Oficina Terapeutica Literatura

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SONIA SAJ PORCACCHIA OFICINA DE LEITURA COMO INTERVENÇÃO PSICOPEDAGÓGICA: LITERATURA E ESPAÇO POTENCIAL Osasco Centro Universitário FIEO – UNIFIEO 2009

Transcript of Oficina Terapeutica Literatura

  • SONIA SAJ PORCACCHIA

    OFICINA DE LEITURA COMO INTERVENO

    PSICOPEDAGGICA:

    LITERATURA E ESPAO POTENCIAL

    Osasco Centro Universitrio FIEO UNIFIEO

    2009

  • SONIA SAJ PORCACCHIA

    OFICINA DE LEITURA COMO INTERVENO

    PSICOPEDAGGICA:

    LITERATURA E ESPAO POTENCIAL

    Osasco Centro Universitrio FIEO - UNIFIEO

    2009

    Trabalho apresentado ao Curso de Ps-Graduao Stricto Senso Psicologia Educacional do Centro Universitrio FIEO UNIFIEO, como requisito parcial para a obteno do ttulo de Mestre. Orientadora: Prof Dra. Leda Maria Codeo Barone. rea de concentrao: Interveno Psicopedaggica na dificuldade de aprendizagem.

  • FOLHA DE APROVAO SONIA SAJ PORCACCHIA Oficina de Leitura como Interveno Psicopedaggica: Literatura e Espao

    Potencial.

    Dissertao apresentada no Centro Universitrio UNIFIEO para obteno do ttulo de Mestre em Psicologia Educacional.

    Aprovada em: 08/06/2009.

    Banca examinadora

    Prof . Dra. Leda Maria Codeo Barone.

    Centro Universitrio FIEO UNIFIEO . Assinatura: ___________________________

    Prof . Dra. Tnia M. J. Aiello Vaisberg.

    Instituio: Pontifcia Universidade Catlica de Campinas PUCCAMP.

    Assinatura: _________________________________________________________

    Prof . Dra. Mrcia Siqueira de Andrade.

    Centro Universitrio FIEO UNIFIEO. Assinatura: ___________________________

  • Ao meu marido Leonildo e

    aos meus filhos Leo, Allan e ber,

    pelo apoio constante,

    em todos os momentos de minha vida.

  • AGRADECIMENTOS

    s crianas desta pesquisa pelos momentos de aprendizagem, e por me incentivarem a buscar e criar sempre. Pela oportunidade de acompanh-los no caminho da descoberta de si mesmos Aos meus pais, Josef e Margarete pela oportunidade da vida. Vocs tornaram tudo digno e sagrado. Ao meu marido Leonildo pela companhia preciosa. Aos meus filhos Leo, Allan e ber, cuja compreenso, carinho e convivncia ensinaram-me que todo esforo vale a pena. querida professora Dra. Leda Maria Codeo Barone, pela pacincia, devoo, acolhimento e disponibilidade com que me orientou no decorrer deste trabalho. Guardo comigo a eterna lembrana de uma professora e orientadora suficientemente boa. querida professora Mrcia Siqueira de Andrade, minha primeira ensinante na Psicopedagogia e que despertou o meu interesse pelos trabalhos acadmicos. s professoras Tnia M. J. Aiello Vaisberg e Beatriz J. L. Scoz pela leitura atenta do trabalho e pelas sugestes apresentadas no exame de qualificao. querida amiga Flvia Teresa Lima, pelo companheirismo e solidariedade durante os meus estudos e trabalhos na Psicopedagogia. Karina Codeo Barone por suas valiosas contribuies. urea Rampazzo, pela cuidadosa reviso do texto. A todos os professores que fizeram parte deste mestrado e que, como ensinantes, ampliaram o meu conhecimento e o meu olhar sobre o ser humano. Ao Centro Universitrio - UNIFIEO pela oportunidade de realizar esta pesquisa na Clnica Psicopedaggica da Instituio. E a todos que contriburam direta ou indiretamente com esse trabalho.

  • NARRATIVA E CURA1

    A criana est doente. A me leva-a para a cama e senta-se junto a ela. Ento

    comea a contar-lhe histrias. Como devemos compreender tal coisa? Pude fazer

    uma idia quando N. me falou do poder curativo que sua mulher tinha nas mos. No

    entanto, sobre elas disse-me o seguinte: Seus movimentos eram extremamente

    expressivos. Porm, no se poderia descrever sua expresso... Era como se

    contassem uma histria. A cura pela narrativa, j a conhecemos atravs das

    palavras mgicas de Mersenburger - e no porque repitam a frmula mgica de

    Odin. Narram, antes, o contexto no qual ele as utilizou pela primeira vez. Tambm

    se sabe o quanto a narrao que o doente faz ao mdico, no incio do tratamento,

    pode tornar-se o comeo de um processo de cura. Surge, assim, a questo: a

    narrao no criaria, muitas vezes, o clima apropriado e a condio mais favorvel

    de uma cura? No seria toda doena curvel se ela se deixasse levar pela

    correnteza da narrao at a foz? Se considerarmos a dor uma barreira que

    bloqueia a corrente da narrao, podemos ver claramente que ela se quebra quando

    o declive suficientemente acentuado para arrastar tudo que encontra em seu

    caminho em direo ao oceano do venturoso esquecimento. O afago desenha um

    leito para essa correnteza.

    Walter Benjamin

    1 Publicado em: Jornal de Psicanlise, So Paulo, 35(64/65): 115-116, dez. 2002.

  • RESUMO PORCACCHIA, Sonia Saj. Oficina de Leitura como Interveno

    Psicopedaggica: literatura e espao potencial. Osasco, 2009, 160 p.

    Dissertao de Mestrado. Psicologia Educacional. Centro Universitrio - UNIFIEO

    Este trabalho tem como objetivo discutir uma Interveno Psicopedaggica realizada

    atravs da experincia de uma Oficina de Leitura de literatura infantil entendida

    como um Espao Potencial apoiado no pensamento de Winnicott. A Oficina de

    Leitura aconteceu na Clnica Psicopedaggica do Centro Universitrio UNIFIEO

    durante os meses de fevereiro a dezembro de 2008. Os sujeitos que dela

    participaram foram cinco crianas trs meninos e duas meninas -, de oito anos,

    com dificuldade de aprendizagem da leitura e da escrita, encaminhadas para

    atendimento psicopedaggico. A partir da idia da existncia de uma funo

    teraputica da literatura, buscamos aproximar a Literatura, como a entendemos aqui,

    ao Espao Potencial, conforme desenvolve Winnicott. Acreditamos que a leitura de

    histrias de literatura infantil gera um Espao Potencial na medida em que a

    Literatura com sua funo de humanizao, defendida por Candido, se aproxima ao

    viver criativo ou ao estar vivo de Winnicott. A partir da anlise da experincia com

    a Oficina de Leitura supomos ser legtima a aproximao que fizemos dela ao

    Espao Potencial de Winnicott. Pudemos observar, ao longo de trabalho com a

    Oficina de Leitura, mudanas significativas no modo de ser das crianas do grupo.

    Elas no s se aproximaram de maneira mais genuna da atividade de leitura e

    escrita como se mostraram tornaram mais vivas e criativas demonstrando com mais

    autonomia que a vida vale a pena ser vivida.

    Palavras chaves: Interveno Psicopedaggica, Oficina de Leitura, Literatura,

    Espao Potencial, Dificuldade de aprendizagem na leitura e na escrita.

  • ABSTRACT

    PORCACCHIA, Sonia Saj. Reading Workshop as Psychopedagogic Intervention:

    literature and potential space. Osasco, 2009, 160 p. Dissertao de Mestrado.

    Psicologia Educacional. Centro Universitrio - UNIFIEO

    This paper aims to discuss a psychopedagogic intervention conducted through the

    experience of a Reading Workshop about child literature like a potential space

    supported by the Winnicotts ideas. The Reading Workshop happened into the

    Clinical Psychopedagogic in the Centro Universitrio - UNIFIEO during the months

    February to December of 2008. The subjects who participated were five children -

    three boys and two girls who are eight years old, with learning disabilities of

    reading and writing, sent to care psychology. From the idea of there is a literature

    therapeutic function, we bring the literature, as we understand it here, to the Potential

    Space as Winnicott develops. We believe the read of child literatures stories creates

    a potential space while the literature with its function of humanization, defended by

    Candido, approaches to the creative living to the "be alive" of Winnicott. From the

    analysis of experience with the Reading Workshop we suppose to be legitimate the

    approach we did between it and the Potential Space of Winnicott. We observed,

    through the work with the Reading Workshop, significant changes in the way of being

    of the groups children. They didnt only get close as a more genuine way of the

    activity of reading and writing, but they became more lively and creative showing with

    more autonomy the life is worth being lived.

    Keywords: Intervention psychology, Reading Workshop, Literature, Potential Space,

    Learning difficulty in reading and writing.

  • LISTA DE ILUSTRAES FIGURA 1 Primeiro desenho da Famlia feito por Gustavo ....................

    62

    FIGURA 2 Capa do livro..............................................................................

    66

    FIGURA 3 Cpia da capa do livro: Quando a mame virou um

    monstro ...................................................................................

    68

    FIGURA 4 Desenho de Gustavo: Aprendente.......................................

    72

    FIGURA 5 Desenho de Gustavo: Figura Humana ................................

    73

    FIGURA 6 Desenho de Gustavo no final da oficina de Leitura:

    Famlia ...................................................................................

    74

    FIGURA 7 Primeira Sondagem da escrita de Gustavo ...........................

    75

    FIGURA 8 Segunda Sondagem da escrita de Gustavo ..........................

    76

    FIGURA 9 Primeiro desenho de Jade: Aprendente .............................

    79

    FIGURA 10 Segundo desenho de Jade: Aprendente ............................

    80

    FIGURA 11 Primeira Sondagem da escrita de Jade .................................

    83

    FIGURA 12 Segunda Sondagem da escrita de Jade .................................

    84

    FIGURA 13 Primeiro desenho de Bruna: Aprendente ...........................

    92

    FIGURA 14 Segundo desenho de Bruna: Aprendente...........................

    93

    FIGURA 15 Primeira Sondagem da escrita de Bruna ............................... 94

  • FIGURA 16 Segunda Sondagem da escrita de Bruna ..............................

    95

    FIGURA 17 Primeira Sondagem da escrita de Luis ..................................

    100

    FIGURA 18 Segunda Sondagem da escrita de Luis .................................

    101

    FIGURA 19 Primeira Sondagem da escrita de Valter ................................

    106

    Figura 20 Segunda Sondagem da escrita de Valter ...............................

    107

  • SUMRIO

    1

    INTRODUO.................................................................................

    14

    1.1

    FUNO TERAPUTICA DA LITERATURA ..................................

    14

    1.2

    A IMPORTNCIA DO AMBIENTE: CONTRIBUIES

    WINNICOTTIANAS..............................................................................

    30

    1.3

    INTERVENO PSICOPEDAGGICA: A OFICINA DE LEITURA

    COMO UM ESPAO POTENCIAL ....................................................

    33

    1.3.1

    A importncia da voz .......................................................................

    35

    1.3.2

    A importncia do livro ......................................................................

    38

    1.3.3

    A importncia da literatura como espelho .....................................

    39

    1.3.4

    A importncia da organizao da Oficina de Leitura como um

    Espao Potencial ..............................................................................

    41

    1.3.5

    A importncia de contribuies da psicanlise Interveno

    Psicopedaggica ..............................................................................

    42

  • 2

    A OFICINA DE LEITURA .............................................................

    50

    2.1

    A ANLISE DE CADA CRIANA DO GRUPO ..............................

    52

    2.2.1

    Gustavo .........................................................................................

    60

    2.2.2

    Jade ................................................................................................

    76

    2.2.3

    Bruna ..............................................................................................

    85

    2.2.4

    Luis ................................................................................................

    95

    2.2.5

    Valter ..................................................................................................

    101

    2.3

    ANLISE DO GRUPO ....................................................................

    107

    3

    CONSIDERAES FINAIS ...........................................................

    122

    REFRENCIAS ..............................................................................

    126

    APNDICE

    A - RESUMOS DAS HISTRIAS QUE FORAM SIGNIFICATIVAS

    PARA AS CRIANAS DA OFICINA DE LEITURA ........................

    133

  • ANEXOS

    A - TTULOS DAS HISTRIAS LIDAS E SEUS RESPECTIVOS

    AUTORES.........................................................................................

    B APROVAO NO COMIT DE TICA................................ .......

    138

    140

  • OFICINA DE LEITURA2 COMO INTERVENO PSICOPEDAGGICA:

    LITERATURA E ESPAO POTENCIAL

    PARTE 1 - INTRODUO

    1.1 FUNO TERAPUTICA DA LITERATURA

    A idia de uma funo teraputica da literatura3 no recente, parece

    universal, e surge na Antiguidade Clssica, por exemplo, em Aristteles, que, na

    Arte potica, pensa a criao artstica e a feitura de obras como tendo um fim

    teraputico. Isso provoca no espectador um prazer que consiste num desafogo,

    num repouso, num modo de ocupar lazeres num gozo intelectual -, numa

    vantagem que no til aos bons costumes; enfim, opera a catarse, palavra que uns

    traduzem por purificao e outros por purgao (ARISTTELES, 2004, p.16). Para

    Aristteles o conceito amplo e pode ser entendido como:

    [...] uma expulso provocada de um humor incmodo por sua superabundncia. Do mesmo modo que a msica apaixonada, a tragdia, bem concebida, deve determinar no auditrio, que se deixou empolgar pelas paixes expressas, um gozo que, no final do espetculo, d impresso de libertao e de calma, de apaziguamento, como se a obra tivesse dado ocasio para o escoamento do excesso de emoes (ARISTTELES, 2004, p.18).

    A funo teraputica da literatura tambm est presente na clssica obra

    oriental As mil e uma noites, to bem retratada por Purificacion Barcia Gomes (2000)

    em O mtodo teraputico de Scheerazade: mil e uma histrias de loucura, de desejo

    e cura, e na obra de Daisy Wajnberg (1997), Jardim de arabescos: uma leitura das

    mil e uma noites.

    Gomes (2000) fala do mtodo teraputico de Scheerazade, uma jovem que

    pode ser identificada com uma terapeuta bem-sucedida, que, por mil e uma noites,

    contou diferentes histrias ao sulto, seu marido, at que ele se viu curado de sua 2 Nomeamos Oficina de Leitura um espao que tem como instrumento principal a leitura de histrias de literatura infantil, a partir da qual se abrem espaos para a existncia de dilogos que surgem do paciente e, conseqentemente, a realizao de diversas atividades provenientes dessa leitura. Lembramos ao leitor que estamos aproximando este conceito ao Espao Potencial de Winnicott. 3 Estamos chamando de literatura a manifestao universal de todos os homens em todos os tempos, ou seja, conforme Candido (1988,p.174), da maneira mais ampla possvel, todas as criaes de toque potico, ficcional ou dramtico em todos os nveis de uma sociedade, em todos os tipos de cultura, desde o que chamamos de folclore, lenda, chiste, at as formas mais complexas e difceis da produo escrita das grandes civilizaes.

  • doena (aps a noite de npcias sempre matava todas as suas esposas), passando

    a confiar nas mulheres e viver satisfatoriamente o seu amor por Schererazade.

    Os encontros para contar e ouvir histrias, para Gomes (2000, p.14), so uma

    atividade propriamente psicoteraputica: o sulto sofre, e, atravs dos encontros

    com Scheerazade, esta lhe diz coisas que aliviam o seu sofrimento.

    Esse mtodo nos vem sendo repetidamente narrado h muitos anos, e se

    confunde com nossa histria (GOMES 2000, p.15). Nesse sentido, a autora fala da

    importncia dos narradores e das narrativas, entre eles aponta Alexandre Magno,

    que tinha como entretenimento ouvir histrias contadas por homens especializados;

    e, mais recentemente, relata a importncia da tradio oral no Oriente, desde os

    primeiros sculos da fundao do Isl, com os pregadores e comentadores do

    Coro, contadores de histrias religiosas, contadores populares de ditos anedticos

    supostamente religiosos, e tambm o grupo de contadores com origem nas farsas e

    pantomimas provenientes de razes do teatro clssico.

    Para Gomes (2000, p.20), os narradores rabes e, aqui, inclu Scheerazade,

    parecem perceber que a narrativa interrompida e retomada tem o condo de,

    artificialmente, criar uma necessidade de mais narrativas. Acrescentaramos ns: de

    alguma forma, essas novas narrativas se enganchariam em outras, pessoais, de

    histrias da vida do ouvinte.

    Para Wajnberg (1997, p.17), Sheherazade o prprio paradigma do

    narrrador e s cobra o seu sentido de personagem enquanto ocupa este lugar e

    a hbil voz de Sheherazade que se ergue e se cala, a que instaura o discurso das

    Noites (WAJNBERG, 1997, p.12). A leitura das histrias perpassada pela voz da

    narradora acabava por operar um certo efeito teraputico em relao ao sulto

    (WAJNBERG, 1997, p.12), levando-o cura da sua fria homicida. A autora conclui

    que Sheherazade o paradigma do flego incessante da narrativa, sempre pronta a

    se refazer, fantstico castelo reerguido na prxima histria, mais uma, sempre mais

    e ainda (WAJNBERG, 1997, p. 184).

    Na atualidade vasta e diversificada a bibliografia, vinda de diferentes reas -

    crtica literria, biblioteconomia, psicopedagogia, psicanlise, antropologia - que trata

    dessa questo, no se devendo ignorar, tambm, o depoimento de leitores e relatos

    de experincia utilizando a narrativa.

    A partir da crtica literria importante o pensamento de Walter Benjamim,

    Antonio Candido e de Adlia Bezerra de Meneses, entre muitos outros.

  • Walter Benjamin (1992) concebe a narrativa na perspectiva de transmisso e

    organizao da experincia. Aqui o autor fala da experincia que anda de boca em

    boca a fonte onde todos os narradores vo beber... experincias que foram

    registradas como histrias (BENJAMIN, 1992, p.28-29).

    Nesse sentido, Benjamin (1994, p.114) conta uma parbola que existia em um

    de seus livros de leitura:

    [...] um velho que no momento da morte revela a seus filhos a existncia de um tesouro enterrado em seus vinhedos. Os filhos cavam, mas no descobrem qualquer vestgio do tesouro. Com a chegada do outono, as vinhas produzem mais que qualquer outra regio. S ento compreenderam que o pai lhes havia transmitido uma certa experincia: a felicidade no est no ouro, mas no trabalho.

    Nesse trecho podemos perceber a transmisso da experincia de vida do pai

    aos filhos, na qual a relao que o narrador tem com a sua matria, a vida humana,

    artesanal, uma construo de vida nica.

    Para esse autor a narrativa de uma histria tambm importante porque o

    extraordinrio, o maravilhoso, so narrados com a maior preciso, sem que, no

    entanto, seja imposta ao leitor a coerncia psicolgica da ao. O leitor tem a

    liberdade de interpretar as coisas como as entende (BENJAMIN, 1992, p.34).

    Antonio Candido (1988) afirma que no h homem que possa viver sem a

    literatura, pois ela aparece como manifestao universal de todos os homens e

    fator indispensvel de humanizao. Candido (1988, p.180) entende por:

    [...] humanizao o processo que confirma no homem aqueles traos que reputamos essenciais, como o exerccio da reflexo, a aquisio do saber, a boa disposio para o prximo, o afinamento das emoes, a capacidade de penetrar nos problemas da vida, o senso de beleza, a percepo da complexidade do mundo e dos seres, o cultivo do humor.

    A literatura importante nas formas de educao familiar, grupal e escolar, e

    possui papel fundamental na formao da personalidade do ser humano como fora

    indiscriminadora e poderosa da prpria realidade, diz Antonio Candido (1988,

    p.176); e ainda mais, ela no corrompe nem edifica, portanto; mas, trazendo

    livremente em si o que chamamos o bem e o mal, humaniza em sentido profundo,

    porque faz viver.

    Para esse autor, (1988, p174) no h homem que possa viver sem a

    possibilidade de entrar em contato com alguma espcie de fabulao..., a literatura

    o sonho acordado das civilizaes, (...) confirmando o homem na sua humanidade,

    inclusive porque atua em grande parte no subconsciente e no inconsciente. As

  • produes literrias satisfazem as necessidades bsicas do ser humano e trazem a

    possibilidade de o sujeito viver dialeticamente os seus problemas.

    Para Candido (1988, p. 176) a funo da literatura est ligada

    complexidade da sua natureza, que se apresenta simultaneamente nestes trs

    aspectos :

    1. uma construo de objetos autnomos como estrutura e significado;

    2. uma forma de expresso;

    3. uma forma de conhecimento, inclusive como incorporao difusa e

    inconsciente.

    Como um primeiro nvel de humanizao, a produo literria tira as palavras

    do nada e as dispe como todo articulado estabelece Candido (1988, p.177), em

    que a organizao da palavra comunica-se ao nosso esprito e o leva, primeiro, a se

    organizar; em seguida, a organizar o mundo.

    Tudo isso pode acontecer nas formas mais rudimentares de produo

    literria - quadrinha, provrbio etc, que resumem experincias em simples

    espetculos mentais e que podem auxiliar na superao do caos, determinadas que

    so por um arranjo especial das palavras e fazendo uma proposta de sentido

    (CANDIDO, 1988, p. 178).Essa proposta de sentido a passagem do sentimento do

    estado de mera emoo para o da forma construda e pertinente, nomeada por

    Candido (1988) como humanizao.

    Nessa mesma linha de pensamento, temos Adlia Bezerra de Meneses

    (2005), que fala da literatura como promovedora da passagem do caos de

    sentimentos e percepes a um cosmos, a um mundo organizado. Por meio das

    palavras, do nomear de emoes e situaes existenciais at ento inarticuladas,

    ela permite que os sentimentos passem do estado de mera emoo para o da

    forma construda, e essa forma que lhe assegura a generalidade e a permanncia

    (MENESES, 2005, p.122).

    Meneses (1995, p.13) destaca as relaes entre literatura e psicanlise:

    [...] em mais de um nvel: desde a utilizao da Palavra como matria comum, at a refinada frmula lacaniana do inconsciente estruturado enquanto linguagem, passando pelo substrato comum a sonhos, mitos, lendas, lapsos, epopia, romance, poema a emerso do inconsciente.

    Para essa autora, a arte um espao em que o inconsciente pode aflorar, e a

    psicanlise o reconhecimento desse inconsciente.

  • Para Meneses (1995, p.17) se Literatura e Psicanlise fornecem uma leitura

    do humano, vista do ngulo da Literatura, a Psicanlise propicia um instrumento de

    leitura... para o literrio. Essa leitura do humano postula um trabalho de

    interpretao que onde quer que um homem sonhe, profetize ou poetize, outro se

    ergue para interpretar (RICOEUR apud MENESES, 1995, p.18) surgindo assim, o

    processo da simbolizao, possibilitando-se uma representao da realidade.

    Essa realidade foi construda de tal maneira que suscita e provoca a catarse

    das emoes, que, para Meneses (2005, p.123), significaria quase que reconhecer

    uma funo teraputica da obra literria, parte da premissa de que ela age sobre

    ns, atua no nvel psquico. Das observaes dessa autora, gostaramos de

    destacar a referncia que faz a duas obras, As mil e uma noites, clssico da

    literatura oriental, e Grande serto: veredas, de Guimares Rosa. Quanto primeira

    obra, a autora ressalta o papel da contadora de histria, que permite ao Sulto

    acessar o mundo simblico por meio de uma linguagem que consiste numa

    reorganizao estrutural da personalidade e busca recuperar a capacidade amorosa

    do Sulto.

    Assim, conclui a autora que h em Mil e uma noites, como sugere Walter

    Benjamin, uma ligao entre a fala e o gesto, entre a voz e a carcia, uma vez que

    as narrativas de Scherazade se seguiam s suas noites de amor com o Sulto e

    so suas histrias que lhe facultam a possibilidade de dormir a prxima noite com

    ele. a narrativa que possibilita o encontro futuro(MENESES, 1995, p.55).

    Na narrativa oral, a Palavra corpo: modulada pela voz humana, e portanto carregada de marcas corporais; carregada de valor significante. Que a voz humana seno um sopro (pneuma: esprito...) que atravessa os labirintos dos rgos da fala, carregando as marcas clidas de um corpo humano? A palavra oral isso: ligao de sema e soma, de signo e corpo. A palavra narrada guarda uma inequvoca dimenso sensorial (MENESES, 1995, p.56)

    Em relao a Grande serto: veredas, Meneses (2005, p.126) informa que o

    narrar aparece;

    [...] como uma busca desesperada de sentido para o vivido, a verbalizao de situaes existenciais na presena de um Outro, ou melhor, para um Outro, (numa situao transferencial) que fornece a possibilidade de reorganizar o prprio mundo interior.

    Riobaldo, personagem que detm o poder do discurso:

    [...] conversa a ss numa situao de intimidade com um doutor da cidade que nunca fala, mas de presena significativa e cujas manifestaes so inferidas por algumas observaes do prprio narrador, s vezes na linha de uma leitura gestual (MENESES, 2005, p.126).

  • Ao narrar sua vida, Riobaldo estrutura a experincia repetindo textualmente:

    o senhor me organiza. Ele seleciona fatos de sua vida e os rene num todo. A

    palavra potica vai lhe propiciar, sim, uma passagem do Caos ao Cosmos

    (MENESES, 2005, p.135).

    Da mesma maneira, com Meneses (2005), podemos perceber que a literatura

    organiza a nossa experincia quando apresenta um universo ordenado, ficcional,

    que nos permite expressar, verbalizar nossas emoes, sensaes e vivncias que

    no conseguamos nomear. O texto literrio apresenta situaes humanas que

    refletem a nossa condio de vida. A narrativa dessa condio monta um enredo, d

    forma aos sentimentos e quando damos forma aos sentimentos, viso do mundo,

    a literatura nos organiza; nos liberta do caos e nos humaniza. (Candido, 1988),

    Assim podemos realmente pensar na existncia de uma funo teraputica

    da obra literria partindo do princpio de que age sobre ns, atuando no nvel

    psquico. Nesse sentido, outra contribuio importante para o presente trabalho vem

    dos estudos da biblioterapia, que, segundo Clarice Fortkamp Caldin (2001, p.8),

    admite a possibilidade de uma terapia por meio da leitura de textos literrios, e se

    configura como:

    [...] o encontro entre ouvinte e leitor em que o texto desempenha o papel do terapeuta. Alm da leitura, os comentrios, os gestos, os sorrisos, os encontros so tambm teraputicos medida que fornecem a garantia de que no estamos sozinhos. O texto une o grupo.

    Para essa autora, os estudantes de biblioteconomia4, bibliotecrios e aqueles

    que se interessam pelo tema tm um bom referencial terico que embasa a

    realizao de trabalhos com a funo teraputica da leitura, no seu artigo

    denominado A leitura como funo teraputica: Biblioterapia (CALDIN, 2001).

    Caldin (2001, p.1 e 2005, p.3) admite a possibilidade de a literatura

    proporcionar a pacificao das emoes a catarse..., uma vez que a leitura do

    texto literrio, portanto, opera no leitor e no ouvinte o efeito de placidez, e a literatura

    possui a virtude de ser sedativa e curativa. Tambm tem a possibilidade de

    produzir a identificao com as personagens por meio da projeo e introjeo; e

    4 Biblioteconomia uma parte da bibliotecologia (cincia da constituio e do funcionamento das bibliotecas) que trata dos aspectos da armazenagem, do acesso e da circulao das colees de livros (conforme Dicionrio Houaiss da lngua portuguesa, 2001).

  • de favorecer a introspeco. A literatura tem, portanto, uma funo teraputica

    (CALDIN, 2005, p.5), uma vez que:

    [...] na psique infantil o imaginrio e a fantasia podem ser liberados pelo contato literrio (escrita, audio ou leitura), pois so constitutivos da atividade criadora da criana sobre a realidade. Existe, portanto, um caminho para chegar ao prazer esttico, que na criana passa pela influncia do literrio, da brincadeira, dos jogos em seu imaginrio, em sua fantasia, mas que se manifesta como atuao no mundo, como linguagem (CALDIN, 2004, p.73).

    Caldin (2001, 2004, 2005), entre outros, entende o uso da biblioterapia e, em

    especial, a leitura de textos literrios, em classes de acelerao na escola pblica,

    em hospitais, asilos e nos tratamentos psicolgicos em crianas, jovens, adultos,

    deficientes fsicos, doentes crnicos e viciados.

    A partir da psicanlise, podemos tambm lembrar os trabalhos de Bettelheim

    (2008, p.12), quando utilizou os contos de fadas na psicoterapia, afirmando que eles

    lidam com:

    [...] problemas humanos universais, particularmente os que preocupam o pensamento da criana, essas histrias falam ao ego que desabrocha e encoraja o seu desenvolvimento, ao mesmo tempo em que aliviam presses pr-conscientes e inconscientes (...) [mas] (...) num sentido bem mais profundo do que qualquer outro material para leitura, comeam no ponto em que a criana efetivamente se acha em seu ser psicolgico e emocional. (BETTELHEIM, 2008, p.13).

    Ainda para esse autor, ler e ouvir outros lerem so meios essenciais de

    educao (BETTELHEIM, 2008, p.13).

    Tambm Gilberto Safra (1984), em sua Dissertao de Mestrado, em

    abordagem winnicottiana, utilizou histrias infantis como meio de interveno por ser

    uma forma ldica de expresso compatvel com a vida mental da criana, e por

    favorecer o aparecimento do espao transicional, possibilitando que a criana

    introjete a interveno sem ser invadida.

    O referido autor fala da importncia dos contos de fadas para a humanidade,

    uma vez que:

    [...] em todos os povos encontramos estrias, mitos, atravs dos quais os seus membros buscam a elaborao de suas angstias comuns, e a transmisso de sua cosmoviso com seus sistemas de valores, em relao aos quais os seus membros buscam referncias (SAFRA,1984, p.7).

    No trabalho citado, Safra (1984, p. 7, 8, 9 e 10) apresenta vrios autores que

    utilizaram os contos de fadas de maneira satisfatria: Hellmuth, como tcnica

    interpretativa; Erich Berne, como utilidade de ilustrao da prpria vida do paciente;

  • Wittgenstein, como tcnica em que o cliente narrava o que se lembrava das estrias

    de fadas que ouviu na sua infncia, nas quais considerava suas distores como

    indicao da sua problemtica pessoal; Heusher usou os contos na psicoterapia;

    Gardner usou uma tcnica em que cliente e terapeuta contam mutuamente estrias

    para um fim teraputico; Ramon e outros utilizaram os contos populares como

    tcnica teraputica na qual a criana escolhe um personagem para dramatizar ou

    modelar em argila, havendo, assim, estimulo simbolizao e expresso de

    sentimentos, propiciando oportunidades para elaborao dos problemas; Clamam,

    numa psicoterapia ego-orientada, em que o terapeuta tem um papel de colaborador,

    direcionando as estrias para o problema e estgio de desenvolvimento da criana,

    props contar estrias para crianas ao lado do jogo do rabisco, tcnica teraputica

    proposta por Winnicott.

    Pavlovsky, citado por Gutfreind (2005a), serve-se dos contos para criar um

    espao ldico, onde a criana pode imaginar, criar, brincar, inventar, e se refugiar

    nos momentos mais difceis de sua vida, como uma forma de alimentar a sua

    imaginao, encontrando outra forma de enfrentar a sua realidade.

    Celso Gutfreind (2005a), psiquiatra, psicanalista, poeta e escritor, em seu livro

    O terapeuta e o lobo refere-se existncia na Frana de atelis de contos

    teraputicos - encabeados por Pierre Lafforgue e Marie Bonnaf - que participam,

    ativamente, no tratamento de crianas com diferentes patologias, em diversas

    instituies psiquitricas. Segundo Gutfreind (2005a), Lafforgue mostra alentadores

    resultados no uso de histrias como mediadoras no tratamento de crianas

    psicticas e autistas. Por sua vez, Bonnaf emprega o conto com bebs como forma

    de reintegrar famlias socialmente marginalizadas, na regio parisiense. Esses

    autores visam, sobretudo, o aspecto ldico e o desenvolvimento da imaginao das

    crianas, de onde advm o seu efeito teraputico. Esse ponto de vista tambm se

    encontra em Diatkine, quando este afirma que as histrias lidas para as crianas

    antes de dormir permitem a elas suportar melhor o escuro, o medo de morrer e o de

    perder os pais.

    Gutfreind (2005a) se inspirou nesses trabalhos para realizar suas pesquisas,

    por meio de um ateli, aplicando o conto na psicoterapia de crianas com carncia

    afetiva. O autor fala da importncia das narrativas curtas como antdoto contra o

    medo e para o reforo de identidade das crianas.

  • A leitura de histrias tem, para Barone (1982), um duplo sentido: transmitir

    valores de uma cultura e uma funo teraputica, na medida em que afirma que

    A literatura, oral ou escrita, a principal forma de transmisso de valores, de smbolos, em diferentes culturas e, atravs dela, o homem pode tomar conscincia de sua realidade, externa e interna, que sntese de seu passado, e recri-la, pois o leitor encontra no texto elementos seus ligados sua prpria indagao sobre a vida, seus conflitos, valores, desejos e crenas (BARONE 1982, p.4).

    Barone (2006), baseada em Cabrejo-Parra, prope a idia da leitura como

    fundadora do psiquismo. Afirma que desde o nascimento a criana capaz de

    reconhecer a voz da me e de maneira muito rudimentar fazer uma primeira leitura.

    Ressalta ainda que nesse contato a criana constri a prpria voz a partir da

    prosdia da lngua, ao internalizar a voz da me. Sugere tambm que essa voz, ao

    mesmo tempo to pessoal e ntima, construda a partir da voz de algum. E essa

    acolhida pelo outro que permite que passemos do grito voz (BARONE, 2006,

    p.92). Reafirmando essa idia de trazer a presena simblica do outro, Barone cita

    Cabrejo-Parra: ser porta-voz ao mesmo tempo entrar na cadeia simblica, porque

    a voz faz parte de uma cadeia, de uma lngua que est a (CABREJO-PARRA apud

    BARONE 2006, p.92-93). Por esse motivo, para Barone (2006):

    [...] ler uma necessidade imperiosa do homem: faz parte de seu processo de humanizao e de sobrevivncia; inicia nos primeiros contatos me-beb se prolonga na vida contribuindo de maneira importante para a constituio do sujeito humano (BARONE, 2006, p.92).

    Em outro trabalho: O leitor e o texto: funo teraputica da literatura, Barone

    (2007a) aproxima a psicanlise de algumas idias desenvolvidas por crticos

    literrios, como Antonio Candido, Umberto Eco e Walter Benjamin, de maneira a

    fundamentar esse valor na leitura. A autora, em seu artigo Entre o leitor e o texto:

    espao para subjetivao, busca refletir sobre o valor da literatura na construo do

    sujeito, destacando um possvel efeito teraputico da leitura de textos literrios na

    escola, sustentando teoricamente essa aplicao como meio de desenvolvimento

    subjetivo dos alunos. A autora prope a funo teraputica da literatura considerada

    a partir de dois aspectos essenciais e inter-relacionados: o aspecto catrtico e o

    aspecto estruturante, prprios experincia de leitura. Dessa maneira:

    A literatura oferece ao leitor ou ouvinte a forma do humano, levando-o a compreender melhor de si e o seu mundo, [uma vez que] as histrias permitem criana encontrar palavras para nomear, dar forma e significar a massa indiferenciada e excitante do fluxo vivido; palavras que nomeando as coisas do mundo o tornam habitvel (BARONE, 2008, resumo).

  • Para a psicopedagogia, Gillig (1999, p.17) sustenta a pedagogia do conto

    como um apelo motivao da criana para a leitura, abrindo assim o esprito da

    criana para o mecanismo da construo da narrativa que a encantou.

    O autor faz uma reflexo com relao funo simblica e iniciadora dos

    contos pela pedagogia escolar. Para Gillig (1999, p.19), o desinteresse da criana

    pela coisa escolar pode ser interpretado como uma barreira entre seu mundo, ainda

    fechado por razes ligadas tanto ao psicoafetivo quanto ao social, e o espao

    escolar, que simboliza a cultura onde tm xito aqueles que sabem decodificar os

    seus segredos.

    Desse fato derivam as dificuldades encontradas por essas crianas, no plano

    afetivo ou no plano intelectual, de acesso ao simblico, de distanciamento do real

    em relao ao imaginrio, de expresso do desejo de vencer e de relao com

    outrem (GILLIG, 1999, p.19). Para esse autor o emprego do conto serve de

    mediador entre o imaginrio da criana e a construo de competncias, que a

    escola espera do aluno e que tenta tornar desejveis para ele.

    Tudo isso est relacionado ao processo de maturao de qualquer indivduo,

    continua o autor, e associa o seu pensamento a Winnicott, quando traz o fato de que

    a:

    [...] experincia cultural, para a criana pequena, comea no brinquedo, na fantasia, no sonho, e inscreve-se em um espao potencial. Prossegue na adolescncia e na vida adulta por meio do contato com as artes, com a religio e com o trabalho cientfico criativo (GILLIG, 1999, p.19).

    O autor conclui que o conto poderia ser para a criana um objeto transicional

    que lhe permitisse passar do mundo da onipotncia imaginria quele da

    experincia cultural, e em que o prazer e o desejo pudessem encontrar sua fonte de

    renovao (GILLIG, 1999, p.19).

    A partir de uma Psicopedagogia Iluminada pela Psicanlise, Barone (2004)

    vale-se de uma atividade que denominou de Imaginao (o paciente realizava

    desenhos que compunham um livro, a partir da histria contada pela terapeuta), e

    com isso props estudar a funo teraputica do narrar-brincar. A autora aproximou

    a viso benjaminiana da proposta de Winnicott, ressaltando a funo teraputica do

    brincar. Ao ler uma fbula, o paciente desenhava cada uma das partes que a

    compunham e, no final, devia narrar o que havia desenhado. Com isso o paciente

    conseguia entrar em contato com suas questes traumticas e ressignificava as

    prprias dores.

  • J na antropologia temos os estudos de Michlet Petit (2006a) sobre a leitura

    como instrumento que possa vir a ajudar crianas, adolescentes e adultos a superar

    momentos de crise, com resultados positivos na re-elaborao pessoal de suas

    crises internas.

    Para essa autora, o que configura um espao de crise se relaciona a

    situaes provenientes de guerras, violncia ou deslocamentos forados em que

    os modos de regulao social e psquico, que se mostravam funcionais at aquele

    momento, tornam-se disfuncionais. Muitas vezes no decorrer da vida o sujeito um

    espao em crise, como reconhece Petit (2006a), quando afirma que os recursos

    pessoais, sociais, psicolgicos e econmicos no so mais suficientes para fazer

    frente s situaes vividas, provocando perda total do sentido de viver e uma

    inibio das funes mentais. Nesses momentos de total desamparo do indivduo,

    aos quais a autora refere-se, a leitura de um livro pode contribuir para a construo

    ou reconstruo de si mesmo, trazendo benefcios na produo de significados, na

    elaborao da histria pessoal e na recomposio dos vnculos sociais.

    Petit (2006a, p.149) sugere que a leitura tem uma funo reparadora, uma

    vez que uma obra capaz, literalmente, de nutrir a vida. Nessa perspectiva a

    autora fala de trs hipteses essenciais para que acontea a funo teraputica da

    leitura de literatura, possibilitando a elaborao de sentidos:

    1) permite um encontro personalizado para ouvir o outro, um espao de

    intersubjetividade, de acolhimento e hospitalidade;

    2) as leituras do lugar ao outro de ser sujeito, ou seja, de falar em nome

    prprio, permitindo assim um espao psquico, como sustentar um processo de

    autonomizao, de constituio de uma posio de sujeito (PETIT, 2006a, p.153);

    3) ler desencadeia uma atividade narrativa interna, permitindo uma

    verdadeira apropriao, isto , uma metfora em que o corpo tocado (PETIT,

    2006a, p.153).

    Mas, conforme a autora de importncia crucial nas situaes de crise, que

    se recrie um espao transicional, para que se reencontre a capacidade de

    restabelecer os laos seja com o mundo interno, seja com o externo, para que se

    recupere a capacidade de brincar, simbolizar, aprender, pensar, criar. Como escreve

    Didier Anzieu (1981, p.22):

    [...] a recriao de um espao transicional a condio necessria (mas no suficiente) para permitir que um indivduo ou grupo recupere a confiana na prpria continuidade, em sua capacidade de estabelecer laos

  • consigo prprio, com o mundo e com os outros, em sua capacidade de brincar, de pensar, de criar.

    Petit (2006a, p.159) ressalta que ler pode desenredar em si aquilo que

    estava atado e ligar os fragmentos de uma histria, criar pontes entre episdios, dar

    um pouco de continuidade, de coerncia a um percurso. Assim, ler permite

    inscrever-se numa histria, com a possibilidade de realizar mudanas naquilo que

    foi vivenciado por nossos ancestrais.

    Percebemos que a leitura de um texto muitas vezes ajuda na reorganizao

    da nossa prpria histria, fazendo uma ligao do mundo interior com o mundo

    exterior. Como afirma Petit (2006a, p.159), a leitura coloca o pensamento em

    movimento, relana uma atividade de simbolizao, de construo de sentido,

    permitindo ao sujeito se abrir para a fantasia, para o mundo imaginrio. Podemos

    afirmar que a leitura ajuda a pessoa a se construir e a se descobrir autora de sua

    vida, sujeito de seu destino, mantendo a humanidade, o sentido da vida.

    Para Petit (2006b) a leitura de literatura uma experincia insubstituvel, na

    qual o ntimo e o compartilhado ligam-se de forma indissolvel. O desejo de saber, a

    exigncia potica, a necessidade de relatos e a necessidade de simbolizar nossa

    experincia constituem a especificidade humana.

    Assim, podemos pensar que a leitura de histrias possui uma potncia na

    construo e reconstruo do sujeito.

    Tambm no podemos esquecer ou deixar de lado o depoimento de leitores

    que fazem referncia funo teraputica da leitura.

    Segundo Petit (2006a), temos ao longo da histria alguns exemplos de

    possibilidades reparadoras da leitura,

    [...] basta pensar no sculo XX e no papel que a literatura desempenhou para tantos deportados nos campos nazistas (lembremo-nos de Primo Levi recitando Dante a seu companheiro Pikolo, em Auschwitz), no exlio stalinista ou nas prises argentinas (PETIT, 2006a, p.150).

    Assim a autora entende que a leitura tem uma funo reparadora, uma vez

    que uma obra capaz, literalmente, de nutrir a vida.

    Petit (2006a) conta uma experincia de Beatriz Robledo na Colmbia, quando

    leu histrias para adolescentes, meninos e meninas, envolvidos no conflito armado

    que transpassou o pas, que conviveram com a morte de pessoas amigas e

  • inimigas, nos combates corpo a corpo. Robledo (apud PETIT, 2006a, p.152)

    comenta que:

    Para cidados que vivem em condies normais de desenvolvimento, um livro uma porta a mais que se abre; para aqueles aos quais foram negados os direitos fundamentais, ou que vivem em condies subumanas, talvez um livro seja a nica porta que lhes permitiria ultrapassar o limiar e saltar para outro lado.

    Um livro, mais especificamente a leitura de literatura, a nica porta que se

    abre para ver alguma coisa, para poder sonhar, para despertar a imaginao. Enfim,

    poder contar de formas diferentes,a si mesmo, o que foi perdido. Petit (2006a),

    tambm, relata o trabalho de Mira Rothenberg, nos Estados Unidos, quando esta

    lecionou para 32 crianas judias entre 11 e 13 anos de idade, que passaram pelos

    horrores da segunda guerra mundial. Essas crianas no conseguiam aprender

    nada. Com a leitura de histrias sobre a perda das terras pertencentes aos ndios

    americanos e de poemas indgenas que falavam do amor pelas terras, pelos animais

    e pela liberdade, as crianas reagiram. Afirma Rothenberg (apud PETIT, 2006a, p.

    151):

    Alguma coisa se modificara nelas. Os ndios deviam sentir pela Amrica o mesmo que elas sentiam por seus pases de origem. E nos tornamos todos indgenas. Tiramos os mveis da classe. Instalamos tendas e pintamos um rio no assoalho. Construmos canoas e animais de tamanho natural, de papier mch. [...] As crianas comearam lentamente a desfazer suas carapaas.

    Os diferentes autores e depoimentos aqui trazidos apontam vrias situaes

    que podemos considerar como de crise para o sujeito. Nesse trabalho, gostaramos

    tambm de ressaltar outra situao dessa natureza. Referimo-nos impossibilidade

    de ler e escrever. Ningum desconhece o valor da leitura e da escrita na atualidade,

    a ponto de esta impossibilidade trazer uma marca indelvel para a constituio

    subjetiva. Saber ler e escrever no mundo moderno um divisor de guas, podendo

    relegar aqueles que no tm acesso leitura e escrita a um lugar inferior no grupo

    social e trazer uma ferida narcsica importante.

    Reconhecendo essa importncia, Morais (1996) salienta que nas sociedades

    modernas as conseqncias, os nus e danos para quem no sabe ler so

    relevantes, uma vez que a leitura fator indispensvel vida cotidiana do sujeito.

    Cada vez mais existe a necessidade de se ler informaes diversas, como: as bulas

    de remdios, as instrues de equipamentos eletrodomsticos, informaes por

    computador, pela televiso, leitura de linhas de nibus e metr, e outros. O mesmo

  • autor afirma que a leitura j indispensvel na vida cotidiana, mesmo fora da esfera

    profissional... (MORAIS, 1996, p.21), acreditando mesmo que a leitura e a escrita

    no s pertencem ao crculo dos intelectuais, mas que so exigidas em todas as

    atividades do homem moderno.

    Para Manguel (2006, p. 89), aprender a ler faz parte de uma iniciao, de uma

    passagem ritualizada para fora de um estado de dependncia e comunicao

    rudimentar, em todas as sociedades letradas. Dessa maneira, aprendendo a ler

    existe a possibilidade de comunicao, o que pode ajudar a criana a caminhar

    rumo sua independncia. Quando aprende a ler, a criana pode inserir-se em sua

    cultura, na sociedade, tem acesso a diversas situaes passadas e presentes.

    Quem no usufrui da leitura tem a insero social dificultada.

    No entanto a leitura no se d no vazio, para que a criana tenha gosto de ler

    necessrio que se leve em considerao a importncia do meio.

    Vrios estudos tambm mostram a relao entre meio e capacidade de

    leitura.

    Daniel Penac (1993), em seu livro Como um romance, ressalta a importncia

    da leitura em voz alta, desde a mais tenra infncia, quando os pais gratuitamente

    lem as histrias preferidas de seu filho e, num papel de contadores nicos, de

    romancistas, permitem criana viajar em seus sonhos e pensamentos. Com essa

    atitude, ensinam desde muito cedo a idia do que um livro e do que a leitura.

    Para esse autor o que uma criana aprende primeiro no o ato, mas o gesto do

    ato (PENAC,1992, p. 46).

    Outro autor que tambm fala da importncia da leitura em voz alta Morais

    (1996, p.171), que afirma:

    A leitura em voz alta feita pelos pais cria na criana o desejo de ler por si mesma, to irresistvel quanto o desejo de comear a andar sozinha. A melhor demonstrao disso o fato de que, muitas vezes, a criana para a qual se l noite, antes de dormir, pede para ficar sozinha, s mais um pouquinho, com o livro entre os joelhos abertos, olhando-o, refazendo o que o papai ou a mame acabam de fazer, tentando encontrar o eco mgico das palavras lidas.

    Nessa afirmao de Morais (1996) podemos perceber a referncia ao que

    subjetivo, ou seja, a importncia do outro na vida da criana, o que nos faz pensar

    nos estudos de Winnicott em relao influncia da famlia e do ambiente como

    facilitadores no desenvolvimento emocional da criana.

  • Ainda quanto ao processo da aprendizagem da leitura e influncia subjetiva

    de outra pessoa, Morais (1996) prope que o primeiro passo para a leitura a

    audio de livros. Essa audio desenvolve-se em trs nveis: no primeiro, o nvel

    cognitivo, por meio da experincia dos outros, possvel estabelecer associaes

    com a prpria vivncia, ajudando a ensinar e a compreender os fatos, as

    informaes, elaborando os roteiros e os esquemas mentais. No segundo, o nvel

    lingstico, esclarecem-se as relaes entre a linguagem escrita e a linguagem

    falada, auxiliando no sentido da leitura, na fronteira entre as palavras, na recorrncia

    das letras e dos sons. Isso permite criana ampliar a disposio das palavras e o

    desenvolvimento de frases e de textos, levando-a a aprender a parafrasear, dizer de

    outra maneira o que compreende. No terceiro nvel, temos o afetivo, mediado pela

    confiana e pela identificao da voz daqueles que lem para a criana. A partir da

    relao afetiva haver um incentivo nos nveis cognitivo e lingstico, que se

    manifesta na leitura dos pais, quando estes, com pacincia, explicam partes

    obscuras da histria, ou mesmo, por diversas vezes, repetem as histrias favoritas

    da criana, favorecendo, assim, a melhor fixao dos aspectos formais do texto e

    das relaes entre os signos e a fala.

    Morais (1996) prope que a leitura em voz alta de livro de histrias deve

    existir no apenas por parte dos pais, mas tambm como uma atividade das

    escolas. Concordamos com Morais (1996, p.172) quando o autor diz que o sucesso

    da aprendizagem da leitura est correlacionado positivamente com o estmulo

    intelectual e literrio fornecido pela famlia.

    Petit (2006a) ressalta tambm que o gosto pela leitura no se relaciona ao

    nvel socioeconmico da famlia, mas com a intimidade que esta tem com a leitura,

    uma vez que o gosto pela leitura se transmite de uma gerao para outra. Segundo

    essa autora, para que a criana seja um bom leitor, muito importante a convivncia

    fsica precoce com os livros, a possibilidade de manipul-lo, para que este no seja

    investido de poder e provoque medo. As inter-relaes que permeiam o livro so

    muito importantes, especialmente as leituras em voz alta, em que os gestos de

    ternura e os tons das vozes se misturam a palavras daquele idioma narrado.

    Petit (2006a) conta que, na Frana, as crianas que ouvem histrias, lidas por

    sua me, todas as noites, tm o dobro de possibilidade de se tornarem grandes

    leitores, em comparao quelas que no passam por essa experincia. A

  • importncia de ver um adulto ler com paixo faz parte do relato dos leitores e, assim,

    algum pode dedicar-se leitura porque viu um parente ou um adulto que lhe inspira

    afeto submergir nos livros. Desse modo a leitura aparece como meio de aproximar-

    se das virtudes que ela mesma lhe concede.

    Idia semelhante defendida por Barone (in ANDRADE E FRANCO, 2006),

    quando afirma que:

    [...] ler uma necessidade imperiosa do homem: faz parte do processo de humanizao e de sobrevivncia; inicia nos primeiros contatos me-beb e se prolonga na vida contribuindo de maneira importante para a constituio do sujeito humano (BARONE in ANDRADE E FRANCO, 2006, p.90).

    Tambm Penac (1993, p.144) compartilha a mesma a idia, dizendo que a

    leitura humaniza o homem, pois tornamo-nos um pouco mais humanos, (...) um

    pouco mais solidrios com a espcie, e assim:

    [...] a leitura no um ato de comunicao imediata, , certamente, um objeto de partilhamento [...] aquilo que lemos de mais belo deve-se, quase sempre, a uma pessoa querida. E a essa pessoa querida que falamos primeiro. Talvez porque, justamente, prprio do sentimento, como do desejo de ler, preferir. Amar , pois, fazer dom de nossas preferncias queles que preferimos. E esses partilhamentos povoam a invisvel cidadela de nossa liberdade. Somos habitados por livros e amigos (PENAC, 1993, p.84).

    Ressaltamos e concordamos que os contextos culturais influenciam nas

    prticas de socializao das famlias. De acordo com Teberosky (2003,p.19), nas

    famlias onde ocorre o que denominamos prticas de leitura, os adultos contribuem

    para o desenvolvimento do conhecimento sobre a escrita e sobre a linguagem

    escrita. A leitura de histrias tem uma funo ldica e criativa e estabelece-se como

    atividade prazerosa, permitindo um importante momento de aprendizagem. Com

    essa atividade, as crianas aprendem que a linguagem dos livros tem suas prprias

    convenes, e que as palavras podem criar mundos imaginrios para alm do aqui e

    agora (TEBEROSKY, 2003, p. 20).

    Mas o que pensar daquelas crianas que vivem situaes no facilitadoras

    para a aprendizagem da leitura e da escrita, por exemplo, a pobreza extrema, a

    desintegrao familiar, o analfabetismo dos pais, as experincias desastrosas na

    escola, a m preparao dos professores? Ser possvel pensar em algo que possa

    favorecer a aprendizagem e o gosto pela leitura? O presente trabalho pretende

    oferecer algumas respostas a essa questo, tecendo algumas articulaes com o

    pensamento de Winnicott. Antes, porm, ser necessrio recortar da obra desse

    autor contribuies para nosso argumento.

  • 1.2 A IMPORTNCIA DO AMBIENTE: CONTRIBUIES WINNICOTTIANAS

    Winnicott um autor que valoriza a importncia do ambiente no

    desenvolvimento do sujeito e posiciona o seu pensamento na importncia da famlia

    e do meio na vida da criana.

    Winnicott (1975), criticando a forma costumeira de definir a natureza humana

    somente em termos de um interno e um externo, insiste na necessidade de se

    enunciar uma rea intermediria de experimentao, ou seja, a terceira parte da vida

    do ser humano, para a qual contribuem tanto a realidade interna quanto a vida

    externa do indivduo.

    Trata-se de uma rea que no disputada, porque nenhuma reivindicao feita em seu nome, exceto que ela exista como lugar de repouso para o indivduo empenhado na perpetua tarefa humana de manter as realidades interna e externa separadas, ainda que inter-relacionadas (WINNICOTT, 1975, p. 15).

    Para o autor, essa rea surge do contato me-beb, constitui a maior parte

    da experincia do beb, e atravs da vida, conservada na experimentao intensa

    que diz respeito s artes, religio, ao viver imaginativo e ao trabalho cientfico

    criador. (WINNICOTT, 1975, p. 30).

    A esse respeito, esclarece Winnicott (1975, p.26):

    Desde o nascimento, portanto, o ser humano est envolvido com o problema da relao entre aquilo que objetivamente percebido e aquilo que subjetivamente concebido e, na soluo desse problema, no existe sade para o ser humano que no tenha sido iniciado suficientemente bem pela me. A rea intermediria a que me refiro a rea que concedida ao beb, entre a criatividade primria e a percepo objetiva baseada no teste da realidade. Os fenmenos transicionais representam os primeiros estdios do uso da iluso, sem os quais no existe, para o ser humano, significado na idia de uma relao com um objeto que por outros percebido como externo a esse ser.

    Podemos observar que, segundo Winnicott (1975, p.141), se a me puder

    proporcionar as condies corretas, todo e qualquer pormenor da vida do beb

    constitui-se o exemplo do viver criativo.

    Por meio de um processo maturacional, o beb, com um sentimento absoluto

    de confiana na sua me, introjetado na experincia da iluso, comea a lidar com a

    separao do objeto e fazer uso deste, iniciando uma transio da dependncia

    absoluta para a dependncia relativa, e o ingresso no Espao Transicional ou

    Espao Potencial. Segundo Winnicott (1975, p.142):

  • [...] o espao potencial entre o beb e a me, entre a criana e a famlia, entre o indivduo e a sociedade ou o mundo, depende da experincia, que conduz confiana. Pode ser visto como sagrado para o indivduo, porque a que este experimenta o viver criativo.

    O autor ainda ressalta a importncia de levar em conta a ao do ambiente

    acolhedor propcio ao desenvolvimento do indivduo, pois reconhece que, de incio,

    no existe o beb, mas o beb e sua me.

    Winnicott (1990) dedica uma especial ateno aos estgios iniciais do

    desenvolvimento emocional da criana. A evoluo do processo de maturao da

    criana depende da proviso favorvel do ambiente. O sentido de processo de

    maturao, para Winnicott (1990), refere-se evoluo do ego e do self, o que

    inclui a histria completa do id, dos instintos e suas vicissitudes, e das defesas do

    ego relativas ao instinto.

    Esse processo s ser possvel quando a me exerce com o beb a

    preocupao materna primria que tambm denominada de me suficientemente

    boa, me devotada comum ou ambiente facilitador que lhe possibilite um ambiente

    suficientemente bom. Essa preocupao materna primria a capacidade de a me

    adoecer sadiamente, e, como diz Winnicott (2002), um estado especial que

    acontece com a me quando ao final de seus nove meses de gravidez est

    totalmente voltada para o seu beb e sabe o que ele esta sentindo, podendo este

    estado perdurar por algumas semanas ou meses.

    Assim, necessria uma adaptao e disponibilidade da me ao beb como

    e quando ele necessitar atravs do holding/sustentao e do handling/manejo.

    A comunicao dessa atuao da me silenciosa e o beb vai percebendo

    os efeitos da confiabilidade no decorrer do seu desenvolvimento. Para Winnicott

    (2002, p.87), o beb no tem conhecimento da comunicao, a no ser a partir dos

    efeitos da falta de confiabilidade.

    Para que o beb possa alcanar a sua individualidade, o Eu-sou, como fala

    Winnicott (1990), necessrio a existncia de me suficientemente boa, que permite

    criana a iluso de ter criado o seio que ela lhe fornece , propiciando criana

    ser-o-seio. Essa me vai ao encontro das necessidades do beb e fornece a ele a

    iluso da onipotncia infantil, encorajando-o, dessa maneira, a desenvolver o seu

    self (ser). Essa adaptao quase completa da me s necessidades do beb

    fornece a este a oportunidade de conceber que o seio faz parte dele mesmo. Essa

  • experincia tambm lhe permite viver a onipotncia e o seu narcisismo, dando-lhe a

    iluso de que existe uma realidade externa correspondente sua prpria

    capacidade de criar (WINNICOTT, 1975, p. 27). Dessa maneira, a iluso nasce do

    interjogo na mente da criana do que subjetivo (quase alucinao) e do que

    objetivamente percebido (realidade concreta ou realidade compartilhada).

    Assim, num constante processo de mutao e desenvolvimento, a capacidade

    da me em ir ao encontro do beb permite-lhe uma trajetria de vida contnua,

    podendo assim vivenciar situaes fragmentrias ou harmoniosas, a partir da

    confiana que deposita na me. Entretanto, para que isso realmente possa se dar,

    muitos acontecimentos importantes devem se passar at que a criana consiga

    formar uma membrana divisria entre o Eu e o no-Eu, ou at que o estgio do Eu-

    sou possa ser alcanado (estgio de dependncia relativa).

    Segundo Winnicott (1975), com o crescimento e o desenvolvimento do beb,

    a me, aps possibilitar a oportunidade da iluso, dentro do estgio de adaptao,

    passa gradualmente a permitir que aconteam algumas falhas naturais que fazem

    parte do dia a dia e que ajudam o desenvolvimento do beb de forma saudvel,

    facilitando o processo de desiluso e de desadaptao do beb.

    A falha materna inaugura o princpio da realidade, uma vez que a me,

    sem sab-lo, permite ao beb sentir e experimentar as prprias necessidades,

    contribuindo para o desenvolvimento de seu sentimento de self (um self que o eu

    separado da me). O beb que aceita as falhas da me e que consegue uma boa

    adaptao poder formar uma concepo da realidade e at mesmo desenvolver

    uma capacidade de experimentar uma relao com a realidade externa, passando a

    ter maiores integrao e maturidade emocional. Assim, o beb pode estabelecer um

    slido mundo interno, com base nas suas prprias experincias e vivncias,

    conseguindo ter acesso ao princpio de realidade a partir de seu prprio princpio de

    prazer. Pode-se dizer que a criana que se desenvolve a partir de seu centro de

    gravidade, a partir de si mesma, e no com as invases maternas, poder tornar-se

    capaz de uma percepo criativa do mundo, fazendo sentir-se real e ao mesmo

    tempo sentir que a vida vale a pena.

    Muitas vezes, no decorrer do desenvolvimento da criana, surgem falhas no

    ambiente que a levam a permanecer paralisada em determinada fase de

    dependncia absoluta ou relativa, impedindo que prossiga em seu processo de

    aprendizagem.

  • A varivel nos seres humanos de como os indivduos vivem criativamente e

    sentem que a vida merece ser vivida, ou, ento, que no podem viver criativamente

    e tm dvidas sobre o valor de viver, segundo Winnicott (1975, p.102/103), est

    diretamente relacionada qualidade e quantidade de provises ambientais no

    comeo ou nas fases primitivas da experincia de vida de cada beb.

    A criatividade para Winnicott (1975, p.99) relaciona-se forma como o

    indivduo vive a realidade externa. No relacionamento de submisso com a realidade

    externa, o mundo reconhecido apenas como algo a que se deve ajustar ou

    adaptar-se. A submisso traz consigo um sentido de inutilidade e est associada

    idia de que nada importa e de que no vale a pena viver a vida. Viver criativamente

    constitui um estado saudvel, mas a submisso uma base doentia para a vida.

    1.3 INTERVENO PSICOPEDAGGICA: A OFICINA DE LEITURA COMO UM

    ESPAO POTENCIAL

    A partir dessas idias de Winnicott (1975), podemos pensar na realidade de

    uma criana que no consegue aprender a ler e a escrever, esperando que a leitura

    e a escrita sejam feitas pelo outro e se colocando num estado de dependncia e

    submisso. Tais crianas muitas vezes tm dificuldade de ser ativas e

    independentes no processo de aprendizagem. Elas so capazes de decodificar um

    texto, mas no propriamente de fazer uma leitura, pois o sentido lhes escapa. No

    entanto, sabemos que para aprender a criana deve se lanar ao jogo da

    aprendizagem e que no basta se submeter.

    Saber ler e escrever nas sociedades modernas fundamental para a

    insero social do sujeito. De posse da leitura, o sujeito no mais o mesmo. Pela

    leitura ele pode entrar em contato com o passado, conhecer sua realidade e melhor

    se projetar no futuro. A leitura contribui para aquilo que Winnicott (1975) considera o

    viver criativo, de maneira que no saber ler e escrever pode significar um dficit

    importante para o sujeito, uma ausncia de vida cultural.

    Diante do exposto, surge a questo: A Oficina de Leitura de literatura infantil

    pode ser entendida como Espao Potencial que facilita o desenvolvimento da leitura

    e da escrita?

  • A nossa proposta de trabalho discutir uma experincia de Oficina de Leitura,

    entendida como um Espao Potencial, com apoio no pensamento de Winnicott,

    porque o autor em sua obra oferece bastante subsdio que fundamenta a

    experincia que vamos tratar: a Oficina de Leitura.

    Aproximamos a literatura do Espao Potencial, conforme desenvolve

    Winnicott. Acreditamos que o contato com a literatura gera um Espao Potencial, na

    medida em que a literatura, com sua funo de humanizao, defendida por

    Candido, se aproxima do viver criativo, ou estar vivo de Winnicott. Postulamos a

    sobreposio dos conceitos Oficina de Leitura e Espao Potencial, ancoradas na

    concepo de Winnicott, quando este afirma ser a experincia cultural uma extenso

    do Espao Transicional/Potencial, espao que aconteceu na relao me-beb.

    Parece-nos legtima a aproximao feita e a considerao da Oficina de

    Leitura como um espao capaz de promover a elaborao criativa das vivncias.

    Pensamos a Oficina de Leitura, como um espao de leitura de diversas

    histrias de literatura infantil, com possibilidade para despertar a criatividade pelo

    uso e pela experimentao de diversos objetos existentes nesse espao, permitindo

    que a criana reorganize o seu self, ressignifique seus traumas e reelabore suas

    perdas.

    Essa idia no nova. Gilberto Safra (1984) em sua Dissertao de

    Mestrado, depois publicada no livro Curando com histrias, apia-se na idia de

    usar histrias com fim teraputico. O autor, percebendo a impossibilidade de

    estender o atendimento psicolgico a toda populao que dele necessita, trabalha

    com os pais, construindo histrias cujos contedos retratam as dificuldades dos

    filhos, e que devero ser contadores repetidamente.

    Essa idia est apoiada em Winnicott (2005), quando diz que podemos

    estender o conhecimento da Psicanlise para contextos diferentes e modificando a

    tcnica, quando no for possvel, ou houver argumentos contra, ento se pode criar

    uma modificao adequada. dessa maneira que entendemos o Atendimento

    Psicopedaggico, orientado pela Psicanlise. Vejo semelhanas e aproximaes

    entre psicanlise e o conceito de humanizao de Antonio Candido.

    Assim, este trabalho prope como objetivos: estudar a Oficina de Leitura

    como um Espao Potencial capaz de promover o desenvolvimento do viver criativo

    de crianas com dificuldades de aprendizagem da leitura e da escrita, favorecendo

    esta aprendizagem, bem como a elaborao e construo de uma narrativa pessoal.

  • 1.3.1 A importncia da voz

    Para Cabrejo Parra (2004) anterior a aprendizagem deste comportamento

    ocorrido no caso deste beb com o livro, existe uma capacidade nesta criana que a

    permite manejar as informaes do mundo fsico e do vasto mundo da subjetividade.

    Esta capacidade forma-se no quarto ms da sua gestao, quando a capacidade

    auditiva do feto se organiza de maneira que as informaes sonoras j so

    acessveis ao seu aparelho auditivo. Com isso, o beb capaz de dominar as

    informaes ligadas voz para fazer emergir o sentido. Assim, ele j poder

    discriminar a voz de sua me, e isso mostra que o beb j coloca em movimento o

    seu pensamento. Com esta capacidade ele se situa como um sujeito no mundo da

    intersubjetividade.

    Com relao a esse fato, o autor esclarece que o beb tambm nasce com a

    capacidade de reconhecer seus congneres, e para que haja um reconhecimento do

    rosto da me, ser necessria uma mobilizao da atividade psquica do beb, pois

    um rosto no simplesmente algo como uma boca, um nariz e dois olhos, mas um

    livro que permanentemente envia informaes que o beb domina a cada instante,

    sem que possamos perceber5 (CABREJO PARRA, 2004, p.1). Assim, existe o

    tempo todo dentro da pessoa um trnsito de se ler trs livros: o livro da

    intersubjetividade, o livro do mundo e seu livro interno6 - (CABREJO PARRA, 2004,

    p.2).

    Cabrejo Parra (2004) afirma que com essa capacidade de ler a voz e o rosto,

    o beb pe em movimento uma atividade interpretativa que permanecer como

    centro da criao dos sentidos para a psique humana. Este fato coloca o ato da

    leitura na origem da atividade do pensamento, e ele pode ser considerado como um

    ancestral necessrio para a leitura de um texto escrito, uma vez que sem essa

    primeira leitura, outras modalidades de leitura no poderiam se realizar.

    Desta maneira, para este autor, desde o nascimento cada ser humano

    comea a escrever seu prprio livro psquico, por meio do seu desenvolvimento

    psquico, um livro que permanecer para sempre inacabado. O autor fala do livro

    5Traduo da autora de: [...] uma cara no es simplesmente algo con una boca, una nariz y dos ojos, sino un libro que permanentemente envia informaciones que el beb maneja a cada instante, as no nos demos cuenta 5 (CABREJO PARRA, 2004, p.1). 6 Traduo da autora de: en trnsito de leer tres libros: el libro de la intersubjetividad, el libro del mundo y su libro interno (CABREJO-PARRA, 2004, p.2).

  • como uma metfora, porque o homem no inventou o livro por acaso, mas j o tinha

    dentro de si mesmo. E, graas a este livro psquico, simblico, que j est enraizado

    na psique de todo ser humano, que se poder compreender mais tarde todos os

    demais livros que existem em todas as culturas do mundo.

    Dentro desta mesma idia, Cabrejo-Parra (2004, p.2), define a literatura como

    a leitura da leitura, porque o escritor, finalmente, escreve lendo seu prprio livro

    psquico. O ato de escrever no vem do nada, vem de alguma parte que poderia ser

    o livro psquico do autor que [se] l no tempo que escreve7.

    Nesse sentido tnhamos como hiptese o fato de que as leituras das histrias

    que a psicopedagoga fazia na Oficina de Leitura serviriam para a criao desse livro

    interno das crianas que faziam parte do grupo. Na Oficina de leitura a leitura de

    histrias permitiu a percepo criativa, isto , a experincia da iluso, auxiliando a

    criana a construir a subjetividade na percepo objetiva da realidade e a partir da a

    possibilidade de simbolizao.

    Retomando, Cabrejo Parra (2007) esclarece que o primeiro livro para o beb

    o rosto da me, a sua voz e os seus gestos. O beb comea a construir

    significados pela entonao da voz e tudo o que o rosto transmite, inscrevendo-se

    assim em seu esprito.

    Dessa maneira, o beb aprende a lngua, que um conjunto de operaes

    mentais muito abstratas que constituem o sujeito, e segundo Cabrejo Parra (2007)

    entrar em uma lngua entrar na cultura, samos do ventre da me para cair no

    ventre da lngua e permanecemos ali porque a lngua se transmite de gerao em

    gerao, um patrimnio imortal (CABREJO PARRA, 2007, p.1).

    Logo, quando lemos para o beb, esse est em posio de escuta, quer

    compreender algo, existindo uma intencionalidade que se integra ao processo.

    Nesta situao, a prosdia8 da lngua, o ritmo das palavras lidas instala-se

    rapidamente, afirma Cabrejo Parra (2007).

    Vemos, nesse sentido, a importncia da internalizao de uma linguagem

    potica, o ritmo, a harmonia da lngua, a sonoridade, isto , a musicalidade das

    7 Traduo da autora de: la lectura de la lectura porque el escritor, finalmente, escribe leyendo su prprio libro psquico. El acto de escribir no viene de la nada, viene de alguna parte que podra se el libro psquico del autor que [se] lee al tiempo que escribe (CABREJO-PARRA, 2004, p.2). 8 Prosdia segundo o dicionrio Houaiss (2004) significa parte da gramtica tradicional que se dedica s caractersticas da emisso dos sons da fala, como o acento e a entonao.

  • palavras. Podemos at perder na oralidade, mas a organizao do texto literrio

    marca bastante esta forma, que importante para estruturar futuramente o escritor

    na sua lngua ptria.

    Cabrejo Parra (2007, p.2) diz que a criana entra em uma lngua quando

    comea a balbuciar e tentar falar as primeiras palavras (ta, ta, ma, ma). A msica da

    lngua e a poesia nascem da mesma matriz simblica. Por isso, antes de dar a

    gramtica explicita s crianas, devemos contar-lhes contos, porque por menor que

    seja o conto, [nele] est presente toda uma lngua. A leitura em voz alta uma

    maneira de indicar s crianas que existe um significado no textos. Para Cabrejo

    Parra (2007, p.3-4):

    As crianas que no descobrem a tempo que existe um significado nos textos tero uma aproximao tormentosa com os livros, um sofrimento absoluto. Mas, com uma leitura em voz alta existe uma entrada prazerosa e livre na lngua e na cultura, com certeza o destino desse sujeito ser diferente.

    Nesse sentido lembramos Barone (1993) quando realizou o atendimento de

    uma criana com dificuldades de aprendizagem da leitura e da escrita, atravs da

    leitura de livros infantis, fbulas ou histrias. Muito interessante neste trabalho foi a

    reao de satisfao de seu paciente que maravilhado ouvia e se envolvia com a

    sua (da leitora) voz, no decorrer das leituras. Para Barone (1993, p.122) essas

    atividades favoreciam a expanso narcsica fortalecendo o sentimento de si, e

    abriam espaos para a identificao do seu paciente (BARONE, 1993, p.122).

    Tambm neste mesmo texto, a autora, discutindo a importncia da leitura de textos

    literrios para a constituio psquica, faz referncia a Anzieu que esclarece essa

    situao como:

    [...] a existncia mais precoce de um espelho sonoro para a edificao do eu, que a imagem especular do corpo unificado estudada por Lacan e o espelho do rosto da me desenvolvido por Winnicott [...] [...] de uma pele auditivo-fnica, e sua funo na aquisio, pelo aparelho psquico da capacidade de significar e depois de simbolizar. Antes que o olhar e o sorriso da me que alimenta e cuida do beb produzam na criana uma imagem de si que lhe seja visualmente perceptvel e que seja interiorizada para reforar seu self e esboa seu ego, o banho meldico (a voz da me, suas cantigas, a msica que ela proporciona) pe disposio um espelho sonoro do qual ele se vale a princpio por seus choros ( a voz materna acalma em resposta), depois por seus balbucios e, enfim, por seus jogos de articulao fonemtica ( ANZIEU apud BARONE,1993.p.122).

  • 1.3.2 A importncia do livro

    Podemos lembrar que tnhamos como instrumento principal, mas no o nico,

    a leitura de histrias de literatura infantil. Vrios livros, com diferentes histrias que

    tratavam de questes diversas, eram levados s sesses e as crianas os

    manuseavam livremente, permitindo-se sempre um espao de liberdade e de

    confiana. No Anexo A constam todos os ttulos das histrias que foram lidas na

    Oficina de Leitura. As histrias que foram significativas para as crianas sero

    apresentadas com um pequeno resumo para melhor entendimento de nossas

    anlises no Apndice A.

    Na nossa Oficina de Leitura era muito importante a presena fsica do livro,

    como um objeto cultural necessrio para que as crianas pudessem ter acesso

    humanizao. Devido carncia de vida dessas crianas, pais analfabetos, com

    pouca condio de acolhimento nesta rea, e sofrendo carncias de toda ordem,

    como j relatamos, elas no tinham acesso a este importante objeto cultural.

    Como explica Petit (2008, p.12-13), o livro pode dar lugar a sociabilidades

    abertas, onde a oralidade e a escrita se reconciliem, e onde cada um possa

    encontrar seu lugar, contribuindo com o que lhe foi transmitido, ou simplesmente

    escutando e deixando correr sua imaginao (...) a leitura permite abrir um campo

    de possibilidades, inclusive onde parecia no existir nenhuma margem de manobra.

    Tambm, para Gillig (1999) o livro infantil um dos presentes importantes

    oferecidos a algumas crianas pelos pais. Estas crianas podem assim conhecer um

    livro e suas histrias antes mesmo de aprenderem a ler e escrever, caso contrrio, o

    livro permanecer um objeto misterioso a ser descoberto.

    Reyes (2007) tambm fala sobre a importncia, desde a mais tenra infncia,

    da convivncia com o livro, da necessidade que a criana tem de morder, pegar e

    manipular o livro. A autora relata a cena de um beb de oito a nove meses de idade

    que sozinho faz de conta que l, passa as pginas do livro que est em suas mos,

    como se estivesse imitando um adulto, na voz, no gesto, na postura e na atitude.

    Para que isto pudesse acontecer, a autora esclarece que foi preciso que uma figura

    intima, importante na vida da criana, tenha mostrado e ensinado, por diversas

    vezes, essa atitude e comportamento com o livro.

    Tambm, podemos pensar na presena fsica do livro que neste caso foi

    utilizado como uma espcie de Objeto Transicional, na inteno de oferecer um

  • objeto que pudesse favorecer o trnsito para a simbolizao. Para Winnicott (1975)

    o uso desse objeto favorece a passagem entre a inabilidade inicial de um beb e sua

    crescente habilidade em reconhecer e aceitar a realidade.

    Outros autores tambm chamaram a ateno para o que comentamos aqui,

    na clnica psicopedaggica. Por exemplo, assim comenta Mazzolini (1999, p.146):

    A possibilidade de fazer uso dos objetos (pessoais ou compartilhados), durante a sesso, tem como meta auxiliar o amadurecimento emocional do indivduo, uma vez que facilita a diferenciao do que parte de seu psiquismo interno, do que parte do mundo externo compartilhado com a cultura e do que a parte intermediria.

    1.3.3 A importncia da literatura como um espelho

    Para Cabrejo Parra (2004), o que acontece com o beb, no incio do

    nascimento da sua linguagem oral, tambm ocorre com as histrias da literatura em

    geral. Elas tambm oferecem uma variedade de espelhos que permitiro as crianas

    olharem-se atravs da atividade do pensamento dos autores dos contos. Desta

    maneira:

    As histrias no so outra coisa seno a colocao em cena de movimentos psquicos inerentes espcie humana. Elas utilizam um psicodrama da humanidade em que cada indivduo poder jogar seu prprio psicodrama. E se todas as culturas esto inventando contos porque todos respondem a esta necessidade. No se pode imaginar uma lngua sem literatura9 (CABREJO PARRA, 2004, p.4),

    O autor esclarece que um mesmo livro suporta vrias interpretaes e produz

    montagens inesgotveis. Assim, as pessoas que lem histrias para as crianas

    propem uma montagem diferente do mesmo livro. Elas possuem o que Cabrejo

    Parra (2004) chama de fantasmas psquicos: o amor, o dio, os cimes. Todos

    esses fantasmas psquicos fazem parte da espcie humana, e as histrias, de

    maneira indireta, possibilitam a montagem destas cenas, mostrando para as

    crianas que esses fantasmas so comuns a todos, no havendo necessidade de

    preocupaes, permitindo a simbolizao de todas elas de maneiras diferentes.

    9 Traduo da autora de: [...] las historias no son outra cosa que la puesta em escena de movimentos psquicos inherentes a las especie humana. stas utilizam um psicodrama de la humanidad en el cual cada individuo podr jugar su prprio psicodrama. Y si todas las culturas han inventado cuentos es porque estos responden a necessidades. No se puede imaginar uma lengua sin literatura (CABREJO-PARRA, 2004, p.4)

  • Assim, para Cabrejo Parra (2004, p.5) a montagem destas cenas um

    trabalho simblico que:

    [...] leva a criana a um outro espao psquico, a outro tempo, retomando assim a temporalidade de uma lngua escrita e oral. Na lngua oral toda organizao est marcada pela enunciao, o passado e o futuro devem ter relao com o agora. A temporalidade da lngua se constri dentro do texto: a prxima semana em um texto escrito no quer dizer o mesmo que a prxima semana em um texto oral.10

    Logo o autor afirma que aprender a escrever, a ler e a compreender o que

    est escrito aprender uma nova modalidade de tempo. Os contos deslizam em

    uma temporalidade particular, remetendo-as para um tempo distante e nico com a

    frmula era uma vez. Assim, a leitura tem em particular o poder de reunir as

    informaes da intersubjetividade, isto ; da relao entre o mundo interno do leitor

    (ou ouvinte) com o pensamento que o escritor montou na cena do texto. Se no

    ocorreu essa intersubjetividade a leitura no poder acontecer porque a

    intersubjetividade inerente leitura.

    Segundo Cabrejo Parra (2004, p.5):

    O pensamento do autor, a atividade psquica do outro, pem em movimento a minha. Toda leitura um ato de amor porque sempre pe para funcionar o pensamento de um autor ao mesmo tempo em que ponho em movimento minha prpria atividade psquica. Pr em movimento o pensamento de um autor que no est presente muito importante, uma espcie de compromisso dos vivos, uma maneira de dizer que o pensamento imortal e se pe em movimento quando outro pensamento o solicita. Despertar o interesse das crianas em ler o mundo psquico lhes permite interessar-se tambm na leitura do livro. porque nos interessamos na leitura do prprio livro psquico e dos outros que o destino humano toma forma11.

    Podemos perceber que a leitura est no centro do movimento do

    pensamento, tanto para crianas como para adultos. A leitura sempre oferece

    10 Traduo da autora de: [...] lleva al nio a outro espacio psquico, a outro tiempo, retomando as las temporalidades de la lengua escrita y oral. Em la lengua oral toda organizacin est marcada por la enunciacin, el pasado y el futuro deben tener relacin com el AHORA. La temporalidad de la lengua escrita se construye dentro del texto: la semana prxima em um texto escrito no qiere decir lo mismo que la semana prxima em uno oral (CABREJO-PARRA, 2004, p.5) 11

    Traduo da autora de: El pensamiento del autor, la actividad psquica del outro, pone em movimiento la ma. Toda lectura es um acto de amor porque siempre pongo a funcionar el pensamiento de um autor al mismo tiempo que pongo em movimiento mi propia actividad psquica. Poner em movimiento el pensamento de um autor que no est presente es muy importante, es uma especie de compromisso de los vivos, uma manera de decir que el pensamiento es inmortal y se pone em movimiento cuando outro pensamento lo solicita. Interessar a los nios em leer el mundo psquico les permite interesarse tambin em la lectura del libro. Es porque nos interesamos em la lectura del prprio libro psquico y del otros que el destino humano toma forma (CABREJO-PARRA, 2004, p.5)

  • pensamentos novos. Da mesma maneira podemos passar toda a vida tentando ler o

    que se passa dentro de ns mesmos, que sempre teremos diferentes formas para

    essa leitura. A leitura deste livro psquico sempre introduzir uma dvida, um talvez

    permanente12, explica Cabrejo Parra (2004, p.5).

    Em um sentido semelhante, Moiss (1982, p.26) estabelece que:

    [...] o texto literrio registra o sonho impossvel, sonho de cada um no mais recndito do ser, guarda uma viso da realidade, de modo que, ao percorr-lo com o olhar, contemplamos uma viso de mundo. A forma carrega uma viso do real, assinalaria o esforo simbolizador de abranger a totalidade do real visto por um sujeito.

    O texto literrio, como um saber, se expressa por metforas, e o leitor ter de

    traduzi-las, para poder apossar-se do conhecimento ali colocado, diz Moiss (1982,

    p.27), justificando a existncia do texto literrio pela impossibilidade de se aceder

    diretamente realidade, impossibilidade no somente do leitor, mas do prprio

    sujeito do conhecimento: ele arquiteta o texto para conhecer a realidade, o leitor o

    percorre com o fito de lograr o conhecimento desejado.

    1.3.4 A importncia da organizao da Oficina de Leitura como um Espao

    Potencial

    Para a realizao desta Oficina de Leitura, tnhamos como ritual a colocao

    de tapetes no cho formando uma roda, talvez podendo significar, na realidade, um

    espao de segurana, onde ali todos poderiam experimentar atravs das histrias

    lidas, momentos de prazer, de reflexo, de identificao, enfim de trocas simblicas

    e afetivas entre todos os participantes.

    Com inspirao no Espao Potencial, criamos esse ritual para a nossa Oficina

    de Leitura, propiciando um espao de segurana que dependia da experincia vivida

    entre a psicopedagoga e as crianas com problemas de aprendizagem da leitura e

    da escrita, que poder conduzir confiana. Esse foi o espao em que existiu a

    possibilidade de se experimentar o viver criativo, como postula Winnicott (1975).

    Aps a leitura da histria, possibilitou-se um processo de reflexo e de

    elaborao, no qual a criana podia pensar e falar de seus sentimentos e das 12 Traduo da autora de: La lectura del proprio libro psquico introduce siempre la duda, un tal vez permanente (CABREJO-PARRA, 2004, p.5)

  • representaes que se faziam presentes naquele momento, a partir da histria lida.

    Parece-nos que, de alguma maneira, existia uma identificao da criana com o

    contedo apresentado na histria. As crianas tinham a possibilidade de falar,

    desenhar, jogar ou realizar outra forma de expresso que podia ser tomada em

    considerao pela psicopedagoga.

    Sendo assim, a cada sesso permitiu-se a elaborao de diversas atividades,

    como desenhos, confeco de personagens da histria com diferentes papis, lpis,

    lpis de cor, giz de cera colorido, tinta guache, cola, tesoura, massa de modelar,

    argila, e at mesmo a utilizao de jogos. Algumas vezes, tambm utilizamos a

    brinquedoteca da Clnica Psicopedaggica como um espao para possibilitar a

    brincadeira. Percebamos que dessa maneira as crianas podiam trabalhar

    concretamente tudo o que sentiram e pensaram a partir da histria lida.

    A escolha da histria no incio era feita pela psicopedagoga procurando

    algum vnculo entre o texto e a histria das crianas, mas, logo se percebeu que tal

    tcnica era desnecessria, uma vez que as prprias crianas, muitas vezes

    individualmente, outras vezes conjuntamente, logo se apropriavam da escolha do

    livro e da histria que seria lida naquela determinada sesso.

    No decorrer das sesses, as crianas sentiam-se mais vontade para trazer

    suas situaes de vida, que eram despertadas pela leitura da histria.

    Todas as situaes trazidas foram devidamente coletadas e registradas a

    cada encontro. Lembramos que a anlise desses dados ser realizada

    qualitativamente, sendo interpretados luz do mtodo psicanaltico, em especial a

    partir das contribuies de Winnicott.

    1.3.5 A importncia de contribuies da Psicanlise Interveno

    Psicopedaggica

    A Psicopedagogia pode trabalhar a partir de diferentes enfoques e, nesse

    sentido, observamos diversas formas para lidar com os problemas de aprendizagem,

    desde aquelas que enfatizam apenas os aspectos cognitivos e instrumentais da

    aprendizagem at aquelas que incluem o sujeito que aprende com suas queste