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 Trabal ho de Conclusão do Curso de Direito Sanitário - IDISA/UNICAMP  André Luiz de Castilho Fonseca T ema Geral: O ente público não-estatal no direito brasileiro Tema Específico: A cons titucionalidade da Lei Municipal 6215/90 que instituiu a cogestão entre a Prefeitura Municipal de Campinas e o Serviço de Saúde Dr. Cândido Ferreira e uma análise comparativa das alternativas de constituição legal desta relação, considerando  particularmente a lei das organizações soci ais (9637/98) e o ser viço social autônomo. Campinas (SP) 2010

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Trabalho de Conclusão do Curso de Direito Sanitário

- IDISA/UNICAMP 

 André Luiz de Castilho Fonseca

Tema Geral: O ente público não-estatal no direito brasileiro

Tema Específico: A constitucionalidade da Lei Municipal 6215/90

que instituiu a cogestão entre a Prefeitura Municipal de Campinas e

o Serviço de Saúde Dr. Cândido Ferreira e uma análise comparativa

das alternativas de constituição legal desta relação, considerando

 particularmente a lei das organizações sociais (9637/98) e o serviço

social autônomo.

Campinas (SP)

2010

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Sumário

Parte I - Uma apresentação do Serviço de Saúde Dr. Cândido Ferreira …..... pg. 1

Parte II – O Público versus o Estatal versus o Privado....................................... pg. 7

Parte III – Sobre a natureza jurídica das entidades paraestatais....................... pg. 14

1) As entidades paraestatais........................................................................ pg. 14

2) Os Serviços Sociais Autônomos.............................................................. pg. 18

3) As Organizações Sociais.......................................................................... pg. 26

Parte IV – Sobre a natureza jurídica da relação de parceria com a Prefeitura

Municipal de Campinas: O Serviço de Saúde Dr. Cândido Ferreira como um

“ente de cooperação”............................................................................................... pg. 36

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Parte I – Uma apresentação do Serviço de Saúde Dr. Cândido Ferreira

O Serviço de Saúde Dr. Cândido Ferreira é uma entidade filantrópica, fundadaem 1924, dedicada ao cuidado das pessoas portadores de transtorno mental que, até 1990,

operava como um hospital psiquiátrico tradicional. Neste ano, pressionada por uma forte crise

financeira e assistencial, os representantes do então Sanatório Dr. Cândido Ferreira buscaram

o apoio da Prefeitura Municipal de Campinas, a qual, através da mediação do então Secretário

de Saúde, Dr. Gastão Wagner Campos, instituiu-se o que viria a se configurar uma gestão

compartilhada do hospital, rompendo-se, ao mesmo tempo, com o modo tradicional do

cuidado psiquiátrico, de características manicomiais, através da introdução de um modeloassistencial inspirado na reforma psiquiátrica italiana e que tem por pressuposto fundamental

o reconhecimento e a promoção dos portadores de sofrimento mental como cidadãos plenos

de direito – direito à vida, à dignidade, à liberdade, à convivência, à moradia, ao trabalho, à

educação, ao lazer entre outros.

A configuração jurídica desta parceria se deu pela promulgação da Lei 6.215

em 09 de maio de 1990 e pela reformulação do estatuto da instituição. Esta lei estabeleceliteralmente que:

“Art. 1º - Fica o Poder Executivo autorizado a firmar convênio com o

Sanatório “Dr. Cândido Ferreira”, visando o funcionamento e o

 gerenciamento comum de suas atividade s, nos termos do instrumento de

convênio o qual faz parte integrante esta lei, rubricado pelo Prefeito

Municipal e pelo Presidente da Câmara Municipal.

 Art. 2º – O convênio tem por objetivo a administração conjunta do Sanatório

“Dr. Cândido Ferreira” que passa a se integrar ao Sistema Municipal de

 Saúde e atender clientela universalizada.”

Além da promulgação desta lei, definiu-se no Estatuto da instituição, que o seu

Conselho Diretor passa a incorporar a representação da Prefeitura e do Estado, assim como da

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sociedade civil, modificando-se também a sua finalidade institucional, estabelecendo-se em

sua última forma que:

“Artigo 2º) A finalidade desta associação é a prestação gratuita de assistência

e desenvolvimento de atividades de ensino e pesquisa, assim como apoiar odesenvolvimento do Sistema Único de Saúde – SUS, para os usuários

assistidos nos campos da saúde mental em particular e da saúde em geral.

 Essa associação existe para contribuir complementarmente à construção de

equilíbrio entre situações enfrentadas por populações historicamente

desassistidas e desamparadas de cuidados e a norma constitucional que define

a Saúde como extensão do campo dos direitos de cidadania”.

(...)

“Artigo 38º) O Conselho Diretor terá mandato de 3 (três) anos, e será

composto por 13 (treze) membros: um presidente, um vice-presidente e um

 secretário, membros da Associação Serviço de Saúde Dr. Cândido Ferreira,

dois membros indicados pelos funcionários da instituição por meio da eleição

direta dos pares, três membros representantes do SUS, sendo dois membros

indicados pelo Secretário Municipal de Saúde de Campinas e um indicado

 pela Secretaria Estadual de Saúde (DRS VII), um membro representante dosusuários e um representante de seus familiares, ambos eleitos por seus pares,

dois membros indicados pelas instituições de saúde e ensino conveniadas com

o Serviço de Saúde Dr. Cândido Ferreira, um membro indicado pelo Conselho

Municipal de Saúde (segmento usuário). Todos os membros têm direito a voz e

voto.” (Estatuto da Associação Serviço de Saúde Dr. Cândido Ferreira)

Como se pode constatar, a representação própria da instituição filantrópica – a

Associação Serviço de Saúde Dr. Cândido Ferreira - tornou-se francamente minoritária,

compondo-se a direção da entidade com um total de (oito) segmentos distintos (associação

filantrópica, governo municipal, governo estadual, conselho municipal de saúde,

trabalhadores, universidades, usuários e familiares), de tal forma que nenhum destas

representações, tomadas isoladamente, tem poder para determinar de maneira unilateral os

rumos da instituição.

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E o Conselho Diretor é a instância executiva por excelência do Serviço de

Saúde Dr. Cândido Ferreira, posto que cabe a ele:

“Artigo 40º) É da competência do Conselho Diretor:

a) Estabelecer Planos Econômico-Financeiros e Administrativos do Serviço de

Saúde Dr. Cândido Ferreira e gerenciar seu cumprimento;

b) Preparar os relatórios e apreciar os Balanços e balancetes, apresentando-

os ao Conselho Fiscal e à Assembleia Geral dos Associados;

c) Propor eventuais modificações ou reformas dos Estatutos;

d) Redigir ou determinar a elaboração de regulamentos internos do Serviço de

Saúde Dr. Cândido Ferreira;

e) Contratar e/ou indicar o Superintendente;

 f) Aprovar o quadro de pessoal proposto pelo Colegiado de Gestão,

estabelecer a política de recursos humanos e autorizar a contratação e

rescisão de serviços de terceiros;

 g) Autorizar Despesas e Empréstimos que não onerem o Patrimônio da

entidade;

h) Inscrever, qualificar e excluir associados dos preceitos estatutários;

i) Representar a instituição, através de seu Presidente, em juízo ou fora dele;

 j) Constituir procuradores para tratarem dos interesses da Associação,

bastante para tanto a assinatura de seu Presidente ou substituto;

k) Vender móveis não constitutivos de títulos e semoventes aplicando o

 produto;

l) Propõe ao Conselho Deliberativo e à Assembleia Geral, venda de gravação

de título e imóveis.” (idem)

Ressalte-se ainda que a Associação Serviço de Saúde Dr. Cândido Ferreira, por 

seu turno, foi aberta à participação de qualquer pessoa interessada ou implicada com o tema

da saúde mental introduzindo-se, entretanto, uma regra de controle social bastante

interessante: a indicação de um novo membro deverá ser feita por quem já participa como

sócio da Associação mas deve, no entanto, ser aprovada pelo Conselho Diretor conforme

estabelecido no item “h” acima que inclui entre suas competências:

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“ Inscrever, qualificar e excluir associados dos preceitos estatutários”, e

 previsto também no seu Art 5º: “A admissão de associados efetivos, procedida

 pela apresentação de proposta ao Conselho Diretor com a devida

identificação, assinada por um associado.” (idem).

Outra regra interessante diz respeito a garantia de seu patrimônio, que

 permanece como responsabilidade da Assembleia Geral e do Conselho Deliberativo,

instâncias próprias e exclusivas da Associação Serviço de Saúde Dr. Cândido Ferreira

conforme o Art 21º; parágrafo 8:

“Compete à Assembleia Geral (…) Autorizar a venda de títulos e bens imóveis

ou gravá-los, e resolver sobre a sua aplicação, mediante abertura de

concorrência pública com publicação em edital, depois de previamente obter a

autorização do Conselho Deliberativo. Para esta aprovação, é necessária a

 presença de 2/3 (dois terços) dos membros efetivos e maioria de 3/4 dos

membros presentes.” (idem)

Por este, assegura-se ao Conselho Diretor apenas a possibilidade de apresentar 

 propostas quanto a este tema conforme o item “l” do artigo 40º visto acima: “ Propõe ao

Conselho Deliberativo e à Assembleia Geral, venda de gravação de título e imóveis.” (idem).

Ou seja, o estatuto da instituição impõe, portanto, uma relação de equilíbrio

entre suas diferentes instâncias deliberativas estabelecendo uma dupla e recíproca limitação:

 por um lado, busca-se garantir o caráter público da gestão assegurando-se ao ConselhoDiretor, que inclui todo aquele conjunto de representações, a primazia pela tomada das

decisões de caráter assistencial, institucional e econômico-financeiro, impedindo-se, desta

forma, que se “privatize” este processo de deliberação, ao mesmo tempo que impede,

simultaneamente, que o Conselho Diretor tenha poder direto e efetivo sobre a destinação do

 patrimônio da entidade que, em última instância, é o que ancora a sua capacidade de

 promover os seus objetivos institucionais. Quem controla o patrimônio participa, mas não

determina unilateralmente a política institucional e quem define os rumos desta política,

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 participa, mas não determina unilateralmente a destinação do patrimônio.

Este redesenho jurídico-institucional nos permite afirmar que o Serviço de

Saúde Dr. Cândido Ferreira, que permanece como uma associação civil sem fins lucrativos,

regida pelo direito privado, assume uma caráter eminentemente público, embora não-estatal, posto que:

a) passa a atender com 100% de sua capacidade os usuários do Sistema Único

de Saúde – SUS;

 b) os serviços a serem prestados, as metas e os indicadores que balizam sua

capacidade e qualidade do atendimento são publicamente definidos e acompanhados;

c) os recursos que financiam suas ações são fundamentalmente públicos,

interditando-se legalmente a oferta de serviços no mercado privado da saúde, assegurando-se,ao mesmo tempo, que os recursos eventualmente recebidos de doações diversas sejam

igualmente destinados aos fins institucionais previstos em estatuto;

d) a entidade se submete não só aos mecanismos tradicionais de controle social

instituídos no âmbito do Sistema Único de Saúde – SUS, que operam caracteristicamente de

“fora para dentro”, mas inclui, através de um Conselho Diretor que articula diferentes

segmentos sociais, uma modalidade de controle social que passa, literalmente, por dentro da

instituição e, mais do que simplesmente operar o controle social, opera diretamente a gestão

 propriamente dita da instituição.

Esta configuração do Conselho Diretor, do ponto de vista de sua composição e

do ponto de vista de sua competência institucional nos permite dizer que se estabelece

efetivamente uma “administração conjunta”, uma gestão compartilhada ou ainda uma

cogestão, não apenas entre uma “instituição privada” e um ente público, no caso, a Prefeitura

Municipal de Campinas, através de sua Secretaria Municipal de Saúde, mas estabelece-se, de

fato e de direito, uma cogestão entre todos os segmentos representados nesta instância

diretiva, em que pese as diferenças, até certo ponto inevitáveis, quanto aos níveis de efetiva

implicação, protagonismo e capacidade de intervenção de cada um dos atores que atuam neste

Conselho.

Esta cogestão, que podemos caracterizar como multipolar, redefine

necessariamente como público seu espaço institucional e impõe a negociação permanente na

 busca pelo consenso possível como o fundamento irrecorrível dos processos de tomada de

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decisão, “modus operandi” este que não se permite restringir apenas à instância diretiva

máxima, mas que transborda e se capilariza para todos os seus diferentes níveis de tomada de

decisão, transformando uma instituição tradicional que se organizava verticalmente pela

lógica do binômio controle/obediência, em um novo tipo de instituição, de caráter 

necessariamente público, nem propriamente privada e nem estatal, que passa a se organizar horizontalmente pela lógica do binômio autonomia/contratualização.

Este passa a ser, portanto, o padrão preponderante também nas relações entre

os gerentes que se reúnem no Colegiado de Gestão, instância responsável pela gestão

cotidiana dos projetos, assim como na relação entre os gerentes e os trabalhadores de suas

respectivas equipes, os trabalhadores entre si e, principalmente, entre os trabalhadores e os

usuários, que são cotidianamente convocados a se colocarem ativamente como cogestores deseu processo terapêutico.

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Parte II – O Público versus o Estatal versus o Privado

 Nesse sentido, o Serviço de Saúde Dr. Cândido Ferreira enquanto público por força deste design institucional, aponta para a possibilidade de um exercício de poder o qual,

diferentemente da perspectiva weberiana que define o poder como “probabilidade de realizar 

a própria vontade dentro de uma relação social, mesmo em face de resistência” (Weber, Max

- Economia e Sociedade in: “O conceito de poder de Hannah Arendt”, Habermas, J., 2001), se

aproxima da definição de Hanna Arendt como resultado “da capacidade humana, não

 somente de agir ou de fazer algo, como de unir-se a outros e atuar em concordância com

eles” (idem). Habermas enfatiza que para Arendt, “o fenômeno fundamental do poder nãoconsiste na instrumentalização de uma vontade alheia para os próprios fins, mas na

 formação de uma vontade comum, numa comunicação orientada para o entendimento

recíproco.”(idem)

Esta é, fundamentalmente, a discussão que se encontra na base na constituição

de uma esfera pública na sociedade civil, distinta tanto do que é propriamente estatal

(sociedade política), quanto da esfera privada da sociedade civil. A esfera privada dasociedade civil se define enquanto o mundo das relações econômicas que se desenvolve

reproduzindo e ampliando uma desigualdade permanente entre proprietários e não-

 proprietários dos meios de produção, privilegiando claramente os interesses dos primeiros em

detrimento dos demais, e impondo aos espaços de trabalho uma lógica de organização

necessariamente verticalizada, fundada no modelo da obediência, na desconfiança e no

estímulo à concorrência entre os trabalhadores como estratégia de controle. O Estado, por seu

turno, nada mais é do que a perfeita contraparte da sociedade civil privada, na forma de poder 

de polícia fundado no monopólio da força, que garante, em última instância, a promoção

destes interesses enquanto hegemônicos, em detrimento ou exclusão dos demais interesses,

“mesmo em face de resistência”, completaria Weber. Por esta razão, o Estado também se

organiza necessariamente de modo verticalizado, rigidamente hierarquizado e com base no

modelo da obediência. Tanto o Estado (sociedade política) como o Privado (sociedade civil

 privada) têm em comum, portanto, a impossibilidade de operarem com base em consensos

livremente construídos, que não sejam reféns da primazia estabelecida a priori de

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determinados interesses sobre todos os demais.

Os movimentos sociais ao longo dos séculos XIX e XX e que apresentam

como sua principal novidade a transformação do homo faber em um ator político relevante,

determinaram a invasão do mundo da política pelo mundo da produção e a passagem, portanto, dos trabalhadores, sejam eles urbanos ou rurais, à condição de cidadãos. Este

 processo vêm colocar na ordem do dia a necessidade de se dar primazia, antes, aos interesses

que são comuns a todos – os interesses públicos - em detrimento justamente dos interesses

hipotecados pela sociedade civil privada. O Estado é paulatinamente constrangido a romper,

ainda que parcialmente, com a sua estreita e estrita identificação com a classe proprietária

enquanto elite política dominante, para assumir obrigações cada vez maiores para com os

interesses de todos os cidadãos. O reconhecimento da condição de cidadão deixou, em um primeiro momento, de discriminar entre os proprietários e os não-proprietários, para em

seguida, na medida em que avançavam as lutas sociais, deixar de discriminar também por 

critérios sejam de sexo, cor, origem ou mesmo religião, em que pese serem conquistas que se

encontram sob ameaça e tensão permanentes e, por isso mesmo, sujeitas a importantes e

lamentáveis retrocessos em diferentes momentos e em diferentes países.

Este mesmo processo histórico, portanto, é o que rompe, recorta, dobra e

desdobra os limites entre a sociedade civil e a sociedade política, entre o Privado e o Estado,

criando nesta fenda um novo território que definimos aqui como Público (sociedade civil

 pública), porque neste território não se exclui ninguém a priori e se inclui potencialmente,

 portanto, o interesse de todos, em um processo de contratualização e recontratualização

 permanentes em torno de parâmetros ou critérios livremente negociados e consensualizados É

nesta possibilidade objetiva da livre construção de consensos entre pessoas equalizadas pela

condição de cidadãos na qual se fundamenta a força do constrangimento para que o Estado

venha a garantir a implementação das políticas públicas como corolário do reconhecimento e

da exigibilidade dos direitos universais. A esfera pública se impõe, portanto, seja pela

conquista e incorporação de territórios anteriormente subsumidos pelas esferas privada ou

estatal da sociedade, seja também pela criação de novos territórios que não poderiam sequer 

ser concebidos fora da esfera pública propriamente dita.

O direito ao voto secreto e universal, incluídas as pré-condições que o

viabilizam como tal (liberdade de reunião, organização, propaganda, imprensa entre outras) é

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muito provavelmente a maior e melhor expressão da emergência deste novo território entre a

sociedade civil (Privado) e a sociedade política (Estado) que se define como sendo o Público

 por excelência. O voto dá a todos o mesmo poder, não discriminando seja pelas posses, pela

instrução, pelo sexo, pela cor da pele, pela religião, pela origem ou por qualquer outro critério

que não seja o da maioridade política determinada unicamente por um critério de idade. Deste ponto de vista pode-se questionar a expressão “Estado Democrático de Direito” por conter 

elementos, em princípio, inconciliáveis. Nenhum Estado, por definição, pode ser

democrático enquanto tal porque a sua própria existência já é uma expressão inequívoca da

 permanência de importantes desigualdades e desequilíbrios na distribuição do poder em uma

determinada sociedade. Pode-se dizer, antes, que as sociedades, e apenas elas, são mais ou

menos democráticas, na medida exata em que o poder de polícia dos respectivos aparelhos

de Estado encontrem-se mais ou menos vinculados à efetiva garantia, promoção e proteção daequidade, dos interesses comuns e dos direitos universais. O grau de democracia de uma

sociedade se mede portanto pela diversidade, pela capilaridade e pela efetividade dos

instrumentos de controle social sobre o exercício do poder de polícia do Estado, no que

diz respeito tanto ao que ele deve garantir quanto ao como ele deve fazê-lo. Entre estes

destacam-se, como vimos, as eleições periódicas através do voto secreto e universal, como um

dos mecanismos mais difundidos e generalizados para operar a determinação da esfera

 pública propriamente dita sobre o Estado, assim como a separação imposta ao Estado em três

conjuntos de aparelhos ou poderes distintos e relativamente independentes entre si – os

 poderes executivo, legislativo e judiciário, e a multiplicação de instâncias e dispositivos de

mediação entre a sociedade civil privada (o Privado) e a sociedade política (o Estado) de

forma a dificultar o estabelecimento de relações diretas entre estes dois campos que possam

vir a operar em detrimento dos interesses da sociedade civil pública (o Público). Expressão

contundente deste processo é o fenômeno da “publicização” do Direito através da criação de

todo um conjunto de leis que impõe tanto limites à atuação da sociedade civil privada quanto

impõe ao Estado a obrigação de garantir a plena efetividade desta legislação em nome do

interesse público – a legislação trabalhista, ambiental, sanitária entre várias outras são

exemplos neste sentido. Não se contrata, se demite ou se define um regime de trabalho

arbitrariamente, não se produz qualquer coisa, de qualquer maneira ou em qualquer lugar, não

se vende ou se distribui a mercadoria de qualquer maneira e assim por diante.

Foram-se incorporando historicamente, portanto, como questões a serem

garantidas, por este mesmo Estado, o reconhecimento de um número cada vez maior de

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direitos de caráter universal. As políticas universais de promoção dos direitos humanos em

suas diferentes dimensões, entre as quais destacamos as políticas de saúde e educação foram

se impondo, portanto, como políticas de Estado, e, como tal, efetivas enquanto exigíveis, mas

implementadas e operadas pelos dispositivos verticalizados, hierarquizados e fortemente

 burocratizados que caracterizam estruturalmente o Estado. Estas características são,reafirmamos, constitutivas do aparelho de Estado - qualquer que seja ele - pelo simples fato

de existir como necessário. É preciso enfatizar aqui que garantir não é o mesmo que

implementar ou operar, e o Estado não tem, em virtude de sua dinâmica organizacional

necessariamente verticalizada e descendente, decorrente de sua função social básica que se

resume no exercício do poder de polícia, o que poderíamos chamar de competência estrutural

 para implementar e operar políticas que se impõe a partir de demandas construídas no âmbito

da sociedade civil pública, em processos necessariamente horizontalizados de negociação posto que operados por atores equalizados entre si pela condição de cidadãos, e que se

reconhecem reciprocamente nesta condição.

As políticas públicas e os direitos universais determinam, por conseguinte,

tanto para o estabelecimento de sua exigibilidade quanto para sua implementação efetiva, um

ambiente institucional e organizacional favorável à livre produção de consensos que é

absolutamente incompatível com a lógica organizacional do Estado, necessariamente

verticalizada, hierarquizada e fundada na exigência de obediência que o caracteriza, assim

como caracterizam todas aquelas organizações cujos fins não dizem respeito igualmente a

todos, mas privilegiam os interesses de uma parte em detrimento do conjunto. É por esta

razão, que o Privado (sociedade civil privada), exatamente por pressupor a primazia e a

 precedência dos interesses de uma parte sobre os interesses de todos, também não detém, por 

definição, o que estamos denominando de competência estrutural para implementar e operar 

estas políticas decorrentes do reconhecimento de determinados direitos como universais,

sendo, portanto, igualmente incapaz de se constituir enquanto alternativa efetiva ao Estado

(sociedade política) neste campo.

Daí a necessidade de se reconhecer a esfera pública da sociedade, enquanto um

um campo jurídico, institucional e organizacional próprio, que aqui denominamos Público

(sociedade civil pública), distinto do Estado enquanto tal (sociedade política), como também

do Privado (sociedade civil privada). Este espaço público por excelência se caracteriza pela

 possibilidade de criação, constituição e desenvolvimento de dispositivos institucionais para a

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operação das políticas públicas, horizontalizados pelos processos de cogestão permanente

entre os trabalhadores e entre os trabalhadores e usuários, que se reconheçam reciprocamente

como cidadãos e, portanto, sujeitos de direito e, nesta medida, podem se relacionar como

iguais. A cogestão, neste sentido, pode ser adequadamente traduzida pelo binômio

autonomia/contratualização.

Este processo de publicização da sociedade civil pode ser visto como análogo

ao processo de “reabsorção da sociedade política na sociedade civil” conforme a perspectiva

gramsciana analisada por Norberto Bobbio (O Conceito de Sociedade Civil, Ed. Graal, 1987),

a qual aponta para o que Gramsci chamou de “sociedade regulada” que é “sociedade civil

liberada da sociedade política”, retomando-se a perspectiva do fim do Estado e da

necessidade da coerção, ou seja, uma sociedade que se organize com base no conceito deliberdade como autonomia e não no conceito de liberdade como heteronomia, em outras

 palavras, fundada no princípio da responsabilidade e não no medo da desobediência,

marcando desta maneira, o fim da infância política do homem, que passa a prescindir, na sua

relação com os demais, da tutela do Estado.

É para esta perspectiva que nos conduz a reflexão sobre a dinâmica

institucional vivida pelo Serviço de Saúde Dr. Cândido Ferreira na implementação das

 políticas de saúde mental vis-à-vis aquela que se observa na rede pública-estatal de saúde para

a implementação das mesmas políticas. Considerando-se a experiência dos limites e

 possibilidades destas lógicas institucionais indiscutivelmente distintas, é que se defende a

necessidade de configurar o espaço público da sociedade civil, para além do sentido de esfera

 pública enquanto mera constatação de um fenômeno histórico-social, mas, reiteramos,

enquanto um campo jurídico-institucional específico, capaz de partejar a criação e o

desenvolvimento de instituições capazes de serem efetivamente continentes ao protagonismo

tanto dos trabalhadores quanto dos usuários na implementação efetiva e sustentável das

 políticas públicas sociais.

O que caracteriza essencialmente este território definido como público é a

equalização de todos pela condição de cidadãos – as políticas públicas e universais não

interrogam pela renda, pela cor, pela religião, pelo sexo, pela origem, pelo time de futebol ou

 pela filiação político-partidária. Elas acolhem a todos igualmente. Os trabalhadores de uma

determinada instituição que presta serviços de natureza pública são também usuários de

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serviços prestados por outros trabalhadores em outras instituições. O que equaliza esta relação

entre os dois lados do balcão é exatamente a condição de cidadãos enquanto sujeitos

igualmente portadores de direitos, que se reconhecem como tais. Na medida em que cidadãos

circunstancialmente colocados frente a frente como trabalhador e usuário, sejam capazes de se

reconhecer como polos de uma relação entre sujeitos “do mesmo tamanho”, orientados pelarazão comunicativa, e não como polos de um relação entre desiguais, orientados pela razão

instrumental, serão também capazes de se colocarem, reciprocamente, um no lugar do outro e

na perspectiva do outro. Esta possibilidade de se identificar com o outro permite que se

recupere o sentido de pertencimento à sociedade e por conseguinte o sentido social do próprio

trabalho. O reconhecimento da autonomia dos trabalhadores e dos usuários, é portanto, o

reconhecimento de sua maioridade como cidadãos e como sujeitos de direito.

As organizações que operam com base em uma hierarquia de interesses, em

que uma parte importa mais que o todo, como as organizações privadas que visam o lucro, por 

exemplo, não tem opção senão se estruturar de forma estritamente verticalizada e

hierarquizada, enfatizando o controle e a exigência de obediência, o que inevitavelmente

objetiva o trabalhador, destituindo-o de sua condição de sujeito. Desta forma os trabalhadores

tendem a ser menorizados e infantilizados e necessariamente impedidos de se reconhecerem

nos fins propostos pela organização, que lhe permanecem estranhos, até porque dizem

respeito prioritária ou exclusivamente apenas aos seus proprietários ou acionistas,

impossibilitando-os de reconhecer o sentido social do seu trabalho, para além do holerite no

final do mês.

O Estado, poder de polícia em última instância, tem na hierarquia e disciplina

militares o seu melhor paradigma. Como sua existência pressupõe em si mesma a priorização

dos interesses de uma parte menor da sociedade sobre os interesses rigorosamente universais

ou sobre aqueles que digam respeito à maioria da população, priorização esta, assegurada em

última instância pela possibilidade do uso puro e simples da força bruta, não tem também

opção que não seja organizar-se de forma igualmente verticalizada e hierarquizada, com as

mesmas consequências para o mundo do trabalho por ele circunscrito que as descritas acima,

agravadas pelo fato de que este mesmo Estado foi socialmente chamado não só a garantir,

contra a sua própria vocação, alguns interesses e direitos de caráter universal, como operar a

implementação das políticas públicas que lhes são decorrentes.

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É esta inadequação entre o Estado e o Privado por um lado e as demandas

organizacionais e institucionais impostas pela operação das políticas públicas e universais por 

outro, que impõe, reiteramos aqui, a necessidade de se criar um campo jurídico-institucional

 próprio do Público como tal, capaz de viabilizar a constituição destes dispositivos

institucionais fundados nos processos horizontalizados de gestão, ou seja, na co-gestão entretrabalhadores e usuários, que pressupõe, como vimos, o reconhecimento da autonomia destes

atores. Desta forma, o “medo da desobediência” é substituído pelo “princípio da

responsabilidade” como principal motor do processo de trabalho nestas instituições. Elas se

tornam, por esta razão, capazes de operar e implementar as políticas públicas com uma

transparência, eficiência, eficácia e efetividade rigorosamente impensáveis e inviáveis nas

organizações verticalizadas, hierarquizadas e burocratizadas, baseadas no binômio

controle/obediência.

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Parte III – Sobre a natureza jurídica das entidades paraestatais

1) As entidades paraestatais

Esta reconfiguração jurídico-institucional do Serviço de Saúde Dr. Cândido

Ferreira o coloca como parte deste processo de publicização da sociedade civil e, também do

 ponto de vista do direito brasileiro, o desloca inequivocamente do chamado “Terceiro Setor”,

 para o qual a publicização é voluntária e, portanto, opcional, para situá-lo de forma mais

adequada como uma espécie dos “entes de cooperação” ou “entidades paraestatais”, entre as

quais se incluem os serviços sociais autônomos e - não para todos os juristas - as chamadas

organizações sociais recentemente introduzidas pela lei 9637/98, onde a publicização énecessária e se coloca enquanto exigência.

“Entidades Paraestatais – São pessoas jurídicas de Direito Privado que, por 

lei, são autorizadas a prestar serviços ou realizar atividades de interesse

coletivo ou público, mas não exclusivos do Estado. São espécies de entidades

 paraestatais os serviços sociais autônomos (SESI, SESC, SENAI e outros) e,

agora, as organizações sociais, cuja regulamentação foi aprovada pela Lei9.648, de 27.5.98. As entidades paraestatais são autônomas, administrativa e

 financeiramente, tem patrimônio próprio e operam em regime da iniciativa

 particular, na forma de seus estatutos, ficando apenas sujeitas à supervisão do

órgão da entidade estatal a que se encontram vinculadas, para o controle de

desempenho estatutário. São os denominados 'entes de cooperação' com o

 Estado (Meirelles et all., 2010, p. 68)

É oportuno reproduzir aqui um esclarecimento inscrito no item 5.1 do capítulo

VI da última edição (póstuma) da obra iniciada pelo jurista Hely Lopes Meirelles, falecido em

1990, “Direito Administrativo Brasileiro”, mas que vem sendo atualizada desde então pelos

 juristas Eurico de Andrade Azevedo, Délcio Balestero Aleixo e José Emmanuel Burle Filho,

sobre a necessidade de se distinguir claramente os entes de cooperação ou entidades

 paraestatais daquelas outras formas de organização que compõe a Administração Indireta do

Estado:

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“Neste tópico, nas edições anteriores, o Autor tratava das entidades

 paraestatais, pessoas jurídicas de Direito Privado, cuja criação era

autorizada por lei, com patrimônio público ou misto, para a realização de

atividades, obras ou serviços de interesse coletivo, sob normas e controle do Estado. Em seguida, como espécies de entidades paraestatais, cuidava

especificamente das empresas públicas, sociedades de economia mista e

 serviços sociais autônomos. (…)

 Em meados da década de 60, quando o Autor lançou a 1ª edição desta

obra, justificava-se esta sistematização, já que – como ele próprio afirmava – 

a doutrina e a legislação brasileira confundiam com frequência o enteautárquico com o paraestatal. Ao longo de todos esses anos, contudo, houve

acentuada evolução da matéria, embora persistam muitas incongruências nos

textos legislativos. Embora se tenha difundido a expressão entidade

 paraestatal com o conceito que lhe dera o Autor, está hoje assentado, inclusive

em decorrência das normas constitucionais, que as fundações, empresas

 públicas e sociedades de economia mista fazem parte da Administração

 Indireta do Estado. Ora, se fazem parte da Administração Indireta do Estado,

não podem estar ao lado deste, como entes paraestatais.” (Meirelles et all,

2010, p.382)

Esclarecimento este, que os leva a reafirmar adiante que:

“Pode-se dizer hoje que os entes de cooperação são as verdadeiras

entidades paraestatais, como o Autor as conceituava: pessoas jurídicas de

 Direito Privado dispostas paralelamente ao Estado, ao lado do Estado para

executar cometimentos de interesse do Estado, mas não privativos do Estado

(idem, p. 404).

 Neste mesmo sentido, o jurista Sérgio de Andréa Ferreira ratifica a análise do

Prof. Hely Meirelles, que classifica os serviços sociais autônomos como entes de cooperação -

uma espécie do gênero das entidades paraestatais - que se localizam entre o público e o

 privado, entre o estatal e o particular:

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“o paraestatal não é o estatal, nem é o particular; é o meio-termo entre o

 público e o privado. Justapõe-se ao Estado, sem o integrar, como o

autárquico; ou alhear-se, como o particular. Tem personalidade privada, mas

realiza atividades de interesse público”(Meirelles, H.L., 1996, p.320-321 in: Ferreira, S.A., Os Serviços Sociais

 Autônomos como Entes de Cooperação, https://www.gespublica.gov.br/ )

Como espécies de entidades paraestatais estão classificados, segundo a última

edição póstuma do “Direito Administrativo Brasileiro” do Prof. Hely Lopes Meirelles (36ª

Ed., 2010), tanto o serviço social autônomo quanto as organizações sociais, instituídas pela

Lei 9648/98. Entretanto, o Prof. Sérgio Andréa Ferreira discorda quanto à inclusão daschamadas organizações sociais como “entes de cooperação” e, como tal, incluídas na

 paradiministração. Nega, portanto, que a organização social possa ser equiparada ao serviço

social autônomo, enquanto entidades situadas em uma zona intermediária entre o público e o

 privado, para incluí-las como “entes de colaboração” compondo estritamente o setor 

 privado.

“5.2 Agregado a esse conjunto, que forma a organização governamental-

administrativa, situa-se um setor intermediário entre o setor público e o

 privado, constituído pela Paradministração, integrada pelos entes de 

cooperação , que abrangem ofícios públicos – como os notariais e de registro;

os serviços sociais autônomos; as empresas subsidiárias das entidades da

administração indireta (Constituição Federal, art. 37, XX, 1a parte); as

autarquias corporativas (a OAB, os Conselhos profissionais).

5.3 Finalmente, as pessoas jurídicas que se inserem na sociedade civil, a

abarcar o setor político, no qual se inscrevem os partidos políticos; e o setor 

 privado. Este último comporta: (a) os entes de colaboração da Administração

 Pública, como os concessionários e permissionários de serviços públicos; as

organizações sociais; as entidades fechadas de previdência privada; (b) a

 sociedade civil organizada, como as ONG ́ s, as OSCIP  ́s; e (c) as empresas

 privadas, particulares, algumas delas com a participação das pessoas do setor 

 público, e que atuam no mercado. É a área da livre iniciativa.”

(Ferreira, S.A., Empresas Estatais, Paraestatais e Particulares com

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 Participação Pública, https://www.gespublica.gov.br/ )

Esta posição decorre de sua discordância em relação à classificação destas

como “entidades públicas não-estatais”, a partir de seu questionamento sobre o conceito

mesmo de “público não-estatal”, posto que se alinha com aqueles que defendem a tese de queo público significa necessariamente o estatal.

“Mais uma vez, surge a caracterização, pouco científica, da OS 

como instituição "híbrida", entre o estatal e o privado.

8.1. Nesta linha, rotulam-se as mesmas como "entidades públicas não-

estatais". Também aqui, há uma 'contradictio in terminis'. Com efeito,  público 

significa estatal   , como, de há muito, nos ensina FRANCESCO FERRARA("Pubblico vuol dire statuale", Le Persone Giuridiche, Turim, 1938, p. 115;

Teoria delle Persone Giuridiche, Turim, 2a ed., 1923, p. 750), eis que pessoas

 públicas são aquelas que detêm uma parcela de ius imperii, tendo os

caracteres e prerrogativas exclusivos e

essenciais do Estado. ”

(Ferreira, S.A., As Organizações Sociais e as Organizações da Sociedade Civil 

de Interesse Público: Considerações sobre seu regime jurídico,

https://www.gespublica.gov.br/ )

Se cabem críticas à legislação que criou as organizações sociais, estas não

decorrem, em absoluto, da aceitação da tese de que há um amálgama inseparável entre o

 público e o estatal e este é exatamente o tema em discussão neste trabalho. É curioso observar 

que o Prof. Sérgio Andréa, conforme visto acima, admite a caracterização dos entes

 paraestatais (para quem são apenas aqueles criados pelo Estado) como entes “híbridos” entre

o estatal e o particular, entre o privado e o público, mas não admite que (independente de

considerações de mérito sobre esta “organização social” especificamente regulamentada pela

lei 9637/98) uma associação ou fundação criada pela sociedade civil possa se situar nesta

mesma condição “híbrida” criada por seu deslocamento, seja do ponto de vista dos fins quanto

dos meios, da esfera privada para a esfera pública.

Em relação à organização social propriamente dita, o Prof. Sérgio Andréa não

 parece reconhecer a importância do Art. 3º da lei que instituiu as organizações sociais que,

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como veremos mais adiante, define a participação tanto do Estado quanto da sociedade civil

(entendida aqui no seu sentido mais amplo) no Conselho de Administração destas

organizações introduzindo uma forma de controle social potencialmente mais efetiva e

contundente do que os procedimentos de controle burocrático operados pelo Estado. Por esta

razão, parece ser mais adequado manter as organizações sociais como um “ente decooperação”, como uma espécie, portanto, de entidade paraestatal.

 

2) Os Serviços Sociais Autônomos

Os serviços sociais autônomos, embora sejam comumente identificados com as

entidades do chamado “Sistema S” - Serviço Social do Comércio – SESC, Serviço Social daIndústria – SESI, Serviço Nacional de Aprendizagem do Comércio – SENAC entre outras – 

 podem ser instituídos sob diferentes formas e financiados por receitas parafiscais, como é o

caso do próprio “Sistema S” ou por dotações orçamentárias.

É o que nos diz o Prof. Meirelles:

“Serviços sociais autônomos são todos aqueles instituídos por lei, com

 personalidade de Direito Privado, para ministrar assistência ou ensino a

certas categorias ou grupos profissionais, sem fins lucrativos, sendo mantidos

 por dotações orçamentárias ou por contribuições parafiscais. São entes

 paraestatais, de cooperação com o Poder Público, com administração e

 patrimônio próprios, revestindo a forma de instituições particulares

convencionais (fundações, sociedades civis ou associações) ou peculiares ao

desempenho de suas incumbências estatutárias.” (Meirelles et all, 2010, p,

405)

Tese que tem a concordância do Prof. Sérgio de Andréa Ferreira que enfatiza,

citando o mesmo Prof. Hely Lopes Meirelles, na mesma obra acima citada, mas referindo-se à

edição de 1996, página 322:

“Embora comumente se adotem as formas tradicionais do Direito Civil e

Comercial, nada impede que o Poder Público crie entidades paraestatais com

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 formas próprias e adequadas às suas finalidades.”

Do ponto de vista do Prof. Sérgio de Andréa Ferreira, que aqui mais uma vez

ratifica o entendimento defendido pelo Prof. Hely Lopes Meirelles, também não pairam

dúvidas sobre a competência seja da União, dos estados ou seja ainda dos municípios parainstituir entidades paraestatais:

“A competência para instituir entidades paraestatais é ampla, cabendo tanto à

União como aos Estados- membros e Municípios criar esses instrumentos de

descentralização de serviços de interesse coletivo. A criação de tais entidades

é matéria de Direito Administrativo e não interfere com a forma civil ou

comercial com que se personifique a instituição. Esta, sim, é de Direito Privado, cujas normas pertencem exclusivamente à União, por expressa

reserva constitucional. Mas a criação e a organização da entidade, como

instrumento administrativo de descentralização de serviço, são do titular do

 serviço a ser descentralizado.” (Meirelles, H.L, 1996, p.322, in Ferreira, S.A -

https://www.gespublica.gov.br/ )

Reafirmando-se, por outra via, que os serviços sociais autônomos, não podem,sob qualquer hipótese, ser entendidos como parte da Administração Indireta, mas se

constituem enquanto entidades autônomas que atuam ao lado do Estado, ao mesmo tempo,

que também não se confundem com o particular, e de sua liberdade, portanto, também não

gozam, encontra-se o entendimento do Tribunal de Contas da União, citado pelo Prof. Sérgio

de Andréa Ferreira, pelo qual os serviços sociais autônomos não são obrigados a acompanhar 

estritamente a Lei 8.666/93, mas apenas os seus princípios gerais que devem estar traduzidos,

entretanto, em regulamentos próprios devidamente publicados:

“o Tribunal de Contas da União prolatou, em 11.12.97, a Decisão Plenária

TCU no 907/97, que concluiu que I”os serviços sociais autônomos não estão

 sujeitos à observância aos estritos procedimentos estabelecidos na Lei no

8.666/93, e sim aos seus regulamentos próprios, devidamente publicados,

consubstanciados nos princípios gerais do processo licitatório.”

(Ferreira, S.A., https://www.gespublica.gov.br/ )

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Quanto ao conceito de entidade paraestatal, Maria Sylvia Zanella Di Pietro

enfatiza que, do seu ponto de vista, e diferindo em parte, da conceituação mais ampla

defendida pelos Profs. Hely Lopes Meirelles e Sérgio de Andréa Ferreira, são os serviços

sociais autônomos especificamente vinculados ao chamado “Sistema S” que podem ser 

considerados entidades paraestatais por excelência exatamente por terem como objeto deatuação uma atividade privada de interesse público e que não era, portanto, um serviço

 público próprio do Estado:

“Lendo-se os consideranda dos Decretos-leis nºs 9.403, de 25-6-46, e 9.853,

de 13-9-46, que atribuíram, respectivamente, à Confederação Nacional da

 Indústria e à Confederação Nacional do Comércio o encargo de criarem,

organizarem e dirigirem o Serviço Social da Indústria – SESI, e o ServiçoSocial do Comércio – SESC, verifica-se que o Governo federal agiu muito

mais na função de fomento à iniciativa privada de interesse público, do que na

 função de prestação de serviço público. (…)

 

 Não se trata de atividade que incumbisse ao Estado como serviço público, e

que ele transferisse para outra pessoa jurídica, por meio de instrumento da

descentralização. Trata-se, isto sim, de atividade privada de interesse público

que o Estado resolveu incentivar e subvencionar. (…)

Talvez seja em relação a estas entidades que melhor se aplique a expressão

'entidade paraestatal', que funciona paralelamente ao Estado sem nele se

integrar, realiza uma atividade de interesse público, sem se confundir com o

 serviço público próprio do Estado” (Di Pietro, p.272)

Para o Prof. Sérgio Andréa Ferreira, além dos serviços sociais autônomos

vinculados à Confederação Nacional do Comércio e à Confederação Nacional da Indústria

(SESC, SENAC, SESI, SENAI) são vários os serviços sociais autônomos instituídos por lei e

que se configuram inequivocamente como entidades paraestatais, incluindo o Serviço Social

Autônomo Associação das Pioneiras Sociais em relação ao qual, em particular, a Profa. Maria

Sylvia Zanella Di Pietro tem fortes restrições.

“ Já o Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, em seu art. 62,

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determinou a criação, por lei, do Serviço Nacional de aprendizagem Rural – 

SENAR, de que veio a tratar a Lei no 8.315, de 23.12.91.

Também vieram a ser instituídos o Serviço Social do Transporte SEST e o

Serviço nacional de Aprendizagem do Transporte – SENAT (Lei no 8.706, de14.09.93); e ainda, dentre outros, os seguintes serviços sociais autônomos:

Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas – SEBRAE (Lei no

8.029, de 12.04.90; Decreto no 99.570, de 09.10.90). Serviço Social Autônomo

 Agência de Promoção de Exportações do Brasil – APEX–Brasil (MP no 106,

de 22.01.03; Lei no 10.668, de 14.05.03; Decreto no 4.584, de 05.02.03).

Serviço Social Autônomo Agência Brasileira de Desenvolvimento Industrial – 

 ABDI (Lei no 11.080, de 30.12.04; Decreto no 5.352, de 24.01.05). Serviço Nacional de Aprendizagem do Cooperativismo – SESCOOP (MP no 2.168-40,

de 24.08.01). PARANAPREVIDÊNCIA (por transformação da autarquia IPE:

 Lei PR 12.398, de 30.12.98); PARANACIDADE (Lei PR no 11.498, de

30.02.96).

 É portanto, fórmula consagrada, e que tem, especificamente no campo da

 saúde, exemplo emblemático, que é o Serviço Social Autônomo Associação das

 Pioneiras Sociais APS (Lei no 8.246, de 22.10.91; Decreto no 371, de

20.12.91), que mantém a festejada REDE SARAH. ”

(Ferreira, S.A., https://www.gespublica.gov.br/ )

Em relação ao Serviço Social Autônomo Associação das Pioneiras Sociais, a

Profa. Di Pietro defende que “a denominação está a indicar que se quis instituir entidade

 semelhante aos antigos Serviços Sociais Autônomos (…) No entanto, a simples adoção da

mesma denominação evidentemente não atingiu o objetivo pretendido porque as hipóteses

 são completamente diferentes” (Di Pietro, p.273).

Observa inicialmente que houve uma substituição de uma entidade por outra

 posto que, a mesma lei que criou o Serviço Social Autônomo Associação das Pioneiras

Sociais extinguiu a Fundação das Pioneiras Sociais, instituída originalmente como uma

fundação pública de direito privado pelo próprio Governo Federal. A nova entidade deixa de

ser uma fundação para se tornar uma associação, “pessoa jurídica de direito privado, sem

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 fins lucrativos, de interesse coletivo e de utilidade pública, com o objetivo de prestar 

assistência médica qualificada e gratuita a todos os níveis da população e de desenvolver 

atividades educacionais e de pesquisa no campo da saúde, em cooperação com o Poder 

 Público” (Di Pietro, p.273-274). A nova associação criada não tem patrimônio próprio pois os

 bens da antiga fundação, embora permaneçam sob sua administração, foram incorporados ao patrimônio da União. A nova entidade fica sob a supervisão do Ministério da Saúde e o seu

financiamento passa a depender inteiramente de recursos oriundos da dotação orçamentária da

União mediante contrato de gestão pelo qual “objetiva-se assegurar larga dose de

autonomia à entidade” (Di Pietro, p.274).

A Profa. Di Pietro enumera então uma série de aspectos que, do seu ponto de

vista, tornam inadequada a sua caracterização como um serviço social autônomo, e uma vezque que não se inclui também como uma entidade da Administração Indireta, trata-se portanto

de “forma de parceria indevida cujo objetivo é o de fugir ao regime jurídico publicístico” (Di

Pietro, p.275).

 Em primeiro lugar, uma associação supõe a existência de associados, de

 pessoas físicas em cujo benefício se institui a entidade; na associação, os fins

institucionais são de interesse dos próprios associados. Isto, no entanto, não

ocorre na Associação das Pioneiras Sociais, cujos objetivos são externos, ou

 seja, voltados para coletividade estranha à entidade. Nesse aspecto, ela

 possuiria natureza fundacional (apesar da nova denominação que se lhe

atribuiu) se dispusesse de patrimônio próprio, o que também não ocorre.

 E aí vem o segundo aspecto: qualquer pessoa jurídica, para existir, necessita

de um patrimônio, sem o qual ela não pode atingir os seus objetivos

institucionais; ora, a Associação das Pioneiras Sociais parece não dispor de

um patrimônio. Os bens da antiga fundação foram incorporados ao

 patrimônio da União; também não tem receitas próprias, porque presta

 serviço gratuito. Ela vive inteiramente de dotações orçamentárias da União.

 Em terceiro lugar, embora denominada de Serviço Social Autônomo ela tem

várias das características próprias das entidades da Administração Indireta, a

 saber:

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a) foi instituída por lei;

b) vive de dotação orçamentária da União;

c) está sujeito a processo seletivo para admissão de pessoal;

d) está sujeita à licitação, ainda que observando manual próprio;

e) tem que prestar contas ao Tribunal de Contas da União; f) depende de aprovação de seu orçamento pelo Ministério da Saúde;

 g) está vinculada, para fins de controle, ao mesmo ministério.”

(Di Pietro, p.274-275)

Com base nestas considerações, Di Pietro conclui que “a Associação das

 Pioneiras Sociais está em situação inteiramente irregular, qualquer que seja a natureza

 jurídica que se lhe atribua: se for entidade da Administração Indireta, a irregularidadedecorre da inobservância dos dispositivos constitucionais, que são simplesmente afastados

mediante a celebração dos contratos de gestão (…); se for entidade particular, seu papel 

iguala-se ao das fundações de apoio (…), sendo igualmente irregular”(Di Pietro, p.276).

Algumas ressalvas a esta posição defendida pela Profa. Di Pietro em relação ao

Serviço Social Autônomo Associação das Pioneiras Sociais, entretanto, se fazem aqui

necessárias. Em primeiro lugar, há que se reconhecer como bastante contundente e procedente

a crítica de que não se trata, de fato, de uma associação strictu sensu pois não existe

associação sem associados. Nesse sentido, é preciso concordar quanto à natureza efetivamente

fundacional desta entidade posto que criada pelo governo federal e não por um determinado

conjunto de pessoas físicas que se associaram para promover determinados fins institucionais.

Há que se discordar neste ponto, entretanto, quanto à afirmação de que uma associação se

constitui necessariamente para o benefício das pessoas físicas que a instituem. Para

admitirmos este tipo de afirmação, teríamos que admitir que o interesse público só pode ser 

reconhecido como tal enquanto subsumido pelo Estado, ou que a sociedade civil é incapaz,

 por definição, de se organizar para a promoção de interesses que vão para além dos interesses

 privados e particulares e, mesmo quando se presta um serviço à coletividade, a partir de uma

associação de pessoas físicas, esta prestação ocorre apenas por decorrência da obtenção de

 benefício para os respectivos associados. Nesse ponto, a posição da Profa. Di Pietro parece

convergir com a aquela defendida pelo Prof. Sérgio Andréa de que o público é o estatal e

 ponto final – o que não é estatal é, deste ponto de vista e por definição, privado, que se remete

 precípua e prioritariamente a interesses particulares.

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Outra questão suscitada pela Profa. Di Pietro com a qual não se pode,

absolutamente, concordar, diz respeito à afirmação de que a Associação das Pioneiras Sociais

necessariamente “não tem receitas próprias, porque presta serviço gratuito”. Ora, a prestação

de serviços de assistência em saúde à população é gratuita mas demanda, por certo, recursosque a viabilizem. Se os recursos não são originados da venda direta de serviços à população

 posto que se trata de prestação gratuita, prestação esta, aliás, que se insere no campo das

obrigações constitucionalmente definidas do Estado brasileiro (sendo rigorosamente

inconstitucional que qualquer entidade criada pelo Estado venha a cobrar pela assistência à

saúde) e, se estes recursos não se originam também de contribuições parafiscais específicas,

estritamente destinadas, devem decorrer necessariamente do repasse de verbas públicas, as

quais serão, sob qualquer hipótese, previstas orçamentariamente, e direcionadas ou sob aforma de transferência orçamentária strictu sensu ou sob a forma de remuneração pela

 prestação de serviços mediante contrato.

É necessário aqui introduzir uma distinção entre convênio e contrato, do ponto

de vista da natureza do repasse de recursos, apresentada pela própria Profa. Di Pietro:

“a própria Constituição, no art. 199, § 1º, e a Lei 8.080 permitem que a

 participação complementar das instituições privadas no SUS se faça por meio

de convênio, o que somente é viável quando se tratar de entidade sem fins

lucrativos, hipótese em que a mesma receberá auxílios ou subvenções

 provenientes de recursos do SUS, não se cogitando propriamente de

remuneração por serviços prestados; se for o caso de remunerar por serviço

 prestado, cuida-se de contrato e não de convênio” (Di Pietro, p.228)

Ou seja, se há remuneração de serviços prestados mediante contrato, há que se

reconhecer que a entidade contratada, independentemente do fato de ter sido criada e ser 

controlada pelo próprio poder público, é credora de receitas que lhe são próprias. Se não há

contrato, não se pode falar em receitas próprias, do que decorre serem os repasses de recursos

 públicos, neste caso, transferências orçamentárias pura e simplesmente. Esta distinção é

análoga àquela que a chamada Lei de Responsabilidade Fiscal estabelece quando caracteriza

as chamadas empresas estatais dependentes que se incluem no âmbito das restrições impostas

 por esta lei exatamente por não terem receitas próprias e serem, conforme diz o próprio nome,

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dependentes das transferências orçamentárias propriamente ditas.

“Art. 2º. Para os efeitos desta Lei Complementar, entende-se como:

(...)

 II - empresa controlada: sociedade cuja maioria do capital social com direito

a voto pertença, direta ou indiretamente, a ente da Federação;

 III - empresa estatal dependente: empresa controlada que receba do ente

controlador recursos financeiros para pagamento de despesas com pessoal ou

de custeio em geral ou de capital, excluídos, no último caso, aqueles

 provenientes de aumento de participação acionária;” (Lei Complementar 

101/2000)

A principal fragilidade jurídica quanto a este ponto, no que toca à relação entre

a União e a Associação Pioneiras Sociais e impede o reconhecimento das receitas auferidas

 por esta entidade como próprias, decorrentes da remuneração de serviços prestados, é antes a

ausência de patrimônio próprio. O patrimônio é a contraprova de que esta entidade poderia,

estritamente analisado sob o ponto de vista de possibilidade em potência, continuar a

desenvolver suas atividades de assistência, no limite, independentemente do repasse dos

recursos públicos. Uma vez que esta possibilidade pode ser atestada, torna-se inquestionável

que os recursos recebidos, ainda que totalmente repassados pelo Estado, caracterizam-se

como receitas próprias. Indiscutivelmente, portanto, é a existência de patrimônio próprio que

define a capacidade de qualquer entidade promover efetivamente, do ponto de vista jurídico,

os seus fins institucionais. No caso da Associação Pioneiras Sociais, ainda que haja um

contrato, torna-se claro a sua condição de entidade dependente do orçamento público, posto

que opera em patrimônio que não lhe pertence, mas pertence à própria União, confirmando-

se, desta maneira, de que se trata, sim, de uma “forma de fugir ao regime publicístico” como

afirma a Profa. Di Pietro.

Outra discussão interessante que se coloca é sobre a natureza do contrato de

gestão, e este se constitui necessariamente também como um contrato de prestação de

serviços mediante compra e venda. Ou seja, pode-se ter contratos de gestão que envolvam ou

não a compra e venda de serviços, até porque um contrato de gestão é necessariamente mais

amplo que um contrato estrito de prestação de serviços, determinando-se a receita derivada

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como própria apenas nos casos em que o contrato de gestão incluir explicitamente em seu

âmbito também um contrato de compra e venda de serviços, em relação aos quais se

estabelecem metas quantitativas e qualitativas entre outros parâmetros para a sua prestação.

De qualquer forma, a configuração jurídica que parece melhor se adequar àrelação atualmente existente entre a União e o atual Serviço Social Autônomo Associação

Pioneiras Sociais passa pela recuperação de seu caráter fundacional original, enquanto

fundação pública de direito privado, mantendo o seu patrimônio como próprio, tendo como

instrumento jurídico da relação com o governo federal um contrato de gestão que inclua

explicitamente um contrato de prestação de serviços mediante compra e venda, garantido-se,

 portanto, receitas que lhe são próprias que, como tais, constituem-se no fundamento por 

excelência de sua autonomia organizacional e operacional, repercutindo as discussões atuaissobre as fundações estatais ou públicas de direito privado.

3) As Organizações Sociais

As chamadas “organizações sociais” foram criadas pela Lei Federal 9.637 de

18/05/98, segundo a qual:

“ Art. 1º) O Poder Executivo poderá qualificar como organizações sociais

 pessoas jurídicas de Direito Privado, sem fins lucrativos, cujas atividades

estatutárias sejam dirigidas ao ensino, à pesquisa científica, ao

desenvolvimento tecnológico, à proteção e preservação do meio ambiente, à

cultura e à saúde, atendidos os requisitos previstos nesta Lei”.

Como vimos na seção anterior, as organizações sociais se classificam, para os

continuadores da obra “Direito Administrativo Brasileiro” do Prof. Hely Lopes Meirelles,

também como “entes de cooperação” e espécie, portanto, de entidade paraestatal e, deste

 ponto de vista, situada por conseguinte entre o privado e o estatal, tese esta em relação ao

qual discorda, por exemplo, o Prof. Sérgio de Andréa Ferreira, para quem as “organizações

sociais” se constituem antes como “entes de colaboração”, estritamente adstritas ao setor 

 privado.

Como se vê, a “organização social” é um qualificativo – um ato de

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reconhecimento qualificado que atribui este título a uma pessoa jurídica de direito privado e

sem fins lucrativos cujas atividades e forma de organização devem estar de acordo com as

exigências impostas por esta lei, exigências estas que, embora sejam condições necessárias

 para tal, não são suficientes, posto que o ato de qualificação não é automático perante o

cumprimento das formalidades legais, mas é discricionário: “o Poder Executivo poderá

qualificar...”

Mas quais são mesmo os objetivos para os quais as “organizações sociais”

foram criadas? Estes começam a aparecer curiosamente apenas no seu Art. 5º - Seção III - que

trata do “Contrato de Gestão” :

“Seção III – Do Contrato de Gestão

 Para os efeitos desta Lei, entende-se por contrato de gestão o instrumento

 firmado entre o Poder Público e a entidade qualificada como organização

 social, com vistas à formação de parceria entre as partes para fomento e

execução de atividades relativas às áreas relacionadas no art. 1º.”

Ou seja, este objetivo de formar parceria entre o Poder Público e a entidade

qualificada como organização social para promover e executar ações vinculada às áreas de

atuação previstas no art. 1º deveria estar claramente expresso ou como parágrafo único do

 próprio artigo 1º, ou como sendo já o artigo 2º, e disposto independentemente da forma

 jurídica especificamente definida para configurar a relação entre as partes. Posto da forma

como se encontra na lei, o objetivo que emerge como sendo aparentemente o principal é, em

si mesmo, garantir a possibilidade jurídica de se realizarem contratos de gestão com pessoas

 jurídicas de direito privado não criadas pelo Estado, perante o qual, o fomento propriamente

dito é antes consequência de uma solução jurídica e não a causa que motivou a busca por este

tipo de solução.

Vamos analisar agora o que a lei prevê como forma de fomento às atividades

desenvolvidas em parceria com as pessoas jurídicas de direito privado qualificadas como

organizações sociais que se encontram descritas em sua Seção V:

“Seção V - Do Fomento às Atividades Sociais

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Art. 11. As entidades qualificadas como organizações sociais são

declaradas como entidades de interesse social e utilidade pública, para todos

os efeitos legais.

 Art. 12. Às organizações sociais poderão ser destinados recursosorçamentários e bens públicos necessários ao cumprimento do contrato de

 gestão.

 § 1 São assegurados às organizações sociais os créditos previstos no

orçamento e as respectivas liberações financeiras, de acordo com o

cronograma de desembolso previsto no contrato de gestão.

 § 2 Poderá ser adicionada aos créditos orçamentários destinados ao

custeio do contrato de gestão parcela de recursos para compensar desligamento de servidor cedido, desde que haja justificativa expressa da

necessidade pela organização social.

 § 3 Os bens de que trata este artigo serão destinados às organizações

 sociais, dispensada licitação, mediante permissão de uso, consoante cláusula

expressa do contrato de gestão.

 Art. 13. Os bens móveis públicos permitidos para uso poderão ser 

 permutados por outros de igual ou maior valor, condicionado a que os novos

bens integrem o patrimônio da União.

 Parágrafo único. A permuta de que trata este artigo dependerá de

 prévia avaliação do bem e expressa autorização do Poder Público.

 Art. 14. É facultado ao Poder Executivo a cessão especial de servidor 

 para as organizações sociais, com ônus para a origem.

 § 1 Não será incorporada aos vencimentos ou à remuneração de

origem do servidor cedido qualquer vantagem pecuniária que vier a ser paga

 pela organização social.

 § 2 Não será permitido o pagamento de vantagem pecuniária

 permanente por organização social a servidor cedido com recursos

 provenientes do contrato de gestão, ressalvada a hipótese de adicional relativo

ao exercício de função temporária de direção e assessoria.

 § 3 O servidor cedido perceberá as vantagens do cargo a que fizer jus

no órgão de origem, quando ocupante de cargo de primeiro ou de segundo

escalão na organização social.

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Art. 15. São extensíveis, no âmbito da União, os efeitos dos arts. 11 e

12, § 3 , para as entidades qualificadas como organizações sociais pelos

 Estados, pelo Distrito Federal e pelos Municípios, quando houver 

reciprocidade e desde que a legislação local não contrarie os preceitos desta

 Lei e a legislação específica de âmbito federal.

Este é, indiscutivelmente, o dispositivo legal central desta lei pelo qual se

autoriza a transferência dos recursos orçamentários, dos bens e dos servidores públicos que se

façam necessários para que se desenvolva plenamente as atividades previstas no contrato de

gestão estabelecido entre o poder público e a pessoa jurídica de direito privado, não criada

 pelo Estado, mas qualificada como organização social. Se observamos atentamente o conjunto

das disposições previstas nesta lei veremos que não há, em nenhuma delas, a exigência de quea pessoa jurídica de direito privado, para ser qualificada como organização social, tenha

 patrimônio próprio comprovado, que já exerça, há algum tempo, atividades incluídas nas

áreas descritas pelo seu artigo 1º ou que tenha ainda o reconhecimento prévio como entidade

de utilidade pública, qualificativo este que fica automaticamente subsumido pela qualificação

como organização social. Em resumo, a entidade que receberá bens públicos, servidores

 públicos e recursos orçamentários não necessita sequer existir previamente, podendo ser 

criada especificamente para o fim de se qualificar como organização social.

Mas é no seu Capítulo II, que trata das Disposições Finais e Transitórias que é

onde se revela os verdadeiros objetivos que orientaram a promulgação desta lei que cria as

“organizações sociais”, no qual destacamos os artigos abaixo:

“Art. 18. A organização social que absorver atividades de entidade

 federal extinta no âmbito da área de saúde deverá considerar no contrato de

 gestão, quanto ao atendimento da comunidade, os princípios do Sistema Único

de Saúde, expressos no art. 198 da Constituição Federal e no art. 7 da Lei n

8.080, de 19 de setembro de 1990.

 Art. 19. As entidades que absorverem atividades de rádio e televisão

educativa poderão receber recursos e veicular publicidade institucional de

entidades de direito público ou privado, a título de apoio cultural, admitindo-

 se o patrocínio de programas, eventos e projetos, vedada a veiculação

remunerada de anúncios e outras práticas que configurem comercialização de

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 seus intervalos.

 Art. 20. Será criado, mediante decreto do Poder Executivo, o

 Programa Nacional de Publicização - PNP, com o objetivo de estabelecer 

diretrizes e critérios para a qualificação de organizações sociais, a fim de

assegurar a absorção de atividades desenvolvidas por entidades ou órgãos públicos da União, que atuem nas atividades referidas no art. 1º, por 

organizações sociais, qualificadas na forma desta Lei , observadas as seguintes

diretrizes:

 I - ênfase no atendimento do cidadão-cliente;

 II - ênfase nos resultados, qualitativos e quantitativos nos

 prazos pactuados;

 II - controle social das ações de forma transparente. Art. 21. São extintos o Laboratório Nacional de Luz Síncrotron,

integrante da estrutura do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e

Tecnológico - CNPq, e a Fundação Roquette Pinto , entidade vinculada à

 Presidência da República.

(...)

 § 3º É o Poder Executivo autorizado a qualificar como organizações

 sociais, nos termos desta Lei, as pessoas jurídicas de direito privado indicadas

no Anexo I, bem assim a permitir a absorção de atividades desempenhadas

 pelas entidades extintas por este artigo.”

 Anexo I 

ÓRGÃO E ENTIDADE EXTINTOS ENTIDADE AUTORIZADA A SERQUALIFICADA

 REGISTRO CARTORIAL

 Laboratório Nacional de Luz

Síncrotron

 Associação Brasileira de Tecnologia

de Luz Síncrotron - ABTLuS 

 Primeiro Ofício de Registro de

Títulos e Documentos da Cidade deCampinas - SP, nº de ordem 169367,averbado na inscrição nº 10.814, Livro A-36, Fls. 01.

 Fundação Roquette Pinto Associação de Comunicação Educativa Roquette Pinto- ACERP 

 Registro Civil das Pessoas Jurídicas, Av. Pres. Roosevelt, 126, Rio de Janeiro - RJ, apontado sob o nº deordem 624205 do protocolo do Livro A nº 54, registrado sob o nº de ordem161374 do Livro A nº 39 do RegistroCivil das Pessoas Jurídicas.

Com base no que se estabelece nas Disposições Finais e Transitórias fica

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inteiramente claro que o objetivo precípuo da Lei 9637/98 foi o de permitir a substituição de

entidades que antes se configuravam no espaço da Administração Indireta por pessoas

 jurídicas de direito privado, sob a forma de associações, que literalmente “absorvem” a

totalidade das atividades desenvolvidas pelas antigas entidades que são simplesmente extintas.

Este movimento é, como se vê, bastante semelhante a aquele que orientou a

transformação da Fundação Pioneiras Sociais em Serviço Social Autônomo Associação

Pioneiras Sociais, quando também houve uma “absorção” das atividades de um ente da

Administração Indireta, ato contínuo extinto, por uma outra entidade, sob a forma de

associação, da qual não se exigiu patrimônio próprio ou sequer existência prévia. Semelhança

esta também assinalada pela Profa. Di Pietro: “Segundo tudo indica, o que serviu de

inspiração para o projeto das organizações sociais foram os chamados Serviços Sociais Autônomos (SESI, SESC, Senai e outros) e, mais proximamente, o Serviço Social Autônomo

 Associação das Pioneiras Sociais” (Di Pietro, 2009, p.270).

 No caso da Associação Pioneiras Sociais, entretanto, houve uma lei específica

que a instituiu como um novo serviço social autônomo Neste caso, embora se tenha

“aproveitado” a edição da lei 9637/98 também para a autorizar a extinção da Fundação

Roquete Pinto e o Laboratório Nacional de Luz Síncrotron e a criação de duas organizações

sociais respectivamente afins, trata-se esta de lei geral, a partir da qual qualquer associação

enquanto pessoa jurídica de direito privado e sem fins lucrativos pode ser qualificada como

organização social, por ato discricionário do Poder Executivo, meramente administrativo,

independente de lei específica para autorizar, uma a uma, a concessão desta qualificação.

As mesmas críticas feitas por Di Pietro ao processo de constituição do Serviço

Social Autônomo Pioneiras Sociais cabem igualmente também neste caso, a começar pela

criação, induzida pelo próprio Estado, de “associações” artificiais que viabilizassem a

assunção das atividades, não típicas ou exclusivas do Estado, antes prestadas por entes da

Administração Indireta, por pessoas jurídicas de direito privado, assegurando-se por esta via

um ambiente jurídico-institucional mais favorável à ampliação da autonomia organizacional

certamente necessária ao pleno desenvolvimento destas atividades. Novamente aqui, a

melhor solução jurídica seria a criação de fundações estatais ou públicas de direito privado,

adequadas ao caráter nitidamente fundacional destas novas “associações” e igualmente

capazes de assegurar uma adequada ampliação de sua autonomia organizacional, também

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mediada pela figura jurídica do contrato de gestão, mantendo-se, entretanto, e de forma

inequívoca, a responsabilidade do Estado pela garantia da continuidade das atividades

desenvolvidas sob esta nova configuração jurídico-institucional. Na medida em que, tanto o

Laboratório quanto a Fundação Roquette Pinto tornaram-se “associações” civis de direito

 privado as quais se concedeu a qualificação como “organizações sociais”, a qualquer momento, esta qualificação pode ser retirada, o contrato de gestão extinto,

desresponsabilizando-se o Estado pela garantia de continuidade destas atividades sem maiores

embaraços de natureza jurídica.

Esta é a principal diferença entre o processo que constituiu o Serviço Social

Autônomo Associação Pioneiras Sociais e este que transformou o Laboratório Nacional de

Luz Síncrotron e a Fundação Roquette Pinto em organizações sociais. No primeiro, criou-seum Serviço Social Autônomo que demanda uma lei específica, seja para sua criação seja para

a sua dissolução, o que determina, indiscutivelmente, uma estabilidade jurídica mais efetiva e,

 portanto, uma garantia mais consistente quanto à continuidade e sustentabilidade das

atividades amparadas por aquela configuração jurídico-institucional do que aquela que gozam

estas novas organizações sociais. Em contrapartida, estas novas organizações sociais passam a

exercer suas atividades com uma autonomia administrativa indiscutivelmente mais ampla do

que o serviço social autônomo no qual se transformou a antiga Fundação Pioneiras Sociais,

embora sejam sujeitas, em aparente paradoxo, a um controle externo ou social, em tese mais

efetivo, em função das exigências que se fazem quanto a constituição do Conselho de

Administração destas organizações sociais, na forma em que dispõe a Lei 9637/98.

Em que pese esta diferença que se observa, quanto aos respectivos graus de

autonomia, avaliados do ponto de vista estritamente administrativo, entre as organizações

sociais e o serviço social autônomo, a lei que criou as organizações sociais traz de maneira

indiscutível uma importante contribuição para a discussão sobre a natureza do que pode ser 

considerado efetivamente público. Embora se assegure às organizações sociais uma maior 

autonomia administrativa vis a vis os serviços sociais autônomos, aquelas encontram-se, se

aplicado integralmente o dispositivo previsto no artigo 3º da lei que as instituiu, sob um

controle social e, neste sentido, um controle de natureza pública, potencialmente muito mais

efetivo, posto que direto e tempestivo, do que aqueles exercidos pelo controle burocrático do

Estado, sob forma que a Profa. Di Pietro denomina de “regime publicístico”, ao qual se

submetem os entes da Administração Direta, Indireta e da Paradministração, graduados pelo

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grau de autonomia que caracteriza cada uma destas esferas.

“Seção II - Do Conselho de Administração

 Art. 3º O conselho de administração deve estar estruturado nos termos quedispuser o respectivo estatuto, observados, para os fins de atendimento dosrequisitos de qualificação, os seguintes critérios básicos:

 I - ser composto por:

a) 20 a 40% (vinte a quarenta por cento) de membros natos representantes do Poder Público, definidos pelo estatuto da entidade;

b) 20 a 30% (vinte a trinta por cento) de membros natos representantes deentidades da sociedade civil, definidos pelo estatuto;

c) até 10% (dez por cento), no caso de associação civil, de membros eleitos

dentre os membros ou os associados;d) 10 a 30% (dez a trinta por cento) de membros eleitos pelos demaisintegrantes do conselho, dentre pessoas de notória capacidade profissional ereconhecida idoneidade moral;

e) até 10% (dez por cento) de membros indicados ou eleitos na formaestabelecida pelo estatuto;

 II - os membros eleitos ou indicados para compor o Conselho devem ter mandato de quatro anos, admitida uma recondução;

 III - os representantes de entidades previstos nas alíneas "a" e "b" do inciso I 

devem corresponder a mais de 50% (cinquenta por cento) do Conselho; IV - o primeiro mandato de metade dos membros eleitos ou indicados deve ser de dois anos, segundo critérios estabelecidos no estatuto;

V - o dirigente máximo da entidade deve participar das reuniões do conselho, sem direito a voto;

VI - o Conselho deve reunir-se ordinariamente, no mínimo, três vezes a cadaano e, extraordinariamente, a qualquer tempo;

VII - os conselheiros não devem receber remuneração pelos serviços que,nesta condição, prestarem à organização social, ressalvada a ajuda de custo

 por reunião da qual participem;VIII - os conselheiros eleitos ou indicados para integrar a diretoria daentidade devem renunciar ao assumirem funções executivas.

 Art. 4º Para os fins de atendimento dos requisitos de qualificação, devem ser atribuições privativas do Conselho de Administração, dentre outras:

 I - fixar o âmbito de atuação da entidade, para consecução do seu objeto;

 II - aprovar a proposta de contrato de gestão da entidade;

 III - aprovar a proposta de orçamento da entidade e o programa deinvestimentos;

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 IV - designar e dispensar os membros da diretoria;

V - fixar a remuneração dos membros da diretoria;

VI - aprovar e dispor sobre a alteração dos estatutos e a extinção da entidade por maioria, no mínimo, de dois terços de seus membros;

VII - aprovar o regimento interno da entidade, que deve dispor, no mínimo,

 sobre a estrutura, forma de gerenciamento, os cargos e respectivascompetências;

VIII - aprovar por maioria, no mínimo, de dois terços de seus membros, oregulamento próprio contendo os procedimentos que deve adotar para acontratação de obras, serviços, compras e alienações e o plano de cargos,

 salários e benefícios dos empregados da entidade;

 IX - aprovar e encaminhar, ao órgão supervisor da execução do contrato de gestão, os relatórios gerenciais e de atividades da entidade, elaborados peladiretoria;

 X - fiscalizar o cumprimento das diretrizes e metas definidas e aprovar osdemonstrativos financeiros e contábeis e as contas anuais da entidade, com oauxílio de auditoria externa.”

Duas questões chamam a atenção nestas disposições:

a) o Conselho de Administração não é uma instância meramente decorativa

mas, pelo contrário, é o órgão sobre o qual recai a responsabilidade pela efetiva gestão da

organização;

 b) o Conselho de Administração é obrigatoriamente composto por representantes de diferentes segmentos sociais e do próprio Estado, de tal forma que,

nenhuma destas representações participa deste Conselho em condições de se impor 

unilateralmente às demais representações, de forma que as decisões tomadas são

necessariamente colegiadas e definidas, senão por consenso, por maioria, constituída

necessariamente por representações de mais de um segmento.

A composição e as atribuições deste Conselho de Administração definem um processo de tomada de decisões que não está subsumido nem pelos critérios estritamente

estatais e nem por critérios de ordem privada, remetendo esta dinâmica organizacional

necessariamente para o campo propriamente público, simultaneamente distinto, portanto, do

estatal e do privado.

Este aspecto fundamental introduzido pela lei das organizações sociais que

impacta fortemente a concepção do que pode ser compreendido como própria e

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efetivamente público, infelizmente, ficou completamente obscurecido pela perspectiva

meramente instrumental, conjuntural e, sobretudo, unidirecional, que orientou a edição desta

lei, perdendo-se esta dimensão fundamental no seu conjunto de incongruências. O principal

objetivo desta lei foi, indubitavelmente, atender o que se supunha ser uma necessidade do

Estado, na perspectiva do chamado “Estado mínimo” que orientava o programa e as diretrizesdo governo de então, de simplesmente se “livrar” de um determinado conjunto de entidades

da administração indireta, seja pela extinção pura e simples, seja pela privatização

 propriamente dita, ou seja pelo mecanismo das organizações sociais pensado unicamente na

 perspectiva de “absorver” as atividades anteriormente desenvolvidas por entes da

administração indireta, deixando aberta a possibilidade do Estado, mais adiante, se

desvincular completamente destas responsabilidades “absorvidas” pelas novas organizações.

Ou seja, a lei das organizações sociais não se propôs efetivamente a construir 

um campo jurídico-institucional novo do propriamente público, abrindo-se a possibilidade

de se publicizarem entes estatais, não porque se tornem, por qualquer razão, “dispensáveis”,

mas pelo contrário, porque apresentam uma dimensão pública de tal relevância, que não

 podem ter, por um lado, sua capacidade de gestão inteiramente submetida a arranjos políticos

de ocasião, ao sabor dos governos que entram e saem, principalmente no que diz respeito às

 políticas públicas de caráter universal, constitucionalmente definidas não como “programas”

deste ou aquele governo, mas como um programa de toda a sociedade, que submete

necessariamente todo e qualquer governo à obrigação de garantir e manter. Por outro lado, a

constituição deste campo público não pode ser concebida em termos unidirecionais, apenas no

sentido da subsunção de entidades e territórios antes adstritos ao estatal, mas deverá incluir 

entidades e territórios anteriormente adstritos também ao privado, assim como viabilizar a

criação de novos territórios ou entidades que só poderiam ser concebidos e viabilizados a

 partir da perspectiva pública por excelência.

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Parte IV – Sobre a natureza jurídica da relação de parceria com a

Prefeitura Municipal de Campinas: O Serviço de Saúde Dr. Cândido

Ferreira como um “ente de cooperação”

O Serviço de Saúde Dr. Cândido Ferreira tem em comum com os chamados

“entes de cooperação” ou “entidades paraestatais” a instituição por lei específica - Lei

Municipal 6215/90 - de uma relação diferenciada com o Estado, no caso, a Prefeitura, que

como vimos anteriormente, tanto tem competência legal para instituir uma entidade

 paraestatal - “ A competência para instituir entidades paraestatais é ampla, cabendo tanto à

União como aos Estados - membros e Municípios criar esses instrumentos de

descentralização de serviços de interesse coletivo” - como para fazê-lo de diferentes maneiras

- “com formas próprias e adequadas às suas finalidades”. A Lei Municipal 6215/90 explicita

que a instituição “passa a se integrar ao Sistema Municipal de Saúde e atender a clientela

universalizada”, definindo-se aí, claramente, uma limitação para a sua liberdade institucional,

enquanto entidade estritamente privada, de prestar livremente seus serviços, que passam, por 

força de lei, a serem inteiramente direcionados para o atendimento do interesse coletivo e

 público. Mantém ainda a personalidade jurídica de direito privado, enquanto associação civil

sem fins lucrativos, é detentora de patrimônio próprio, e se encontra sob supervisão direta doEstado, neste caso, da Prefeitura e da Secretaria Municipal de Saúde, através do próprio

instrumento de convênio e através da participação dos representantes do Estado (Secretaria

Municipal de Saúde e Secretaria Estadual de Saúde) na principal instância gestora da

instituição, estatutariamente prevista. Nesse sentido, o Serviço de Saúde Dr. Cândido Ferreira,

a partir da Lei 6215/90, se enquadra inequivocamente como um tipo de ente paraestatal: “o

 paraestatal não é o estatal, nem é o particular; é o meio-termo entre o público e o privado.

 Justapõe-se ao Estado, sem o integrar, como o autárquico; ou alhear-se, como o particular.Tem personalidade privada, mas realiza atividades de interesse público”, conforme definição

do Prof. Hely Meirelles e ratificada pelo Prof. Sérgio Andréa, já apresentada, que aqui

reiteramos.

A instituição desta relação especial, entre o Serviço de Saúde Dr. Cândido

Ferreira e a Prefeitura Municipal de Campinas, contém inequivocamente tanto elementos do

serviço social autônomo, que também se dá pela instituição de um tipo especial de relação

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entre o poder público e uma entidade determinada de direito privado mediante lei específica,

como antecipa elementos da legislação federal que veio criar, muito tempo depois, a

figura da organização social, (entre os quais destacamos a exigência de participação no

colegiado de direção superior da instituição de membros da comunidade e de representantes

do poder público), mas que não exige, entretanto, uma lei específica que qualifique umadeterminada entidade como organização social - trata-se de uma lei de caráter geral no âmbito

de sua esfera de poder (federal, estadual ou municipal), que acolhe a qualificação desta ou

daquela entidade como organização social, por ato meramente administrativo. Lembramos

aqui que a participação dos representantes da Associação Serviço de Saúde Dr. Cândido

Ferreira no seu Conselho Diretor é, também antecipando neste ponto a legislação das

organizações sociais, francamente minoritária – 3 representantes em um total de 13, que

representam cerca de 8 (oito) diferentes segmentos sociais, os quais, tomados isoladamentenão tem poder para definir unilateralmente os rumos da instituição, assegurando-se ainda que

os representantes da sociedade civil detém mais de 50% do total dos representante no

Conselho Diretor.

O Serviço de Saúde Dr. Cândido Ferreira, enquanto um tipo de entidade

 paraestatal, conforme aqui defendemos, não seria obrigado a seguir a lei 8.666/93.

Acompanha, entretanto, os seus princípios gerais e realiza as contratações de pessoal por 

seleção pública, por força apenas da figura jurídica do convênio, tomada em si mesma,

definida pela lei municipal 6215/90 como a forma jurídica de sua relação com a Prefeitura.

De qualquer forma, o próprio instrumento, no caso, o convênio, que é parte integrante desta

lei, pode estabelecer de modo claro e explícito os procedimentos a serem seguidos definindo-

se claramente o regime administrativo mínimo a ser adotado pela instituição, formalizando-se

e institucionalizando-se, deste modo, uma prática que já é, em grande medida, implementada,

transitando também quanto a este ponto da publicização voluntária para a publicização

necessária e exigível.

A partir da lei 6215/90, o Serviço de Saúde Dr. Cândido Ferreira, como vimos,

 passou “a se integrar ao Sistema Municipal de Saúde e atender clientela universalizada”, do

que decorre, obrigatoriamente, o direcionamento de 100% de sua capacidade instalada de

atendimento para a prestação gratuita de assistência aos usuários do Sistema Único de Saúde

 – SUS. A totalidade das receitas vinculadas à prestação de serviços assistenciais terão,

 portanto, necessariamente origem pública, mas se constituem, indubitavelmente, em receitas

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 próprias da instituição, não caracterizando sua dependência strictu sensu do orçamento

municipal, posto que vinculados a uma relação de compra e venda de serviços prestados em

conformidade com metas quantitativas e qualitativas inscritas em Plano de Trabalho, formal e

obrigatoriamente incluído como parte do Convênio que regula a relação entre o Serviço de

Saúde Dr. Cândido Ferreira e o Sistema Único de Saúde – SUS, através da SecretariaMunicipal de Saúde. Ademais, o Serviço de Saúde Dr. Cândido Ferreira é uma associação

civil de direito privado, sem fins lucrativos, com 86 anos de existência, detentora dos títulos

de utilidade pública federal, estadual e municipal e do Certificado de Entidade Beneficente de

Assistência Social e dotada de patrimônio próprio que, em última instância, assegura a

continuidade da promoção de seus fins institucionais, independentemente dos recursos

 públicos. Às receitas oriundas da prestação de serviços de assistência somam-se, sem prejuízo

da destinação obrigatória para os fins estatutariamente previstos, aquelas oriundas de doaçõese outras origens.

Considerando-se, portanto, que o Serviço de Saúde Dr. Cândido Ferreira se

transforma, a partir da lei municipal 6215/90, em um tipo de ente de cooperação e que passa a

atender exclusivamente ao Sistema Único de Saúde – SUS, o instrumento mais adequado a

este tipo de relação seria certamente o Contrato de Gestão que incluísse explicitamente um

contrato de prestação de serviços mediante compra e venda, com metas quantitativas equalitativas, em conformidade tanto com a distinção que a Profa. Di Pietro estabelece entre

convênio e contrato, como vimos acima, e também por analogia com o que se estabelece tanto

em relação ao serviço social autônomo, quanto em relação às organizações sociais, enquanto

corolário necessário da relação entre um ente estatal e um ente paraestatal. Segundo a Profa.

Di Pietro:

 

“Os contratos de gestão podem ser importante instrumento de ação do poder público, que sob a forma de contratualização da tutela sobre as

entidades da Administração Indireta, quer sob a forma de parceria com a

iniciativa privada. No primeiro caso, o contrato fixa o programa a ser 

cumprido pela entidade em troca do reconhecimento de maior autonomia. No

 segundo caso, o contrato fixa igualmente o programa a ser cumprido pela

entidade que atua como paraestatal, em colaboração com o Poder Público,

recebendo ajuda financeira para este fim.

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Se, no caso da Administração Indireta, o contrato de gestão tem como

contrapartida a flexibilização do regime jurídico administrativo, no caso da

entidade privada, contrato serve ao objetivo contrário, pois ao invés de

 permitir a submissão integral ao regime jurídico privado, exige da entidade aobediência a determinadas normas e princípios próprios do regime jurídico

 publicístico, colocando-as na categoria de entidades paraestatais” (Di Pietro,

2009, p.276)

O legislador à época, entretanto, em virtude certamente da falta de acúmulo

 jurídico em relação a estes temas que vieram a ser melhor discutidos no decorrer dos anos 90,

definiu que a forma da relação entre a Prefeitura e o Serviço de Saúde Dr. Cândido Ferreira

seria o Convênio. No entanto, como dizem os juristas, mais importante do que o nome que se

atribui a uma determinada relação jurídica, importa verificar qual é a sua verdadeira natureza

e, considerando ainda que a legislação específica modifica a legislação geral no que diz

respeito a sua aplicação naquele objeto em questão, podemos concluir com bastante

consistência que, embora a forma legal da relação definida pela lei seja a do convênio, por ele

ser necessariamente um convênio global, uma vez que inclui a capacidade de total de

 prestação de serviços da entidade, este convênio adquire, por definição, características de umcontrato de gestão, ampliando-se o seu escopo legal, sem, entretanto, deixar de se obrigar a

uma prestação de contas procedimental (típica do convênio), associada com uma

demonstração dos resultados obtidos vis-à-vis o custo-efetividade (típico dos contratos de

gestão).

É interessante constatar que a lei municipal 6215/90 antecipou, os principais

 pontos que vieram a ser previstos na lei das Organizações Sociais com duas exceçõesimportantes: a figura do contrato de gestão, conforme já discutido acima, e a possibilidade de

cessão de bens públicos que não está claramente estabelecida na lei de cogestão, uma vez que

o seu principal objetivo foi o de submeter bem privado ao interesse público, e não um

bem público à gestão também do privado. A cessão de servidores públicos, entretanto, está

 juridicamente amparada considerando-se que a lei estabelece, uma “administração conjunta”

da instituição e um “gerenciamento comum de suas atividades” em parceria com governo

municipal. Mas, diferentemente da lei das organizações sociais pela qual o reconhecimento de

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uma determinada instituição se dá por ato meramente administrativo do Poder Executivo, seja

ele, federal, estadual ou municipal, o reconhecimento do Serviço de Saúde Dr. Cândido

Ferreira como um ente de cooperação não se dá apenas por ato administrativo, de reduzida

força legal, mas por uma lei específica, a exemplo dos serviços sociais autônomos, a qual só

 poderá ser revogada também por lei específica.

Em resumo, o Serviço de Saúde Dr. Cândido Ferreira pode ser considerado,

 para todos os efeitos legais, uma entidade paraestatal que, para tanto, atende a critérios mais

rigorosos do aqueles impostos à qualificação das organizações sociais ou ao Serviço

Social Autônomo Associação das Pioneiras Sociais:

a) é, de fato e de direito, uma associação civil de direito privado, sem fins

lucrativos, que preexistia, em pleno exercício de suas atividades e com todos ostítulos pertinentes de utilidade pública e filantropia, à edição da lei 6215/90;

 b) detém patrimônio próprio;

c) se constituiu enquanto uma entidade paraestatal por força de lei específica,

exigido para a constituição de um serviço social autônomo, mas não exigido

 para uma organização social;

d) publicizou a gestão incorporando ao seu Conselho Diretor representações da

sociedade civil e do Estado, mantendo minoritária a representação própria da

Associação Serviço de Saúde Dr. Cândido Ferreira, o que é exigido para a

qualificação de uma organização social mas não é exigido para a constituição

de um serviço social autônomo.

e) finalmente, tratou-se aqui de submeter uma associação de origem e

 patrimônio privados ao interesse público, tanto no que diz respeito à definição

de seus fins e objetivos institucionais, quanto no que diz respeito ao controle

social e estatal sobre meios necessários para viabilizar e garantir a promoção

desses objetivos e não, pelo contrário, submeter um bem de origem pública ao

interesse e meios de controle privados.

Em seu artigo intitulado “CONTRATOS DE GESTÃO -

CONTRATUALIZAÇÃO DO CONTROLE ADMINISTRATIVO SOBRE A

ADMINISTRAÇÃO INDIRETA E SOBRE AS ORGANIZAÇÕES SOCIAIS” in:

(http://www.pge.sp.gov.br/centrodeestudos/revistaspge/ ), Maria Sylvia Zanella Di Pietro,

discute uma interessante comparação entre as organizações sociais e os serviços sociais

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autônomos, que suscita uma reflexão no que diz respeito ao sentido do movimento que se

 pretende fazer: ou se vai do privado em direção ao “menos privado e mais público” ou se

vai do estatal/público em direção ao “mais privado e menos público”

“Comparando-se essas entidades [os serviços sociais autônomos] com as

organizações sociais, verifica-se que, naquelas, o Estado não abriu mão da

execução de serviço público que a lei lhe atribuiu, nem extinguiu qualquer de

 seus órgãos ou entidades. O Estado manteve intactas as suas atividades e

entidades e apenas   fomentou, ajudou, subsidiou a iniciativa privada na

instituição de entidades que iriam exercer serviços de interesse público (não

serviço público), instituindo, para esse fim, contribuição parafiscal para

ajudá-las na sua atividade. No caso das organizações sociais, o Estado está

delegando uma atividade sua, deixando de exercê-la; está extinguindo uma

entidade pública para, em seu lugar, deixar nascer uma entidade privada.(...)

 Na realidade, o que se está fazendo com a instituição de organizações sociais

é criar uma nova forma de delegação de serviço público, reservada para

atividades sociais não exclusivas do Estado, como é o caso do ensino

universitário, do serviço hospitalar, da pesquisa e outras. E aqui também há

uma diferença grande em relação aos serviços sociais autônomos. Estestambém exercem atividades sociais não exclusivas do Estado, porém em

colaboração com o poder público e sem perder, o serviço  , a natureza de

atividade privada de interesse público.(...)

Voltando-se à comparação entre os dois tipos de entidade, pode-se afirmar que

as organizações sociais, tal como previstas na proposta constante do Plano

 Diretor e em algumas leis estaduais, exercem serviço público delegado pelo

 Estado, devendo submeter-se a todas as normas constitucionais pertinentes ao

mesmo. Já os serviços sociais autônomos exercem atividade privada

meramente autorizada pelo poder público, ainda que por ele subsidiadas por 

meio de contribuições parafiscais.”

A lei que instituiu a cogestão entre o Serviço de Saúde Dr. Cândido Ferreira e a

Prefeitura Municipal de Campinas encontra-se constitucionalmente amparada enquanto

definição de um tipo de instituição que se enquadra de maneira muito clara no gênero das

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entidades paraestatais, enquanto um tipo específico de ente de cooperação com o Estado,

reunindo, por analogia, elementos definidores tanto da figura do serviço social autônomo

como das organizações sociais. Estas duas figuras, entretanto, historicamente, se colocaram e

continuam se colocando (este é o problema) apenas na perspectiva unidirecional dos

 processos de “desestatização”, caracterizado pela extinção de entidades da AdministraçãoIndireta, transferindo-se as atividades por elas exercidas para associações civis de direito

 privado, especificamente criadas para a finalidade de “absorver” estas atividades, as quais

 passam a ser desenvolvidas fora da esfera estatal propriamente dita. A grande questão a

resolver é se este processo de “desestatização” se traduzirá em um processo de

“publicização” do estatal ou, se antes, vai implicar na “privatização” do público.

 No caso do Serviço de Saúde Dr. Cândido Ferreira há esta questão fundamentala enfatizar: tratou-se aqui de submeter uma associação civil de direito privado, detentora

de bens privados, tangíveis e intangíveis, sob a forma de um patrimônio próprio, ao

interesse público, tornando-a, portanto, menos privada e mais pública, e não transferir

um bem público-estatal para uma gestão menos pública e mais privada. E, diga-se de

 passagem, o Serviço de Saúde Dr. Cândido Ferreira tornou-se inequivocamente uma entidade

mais pública, do ponto de vista do controle social efetivo dos seus fins e dos meios

institucionais que os viabilizam, do que a maior parte, senão a totalidade, das entidades

situadas na esfera propriamente estatal, considerando-se tanto aquelas que se situam na esfera

municipal, quanto àquelas situadas demais esferas de governo.

 Nesse sentido, poderíamos dizer que, tanto a criação de serviços sociais

autônomos, a qualificação como organização social (assegurando-se a publicização do

Conselho de Administração das entidades) ou ainda outras formas de constituição e

reconhecimento de pessoas jurídicas de direito privado, como “entes de cooperação” são todas

elas figuras jurídicas que podem conformar processos de publicização mas, contrariamente

à forma como vem sendo até agora utilizadas, apenas das associações civis ou fundações

privadas, sem fins lucrativos, enquanto entidades preexistentes, detentoras de

patrimônio próprio e no pleno exercício de suas atividades em qualquer área de interesse

público e social, no sentido do fortalecimento de seus vínculos com a plena implementação

das políticas sociais públicas.

Do ponto de vista, entretanto, do aprimoramento da gestão dos entes público-

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estatais, devemos pensar mais propriamente no formato Fundação Pública ou Estatal de

Direito Privado, instituída pelo próprio Estado, mas que tem o potencial inequívoco de se

deslocar da esfera propriamente estatal para a esfera pública por excelência, na medida em

que se incluam nos seus Conselhos Curadores as representações dos trabalhadores, usuários e

segmentos afins da sociedade civil.

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