciante, onde o pessoal da patroacostumava parar. Conduziu o carro para o pátio, desatrelou ocavalo, deu-lhe feno, almoçou com a criadagem docomerciante sem esquecer de falar sobre o importante negóciodo qual estava incumbido e, com a carta dentro do gorro, foifalar ao jardineiro.

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Este, que já conhecia Polikei, leu a carta com visíveldesconfiança e interrogou-o para certificar-se de querealmente estava encarregado de levar o dinheiro. Polikeiquis ofender-se, mas não o conseguiu, sorrindo apenas com

aquele seu sorriso peculiar. O jardineiro tornou a ler a cartae então entregou-lhe o dinheiro. Polikei guardou-o debaixodo casaco, sobre o peito, e voltou à hospedaria. Nenhumacervejaria, nenhuma tasca o seduzia. Sentia-se, todo ele,dominado por uma emoção agradável, e mais de urqa vezficou parado diante de lojas que exibiam os artigos maisdivefsos: botinas, túnicas, gorros, tecidos e comestíveis.Demorava-se algum tempo a olhar e, afastando-sefinalmente, embalava-se no pensamento: tudo isso eupoderia comprar, mas não compro...

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Em seguida foi ao mercado tratar das encomendas. Comproutudo e discutiu o preço de uma pelica curtida, que era de 25rublos. O vendedor, olhando Po-likei, duvidava no fundo queele estivesse em condições de adquirir tal pelica. Mas Polikei,apontando sobre o peito, afirmou que poderia comprar a lojainteira. Bastava só querer. E exigiu que lhe experimentassema pelica. Apalpou-a, sacudiu-a, soprou o pêlo, cheirou-a, efinalmente, com um suspiro tirou a pelica dizendo:

— O preço não me convém. Se a deixasse por 15 rublos...

O vendedor jogou a pelica com raiva sobre o balcão,enquanto Polikei se retirava na melhor das disposições,tomando o rumo da hospedaria. Jantou, deu água e aveia aBaraban, subiu à estufa e, sacando do envelope, examinou-odemoradamente e foi pedir a um criado que sabia ler, que lhedecifrasse o endereço e o que estava escrito por baixo:"Contém mil seiscentos e dezessete rublos em notas debanco". O envelope, de papel simples, trazia um grande sineteavermelhado no meio, com a representação de uma âncora, equatro pequenos nos cantos. Do lado havia um pingo de lacre.

Polikei examinp.u tudo isso cuidadosamente? assimilando osmenores detalhes e apalpando até os bordos das notas,sensíveis através do envelope. Experimentou umcontentamento infantil ao pensar que tão elevada soma seencontrava em suas mãos. Por fim enfiou o envelope através

de um buraco do gorro, colocou este sob a cabeça e deitou-separa dormir. No decorrer da noite despertou várias vezes paraapalpar o envelope. E sempre que o encontrava no lugarsentia-se invadido por um sentimento agradável nascido daconsciência de que ele, Polikei, o difamado e caluniado, eraresponsável por tamanha soma, e que a entregaria inteirinha,com a mesma segurança como faria o próprio administrador.

Por volta da meia-noite, os criados do negociante e Polikei foram acordadoscom batidas no portão e gritaria de homens. Eram os recrutas que haviam sido

trazidos de Pokrovskoie: Khoriuchkin, Mitiuchkin e Ilia (sobrinho de Dutlov),e os seus acompanhantes, dois substitutos, o stárosta, o velho Dutlov e oscarroceiros. No aposento ardia apenas uma lamparina. A cozinheira dormiasobre o banco que ficava abaixo dos ícones. Ela levantou-se de um pulo e foiacender as velas.

Polikei também acordou e, debruçando-se de cima da estufa, começou aobservar os camponeses recém-chegados. Todos, ao entrar, se benziam e iamsentar-se no banco. Estavam tão calmos que seria difícil distinguir quais eram

os recrutas e quais os seus acompanhantes. Cumprimentaram, falavam unscom os outros, e pediam comida. Alguns, é bem verdade, mostravam-sesilenciosos e tristonhos. Em conftpen-sação outros estavamextraordinariamente alegres e, sem dúvida, tinham bebido. Entre estes últimossobressaía Ilia que nunca antes havia tomado um gole.

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 — Então, rapaziada, vamos cear ainda ou dormir? — perguntou o stárosta.

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 —  Eu quero comer! — respondeu Ilia, abrindo a pelica e sentando-seno banco. — E manda buscar vodca! —  Chega de vodca — disse depressa o stárosta, e voltou-se de novo para

os demais. — Tratem de comer o seu pão, rapazes. Para que despertar o pessoal?

 —  Quero vodca! — insistiu Ilia, sem olhar para ninguém. Sua vozdeixava perceber que não desistiria tão cedo.

Todos seguiram o conselho do stárosta, foram apanhar o seu pão nacarroça, comeram, pediram kwas (*) e deitaram-se, alguns no chão, outrosem cima da estufa.

Ilia de quando em quando repetia:

 — Quero vodca. Já disse que quero vodca!

Subitamente avistou Polikei.

 —  Ilitch, Ilitch Polikei, ó caro amigo, tu estás aqui? Imagina que fuisorteado. Despedi-me para sempre da mãezinha e da minha mulher... e que

  berreiro ela fez! Meteram-me entre os soldados. Arranja-me um pouco devodca!

 —  Estou sem dinheiro — respondeu Polikei. — Quem sabe se não tevão declarar incapaz para o serviço — acrescentou Polikei para acalmá-lo.

 —  Qual nada, meu irmão. Estou com perfeita saúde e nunca estive doente.

Que defeito'haviam de encontrar em mim para me declarar incapaz? Melhor soldado não encontraria o czar!

C *) Kwas é uma bebida fermentada, parecida com a cerveja. — N. T.

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Polikei começou então a contar uma história em que umsorteado tinha passado uma nota de cinco rublos ao doutor, eassim se livrara do serviço.

Ilia aproximou-se da estufa para conversar mais à vontade:

— Não, Polikei, agora tudo está acabado, e eu mesmo já nãoquero mais ficar. O tio meteu-me nesta enrascada. Então elenão me podia ter remido? Não, teve pena do filho e dodinheiro, e por isso me entregou. Agora, eu mesmo já nãoquero mais ficar...

Falava baixinho, em tom confidencial, e sob o efeito de umaprofunda mágoa.

 —  Só tenho pena da mãezinha — prosseguiu. — Coitada,como ficou desesperada a pobrezinha! Também a minhamulher... a que condições a reduziram! Mulher de soldado... só

esta palavra já diz tudo. Antes nunca tivesse casado. Afinal,por que me casaram?... Amanhã eles vêm nos buscar. —  Por que todos foram trazidos tão cedo? — quis saber

Polikei. — Não se ouvia dizer nada, e agora, de repente... —  Eles estavam com medo que eu fizesse uma asneira —

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respondeu Ilia sorrindo. — Mas, não há perigo. Não farei nada.Hei de me arranjar como soldado. Só tenho pena da mãezinha,coitada. Por que me casaram? — disse baixinho e triste.

A porta foi escancarada e logo fechada com estrondo. Era ovelho Dutlov que entrava, sacudindo o gorro. Calçava

alpargatas de fibra trançada, e tão enormes como se fossemcanoas.

60

— Afanasi, — disse, persignando-se diante dos ícones edirigindo-se ao criado da hospedaria — podes arranjar-meuma lanterna para levar aveia aos cavalos?

Dutlov nem sequer olhou para Ilia e foi acender calmamentea lamparina. Tinha enfiado as luvas e o chicote no cinto etrazia a túnica tão cuidadosamente arrumada como seacabasse de vir de diligência. Seu rosto marcado pelos anosde trabalhos exibia a expressão costumeira, simples,tranquila, apenas preocupada com os seus afazeres caseiros.

Vendo o tio, Ilia calou-se e baixou os olhos cheios de tristezapara um ponto qualquer do banco, e então começou a falar,voltando-se para o stárosta:

— Quero vodca, lermila! Quero vodca!

Havia em sua voz uma entonação irada e triste.

— Qual vodca, qual nada! — respondeu o stárosta, mexendoa colher numa gamela. — Não estás vendo que todos jácomeram e foram dormir, e só tu continuas esbravejando?

A palavra "esbravejar" pareceu despertar em Ilia a vontadede realizá-lo.

 —  Stárosta, arranja-me vodca ou vai haver barulho! —  Chame-o à razão! — disse 9 stárosta dirigindo-se a

Dutlov que acabava de acender uma, lanterna e ali estavaparado como para ouvir o que aconteceria, lançando desoslaio um olhar penalizado ao sobrinho e parecendo, no

íntimo, estranhar as criancices do rapaz.61

Ilia baixara os olhos e repetiu:

 —  Quero vodca ou vai acontecer uma desgraça! —  Deixa-te disso, Ilia, — disse o stárosta em tom bondoso.

— É melhor ficar quieto...

Mal, porém, tinha o stárosta acabado de pronunciar essaspalavras, quando Ilia se levantou de um salto e arrebentoucom os punhos uma das vidraças, berrando com todas asforças:

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— Já que ninguém me quer ouvir, está aí! — e correu paraoutra janela, para quebrá-la também.

Polikei deu rapidamente duas voltas e foi rolar para ocanto atrás da estufa, espantando todas as baratas. O

stárosta deixou cair a colher e correu para Ilia. Enquanto isso,Dutlov pousara a lanterna no chão, tirara o cinto e, estalandocom a língua e meneando a cabeça, aproximou-se de Ilia queestava empenhado em desvencilhar-se do stárosta e do criadoque queriam impedi-lo de chegar até à janela. Tinham-noseguro pelas mãos e prendiam-no com força. Mas apenas Iliaavistou o tio com o cinto, suas forças se multiplicaram.Libertou-se rapidamente e, com os olhos esbugalhados, asmãos em punho, aproximou-se de Dutlov.

— Eu te mato se(, deres mais um passo, bárbaro! Tu medesgraçaste, tu e teus filhos me desgraçastes! Por que me

fizestes casar? Não chegues perto, que te mato!Ilia estava terrível: o rosto em fogo, os olhos a saltar das

órbitas. Todo o seu corpo jovem e robusto

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tremia como se estivesse atacado de febre. Parecia querermatar todos os três homens que avançavam sobre ele, ecertamente o teria podido.

— Bebedor do sangue do teu irmão, vampiro! Um ligeirotremor alterou a fisionomia habitualmente calma de Dutlov.Este avançou um passo:

 —   Já que não quiseste por bem... — disse e, de repente,com uma energia espantosa, num movimento rápido agarrou osobrinho, jogou-o por terra e, com a ajuda do stárosta,começou a amarrar-lhe as mãos. Lutaram durante uns cincominutos. Por fim, Dutlov se levantou com o auxílio dos demaiscamponeses e desprendeu as mãos de Ilia da sua pelica naqual este se agarrara. Em seguida ergueram Ilia que estavacom as mãos atadas às costas, e sentaram-no em um bancodo canto.

 —  Bem que te avisei que seria pior — falou, ainda semfôlego em consequência da luta e ajeitando a camisa. — Paraque pecar? Todos temos que morrer. Passa-lhe a túnica paracolocar debaixo da cabeça — acrescentou, dirigindo-se aocriado — senão o sangue lhe sobe. — E apanhou a lanterna,cingiu-se com uma cordinha e saiu para cuidar dos cavalos.• Os cabelos desgrenhados, o, rosto pálido e a camisaamarrotada, Ilia olhava em torno como se tentasse lembrar-seonde estava. O criado foi apanhando os cacos da vidraça etapou o buraco da janela com uma pelica para obstar aentrada do vento. O stárosta voltou a sentar-se diante da suagamela.

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 —  Ah; Iliucha, Iliucha, quanta pena tenho de ti! Mas, que fazer? Olha,Khoriuchkin também é casado. Não adianta revoltar-se contra o destino

 —  Esse malvado do meu tio é a minha desgraça — desabafou Ilia comuma raiva surda. — Acima de tudo ele coloca o seu dinheiro e os seus

  bens... A minha mãezinha disse que o administrador lhe aconselhou que

 pagasse um recruta. Mas ele não quer. Diz que não pode. Então eu e meuirmão não trabalhamos bastante para casa? É um malvado!Dutlov entrou, foi rezar diante do ícone, despiu a roupa de cima e

sentou-se junto ao stárosta. Um criado deu-lhe mais kuas e uma colher. Ilia permaneceu calado e, fechando os olhos, recostou a cabeça na túnica enrolada.O stárosta apontou para ele em silêncio e meneou a cabeça. Dutlov fez umgesto de resignação co ma mão.

 —  Por acaso não tenho pena dele? Afinal, é filho do meu próprioirmão. Ainda por cima me pintaram diante dele como um malvado. Suamulher meteu-lhe na cabeça — mulherzinha esperta, apesar de moça — quetemos dinheiro bastante para comprar um recruta, E agora ele vive lançando-

me isso no rosto. Entretanto, tenho uma pena enorme desse moço! —  Um bom rapaz! — disse ostárosta. ° 

 —  Sem dúvida, mas não dou conta dele. Amanhã mandarei buscar oIgnat. Sua mulher também quer vir.  — Isso mesmo! Está muito bem — disse o stá rosta , levantou- se e

subiu para cima da estu-

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fa. — Afinal de contas, que é o dinheiro? Nada mais que pó.

 —  Houvesse dinheiro, quem teria pena de dá-lo? — falou o criado donegociante, levantando a cabeça.

 —  Ah, o dinheiro, o dinheiro! Quanto pecado não vem dele? — respondeu Dutlov. — Nada no mundo causa tanto mal, conforme vemescrito nos Livros Sagrados.

 —  Tudo está escrito — repetiu o criado. — Contou-me alguém quecerto negociante tinha juntado muito dinheiro, mas não queria deixar nenhum. Amava seu dinheiro de tal maneira que o levou para o túmulo.Quando sentiu que ia morrer, mandou que colocassem no ataúde o seutravesseiro. Ninguém desconfiou. Depois, os filhos começaram a procurar odinheiro e nada encontraram. Foi quando a um deles ocorreu a ideia de que o

dinheiro estaria no travesseiro. A notícia chegou até ao czar, que permitiu se abrisse a cova. Que foi que encontraram? Abriram o caixão, masnão descobriram dinheiro nenhum no travesseiro, mas o caixão estava cheiode vermes e cobras. Então voltaram a metê-lo debaixo da terra. Está aí oresultado do dinheiro.

• — É verdade, há muito pecado no dinheiro — disse Dutlov, levantou-se efoi fazer as suas orações.

Terminadas as preces, olhou para o sobrinho. Este já dormia. Dutlovaproximou-se, desamarrou-lhe as mãos e deitou-se. Um outro camponês foidormir na cocheira.

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Assim que tudo se acalmou, Polikei deslizou de cima daestufa tão mansamente como se fosse culpado de alguma

coisa e tratou de se arrumar. Isso de pernoitar juntamentecom os recrutas não o fazia sentir-se à vontade. Os galos jácomeçavam a cantar lá fora com certa frequência. Barabantinha comido toda a aveia e esticava o pescoço para alcançaro bebedouro. Polikei pôs-lhe os arreios e conduziu-o para forada cocheira, passando por entre as carroças dos camponeses.O gorro e seu conteúdo estavam intactos, e dali a pouco asrodas da viatura voltaram a matraquear pela estradaregelada rumo a Po-krovskoie.

Polikei só começou a sentir-se mais aliviado depois de ter acidade pelas costas, pois até ali sempre estivera sob aimpressão de que, a qualquer momento, ouviria atrás de si ospassos de perseguidores, qua o fariam parar, lheamarrariam as mãos às costas para conduzi-lo no diaseguinte ao posto de recrutamento em lugar de Ilia. Arrepiospercorriam-lhe a espinha, e ele mal sabia se eram de frio oude medo. Fez Baraban acelerar o passo.

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A primeira pessoa que encontrou pelo caminho foi umpope, acompanhado de um trabalhador caolho. Polikei sentiu-se mais apavorado ainda. Mas, uma vo/. fora da cidade, omedo foi cedendo aos poucos. Baniban seguia a trote, e aestrada à sua frente tornava-se já bem visível. Tirou o gorropara apalpar o dinheiro. "Não seria melhor guardá-lo sobre opeito?" refletiu. "Neste caso, vou ter que afrouxar primeiro ocinto. Talvez seja melhor continuar descendo este declive. Láembaixo apearei e ajeito as coisas. O gorro está bemcosturado em cima, e pelo forro, embaixo, não há perigo deescapar nada. É preferível não tirar o gorro antes de chegarem casa..."

Alcançado o ponto mais baixo do declive da estrada,Baraban, ainda sob o impulso da descida, continuou correndo.Polikei, tanto quanto Baraban, estava ansioso por chegar emcasa o mais depressa possível, e não sofreou o cavalo. Tudocorria às maravilhas. Pelo menos, assim pensava, e entregou-se a devaneios sobre a gratidão da senhora, os cinco rublosde prata que lhe daria, e a alegria dos seus. Tirou o gorro,tornou a apalpar a carta, enterrou o gorro ;iinda mais fundona cabeça e sorriu. A pelúcia do f-iorro estava podre, e

 justamente porque Akulina, na véspera, serzira o ponto roto,a pelúcia rompera-KÍ; do outro lado. Precisamente'aquele

movimento ((iie Polikei fez no escuro, pensando enfiar'aindamais para dentro do forro a carta com o dinheiro, resultou«• tu que se rompesse a costura e fizesse aparecer sob apelúcia uma pontinha do envelope.

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67

O dia começou a clarear e Polikei, que não tinha dormido a

noite toda, mergulhou num cochilo, batendo com a cabeça nasvergas laterais do carro...

Quando acordou já estava perto de casa. Seu primeiromovimento foi o de agarrar o gorro. Este se achava firmesobre a cabeça, e Polikei nem sequer pensou em tirá-lo, certode que o envelope ali se achava. Fustigou Baraban, ajeitou ofeno, assumiu, novamente aqueles ares de grã-senhor e,lançando olhares de orgulho em torno, avançou em direção àcasa senhorial.

Ali estavam a cozinha, o pavilhão dos criados, a mulher do

carpinteiro carregando linho, o escritório, e finalmente a casasenhorial onde, dali a pouco, Polikei demonstraria ser pessoade confiança e honradez. Afinal, qualquer um pode sercaluniado. Pois agora a senhora diria com certeza: "Muitoobrigada, Polikei, e toma aqui três..." ou talvez cinco ou mesmodez rublos, e ainda mandaria vir chá para ele, possivelmenteaté vodca. Com o frio que estava fazendo isso não seria detodo mal. "Com dez rublos vamos nos divertir na festa, vamoscomprar umas botinas e devolver ao Nikita os quatro e meio,para daqui em diante ele não me amolar mais a paciência..."

Quando faltavam uns cem passos da casa, Pqlikei ajeitou a

roupa, o cinto e o lenço do pescoço, tirou o gorro, alisou oscabelos e, sem pressa, meteu a mão debaixo do forro. A mãocomeçou a movimentar-se cada vez mais depressa no gorro, eentão a outra foi ajudar também. Subitamente o rosto dePolikei em-

pi 11 i( locou... Uma das mãos saiu do outro lado do KOITO...Polikei jogou-se de joelhos no chão do carro, Tc/, parar o cavaloe empenhou-se em examinar a carroça, o feno, as compras...Apalpou o peito, os bol-,sos da calça. Mas o dinheiro não seachava em lugar nenhum.

— Deus meu! Que significa isto?! E agora, que vaiacontecer? — gemeu puxando pelos cabelos.

Mas, no mesmo instante lembrou-se de que podia os larsendo visto. Fez Baraban dar meia volta, enfiou o gorro nacabeça, e o cavalo mal satisfeito teve que voltar pelo mesmocaminho a galope.

 —  "Não tolero viajar com Polikei" — terá pensado Baraban.— "Só uma vez na vida me deu de comer e de beber atempo, e assim mesmo para me enganar. Quanto me esforceipor chegar em casa! Cansei-me e agora, mal comecei a sentir

o cheiro do nosso feno, ele me faz voltar". —  Rocim do inferno! — gritava Polikei por entre lágrimas,erguendo-se no carro, machucando a boca de Baraban com asrédeas e fustigando-o com o chicote.

5 Enforcado

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Durante todo aquele dia ninguém viu Polikei em Pokrovskoie.A "bárina" indagou por ele várias vezes depois do almoço, eAksiutka foi correndo saber notícias junto a Akulina. Estarespondia dizendo que ele ainda não tinha regressado e que,provavelmente, o negociante o havia detido ou tinhaacontecido algo com o cavalo.

— Possivelmente Baraban começou a mancar durante a

viagem. Ainda noutro dia, por isso mesmo, Maxim levou umdia e uma noite viajando e teve que fazer todo o caminho apé...

Aksiutka voltou a pôr em movimento seus pêndulos rumo àcasa, enquanto Akulina ficava a imaginar o motivo que estariaatrasando o marido. Em vão tentava acalmar-se. Trazia ocoração pesado, e nenhum dos preparativos para a festa dodia seguinte lhe saía a contento. Afligia-se principalmenteporque a mulher do carpinteiro assegurava ter vistoj- comseus próprios olhos, "um homem, tal e qual Ilitch Polikei,chegar à rua principal e depois voltar"...

 Também as crianças esperavam inquietas e impacientes avolta do papaizinho, embora por motivos outros. Aniutka eMachka estavam sem a pelica e

o capote que lhes permitiam, pelo menos alternada-mente,sair à rua. Agora só lhes restava correrem rapidamente emtorno da casa, nos seus simples vestidos, incomodandodestarte os habitantes do pavilhão dos criados que entravam esaíam. Certa vez Machka correu de encontro às pernas damulher do carpinteiro que estava carregando água e, embora

 já abrisse em berreiro antecipadamente, ao bater no joelho da

mulher, ainda recebeu uns puxões de cabelo, o que a fezchorar, com dobrada força. Quando a garota não esbarravaem ninguém, voava diretamente pela porta e subia à estufa,usando como degrau o barril-zinho de água.

Só Akulina e a "bárina" preocupavam-se realmente com ademora de Polikei, enquanto as crianças só pensavam naquiloque ele vestia. legor Mikhailovi-tch, respondendo àsindagações da senhora sobre se Polikei ainda não haviachegado e onde ele estaria, sorriu ao dizer:

— Não tenho ideia...

E parecia satisfeito em ver suas previsões se realizarem.

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— Ele devia ter chegado por volta do meio-dia —acrescentou com ar significativo.

Passou-se o dia todo e ninguém tev,e notícias de Polikei. Sómais tarde soube-se que alguns camponeses o tinham visto

sem o gorro, correndo pela estrada e perguntando a todomundo se não tinham encontrado uma carta. Um outro o tinhavisto ador-

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mecido à beira da estrada, e junto dele o cavalo amarrado aocarro.

— Pensei que fosse um bêbedo — explicou — e o cavaloparece estar há dois dias sem comer e beber, tal a suamagreza...

Akulina passou a noite sem dormir, o ouvido sempre aguçado.Mas também nessa noite Polikei não regressou. Se ela nãoestivesse sozinha e tivesse um cozinheiro e uma criada, ter-se-ia sentido mais infeliz ainda. Porém, mal os galos cantarampela terceira vez, e apenas a mulher do carpinteiro se havialevantado, Akulina teve que levantar-se também e lidar naestufa. Era dia de festa. Antes mesmo de clarear o dia, erapreciso assar os pães, fazer o kwas e as tortas, ordenhar avaca, passar os vestidos e as camisas, lavar as crianças,carregar água e não deixar que a vizinha tomasse conta de

toda a estufa.Sem parar de aguçar o ouvido, Akulina pôs mãos à obra. Já

amanhecera, os sinos repicavam para a primeira missa, ascrianças se levantaram, e nada de Polikei voltar.

Na véspera começara o inverno: a neve cobria aqui e ali oscampos, as estradas e os telhados das casas. E hoje, como sefosse especialmente em atenção à festa, o dia estava belo,ensolarado e frio, de rliodo que se via p ouvia a grandedistância. Mas Akulina, com a cabeça junto à boca da estufatão absorvida estava em assar as tortas que não percebeu a

volta de Polikei e só pela gritaria das crianças percebeu queo marido havia regressado.

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Aniutka, a mais velha, tinha-se vestido sozinha e untado oscabelos. Estava com um vestido de algodão novo, côr-de-rosa,ainda não lavado — presente da senhora — que ficava durocomo casca de árvore e fa/.ia inveja aos vizinhos. Seuscabelos brilhavam, pois tinha-os ensebado com meio toco devela. Os sapatos não estavam novos, mas pelo menos não

eram muito grosseiros. Machka ainda estava com o seu ca-saquinho, e tão imunda que Aniutka não a deixava chegarperto para não se sujar também. Machka encontrava-se nopátio quando o pai chegou, trazendo um saco.

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Levantou-se e saiu. Akulina foi apanhar a tina, colocou-a em cima do banco eencheu-a com água dos baldes que se achavam junto à porta e da caldeiradentro da estufa. Arregaçou as mangas e mergulhou a mão para verificar atemperatura.

 — Vem cá, Machka. Vou lavar-te.

A menina de fala ciciosa rompeu em berreiro. — Vem cá, sujinha, vou te pôr uma camisa limpa. E deixa de manha, que

ainda preciso lavar tua irmã.

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Enquanto isso, Polikei não seguiu a menina de recados da patroa, masencaminhou-se para um lugar muito diferente. No vestíbulo, junto à parede,havia uma escada muito íngreme que levava ao sótão. Polikei olhou em redor e, não vendo ninguém, ágil e rápido galgou os degraus da escada.

  — Que significa isso? Por que é que Polikei não vem? — perguntouimpaciente a senhora, dirigindo- se a Duniacha que lhe penteava os cabelos.

 — Onde está Polikei? Por que não vem?

Aksiutka novamente desatou a correr para o pavilhão dos criados paraintimar Polikei a comparecer imediatamente perante a senhora.

 — Mas, ele já foi há muito tempo — respondeu Akulina que, depois delavar Machka, acabava de meter na tina o filhipho menor e molhava-lhe oCabelo escasso f apesar do berreiro do pequeno. O menino gritava, faziacaretas e, com as mãozinhas débeis, tentava apanhar qualquer objeto.Akulina, com uma das mãos, segurava-lhe o dorsinho arredondado, macio echeio de covinhas e com a outra o lavava.

 — Quem sabe se ele não pegou no sono em algum lugar? — disse olhandoem torno e aflita.

 Nesse momento, toda despenteada e desabotoada no peito, a mulher docarpinteiro, arregaçando as saias, subia ao sótão para apanhar sua mantilhaque ali se achava secando. E então ouviu-se um grito de horror no sótão, e amulher desceu a escada como louca, os olhos fechados, de costas e de quatro,antes rolando do que se precipitando.

 —  Ilitch! — gritou ela. Akulina largou o pequeno. —  Enforcou-se! — uivou a mulher do carpinteiro. Sem perceber que a

criança caiu para trás na tina,com as perninhas para o ar e mergulhando a cabeça na água, Akulina correu

 para o vestíbulo.

 — Ele está pendurado... na trave... — disse a mulher do carpinteiro, masemudeceu ao ver Akulina.

Esta lançou-se pela escada acima antes que alguém pudesse detê-la, e então,rompendo num grito terrível, caiu para trás como se fosse um corpo inerte, ecertamente ter-se-ia espatifado se não a segurasse o povo que vieraacorrendo de todos os lados.

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11

Em poucos minutos estabelecera-se tamanha balbúrdia queninguém se entendia mais. Juntara-se uma porção de gente.

 Todos berravam, todos falavam, as crianças e as velhaschoravam, e Akulina perdera os sentidos. Finalmente doishomens, o carpinteiro e o administrador que viera correndo,subiram ao sótão, e a mulher do carpinteiro contava pelavigésima vez como "sem pensar em nada, fora buscar sua

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mantilha e, olhando em torno, vira parado um homem.Olhando melhor, enxergava atirado ao chão e virado peloavesso, um gorro. Então percebera as pernas balançando noar... Ficara toda gelada... "É fácil dizer: um homem enforcou-se. Vê-lo enforcado, aí é que são elas! Eu mesma não sei

como desci! É um milagre como Deus me salvou. Realmente,Deus é misericordioso. Afinal, a escada é alta e íngreme. Euteria morrido na certa!"

Os homens que haviam subido ao sótão contaramca mesmacoisa. Polikei estava dependurado numa trave, vestido apenasde camisa e calça, e usara aquela mesma corda tirada doberço. Seu gorro, virado pelo avesso, estava jogado no chão.Desfizera-se da túnica e da pelica, dobrara-as cuidadosamentee colo-

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c a ra a c e r ta d i st â n ci a . O s p é s a l ca n ç a v am o c h ã o ,p o r é m j án ã o h a v i a o m e n o r s i n a l d e v i d a .

Nesse ins tante , Aku l ina vo l tou a s i e novam entec o r r e u p a r a ae s c a d a , m a s n ã o a d e i x a r a m .

— M am ãez inha , o S iom ka se engasgou — com eçouacho ramingar a m en ina de fa la c i c io sa .

A k u li n a l ib e rt ou - se e c o rr e u p a ra o a p o se n to . Acr ianc inha ,i m ó v e l , e s t a v a d e c o s t a s n a t i n a e s u a sp e r n i n h a s j á n ã o s em e x i a m . T i r o u - a d e p r e s s a , m a so ga ro t inho não resp irava m a is .Ak u li na j o go u-o e m c im a da ca m a , a po iou - se na s m ã o s e so lt ouu m a g arg a lh a da tã o a lt a e t er rí ve l q u e M a ch k a, s or rin d o apr inc íp io , tapou os ouv idos com as m ãos e , chorando ,co r reu pa rao ves t íbu lo .

O p o v o i n v a d iu o " re c a n to " d a f a m íl ia d e P o li k eie cho ra va .Leva ram o g a ro t inho pa ra fo ra da l i e pu -.seram-se a fr icc ioná- lo .Mas tudo fo i em vão . Aku lina e s t a v a a ti ra da e m c im a da ca m a er ia , r ia d e ta lm a n ei r a q u e t od o s s e s en t ir am t om a d os d ep a v o r .

S ó a go ra , v en d o e ss a m u lti dã o v ar ia da d e p es so as ,ent reca sa do s , v e lho s , e c r i a nça s que se a co t o v e lav a m no v e s t í bu lo ,po d ia -se f a z e r i de ia da qua n t ida dee d a e s p é c ie d e g e n t e q u ev iv ia n o p a v il hã o d o sc ria do s. A nd av am d e u m la do p ara oout ro , t odos fa lavam, a lguns cho ravam , e n inguém faz ia nada . Am u l h e r d o c a r p i n t e i r o a i n d a e n c o n t r a v a g e n t e q u enã o t i nhao uv id o a s ua h is tó ria e n ov am en te c on ta vacom o a suasens ib i l idade f ica ra chocada à v i são inesp e ra d a , e c o m o D e u s as alv ou d e u m a q u ed a fa ta l d ae s ca d a. O v e lh o c o pe ir o q u et r aj a v a c a s a c o d e m u -

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lher, contou como, no tempo do falecido senhor, uma mulherafogara-se no lago.

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O administrador mandou recado para a polícia e para opadre, e colocou uns guardas. Aksiutka, a em-pregadinha dacasa senhorial, os olhos esbugalhados, não parava de olharpara o sótão, e embora nada enxergasse de onde ela estava,não conseguia desprender-se dali e voltar para junto da

senhora. Afgá-fia Mikhailovna, que fora criada de quarto daantiga senhora, pedia chá para acalmar os nervos e chorava. Aparteira Ana, com suas mãos hábeis, gordurosas e quecheiravam a azeite, ocupava-se em ajeitar o pequeno defuntosobre a mesinha. Várias mulheres cercavam Akulina, olhando-a em silêncio, enquanto as crianças, espremidas nos cantos,fitavam sua mãe, começavam a chorar, calavam-se, tornavama olhar e chegavam-se ainda mais umas às outras. Osrapazes e os homens, aglomerados no patamar, olhavam comos rostos assustados pela porta e as janelas, sem nada vernem compreender, e perguntavam-se uns aos outros o queestava acontecendo. Um dizia que o carpinteiro tinha cortado aperna da mulher com um machado. Outro, que a lavadeirativera trigêmeos. Um terceiro informou que o gato dacozinheira e$-raivecera e mordera todo o mundo. Mas, aospoucos, a verdade fof transparecendo e chegou mesmo aosouvidos da senhora. Nem ao menos, segundo parece,conseguiram prepará-la para a notícia. O bronco do legorcontou-lhe tudo sem rodeios e a tal ponto a

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perturbou que levou muito tempo para se refazer do abalo.

A multidão já começava a acalmar-se. A mulher docarpinteiro foi aprontar o samovar e fez chá e os estranhos,não convidados para o chá, acabaram achando que não ficavabem permanecerem ali por mais tempo. Já todo mundo sabiado acontecido e, benzendo-se, iam dispersar-se aos poucos,quando, subitamente, se ouvi:

— A senhora! A senhora!

E todos, de novo, se juntaram, apertando-se para darpassagem, e querendo ver o que ela faria.

Pálida, o rosto deixando perceber que acabava de chorar, a"bárina" atravessou o vestíbulo e penetrou no "recanto" deAkulina. Dezenas de cabeças enfiavam-se pela porta eolhavam para dentro. Uma mulher grávida foi expremida detal maneira que ela soltou um grito, mas não deixou deaproveitar-se dessa circunstância para arranjar um lugarmelhor na frente. Quem é que não queria ver a senhora emvisita ao "recanto" de Akulina? Para a criadagem isso era tãosensacional como o fogo de artifício no fim de um espetáculo.Não menos bonito do que o fogo de artifício era ver a

"bárina" vestida de seda e rgndas, entrar no "recanto" deAkulina. A senhora aproximou-se da mulher e tomou-lhe amão. Mas Akulina retirou-a. Os velhos criados sacudiram acabeça em sinal de desaprovação.

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— Akulina, — disse a senhora — tens filhos, e tenho muita pena!

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Akulina rompeu numa risada estridente e levantou-se.

 — Meus filhos são todos de prata, inteiramente de prata... Não guardonotas de banco — murmurou então apressadamente. — Bem que eu disseao Ilitch: não aceites as notas! E aí o enganaram... embrulharam-noredondamente! Picharam-no. Com piche e sabão, minha senhora. Por maissarnento que alguém seja, tudo sai imediatamente.

E desatou em nova risada.

A senhora voltou-se e mandou chamar o ajudante do farmacêutico paraque fosse buscar um emplastro de mostarda.

 — Dêem-lhe água fresca — disse e ela própria começou a procurar água.Então viu a criança morta, diante da qual estava postada a velha Ana. Asenhora virou o rosto e todos viram que ela o cobriu com o lenço e chorou.A velha parteira — é pena que a "bárina" não o percebesse, pois saberiaapreciá-lo: tudo estava sendo encenado especialmente para ela

 — cobriu a criança com um pano de linho, ajeitou-lhe os bracinhos com asua mão gordurosa e hábil, e de tal maneira sacudiu a cabeça, espichou olábio e apertou os olhos com tamanho sentimento e suspirou com tantacomoção, que qualquer um veria facilmente que bom coração ela tinha.Infelizmente, a senhora nãoVira nada, nem podia ver. Enquanto choravasobreveio-lhe um ataque de nervos e tiveram que levá-la, apoiada nos

 braços dos circunstantes, para o vestíbulo e dali para a sua casa.

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"Não foi lá grande coisa!" — ponderaram muitos dos presentes e trataramde dispersar-se.

Akulina continuava rindo e dizendo coisas sem nexo. Levaram-na paraoutro quarto, fizeram-lhe uma sangria, aplicaram-lhe emplastros demostarda, e compressas de gelo na cabeça. Ela, porém, continuava semcompreender nada, não chorava, mas ria e falava e fazia tais coisas que

aquela boa gente, enquanto cuidava da pobre transtornada, acabou rindotambém.

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A festa não foi nada alegre para a criadagem de Pokrovskoie. Apesar do dia belíssimo, o povo não saiu para passear, as moças não se juntaram para entoar cantigas, e os rapazes da fábrica que tinham vindo da cidade, não tocaramharmónica nem balalaica, nem dirigiam gracejos às moças. Cada um ficavasentado no seu canto e mal abria a boca para falar. E quando alguém falava,

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fazia-o baixinho, como se algum espírito mau estivesse por perto e pudesseouvi-lo. No decorrer do dia isso ainda era passável. Mas à tardinha, quandocomeçou a escurecer, os cães puseram-se a uivar e, para desgraça ainda maior,o vento começou a gemer nas chaminés. Tamanho foi o pavor que se apoderoudos moradores do pavilhão da criadagem, que, quem tinha velas, acendia-as

diante do ícone. Quem estava sozinho no seu "recanto", ia ao vizinho pedir  permissão para pernoitar onde houvesse mais gente, e aqueles que deveriam ir até ao estábulo, simplesmente não o faziam, deixando os pobres dos animaissem ração nessa noite. A água benta, que cada um guardava em frasquinhos,foi toda gasta em poucas horas. Muitos até julgaram ouvir alguém andar, com

  passo pesado, no sótão, e o ferreiro afirmou ter visto um dragão voar diretamente para lá.

 No "recanto" de Polikei não havia ninguém. As crianças e a louca tinhamsido alojadas pelos vizinhos, ficando apenas a criança morta velada por duasvelhinhas e uma peregrina que, com grande fervor, lia os salmos, não por causa do pequeno defunto, mas por todas as desgraças que tinham acabado deacontecer. Era esse o desejo da "bárina". As velhinhas e a peregrinaouviram que toda vez que começava um novo verso dos salmos, a trave dosótão estremecia e alguém gemia. Mas tudo se aquietava de novo às palavrasde "Deus ressuscitará".

A mulher do carpinteiro chamou para junto dela a comadre, e nessanoite, durante a qual nem se deitaram, acabaram com todo o chá que deviachegar para a semana inteira. Também elas ouviram lá em cirna o estalo dastraves e um ruído semelhante ao da queda de sacos.

Os homens que montavam guarda procuravam incutir coragem nos criados,

do contrário teriam morrido de medo. Deitados no vestíbulo, em cima de feno.asseveravam que também ouviam coisas extraordinárias no sótão, embora palestrassem tranquilamente .sobre a convocação para o serviço militar. Aomenino tempo iam mastigando o seu pão, coçavam-se e- de tal formaimpregnavam o vestíbulo com o seu cheiro específico de mujiques, que amulher do car-

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  pinteiro, passando por eles, cuspiu e lhes chamou de "cambada delabregos".

Fosse como fosse, o enforcado continuava pendurado no sótão, e o próprioespírito das trevas parecia cobrir nessa noite o pavilhão dos criados com a suagigantesca asa negra, numa arrepiante demonstração de força, e aproximar-sedas pessoas mais do que de costume. Pelo menos, todos assim sentiam. Nãosei se com razão. Pessoalmente, acho o contrário. Penso que, se um rapazcorajoso, nessa noite terrível, apanhasse uma vela ou lanterna e, benzendo-se(ou mesmo sem benzer-se), fosse até o sótão, afastando aos poucos à suafrente, graças à luz da vela, o horror daquela noite, iluminando as traves, aareia e o cano da chaminé coberta de teias de aranha e a mantilha que ali amulher do carpinteiro deixará cair e ali ficara esquecida, e chegasse assim

até Polikei, e, talvez, vencendo o medo, levantasse a lanterna à altura do rostodele, nada mais veria do que o seu conhecido corpo magro cujos pés tocavamo chão (a corda havia afrouxado um pouco) e que inclinava, inanimado, paraum lado, com o colarinho da camisa desabotoada, debaixo da qual não se vianenhuma cruz, e a cabeça a pender sobre o peito, e o bondoso rosto com os

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olhos abertos sem nada verem, e aquele sorriso suave e culpado, e umaaustera quietude e silêncio envolvendo tudo. Fora de dúvida, a mulher docarpinteiro, encolhida no canto da cama, os cabelos desgrenhados, os olhosarregalados, enquanto contava que ouvia o ruído de sacos tombando lá emcima, tinha um aspecto muito mais apavorante o horrível do que Polikei,

apesar de este estar sem cru/ sobre o peito, por havê-la tirado antes ecolocado sobre a trave.

Em cima, quer dizer, na casa da senhora, reinava o mesmo pavor queentre a criadagem. O aposento ila "bárina" cheirava a água de colónia eremédios. Duniacha ocupava-se em aquecer cera amarela e preparar umemplastro. Para quê o emplastro é coisa que não sei dizer. Sei apenas queela sempre fazia emplastros quando a senhora estavam enferma. E agora a

 patroa mostrava-se tão perturbada que se siMitia doente. Para lhe incutir coragem veio a tia de Duniacha pernoitar com ela. Junto com mais uma criadade quarto, estavam todas as quatro recolhidas no quarto das criadas econversavam em voz baixa.

- Quem é que vai buscar óleo? — perguntou Duníaeha.

  Não vou por preço nenhum, Avdótia Mikhailov-na! —- respondeudecidida a segunda criada.

- Ora, ora, vai com Aksiutka.

Vou sozinha, pois não tenho medo de nada — Aksiutka, masimediatamente amedrontou-se.

- Então, vai, menina corajosa. Pede óleo à vovó e traze-o num copo, semderramar pelo caminho — falou Duniacha.

Aksiutka arrebanhou a saia com uma das mãos, e já não podendo abanar asduas, movimentou a outra

com ta nt o m aio r fo rça, sem pre em sen tid o o blíq uo à suad ireção , e pôs-se a correr . Estava apavorada, dominada pe lasensação de que, se visse ou ouvisse qualquer coisa pela frente,n em q ue fo ss e su a p róp riam ãe , e la m orre ria d e m ed o.Semicerrou os o lhos epart iu como uma f lecha pelo caminho jáconhecido.

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— Madama es tá do rmindo ou não? — perguntoude repenteuma profunda voz de homem, bem juntono ouvido de Aksiutka.

Esta ar rega lou os o lhos semicerrados e deu comuma f igurade h om em qu e lh e pa rece u m ais alta doque a casa dacr iadagem. Soltou um gr i to e recuou, largando a mão da saia.Com um pulo a lcançou opatamar, com mais outro pulo entrou

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no q ua rt o d as c ria da s, e e nt ão a tiro u -s e s ob re a c am a erompeu num berre iro medonho.

Dun iacha , sua t ia e a outra c riada sentiram um arrep io naespinha, mas não t iveram tempo de se refazer, pois logo ouvirampassos pesados, lentos e indec isos at ravessarem o vestíbulo epararem diante daporta.

Duniacha correu para junto da senhora, deixandocair- a ceraderret ida. A outra cr iada escondeu-se pordeitas das sa ias queestavam penduradas na parede, enquanto a t ia , mais decid ida,quis segurar a porta,m us e s t a se a b r iu e um m u j i que en t ro uno qu art o. EraDutlov, com as suas enormes alpercatas de f ibratruncad a. S em da r a m enor a tenção ao p avo r d as m ôças,procurou com os olhos o ícone, e não perceben-

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do a pequena imagem colocada no canto esquerdo, fez o sinalda cruz em direção ao armàriozinho das xícaras, colocou ogorro no peitoril da janela e, enfiando a mão profundamente nasua pelica, como se quisesse coçar-se debaixo das axilas,retirou de lá um envelope com cinco sinetes avermelhados querepresentavam âncoras. A tia de Duniacha apertou a mãocontra o peito e a muito custo proferiu:

 —  Que susto me pregaste, Naumitch Dutlov! Mal consigodizer uma pá...palavra. Pensei que tinha chegado a minha

hora! —  Como é que se pode fazer uma coisa dessas? — disse aoutra criada, aparecendo por trás das saias.

 —  Assustaste até a senhora — disse Duniacha, voltandoao quarto naquele instante. — Que é que vens fazer noquarto das criadas sem te anunciar primeiro? Um verdadeiromujique!

Sem pedir desculpa, Dutlov explicou que tinha urgência emver a senhora.

— Ela não está passando bem — disse Duniacha. Nesse

instante Aksiutka rompeu numa gargalhadatão indecentemente alta que teve de esconder de novo acabeça debaixo do travesseiro e durante uma hora, apesardas arneaças de Duniacha e da tia, 'não conseguiu mais retirara cabeça dali sem estourar de rir. O susto que todas levaramparecia-lhe tão engraçado que voltava a esconder a cabeça,sacudia os sapatos como se estivesse presa de convulsões eestremecia por todo o corpo.

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Dutlov parou, fitando-a atentamente, como se procurassecompreender o que se estava passando com .a menina. Mas,como não conseguiu entender nada, desviou os olhos eprosseguiu:

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- Trata-se de um assunto importantíssimo — falo u – Dizeapenas à madama que um camponês achou o dinheiro. — Quedinheiro?

Antes de ir falar à senhora, Duniacha leu o endereço noenvelope e quis saber de Dutlov onde e como achara essedinheiro que Ilitch Polikei devia ter trazido da cidade. Tendo-se informado de todas as mi-imeias e mandado para ovestíbulo a pequena dos reendos que não parava de explodirem sucessivas risadas, Duniacha foi ter com a senhora. Mas,para enorme estranheza de Dutlov, madama não o quisreceber, nem mesmo deu uma resposta satisfatória aDuniacha.

- Não sei de nada, nem quero saber — disse a senhora, —que camponês e que dinheiro são esses! Não posso e nãoquero ver ninguém. Que me deixe em paz!

- E agora, que vou fazer? — disse Dutlov, virando erevirando o envelope na mão. — É um bocado de dinheiro.Que é que está escrito aqui? — perguntou a Duniacha quenovamente leu o endereço.

Dutlov pareceu não acreditar ainda. Tinha a esperança deque o dinheiro não fosse da madama e que não lhe tivessemlido direito o endereço. Mas Duniacha tornou a confirmá-lo. Elesuspirou, enfiou novamente o envelope e fez menção deretirar-se.

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 —  Neste caso, vou ter que en tregá-lo no dis trito — disse. —  Espera, vou tentar mais uma vez, — falou Duniacha que

acompanhara o desaparecimento do envelope sob a pelicado camponês. — Dá-me a carta.Dutlov retirou-a de novo, mas sem entregá-la imediatamente

a Duniacha que já tinha esticado a mão.

 —  Dize a madama que Semion Dutlov a encontrou naestrada.

 —  Ora, passa cá a carta de uma vez! —  Pensei primeiro que fosse uma simples carta, mas umsoldado leu que continha dinheiro.

 —  Vamos, me dá a carta! —  E eu não t ive coragem de i r para casa pr imeiro —

continuou Dutlov, sem se separar do precioso envelope. —Dize isso a madama.Duniacha tomou do envelope e foi novamente ver a senhora.

 —  Ó meu Deus do céu, Duniacha! — falou a senhora emtom de censura. — Não me fales mais nesse dinheiro! Quando

me lembro daquela criancinha... —  Senhora, o camponês não sabe a quem entregar odinheiro — explicou Duniacha.A senhora abriu o envelope, estremeceu ao ver» o dinheiro e

ficou pensativa.

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 —  Dinheiro terrível! Quanta desgraça causa! — disse. —  Foi Dutlov quem o achou, senhora. Vou mandá - lo

embora, ou a senhora vai querer falar com ele?

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Será que o d inhe iro ainda est á i nta to? — pergun touDuniacha.

Não quero este dinheiro. É um dinheiro terrível. Quantomal já causou! Dize-lhe que fique com o dinheiro, se quiser —disse de repente a senhora, procurando a mão de Duniacha. —Sim, sim, sim, — n-poliu para a perplexa Duniacha. — Quefique com o dinheiro e faça dele o que bem entender.

 –  São mil e quinhentos rublos — observou Duniacha,sorrindo de leve, como se faz com as crianças.

 –  Que guarde o dinheiro — repetiu a senhora jáimpaciente. — Não me entendeste? É dinheiro mal fadado,nunca mais fale dele. O camponês que o achou, que oguarde. Vai, vai depressa!

Duniacha voltou ao quarto das criadas.

 —  Então não está faltando n ada? — perguntou Dutlov. —  Conta-o tu mesmo — disse Duniacha, entregando-lhe o

envelope. — A senhora mandou que to entregasse.Dutlov enfiou o gorro sob o braço e, curvando-se, começou a

contar.

— Não há por aqui um ábaco? — perguntou o camponês.

Dutlov entendera que a senhora não sabia contar e por issomandara que ele contasse o dinheiro.

— Va i con ta r o d inhe iro em casa. O d inhe iro é teu. Odinheiro é teu! disse Duniacha zangada. — "Não quero vê-lo,e que o dinheiro fique com quem o achou", foi o que ela disse.

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Dutlov, continuando curvado, arregalou os olhos paraDuniacha, enquanto a tia levantava as mãos ao céu:

— Minha mãezinha querida, isto é que é ter sorte! ó minhamãezinha querida!

A segunda criada não quis acreditar:

 —  Que é isso? Avdótia Mikhailovna estará brincando? —  Ora essa, brincando! Ela mandou entregar o

dinheiro ao mujique... Então, toma o dinheiro e vai embora

— falou Duniacha, não disfarçando o seu aborrecimento.— A morte de um, a sorte de outro. —  Não é brincadeira: mil e quinhentos rublos! — disse

a tia. —  Mais ainda — confirmou Duniacha. — Bem, e agora

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podes mandar acender uma vela de dez copeques a SãoNicolau — acrescentou Duniacha em tom zombeteiro. —Então, ainda não voltaste a ti? Se ao menos fosse um pobrediabo a receber todo esse dinheiro. Mas este já tembastante!

Só então Dutlov compreendeu finalmente que não setratava de brincadeira. Começou a juntar e a meter odinheiro no envelope, pois tinha-o espalhado para contar. Tremiam-lhe as mãos, e a todo instante olhava para as moçaspara certificar-se de que r?ão estavam zombando dele.

— Vejam só, perdeu a cabeça de tão contente — observouDuniacha, querendo mostrar que ela desprezava tanto omujique como o dinheiro. — Deixa que eu ajudo a juntá-lo denovo.

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E fez menção de apanhá-lo. Mas Dutlov não deixou.Amassando as notas enfiou-as dentro do envelope e npnnhouo gorro.

 –  Então, estás satisfeito? –  Nem sei o que dizer! É como se...Não terminou a frase, fez apenas um gesto com a mão,

sorriu, quase chorou e saiu.

No quarto da senhora ressoou a campainha.

- Então, entregaste-lhe o dinheiro?

 –  Sim, senhora. –  E ele... ficou satisfeito?

 —  Pareceu até louco. —  Ah, chama-o. Quero perguntar-lhe como o encontrou.

Manda-o vir aqui, pois não posso sair.Duniacha correu e foi encontrar o camponês ainda no

vestíbulo. Antes mesmo de colocar o gorro tinha tirado abolsa e, meio curvado, estava desamarrando os cordéis da

bolsa, enquanto segurava o dinheiro entre os dentes. Talvezachasse que, enquanto não estivesse dentro da bolsa, odinheiro não lhe pertencia. Levou um susto quando Duniachao chamou.

— Que é, Avdótia? Ela quer o dinheiro de volta? Por quenão disseste uma palavrinha em meu favor? Eu te vou trazermel de presente daqui a alguns dias.

— Ah, sim, já conheço essa conversa!

A porta tornou a abrir-se e conduziram o mujique à

presença da senhora. Dutlov não se sentia à vontade. "Agoramesmo ela vai voltar atrás!" pensava consigo mesmo e,enquanto caminhava, levantava as

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pernas como se estivesse andando num capinzal alto,esforçando-se por não fazer ruído com os seus sapatos de fibratrançada ao atravessar os aposentos. Dutlov não via nementendia nada do que se passava à sua volta. Passou por umespelho, viu umas flores, um camponês em alpercatas de fibratrançada que levantava terrivelmente alto as pernas, umretrato de um senhor com monúculo, uma tina verde e algobranco. De repente, essa coisa branca começou a falar: era a"bárina". Ele não entendia uma palavra, só arregalava os

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olhos. Nem sabia onde estava e tudo lhe parecia envolto emneblina.

 –  Então, és o Dutlov? –  Sou eu mesmo, senhora. Está como o encontrei. Não

toquei nele — disse. — Eu mesmo não estou nadasatisfeito, por Deus! E como cansei o meu cavalo !

 –    Tiveste sorte — disse ela com um sorriso meioescarninho, meio bonacheirão. — Fica com ele.

Dutlov só arregalava os olhos.

 –  Estou contente em saber que o dinheiro coube a ti.Queira Deus que te faça bom proveito. Então, não estáscontente?

 –  Como não! Estou tão contente, mãezinha! Hei depedir a Deus pela senhora em todas as minhas orações.Estou tão contente que a senhora esteja viva, graças a

Deus. Afinal, não fiz nada demais. –  Como foi que o achaste? –  Estamos sempre prontos a fazer tudo pela nossa

"bárina", e não...

 —  Ele está completamente tonto, e já nem sabe o que diz— observou Duniacha.

 —  Eu tinha levado o meu sobrinho recruta, e estavavoltando para casa, e então o achei na estrada. Ilitch Polikeicom certeza deixou-o cair sem querer.

 —  Bem, vai, vai andando, meu caro . Estou satisfeita.— Estou tão feliz, mãezinha!... — dizia o mujique. Lembrou-se depois que nem sequer tinha agradecido direito, e não secomportara como devia.

A senhora e Duniacha sorriram e lá se foi ele novamente,andando como se caminhasse num capinzal e contendo-separa não partir a galope. Parecia-lhe que, a qualquermomento, o fariam parar e lhe tirariam o dinheiro...

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Quando se viu ao ar livre, Dutlov afastou-se do caminho eandou em direção às tílias. Ali tirou o cinto para alcançar abolsa e guardar o dinheiro. Os lábios moviam-se parafrente e para trás, mas sem produzir ruído algum. Tendoguardado o dinheiro e reposto o cinto, fez o pelo-sinal e,ziguezagueando feito um bêbedo retomou o caminho. Como

torrentes, os pensamentos vinham-lhe à cabeça e deixavam-no perturbado. De repente viu à sua frente um mujique quelhe vinha ao encontro. Chamou-o. Era Efimka que, com umporrete na mão, montava guarda junto ao pavilhão dacriadagem.

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— Ah, tio Semeon — exclamou Efimka satisfeito echegando mais perto. (Sozinho ali, Efimka sentia-se meioacabrunhado.) — Então, despachaste os recrutas, tiozinho?

- Despachei-os. E tu, que estás fazendo aqui? •—

Designaram-me para montar guarda para o en-f orçado.

- Onde e le es tá?

- Lá em c ima , no só tão . D izem que es tá pendurad o i m p l i c o uE f i m k a , a p o n t a n d o c o m o p o r r e t e p a r a o t e l h a d oda casa doscr iados , ime rsa na escur idão .

Dutlov olhou na direção indicada e, embora não visse nada,fez uma careta, semicerrou os olhos e meneou a cabeça.

 —  A polícia já chegou, — acrescentou Efimka — foi ococheiro quem me contou. Agora mesmo vão tirá-lo lá decima. Que coisa medonha, no meio da noite, tiozinho. Nempor nada eu ia lá para cima, mesmo que me mandassem.Nem que legor Mikhailovitch me matasse eu não iria.

 —  Que pecado, que grande pecado! — murmurou Dutlov,evidentemente para salvar as aparências, sem no entantopensar no que estava dizendo, e dispôs-se a continuar seucaminho. Mas a voz de legor Mikhailovitch o fez parar.

 —  Olá, guarda, vem cá! — gritava legor Mikhailovitch do

patamar.Efimka respondeu.

 —  Que mujique era aquele que estava parado aí? —  Dutlov. —  Então, Semeon Dutlov, vem cá também.

Aproximando-se, Dutlov distingiu, à luz da lanterna segurapor um cocheiro, legor Mikhailovitch e um funcionário baixoteque usava capote e trazia uma insígnia no boné: era o polícia.

— O velho também vem conosco — disse legorMikhailovitch ao ver Dutlov.

Este fez uma careta, mas teve que conformar-se.

— E tu, Efimka, vai depressa ao sótão onde está o enforcadoe ajeita a escada para que Sua Senhoria possa subir.

Efimka que, por preço algum, queria aproxímai1-se dopavilhão dos criados, despachou-se para lá, batendo com asalpercatas no chão como se fossem de madeira.

O representante da polícia bateu o isqueiro e acendeu ocachimbo. Morava a duas verstas (*) do lugar e tinhaacabado de sofrer uma enérgica reprimenda do seu superiorpor embriagar-se de vez em quando. Daí o seu momentâneozelo pelo cumprimento do dever. Chegara às dez horas danoite e fez questão de ver o suicida imediatamente.

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legor Mikhailovitch quis saber de Dutlov o que é que eleestava fazendo ali àquela hora. Enquanto caminhavam, Dutlovcontou ao administrador como tinha achado o dinheiro e qualhavia sido a decisão da senhora. Disse também que vinhasolicitar o consentimento dele, legor Mikhailovitch, para

guardar o dinheiro. Para desespero de Dutlov, oadministrador quis ver o envelope. O representante da polícia,por nua vez, também apalpou o envelope e, em termoslacônicos e secos, pediu detalhes.

"Lá se foi o meu dinheiro!" — pensou Dutlov c começou adesculpar-se. Mas o polícia restituiu-lhe as notas.

- Que sorte teve este pateta! — disse.

Veio bem a propósito — comentpu legor Mikhailovitch. —Ele acaba de levar o sobrinho para o quartel. Agora vai remi-lo.

• Versta medida russa, corresponde a 1.138 m. — N. T.

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 —  Ah! — murmurou o polícia e foi andando. —  Vais agora remir o Iliuchka, não vais?

 —  Como posso remi-lo? Será que este dinheiro chega? Talvez até seja tarde demais.

 —  Como quiseres — disse o administrador e ambos foramandando atrás do polícia.

Chegaram ao pavilhão da criadagem em cujo vestíbulo os

guardas mal cheirosos estavam esperando com uma lanterna.Dutlov acompanhou-os. Os guardas traziam na fisionomia umaexpressão de culpa, talvez pelo mau cheiro que espalhavam,pois não tinham feito mal algum. Todos mantinham-se emsilêncio.

 —  Onde é? — indagou o polícia. —  Aqui mesmo — disse baixinho legor Mikhailovitch. E

acrescentou: — Efimka, que és o mais moço, vai na frentecom a lanterna,Efimka reajustara entrementes uma prancha do assoalho

que se havia deslocado. Parecia ter perdido todo o medo.Subiu rápido a escada, de dois em dois degraus, precedendo osoutros com cara alegre, e apenas olhava de vez em quandopara trás, enquanto iluminava com a lanterna o caminho paraos demais. Atrás do polícia subiu legor Mikhailovitch. Sóquando os três já haviam desaparecido no sótão é que Dutlovresolveu pôr um pé no degrau. Suspirou e parou. Decorreramuns dois minutos. Os passos dos outros já não se ouviam nosótão. Certamente eles se tinham aproximado do cadáver.

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- Tio, estão te chamando! — gritou Efimka lá de cima.

Dutlov subiu. Do polícia e de legor Mikhailovitch só se via aparte superior do corpo atrás da trave, iluminados pela luz da

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lanterna. Atrás deles acha vase mais alguém, de costas. EraPolikei. Dutlov passou por cima da trave, benzeu-se e parou.

- É preciso virá-lo, gente! — disse o polícia. Ninguém semexeu.

- Efimka, és o mais moço... — observou legor Mikhailovitch.

O jovem passou por cima da trave, virou Polikei c postou-se do lado dele, olhando com a expressão mais divertida orapara Ilitch ora para o funcionário, como um exibicionista decirco que apresenta um ;a lb in o ou uma Júlia Pastrana,olhando ora para o publico, ora para a sua atração, pronto asatisfazer todos os desejos dos espectadores.

- Vira-o mais uma vez!

Ilitch Polikei foi virado novamente. Os braços do defuntomexeram-se levemente, enquanto arrastava o:; pós sobre aareia.

Pronto, podemos tirá-lo.

- Convém cortar a corda, t^assilii Borissovitch?Perguntou-lhe legor Mikhailovitch. — Alguém vá buscar omachado!

Foi preciso repetir a ordem duas vezes, para que osguardas e Dutlov pusessem mãos à obra. O moço,

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porém, lidava com Polike i como se fosse um cadáver decarneiro. Levaram algum tempo para cortar a corda, descer odefunto e cobri-lo. Então disse o polícia que no dia seguinte viriao médico, e despachou o pessoal.

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Mexendo com os lábios, Dutlov encaminhou-se para casa.Estivera apavorado a princípio, m as à m edida qu e seaproximava da aldeia, esse sentimento abandonáva-o e umacrescente alegria invadia-lhe a alma. Vinham-lhe ao encontro osom de canções e vozes de bêbedos. Dutlov, que não bebianunca, d irigiu-se direto para casa.

  Já era tarde quando entrou no seu aposento. A velhaestavadormindo. O filho mais velho e os netos dormiam sobre a estufa,e o segundo fi lho num quartinho ao lado. Só a mulher de I l ia

ainda estava acordada. Sentada num banco, com a camisaimunda e nada domingueira, os cabelos desgrenhados, e lachorava. Não fo i abr i r a por ta para o t io , e pôs -se a chorara inda ma is a lto e a l amentar- se quando e le en trou. Na

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opin ião da velha, e la já se lamentava muito bem, embora,pela idade , ainda não pudesse ter muita prática nisso.

A velha levantou-se e foi preparar uma ceia para o marido.Dutlov enxotou a mulher de fila da mesa.

Chega! Chega! — disse. Aksinia cedeu o lugar, deitou-seno banco e não parou mais de chorar. Sem dizer palavra, avelha

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pôs a mesa, e, da mesma maneira, tirou depois os restos. Também o velho não disse nada. Depois de fazer a oração degraças arrotou, lavou as mãos e, apanhando o ábaco daparede, foi para o quarto. Ali ficou a falar muito baixinho coma velha, então esta saiu do quarto e ele pôs-se a trabalharcom o ábaco. Finalmente ouviram-no bater a tampa do baú,e descer para o porão, onde se manteve ocupado por muitotempo. Quando voltou, já estava escuro, e a lasca de madeiraque servia para iluminar o aposento, tinha-se apagado. Avelha, habitualmente muito quieta de dia a ponto de passarquase despercebida, já pegara no sono e roncava alto. Abarulhenta mulher de Ilia, por sua vez, estava dormindo, mas

tão de mansinho que nem mesmo a sua respiração estavaaudível. Adormecera como estava, deitada em cima do banco,com a roupa do corpo e sern nada colocar debaixo da cabeça.

Dutlov fez sua oração da noite e, depois de lançar um olharà mulher de Ilia, meneou a cabeça. Em seguida apagoucompletamente a lasca, arrotou mais uma vez, subiu a estufa eacomodou-se ao lado do netinho. No escuro, e de cima daestufa, atirou as alpercatas para o chão e deitou-se de costas,ficando a olhar a trave que passava por cima de sua cabeça eestava mal visível no escuro. Enquanto o sono demorava achegar, prestava atenção ao ruído que faziam as baratasexcursionando pela parede, aos suspiros, aos roncos, ao roçarde uma perna em outra, e aos ocasionais movimentos dosanimais no pátio. Então

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nasceu a lua, iluminando um pouco o aposento. Dutlovcomeçou a distinguir Aksinia deitada no banco e algo que, aprincípio, não conseguia identificar: seria a túnica que o filhohavia esquecido? Era uma tina que as mulheres teriamcolocado ali? Ou, quem sabe, alguém estaria parado ali nocanto? Talvez Dutlov já tivesse adormecido.... Não obstante,voltava a fixar o olhar naquele canto... Sem dúvida o mesmoespírito maligno que induzira Polikei a fazer aquela coisaterrível e cuja proximidade os criados estiveram sentindo nessa

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noite, aquele espírito agora vinha estender suas asas sobre acasa de Dutlov onde se encontrava o dinheiro que "ele" tinhausado para desgraçar Ilitch Polikei. Pelo menos, Dutlov o"sentia" ali e não se achava nada à vontade. Não conseguiadormir, nem se levantar. À vista de algo que não sabia

identificar, vieram-lhe sucessivamente à lembrança Ilia com asmãos amarradas, o rosto de Aksinia e seus comoventeslamentos, e Polikei com os braços a balançar. De repente ovelho teve a impressão de alguém a passear perto da janela.Quem seria? O .stárosta teria vindo prendê-lo? Mas como teriaconseguido abrir a porta? — refletia o velho ao ouvir passos novestíbulo. Ou a velha teria, depois de sair, esquecido defechar a porta do vestíbulo?

Lá fora um cachorro pôs-se a uivar, e "ele" andava novestíbulo (conforme o velho depois contou) como seprocurasse a porta. Passou por ela, começou novamente a apalpar a

parede, tropeçou na tina que caiu com estrondo. E de novo"ele" começou a apal-

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par, como se procurasse o ferrolho. Então alcançou o ferrolho.O velho sentiu uma onda de frio percorrer-lhe o corpo. "Ele"puxou o ferrolho e entrou sob forma humana. Agora Dutlov jásabia que era "ele". Quis fazer o sinal-da-cruz e nãoconseguiu. "Ele aproximou-se da mesa sobre a qual havia umatoalha. Arrancou-a dali, atirando-a ao chão e ia subir à estufa.

Então o velho percebeu que "ele" assumira a figura de Polikei."Ele" arreganhava os dentes e os braços bamboleavam-lhe.Então "ele" subiu à estufa, atirou-se em cima do velho ecomeçou a estrangulá-lo.

 —  "Meu dinheiro" — gritava Polikei. —  "Larga-me! Não quero o teu dinheiro" — que

ria dizer Dutlov, porém as palavras morriam-lhe nagarganta.

Polikei sufocava-o como se uma montanha de rochaestivesse a pesar-lhe sobre o peito. Dutlov sabia que, seconseguisse proferir uma oração, ficaria livre d'"êle", e sabiatambém qual era a oração que devia pronunciar, masnenhuma palavra lhe saía dos lábios. A seu lado o netodormia. Mas, de repente, o menino soltou um grito e começoua chorar: o avô apertara-o contra a parede. O grito da criançalibertou a língua do velhq "Deus ressuscitará" — disáe Dutlova cus|o, e então "ele" afrouxou um pouco. "E seus inimigosserão derrotados"... balbuciou Dutlov. "Ele" desceu de cima daestufa. Dutlov ouviu-o bater com ambos os pés no chão.Continuou a rezar todas as orações conhecidas, uma atrás daoutra. "Ele" se dirigiu para a porta, passando junto da mesa eentão bateu a porta com tamanha violência que toda a casa

estremeceu. Não obstante, à exceção dele e do netinho todosdormiam profundamente. O avô rezava e tremia por todo ocorpo, enquanto no neto voltava a adormecer, chorando aindabaixinho e chegando-se mais ao velho.

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Novamente tudo se aquietou. Dutlov mal se mexia. Do outrolado da parede, junto ao ouvido do velho, um galo cantou.Algumas galinhas se alertaram e um frango tentou cantartambém, mas não o conseguiu. Algo se mexeu aos pés deDutlov: era a gata que, com as patinhas macias, saltou de

cima da estufa e foi miar junto à porta.Dutlov levantou-se e abriu a janela. A rua estava escura e

suja. Junto à janela divisou a parte dianteira de uma carroça.Descalço e persignando-se, saiu a ver os cavalos, e percebeuque "ele" também estivera por ali. Uma égua que estava sob oalpendre, junto à mangedoura, tinha emaranhado as patasnos arreios, derrubado a forragem e, com uma pata levantadae a cabeça voltada, parecia à espera do dono. Um potro caírapara dentro do estrume. Dutlov ergueu-o dali, em seguidadesemaranhou a égua, deu-lhe de comer e voltou para denft-ode casa.

Entrementes, a velha se levantara e a*cendera uma lasca depinho.

— Vamos, pessoal, é hora de levantar! Tenho que ir cedo àcidade — disse Dutlov.

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Acendeu uma vela diante dos ícones e desceu com ela aoporão. Ao voltar viu que também os vizinhos já estavam comas luzes acesas. Os rapazes, de pé, preparavam-se para aviagem, enquanto as mulheres saíam e entravam com baldesde leite. Ignat andava ocupado em atrelar um cavalo a umadas carroças, enquanto o segundo filho lubrificava a outra. A

  jovem mulher de Ilia já não chorava. Tinha-se arrumado ecoberto a cabeça com um chalé, e estava sentada num bancoà espera da hora de ir à cidade e despedir-se do marido.

O velho parecia excepcionalmente austero. Sem dizer umaúnica palavra a quem quer que fosse, vestiu o cafetã novo,cingiu-se e, levando todo o dinheiro de Polikei guardado sobre opeito, foi ter com legor Mikhailovitch.

— Anda depressa! — gritou para Ignat que fazia girar asrodas em torno do eixo levantado e já lubrificado. — Volto jáe quero encontrar tudo pronto!

O administrador tinha acabado de levantar-se e estavatomando chá para ir também à cidade e entregar os recrutas.

 —  Que queres? — perguntou. —  legor Mikhailovitch, quero remir o rapaz. Faça-me este

favor. O senhor me disse noutro dia que conhecia umsubstituío. Diga-me o que devo fazer, porque não entendodestas coisas. —  Então, mudaste de ideia?

 —  Mudei, legor Mikhailovitch, e estou penalizado. É sempreo filho de meu irmão. Seja como for, tenho

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pena. Este dinheiro já causou muitos pecados. Faça-me estefavor, e explique-me o que devo fazer — disse inclinando-seaté à altura do cinto.

legor Mikhailovitch, como sempre fazia em tais ocasiões,

ficou estalando os lábios por algum tempo e parecendo imersoem profundos pensamentos. Então, havendo chegado a umaconclusão, escreveu dois bilhetes e explicou o que seriapreciso fazer na cidade.

Quando Dutlov voltou para casa, a jovem mulher de Ilia játinha partido com Ignat, e a égua ruça e gordinha já oesperava atrelada junto ao portão. Arrancou uma vara dacerca, aconchegou-se no seu capote, subiu ao carro e fez aégua partir, fustigando-a. Torturava-o a ideia de chegar tardeao posto de recrutamento; que Ilia fosse alistado de qualquermaneira e que o maldito dinheiro lhe ficasse nas mãos.

Não vou descrever em minúcias todas as aventuras vividaspor Dutlov nessa manhã. Direi apenas que foi muitíssimo bemsucedido. O hospedeiro, para quem legor Mikhailovitchescrevera o bilhete, tinha efeti-vamente um recruta àdisposição que estava devendo vinte e três rublos e já tinhasido aceito pelas autoridades como apto para o serviço militar.O hospedeiro queria por ele quatrocentos rublos, mas certocomprador, pequeno burguês, que na mais de quinze diasvinha se mostrando interessado na compra do recruta, queriapor força que o hospedeiro lhe cedesse o homem por apenas

trezentos rublos. Chegou Dutlov e fechou o negócio com duaspalavras:

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— Queres trezentos e vinte e cinco? — disse e estendeu-lhea mão. Mas pela sua expressão via-se logo que ele estariadisposto a pagar mais.

O hospedeiro repeliu a mão estendida de Dutlov, insistindosobre os quatrocentos.

— Então não queres os trezentos e vinte e cinco? - repetiuDutlov, procurando apanhar a mão esquerda do hospedeiropara colocar sobre ela a sua mão direita. — Não queres?Então, em nome de Deus! — disse de repente, batendo com asua mão na do hospedeiro e voltando-lhe rapidamente ascostas. — Parece que não há outro remédio. Toma trezentos ecinquenta e passa-me o recibo. Traze-me aqui o rapaz. E aquitens o sinal. Duas vermelhinhas bastam, não é?

A estas palavras Dutlov desamarrou o cinto para apanhar odinheiro.

O hospedeiro, embora não retirasse a mão, parecia aindanão estar completamente de acordo. Não queria receber o sinale ainda falava num presente para o recruta, e nahospedagem dele.

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— Cuidado, não cometas pecado! — advertiu Dutlov,empurrando insistentemente o dinheiro. — Todos temos quemorrer — acrescentou num tom suave, persuasivo e firme,que o hospedeiro respondeu:

- Bem, então não há mais nada a fazer! — e, batendo denovo na mão de Dutlov, disse em tom de prece: — Deusesteja conosco nessa hora!

Foram acordar o voluntário que ainda estava ferrado no sonoem consequência da bebedeira da véspera,

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examinaram-no da cabeça aos pés, e dali todos se dirigiram aoposto de recrutamento. O recruta se mostrava alegre, pediarum para curar a ressaca (Dutlov passou-lhe algum) e sócomeçou a amedrontar-se quando entraram no vestíbulo doposto.

Durante um bocado de tempo o velho hospedeiro desobrecasaca azul e o voluntário que usava uma pelicacurtinha ficaram parados no vestíbulo, com as sobrancelhasfranzidas e os olhos escancarados, cochichando e parecendoquerer procurar alguém. Entraram e diante de cada escrivãotiravam o boné. Por fim, profundamente inclinados, foram ouvira decisão de um dos escrivães que era conhecido dohospedeiro. Já tinham perdido toda a esperança de liquidar

o negócio naquele mesmo dia e o voluntário começava a ficaralegre novamente e falaz, quando Dutlov, de súbito, enxergoulegor Mikhailovitch. Imediatamente se agarrou a ele para lhepedir e suplicar sua ajuda. De fato, legor Mikhailovitch ajudoucom tanta eficiência que, por volta das três da tarde,introduziram o voluntário, bastante contrariado e perplexo, noescritório de recrutamento. Apresentaram-no ao respectivofuncionário e, em meio a uma alegria geral que atacou atodos, desde o guarda até o presidente da mesa, despiram erasparam o rapaz, voltaram a vesti-lo e o fizeram sair pelame^sma porta por onde haviam entrado.

Cinco minutos depois Dutlov entregou o dinheiro já contado,apanhou o recibo e, tendo-se despedido do hospedeiro e dovoluntário, foi à casa do negocian-

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te onde se encontravam acomodados os sorteados dePokrovskoie. Ilia, juntamente com sua jovem mulher estavasentado num canto da cozinha, e nial o velho entrou, ambospararam de falar, lançando-lhe olhares ao mesmo temposubmissos e rancorosos. Como sempre, o velho rezou primeiro

diante dos sagrados ícones. Em seguida, afrouxou o cinto,fazendo aparecer um papel, e chamou o filho mais velho, Ignate a mãe de Ilia que se achavam no pátio.

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— Não tornes a pecar, Ilia! — disse, caminhando em direçãoao sobrinho. — Ontem à noite me disseste palavras rudes...Por acaso não tenho pena de ti? Ainda estou lembrado dequando teu irmão te confiou aos meus cuidados. Se tivessedependido de mim, acaso eu permitiria que fosses recrutado?

Deus acaba de favorecer-me, e eu não me importo de abrirmão do dinheiro. Aqui tens o papel — disse, colocando orecibo em cima da mesa e alisando-o cuidadosamente com osdedos tortos.

 Todos os camponeses de Pokrovskoie, que se achavam nopátio, os criados do negociante e até algumas pessoasestranhas foram entrando na sala e adivinhando do que setratava. Mas ninguém interrompia o solene discurso do velho.

— Aqui está o papel! Ele me custou quatrocentos rublos. Eagofa não voltes a falar do teu tio!

Ilia ergueu-se, mas continuou calado, sem saber o que dizer.Os lábios tremiam-lhe de emoção. Sua velha mãe aproximou-se, soluçando, e querendo lançar-se ao pescoço do filho. Mas ovelho afastou-se lenta e autoritariamente para o lado econtinuou falando.

— Ontem me disseste palavras rudes — repetiu — e comessas palavras me apunhalaste o coração. Teu pai, ao morrer,te confiou a mim. Eras para mim como um filho, e se poracaso alguma vez te ofendi, é porque todos somos uns

pobres pecadores. Não é assim, gente ortodoxa? — perguntoudirigindo-se aos camponeses que se haviam aglomerado emredor.

— E tua mãezinha está aqui também, e tua jovem mulher.Eis o recibo. Que me importo eu com o dinheiro? Perdoai-me,em nome de Jesus Cristo!

E afastando para os lados as pontas inferiores do seu capote,deixou-se cair lentamente sobre os joelhos aos pés de Ilia esua mulher.

Em vão os jovens procuraram impedir o gesto do velho. Elenão se levantou antes de tocar com a cabeça o chão, e sódepois, sacudindo o pó, foi sentar-se no banco. A mãe de Iliae a mulher deste choravam de alegria. Entre os que assistiamà cena ouviam-se vozes de aprovação:

— Assim é que deve ser! Ele agiu de acordo com a lei doSenhor...

-=- De que serve o dinheiro? — observou outro.

 jt 

— Não há dinheiro que compre o rapaz!

— Que grande alegria! — exclamou um terceiro.

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— É um homem justo. Nem se discute!

Só os camponeses sorteados nada disseram. Foram saindopara o pátio em silêncio.

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Duas horas depois, ambas as carroças dos Dutlov deixavam o subúrbio dacidade. Na primeira, puxada pela égua ruça, já de barriga encolhida de fome eo pescoço molhado de suor, estavam o velho e Ignat. Na parte traseira docarro, algumas roscas de pão doce, amarradas umas às outras, pulavam de umcanto para o outro, sacudidas pelos solavancos.

 Na segunda viatura, que ninguém dirigia, estavam sentados, com ar gravee feliz, a jovem esposa de Ilia e a sogra, de lenço amarrado em torno dacabeça. A mulher de Ilia levava debaixo do avental uma garrafinha de

aguardente, enquanto seu marido, encolhido num canto, de costas para ocavalo e o rosto vermelho, comia roscas e não parava de falar. Tudo se fundianum único som alegre; as vozes, o ruído do carro sobre a estrada, oresfolegar dos cavalos. Estes, sacudindo as caudas, trotavam alegres e cadavez mais depressa ao perceber que se dirigiam para casa. Os que por eles

 passavam na estrada, quer estivessem a pé ou viajassem, espontaneamenteficavam a olhar a alegre família.

À saida da cidade, os Dutlov passaram junto de uma leva de recrutasaglomerados diante de uma taverna. Um dos sorteados, com aquela expressão(esquisita que uma cabeça raspada dá às pessoas, o boné cinza empurrado para anunca, tocava com entusiasmo a sua balalaica. Outro recruta, sem boné, comuma garrafa de vodca numa das mãos, dançava no meio da rodinha formadaem seu torno.

Ignat fez parar o cavalo para apertar os tirantes, enquanto os demais Dutlovficavam olhando curiosos para o dançarino, aplaudindo e contagiados pelaalegria. O recruta parecia não ver ninguém, apenas sentindo o público aadmirá-lo, e que crescia cada vez mais, e isso estimulava sua força eagilidade.

Ele dançava admiravelmente. Tinha as sobrancelhas franzidas, o rostocorado, e nele uma expressão de imobilidade. Imóvel estava também o sorrisoque trazia na boca. Todas as forças de sua alma pareciam orientadas no sentidode colocar, com crescente rapidez, um pé diante do outro, ora pelo calcanhar,ora pela ponta. Às vezes parava subitamente, piscava para o tocador de

  balalaica, e este se punha a ferir com maior rapidez as cordas, batendosimultaneamente com os dedos na caixa do instrumento.

O recruta parou. Mas, mesmo imobilizado, parecia estar dançando. E voltouentão a mover-se lentamente, a sacudir os ombros, e de repente deu um salto,deixou-se cair sobre os calcanhares, para, enquanto soltava gritos selvagens,atacar a priciadka (*), lançando as pernas para a direita e para a esquerda.

Os moços riam gostosamente, as mulheres sacudiam a cabeça, e os homenssorriam com aprovação. Um velho suboficial, a pouca distância do dançarino,estava parado tranquilamente com uma expressão que parecia dizer: "Todosestão admirados ôom isso. Nós já conhecemos tais cenas há muito tempo".

(*) A famosa dança popular russa, característica dos cossacos, e que é executada conforme diz o nomeoriginal, em posição quase sentada. — N. T.

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O tocador de balalaica, visivelmente cansado, olhou em torno com ar deindolência, soltou um acorde falso, bateu com os dedos na caixa doinstrumento e com isso a dança terminou.

 —  Olá, Aliocha! — disse o tocador de balalaica para o dançarino,apontando para o velho Dutlov. — Está ali o teu padrinho!

 —  Onde? Oh, meu caro amigo! — gritou Aliocha, que era o mesmo recrutaque Dutlov tinha comprado. E, com as pernas cansadas, cambaleando para afrente e erguendo por cima da cabeça a garrafa de vodca, chegou-se ao carro.

 —  Michka, um copo! — exclamou. — Meu senhor! Meu caro amigo! Ora,que alegria, realmente!... — E com a cabeça tonta caiu para dentro do carro.Em seguida começou a distribuir vodca entre os camponeses e as mulheres.Estas recusavam, enquanto os homens aceitavam. — Minhas queridas, que

 posso oferecer-vos? — gritava Alioca, abraçando-se às velhas. No meio da multidão estava uma vendedora de comestíveis. Apenas Aliocha

enxergou a mulher, arrancou-lhe o taboleiro e despejou todo o seu conteúdo para dentro do carro dos Dutlov.

  — Não tenha medo, que eu pago, diabo! — gritou com voz chorosa, puxando ao mesmo tempo, de um dos bolsos da calça, um maço de dinheiro,atirando-o para Michka.

Os cotovelos apoiados na borda do carro, os olhos úmidos, contemplava osviajantes um por um.

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— Quem é a mãezinha? — perguntou então.— Ah, és tu? Também te quero dar alguma coisa.

Parou para refletir um instante, e então meteu a mão nobolso, tirou dali um lenço novinho, ainda dobrado, desprendeua toalha com que se tinha cingido por baixo do capote,arrancou rapidamente do pescoço o seu lenço vermelho e,depois de juntar tudo num bolo, colocou-o no regaço da velha.

 —   Toma, é teu! — disse com voz cada vez mais apagada. —  Mas, por quê? Muito obrigada, meu caro! Que bom

coração tem este moço! — disse a velha para o velho Dutlovque se tinha aproximado.

Aliocha estava calado, e sua cabeça inclinava-se mais emais, como se fosse adormecer.

 —  É para vós que vou partir, e para vós é que voumorrer... — disse então. — E por isso também vos ofereçocomo presente os meus pertences...

 —  Com certeza ele ainda tem a sua mãezinha —

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camponeses e das mulheres que, cantando alegremente,deixavam-se embalar pelos solavancos da carroça.

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