Olavo de Carvalho e Alaor Marxismo Direito e Sociedade

53
Textos >> Marxismo, Direito e Sociedade, parte 1 parte 2 >> Marxismo, Direito e Sociedade Debate entre Olavo de Carvalho e Alaor Caffé Alves Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, 19 de novembro de 2003. Recebi várias transcrições deste debate, mas reproduzo aqui apenas uma delas, a de Alessandro Cota e Bruno Yoshio Mori, que me pareceu a mais completa. Agradeço a eles e também aos autores das demais, que me serviram para corrigir a presente versão em alguns pontos, ainda que sem fazer uma revisão em regra. Alguns pontos brevemente mencionados neste debate receberam depois uma explicação mais detalhada nos artigos “A natureza do marxismo”, ‘marxismo esotérico” e “Diferenças específicas”, publicados no Jornal da Tarde de São Paulo. – O. de C. MEDIADOR : Estamos recebendo dois grandes nomes da intelectualidade brasileira. À minha esquerda, o prof. Alaor Caffé Alves, muito conhecido por nós estudantes por nos levar à crítica do Direito e do Estado e a olhar para dentro as relações sociais e enxergar a sua autêntica expressão. À direita, apresento o polêmico filósofo Olavo de Carvalho; tido pela crítica como um dos luminares do pensamento brasileiro, é autor de O Jardim das Aflições , entre outros livros, e traz hoje, à Sala dos Estudantes, sua defesa da interioridade humana contra a tirania da autoridade coletiva, fazendo deste espaço público, mais uma vez, um centro privilegiado de discussão acadêmica. Um marxista contra um liberal. A iniciar pelo prof. Alaor, teremos trinta minutos para cada debatedor mais quinze minutos para as réplicas; em seguida, abriremos às perguntas. Prof. Alaor e Olavo de Carvalho, neste debate da realidade Marxismo, Direito e Sociedade - 1 1

Transcript of Olavo de Carvalho e Alaor Marxismo Direito e Sociedade

Page 1: Olavo de Carvalho e Alaor Marxismo Direito e Sociedade

Textos >> Marxismo, Direito e Sociedade, parte 1

parte 2 >>

Marxismo, Direito e Sociedade

Debate entre Olavo de Carvalho e Alaor Caffé AlvesFaculdade de Direito da Universidade de São Paulo,

19 de novembro de 2003.

Recebi várias transcrições deste debate, mas reproduzo aqui apenasuma delas, a de Alessandro Cota e Bruno Yoshio Mori, que me pareceua mais completa. Agradeço a eles e também aos autores das demais, que

me serviram para corrigir a presente versão em alguns pontos, aindaque sem fazer uma revisão em regra.

Alguns pontos brevemente mencionados neste debate receberam depoisuma explicação mais detalhada nos artigos “A natureza do marxismo”,‘marxismo esotérico” e “Diferenças específicas”, publicados no Jornal

da Tarde de São Paulo. – O. de C.

MEDIADOR : Estamos recebendo dois grandes nomes daintelectualidade brasileira. À minha esquerda, o prof. Alaor Caffé Alves,muito conhecido por nós estudantes por nos levar à crítica do Direito edo Estado e a olhar para dentro as relações sociais e enxergar a suaautêntica expressão. À direita, apresento o polêmico filósofo Olavo deCarvalho; tido pela crítica como um dos luminares do pensamentobrasileiro, é autor de O Jardim das Aflições , entre outros livros, e trazhoje, à Sala dos Estudantes, sua defesa da interioridade humana contra atirania da autoridade coletiva, fazendo deste espaço público, mais umavez, um centro privilegiado de discussão acadêmica. Um marxista contraum liberal. A iniciar pelo prof. Alaor, teremos trinta minutos para cadadebatedor mais quinze minutos para as réplicas; em seguida, abriremosàs perguntas. Prof. Alaor e Olavo de Carvalho, neste debate da realidade

Marxismo, Direito e Sociedade − 1

1

Page 2: Olavo de Carvalho e Alaor Marxismo Direito e Sociedade

econômica, política e social de nosso tempo, tomando por base omarxismo, qual função cabe ao Direito na sociedade? E no seuentendimento, quais as conseqüências de se pensar o Direito destaforma? Com a palavra, o prof. Alaor Caffé Alves.

ALAOR CAFFÉ ALVES : Boa tarde a vocês todos, meus alunos, e aoprof. Olavo de Carvalho. Em meia hora evidentemente não dá para dizerquase nada a respeito do pensamento jurídico, e especialmente dopensamento jurídico calcado na perspectiva de uma metodologiasingular, que é a metodologia marxista. Já digo inicialmente que não souum marxista no sentido tradicional do termo, mas tenho meu namorocom relação a certas questões, e a certas questões metodológicas, que seexprimem ao longo da vida do pensamento teórico marxista, desde Marxaté hoje. É claro que, com as idas e vindas históricas, problemas graves,inclusive de situações relacionadas com frustrações políticasextraordinariamente importantes, tudo isso nos dá um grau deperplexidade. Mas, por outro lado, nos permite ver algumas coisasimportantes. Eu simplesmente tive de escolher – porque meia hora é tãopouco – alguma coisa estratégica relacionada com o Direito, a sociedadee a perspectiva marxista, que é uma perspectiva que no século XX teveum domínio muito grande, especialmente na ordem política, embora nãodaquela forma que desejávamos que fosse. O marxismo teve distorçõesprofundas no esquema político e social, enveredou nações inteiras porcaminhos que não são efetivamente (ou não eram efetivamente)marxistas, ou pelo menos na conclusão do ideal desse pensador queconhecemos, que é Marx. De qualquer forma, influiu muito a vida doséculo XX, e a nós cabe apenas uma perspectiva um pouco maiselementar, porque vamos tratar apenas de uma parte da sociedade e sobuma certa ótica, que é a jurídica. Marx nunca tratou do Direito. Naverdade, Marx foi um economista dos clássicos. Atuou de uma formamuito singular no plano do pensamento teórico da economia,estabelecendo seus princípios, enfim, aquilo que ele julgava adequadopara explicar a sociedade em que ele vivia. Muitas das explicações deMarx já não valem mais, em função da historicidade dessas mesmasexpli cações. Então, é claro, temos de dar o devido valor e entender queisso não significa absolutamente compreender Marx sob o ponto de vistadogmático, mas sim o que ele pode nos fornecer, nos dar, nos oferecerpara entender um pouco, especificamente, o problema social; e aqui, nonosso caso, o problema jurídico.

Para colocar a questão muito rapidamente, muito estrategicamente, noponto de possível discussão, nós temos de levar em conta ascaracterísticas do Direito exatamente dentro da perspectiva e da posiçãoque postulava Marx naquela época, o século XIX, já numa dimensãoestrutural social; precisamos entender o que significa a chamadaestrutura social, se ela comporta ou não previsibilidade, se admite ou nãoas possibilidades de um conhecimento razoável do ser humano, a pontode prever as condições objetivas de sua vida social. Nós encontramosvárias ciências sob o ângulo da previsão, como a sociologia, como aprópria economia, mas a questão é saber se a história pode ser prevista.Essa é uma questão importante, porque o próprio homem é considerado

Marxismo, Direito e Sociedade − 1

2

Page 3: Olavo de Carvalho e Alaor Marxismo Direito e Sociedade

como ser produto da história e de sua socialidade. Se o ser humano é umproduto social, a par da situação individual em que ele se apresentatambém como ser biológico – ele também tem a sua individualidadesingular, biológica, psicológica –, aqui também se indaga sobre a formasocial que toma essa expressão biológica e psicológica. Até que ponto asocialidade determina as dimensões de vontade, os valores humanos, ascrenças? Em que sentido isso ocorre?

O próprio Direito é uma expressão social, pois é um fenômeno social e,sendo um fenômeno social, tem de ser estudado desde de certos critériosque permitem caracterizar uma certa regularidade no Direito. É por issoque temos de considerar que o Direito pode ser um saber científico.Muitos não o admitem como um saber científico, e sim como um saberapenas prático; alguns levam em conta se é possível um saber prático ouse há apenas um conjunto de propostas gerais que não têm umafundamentação científica adequada para verificação de sua validade, desua verdade. Tudo isso é um problema complicado, pois se trata dametodologia do saber jurídico, focada na perspectiva da metodologia deMarx. Existem teóricos juristas sobre esse assunto. Por exemplo, naprópria União Soviética, nós temos um grande teórico jurista, que sofreuos impactos da ditadura de Stalin: Pashukanis, um grande pensador que,atendendo às premissas, enfim, às diretrizes postuladas pela metodologiamarxista, pela visão marxista do mundo, acabou dando−nos uma visãointeressante, que depois ele mesmo transforma; ele mesmo altera seuponto de vista, dá uma virada, e acaba morto em 1937 na UniãoSoviética. É claro que outros filósofos existem: mais atualmente, temosos filósofos juristas como Ceromi [?], grande pensador italiano, ligadotambém à perspectiva marxista, e também Atienza, um grande pensadorligado às questões da ordem do método marxista do Direito. Tambémtemos o namoro feito por Norberto Bobbio relacionado com a questãodo Direito; mas ele é um neoliberal, mas de uma forma um tantodiferente daquelas relativas aos neoliberais do século XIX e mesmo doséculo XX.

Dadas essas condições gerais, o que quero mostrar a vocês é o seguinte:como é que vamos tratar o Direito dentro de uma perspectiva nãopositivista? Uma delas é a marxista. O conceito de direito no sentidopositivista, como vocês sabem, decorre exatamente de uma posição edefinição da lei como sendo aquela que deve definir as condições e asespecíficas diretrizes jurídicas de uma sociedade. A sociedade deve serproduzida do ponto de vista econômico, mas também do ponto de vistajurídico mediante as posturas legais ou legislativas. O grande problema ésaber como esta referência positivada do Direito se deu. Há, claro,explicações, inclusive contrapondo o positivismo ao jusnaturalismo, quesão muito interessantes – mas não vamos perder tempo agora emdefini−los, porque é muito complicado e precisaríamos de mais tempo –,explicações estas que não têm normalmente, por definição, a produçãodo espírito humano senão mediante a confissão de reflexões filosóficasou reflexões dentro do âmbito ideal do Direito. Por exemplo, aperspectiva idealista ou a perspectiva não−materialista corresponde aofato de que há um espírito, espírito este que não significa o de cada um

Marxismo, Direito e Sociedade − 1

3

Page 4: Olavo de Carvalho e Alaor Marxismo Direito e Sociedade

de nós, mas o conjunto dos espíritos, que na verdade são as açõesculturais dos homens, particularmente, que formam o espírito que emúltima instância exprime aquilo que a história deve nos dar, vale dizer, oespírito na busca da liberdade. Esta postura é justamente hegeliana: abusca da liberdade produz praticamente a vida social. O Estado mesmo éuma expressão desse mesmo espírito. Essa visão é extremamentecriticada pelos marxistas, que acham que a espiritualidade tem por baseuma estrutura social calcada na visão da produção da vida social, naprodução da vida material. Se não houver a idéia da produção da vidamaterial da sociedade, nós não temos a idéia mais clara do próprioespírito; a espiritualidade está dinamicamente relacionada àmaterialidade. Claro que não existe um espírito isolado, solitário, comonão caberia existir a matéria solitária. A matéria, para Karl Marx, não éjamais a matéria bruta, nem aquela matéria opaca; não é materialidadedos físicos gregos clássicos, a busca de um “ em si ”, de uma substânciamaterial no mundo. Para Karl Marx, a matéria é postulada em função daprodução da vida social humana. Materialidade, portanto, é algo que éprenhe de espiritualidade, de certo modo; há uma relação dialética entreo processo de pelo qual os homens agem no mundo e transformam omundo; e nesse processo de transformação do mundo, os homens,progressivamente, vão transformando−se a si mesmos. É isso o queacontece.

Portanto, esta visão inaugura a idéia de processualidade, exatamente ooposto da visão positivista do Direito. Vocês podem ver, por exemplo, ocaso de Kelsen, que trabalha uma visão fundamentalmente estática, ou,vale dizer, muito abstrata. Para ele, o Direito é substancialmente norma eé uma estrutura de sentido. A norma como estrutura de sentido não seráestudada do ponto de vista de sua gênese e nem de seus fins, porquegênese e fins da norma são questões de outras ciências e não do próprioDireito. O Direito, em sua essencialidade, se exprime pela normaabstrata, por um dever−ser postulado segundo uma estrutura de coação,que é definida pelo próprio Estado. Então, um dever−ser , para Kelsen, éfundamental, e ele separa fundamentalmente o dever−ser do ser.Evidentemente, essa postura não é aceita pela perspectiva marxista,porque o ser e o dever−ser se compõem numa relação dialética. Não éfácil compreender isto. É difícil. Na visão kelseniana, portanto na linhaneokantiana, se faz diferença profunda e séria entre ser e dever−ser: oser determina o dever−ser , isto é, ele é condição para o dever−ser. Ouseja, Kelsen aceita que a sociedade deve existir necessariamente paraque exista o Direito, para que exista o dever−ser, a norma; mas odever−ser não tem por fundamento o ser, ou seja, a relação social, asociedade, e sim tem por fundamento um outro dever−ser, e este outrotem por fundamento um outro mais, até um dever−ser fundamental, queele chama de norma fundamental. Portanto, para ele, a relação dodever−ser com o ser é absolutamente separada, não existe umacomunhão entre uma e outra a não ser pela condição necessária – não acondição per quam , pela qual, mas a condição necessária pela qual sedeve ter uma ordem. É claro que não há Direito sem sociedade, com istoele concorda. Kelsen era um homem extremamente ladino, profundo,grande pensador do Direito; mas tem uma visão formalizada. O Direito

Marxismo, Direito e Sociedade − 1

4

Page 5: Olavo de Carvalho e Alaor Marxismo Direito e Sociedade

como estrutura de sentido organiza a vontade; o Direito, embora tendocomo causa a vontade humana, porque já não pode mais ter causa divina(desde que Deus está morto, segundo Nietzsche), então não há mais essapostura de direito teologal, como também não há a idéia do direitonatural, um direito que estabelecesse uma relação direta entre o ser e odever−ser , em que o próprio ser é dever−ser. Como já não se admiteisso, a única forma de se admitir o Direito é aquele imposto peloshomens. A forma de impô−lo implica uma relativização do Direito, eesta relativização do Direito imposto pelo homem (porque o homem éum ser circunstanciado, histórico, condicionado por situações singulares)evidentemente tem de ter alguma segurança a respeito do que ele faz,especialmente, no plano do Direito moderno. Para isso, Kelsen não podeaceitar senão a linguagem do discurso jurídico. É por isso que apositivação do Direito moderno é fundamental, porque é uma das formaspela qual se dá a garantia de uma certa estabilidade da forma como sediz o Direito. Diz através da lei, a lei é a positivação do Direito medianteformas escritas; por isso a codificação do sistema, porque antes nãohavia esta codificação tão expressiva, mas a partir do século XVII, acodificação se torna cada vez mais presente, e no século XIX épraticamente universalizada. O Direito é um direito escrito, e enquantodireito escrito, tem estrutura de sentido, é um direito que tem de serinterpretado. Vejam vocês, portanto, que a estrutura econômica se tornamuito complexa, determina a necessidade de os homens registrarem oDireito necessariamente, sem o que o Direito não pode ser devidamenteinterpretado e aplicado adequadamente.

Mas tudo isso define uma situação de positividade que de certo modoextrai as possibilidades materiais do próprio Direito. Esquece−se Kelsendos fundamentos sociais, das estruturas sociais; daí o problema de queno positivismo se faz uma separação entre Direito como normapositivada e justiça, moralidade e ética jurídica. Estas questões sãomuitos distintas. O próprio Kelsen aceita perfeitamente essa postura ediz que o Direito é isto. É claro que esta visão é formalizada, portanto,uma visão estática do Direito, melhor ainda, uma visão universal doDireito. De certo modo se diz o seguinte: a norma jurídica, como jurídicaque é, que dá a essencialidade à compreensão do Direito, é igual nosistema capitalista, socialista, comunista, feudal, clássico: a norma ésempre a norma, é sempre o dever−ser . É por isso que ele, então,essencializa o Direito na norma e, de certo modo, ele segue um pouco ocaminho platônico: as próprias experiências, a singularidade, a história, afactualidade, as circunstâncias, isso passa a ser como que, digamos,alguma coisa esmaecida do mundo, como que sombras da caverna. Oque importa fundamentalmente para essencializar o Direito é a norma; anorma é uma estrutura de sentido, e sentido da vontade, e não a vontadeé a norma. Vejam a diferença entre a postura marxista e a posturakelseniana, que é a expressão máxima, mais avançada, mais ampliada dosistema do positivismo jurídico que é dominante em todo o sistemacapitalista; fora, evidentemente, os sistemas jurídicos calcados naperspectiva teológica que como nós temos ainda em vários países domundo que a adotam, mas os países mais avançados têm esta linha muitoconsagrada da positividade, portanto a linha da legalidade.

Marxismo, Direito e Sociedade − 1

5

Page 6: Olavo de Carvalho e Alaor Marxismo Direito e Sociedade

Ora, isso tudo só pode ser explicado a partir da idéia da processualidade,que é uma idéia dialética. Por isso eu faço sempre uma diferenciaçãoentre o processo e o produto. A idéia é normalmente separar o resultadodo processo, então fica complicado porque ficamos apenas com oresultado. Em termos operacionais e práticos dá para usar o resultadomuito bem de forma instrumental, e como dizia Habermas, ainstrumentalidade racional permite que se manipule o resultado, masesse resultado não será legitimamente compreendido e entendidocientificamente se não se atender para o processo pelo qual o resultado éresultado. Então, há uma processualidade no mundo e buscar o processopelo qual alguma coisa é feita é melhor do que buscar a coisa feita por simesma; buscar o processo pelo qual o homem se desenvolve é melhorpara entender o próprio homem, aqui e agora. Por isso, o homem tem deter a expressão do passado. Ele tem a expressão do passado, mas tem suanegatividade; porque o homem não é o passado, ele supera esse passado.Uma visão um tanto quanto hegeliana, mas a possibilidade de que ohomem supere o passado é a afirmação do passado e, ao mesmo tempo,sua negação. Ele se afirma, tanto quanto um adulto afirma a criança quefoi, mas não é a criança que foi, portanto, a nega. Você vê que estarelação dialética é complexa, e isso existe no plano do Direito.

Quando vamos examinar esta categoria da processualidade, nós temosentão de projetar a sociedade nesse processo. Daí se vê o seguinte: asociedade, como se dá? Em que termos a sociedade entra comoprocesso? É um problema que eu sempre levo em conta: ela é umaprodução puramente espiritual, é uma produção material, ou é material eespiritual ao mesmo tempo? Parece que é conjugada. Ela não épuramente espiritual, não é apenas a história do espírito humano quedefine o homem; também não é uma materialidade pura e simplesmente,naquela concepção mecanicista e substancialista da matéria; mas é umarelação, uma dinâmica entre espiritualidade e materialidade. Até quemuitas vezes se pergunta: mas qual é o fundamental nisto? Os marxistasconsideram que, em última instância, a dimensão material (naquelesentido dito por Marx, não no sentido da matéria bruta, mas no sentidoda produção, ou seja, da matéria enquanto produção do homem,portanto) é claro que tem história. Se examinarmos antropologicamente,vê−se que os homens não produziram sempre aquilo que produzem hoje;produziram de forma muito diferente, produziam outras coisas, emmodos diferentes de produção. As formas sociais para produção sãodiferentes, as relações que os homens guardam entre si são diferentesnos diversos momentos históricos. Então, você vê que, efetivamente,existe um problema que deve ser visualizado pelo teórico do Direito parasaber até que ponto o próprio Direito é uma resultante deste processo.

O ponto de vista marxista tem algumas colocações interessantes. Eu voudar um exemplo bem específico para vocês entenderem o que eu querodizer. No sistema feudal, as relações produtivas eram muito singelas; erauma economia mais natural, mais de subsistência; o valor de usopredominava; não havia valor de troca expressivo; a moeda não corriamuito; os feudos centralizavam o sistema econômico. Havia, portanto,uma atuação política, ou seja, o exercício da força, porque a politicidade

Marxismo, Direito e Sociedade − 1

6

Page 7: Olavo de Carvalho e Alaor Marxismo Direito e Sociedade

também tem em seu centro a possibilidade do exercício da força; issohavia, inclusive misturado com a relação econômica. A relaçãoeconômica era a produção feita pelos homens e a relação social desteshomens para a produção. Mas a relação social se compunha, ao mesmotempo, de uma dimensão econômica, pela qual se exercia um poder paratransformar o mundo; e isto implica, evidentemente, utilizar a forçaprodutiva, a mão−de−obra e os mecanismos que existem para fazê−lo,mas existia também uma atuação política, uma força política para esseexercício. Então, sabe−se que numa época escravista, como a épocafeudal, as relações entre os homens para produzir não eram as mesmasdas épocas modernas, da época que chamamos burguesa ou capitalista,da época mercantil. É uma época diferente porque o exercício da forçasobre o trabalho é praticamente muito presente. Portanto, o econômico eo político se viam de tal maneira misturados, de tal maneira acoplados,de tal maneira feridos em sua integridade, que o agente econômico era omesmo agente político. O senhor feudal era ao mesmo tempo agenteeconômico, agente cultural e agente político: ele exercia a força, eleinclusive trazia a mão−de−obra à força para o trabalho se fosse preciso.Existia também outro elemento que é a ideologia, que evitava aexpressão clara desta forma de explorar os homens nesse processo.Quando isto ocorre, temos uma dimensão econômica muito própria quetraduz uma forma política específica da época medieval. Quandoentretanto – e aqui vem a tese marxista – há uma evolução desseprocesso produtivo, vale dizer, a dimensão tecnológica, a condiçãomaterial da produção, vale dizer, a tecnologia (isto também é uma visãotecnológica de certo modo, que foi muito discutida e é muito discutidaainda hoje), quando a tecnologia avança pelas invenções que o homemvai desenvolvendo através do seu trabalho, da sua atuação direta com omundo, buscando novas formas de cultivar o mundo, inventando váriascoisas como o moinho de vento, a roda dentada, enfim, sistemas novosde articulação do poder, é claro que isto vai implicar uma maiorquantidade de produto. A produção começa a se expandir, a sedesenvolver, e há um conflito entre o desenvolvimento produtivo (aprodução) e os limites do sistema feudal. Vale dizer, tudo era feito parao senhor basicamente, e depois, na expansão, era muito complicado fazercom que a venda dessas mercadorias (elas passam a ser mercadorias) seestendesse para todo conjunto de feudos, quando os próprios feudosestavam impondo certas situações de restrição dessa produção. Dizem osmarxistas que aí existe um conflito singular entre uma força produtivatípica singular feudal e a força nascente, que seria exatamente essadimensão calcada na perspectiva de uma nova classe, que é a classe dosburgueses. Abre−se, portanto, um período de crise em que forma ematéria, forma e conteúdo, entram em crise e aí vem uma nova fase: ohomem começa a precisar de uma nova forma de produção. Era precisodistribuir a mercadoria; para fazê−lo, é preciso que todos ganhemdinheiro, que ganhem recursos para que possam consumir a mercadoriado mercado. Mas como seria possível fazer isso se as relações eramtipicamente ou servis ou escravistas? Impossível, porque não se podiadistribuir recursos; para isso, era preciso criar novas formas, como aforma da moeda (a monetarização da economia), o salário (o assalariatose inicia neste processo). É evidente que neste momento tudo passa a ser

Marxismo, Direito e Sociedade − 1

7

Page 8: Olavo de Carvalho e Alaor Marxismo Direito e Sociedade

diferente: o sistema econômico não mais é garantido em função de umarelação de imposição sobre o trabalho, mas era preciso fazer com que otrabalho passasse a ter agora uma outra dimensão, a dimensão deliberdade. Era preciso ser livre das peias do feudalismo, livre das peiasdo exercício sobre instrumentos de produção elementares, fazer com quea força do trabalho pudesse ela mesma ser autônoma, e portantovendável. Então, é o momento em que aparece a venda na força dotrabalho, e esta venda forma o mercado, o mercado de trabalho, onde asmercadorias passam a circular, entre as quais, a própria força dotrabalho. É claro que, nesse caso, a relação entre o capital e a força dotrabalho não é uma relação de imposição, como acontecia no sistemaanterior. Não havia capital no sistema anterior, mas havia umaimposição sobre o trabalho, pela força do senhor feudal ou doescravizador. Agora não: ela se universaliza na sociedade de uma formacompletamente diferente, é preciso que os homens estabeleçam relaçõesentre si de forma mercantil, de troca, e a troca pressupõe, basicamente,proprietários. Todos têm que ser proprietários: os proprietários do capital(do salário) e os proprietários correspondentes. Então, esses proprietáriosdo capital tinham o salário e, do outro lado a força de trabalho dava acapacidade de trabalho e recebia o salário; com esse salário formavam omercado e com isso então expandia−se a produção.

Claro, daí começam o quê? Figuras interessantes, como a figura docontrato, que se universaliza nesta época. Então, é somente com oaparecimento de uma nova forma de produção que se universaliza afigura do contrato juridicamente. A figura do contrato pressupõe pessoascontratantes, logo, pessoas jurídicas. Há que haver portanto, auniversalização das pessoas jurídicas. Há necessidade de que as pessoassejam proprietários, porque elas só podem trocar coisas de que tenhamposse em disponibilidade. Aqui vocês vêem, portanto, a liberdade: comoé possível contratar sem liberdade? O suposto é a liberdade; o suposto éa igualdade. Vocês vêem, portanto, que as figuras jurídicas formuladasno direito civil especialmente (isso depois transcende para o direitopúblico) acabam resultando de um processo de movimento das forçasprodutivas, da capacidade material dos homens, que determina formasdiferentes. Não vejam, portanto, o contrato simplesmente como afiguração de algo abstrato situado no cosmos. Não: primeiro existem asrelações de troca, depois elas vão para o código para ser reguladas deforma detalhada, singular, e garantidas.

Vejam vocês, nessas poucas palavras, simplesmente, o que aflora nestaestrutura de pensamento. É uma estrutura de pensamento que propõeuma dimensão muito singular, muito interessante, que deve ser objeto deexploração. Não quer dizer que ela seja a única – cuidado com isso! Eladeve ser objeto da expansão metodológica porque ela nos dá algumasbases interessantíssimas para explicar um pouco melhor os própriosinstitutos jurídicos. Aqui vocês vêem apenas um momento estratégico esingelo: a possibilidade de utilizar uma metodologia nova, interessante;não é nova sob o ponto de vista jurídico, não é tão universal, mas podenos dar um conhecimento um tanto quanto mais seguro, principalmentedos processos pelos quais os institutos chegam a ser institutos jurídicos.

Marxismo, Direito e Sociedade − 1

8

Page 9: Olavo de Carvalho e Alaor Marxismo Direito e Sociedade

É isto basicamente.

MEDIADOR : Neste momento passo a palavra a Olavo de Carvalho.

parte 2 >>

1 − 2 − 3 − 4

Home − Informações − Textos − Links − E−mail

Marxismo, Direito e Sociedade − 1

9

Page 10: Olavo de Carvalho e Alaor Marxismo Direito e Sociedade

Textos >> Marxismo, Direito e Sociedade, parte 2

<< parte 1 parte 3 >>

OLAVO DE CARVALHO : Muito bem. Agradecendo muito a ThiagoMagalhães e a seus colegas pelo convite, constato, em primeiro lugar,que o meu interlocutor é bem menos marxista do que me disseram, o quede certo modo facilita o trabalho, porque a análise do marxismo ésempre um problema quase impossível de resolver, pelamultilateralidade dos seus aspectos. Vocês vejam que o marxismo é umafilosofia, é uma teoria econômica, é uma ideologia, é uma estratégiarevolucionária, é um regime político, é um sistema ético−moral, é umacrítica cultural, é uma organização política da militância: ele é tudo issoao mesmo tempo. Ora, vocês não encontrarão em todo o mundo, em todaa história humana, nenhum fenômeno parecido: não existe nenhum outrofenômeno que abarque de maneira unificada tantos aspectos ao mesmotempo. Isso quer dizer que o marxismo nos coloca desde logo oproblema de que não sabemos a que gênero de fenômenos ele pertence.

Se buscamos a definição do marxismo, segundo o velho critérioaristotélico do gênero próximo e da diferença específica, nós já nosesborrachamos no primeiro degrau da escada por não haver um gêneropróximo. Isso significa que toda a tentativa de discussão do marxismoimita aquele célebre caso dos cegos com o elefante, em que um pega aperna e diz que o elefante é um poste, outro pega a tromba é diz que éuma cobra, outra pega a orelha e diz que é uma folha de papel, e assimpor diante. Aqueles que analisam o marxismo no terreno econômico – opessoal liberal tem a mania de fazer isso, o que é até covardia, porque acrítica liberal da economia marxista é tão arrasadora que este é o campomais fácil para discussão –, quando pensam que estão ganhando adiscussão, o marxista passa para outra clave (por exemplo, a da críticamoral do capitalismo) e pronto: aquele belíssimo trabalho que o liberalfez está perdido. Se nós atacamos o materialismo e o anticristianismo domarxismo, também quando estamos quase vencendo a discussão, omarxista tira do bolso do colete a teologia da libertação, dizendo que émais cristão do que nós. Então, realmente estamos lidando com um enteproteiforme e indefinido. É evidente que a análise e a crítica racionalesbarram em dificuldades tão imensas que, sinceramente, não vale apena prosseguir nesta direção. A sucessão de críticas ao marxismo quese fizeram desde o século XIX até hoje, não digo que seja inútil, mas

Marxismo, Direito e Sociedade − 1

10

Page 11: Olavo de Carvalho e Alaor Marxismo Direito e Sociedade

pega somente detalhes e partes às vezes insignificantes do problema.

Nós não vamos sair disso se não conseguirmos subir um grau na escalade abrangência e de abstração, e conseguirmos dizer, afinal de contas, oque é o marxismo. Então, abreviando quinze ou mais anos de estudo queme levam a esta conclusão, vamos começar por definir o marxismo peloseu gênero próximo. Eu tenho a pretensão de ter encontrado esse gêneropróximo: o marxismo não é uma filosofia política, não é uma economia,não é um partido político, não é nenhuma dessas coisas isoladamente,mas é uma cultura , no sentido antropológico do termo. Uma culturasignifica um universo inteiro, um complexo inteiro de crenças, símbolos,discursos, reações humanas, sentimentos, lendas, mitos, sentimentos desolidariedade, esquemas de ação e, sobretudo, dispositivos deautopreservação e de autodefesa. Para toda cultura existente, o desafionúmero um é a sua autopreservação. Isto quer dizer que o marxismo, aolongo de sua história, desenvolveu uma infinidade de meios deautopreservação cujo funcionamento, inclusive material, dificilmente éobjeto de curiosidade das pessoas. Não deixa de ser estranho que omarxismo, que professa tudo analisar pela sua base econômica, jamaisseja estudado pela base econômica da sua própria expansão. Portanto,nós temos a impressão de que as idéias marxistas, exatamente como asidéias do antigo idealismo, se propagam no ar sem nenhuma ajudahumana e sem nenhuma sustentação econômica.

Quando tive a curiosidade de perguntar isso pela primeira vez eu era umjovem militante do Partido Comunista e, à medida que fui descobrindoos dados a respeito, eu vi que o próprio marxismo era um fenômenoeconômico dos mais interessantes. Quando digo que o marxismo é umfenômeno sui generis , que nunca houve um complexo cultural assim tãovasto, há um outro ponto no qual o marxismo também é recordista.Quando na União Soviética se fundou a entidade chamada NKVD, quedepois veio a se chamar KGB – mudou de nome inúmeras vezes –, esteera um serviço de uma abrangência que aqui nós dificilmenteconseguimos imaginar. A KGB, já entre as décadas de 50 e 60, tinhaquinhentos mil funcionários, sem contar toda a militância comunistaespalhada pelo mundo (o que era um serviço auxiliar tambémobrigatório), com o que se pode somar mais dez ou vinte milhões; então,quinhentos mil funcionários mais vinte milhões de auxiliares. As verbasda KGB superavam em muito as de todos os serviços secretos ocidentaissomados, sendo que, por exemplo, os Estados Unidos não tiveram umserviço secreto para atuar no exterior senão durante a Segunda Guerra –os Estados Unidos desconheciam isso. Isto quer dizer que a ação daKGB na intelectualidade européia começa já na década de 20, havendoali um festival de compra de consciências como nunca houve na históriahumana. A respeito disso, recomendo um livro de Stephen Koch, Doublelives (“Vidas Duplas”), que trata exatamente da apropriação daintelectualidade européia pela KGB, através não só de mecanismosnormais de persuasão mas realmente da compra de consciências, dechantagens etc. Isso já na década de 30. A respeito também desteperíodo há um outro livro que eu lhes recomendo: chama−se HollywoodParty , de Kenneth Billingsley, sobre o Partido Comunista no cinema

Marxismo, Direito e Sociedade − 1

11

Page 12: Olavo de Carvalho e Alaor Marxismo Direito e Sociedade

americano. Vocês já ouviram falar da expressão “lista negra”? Ela setornou famosa no mundo quando alguns comunistas foram convocados adepor pela Câmara dos Deputados (as pessoas pensam que foi JoeMcCarthy, mas nenhum artista de Hollywood jamais compareceuperante a comissão McCarthy e sim perante uma outra comissãototalmente diferente na Câmara dos Deputados): havia uma lista negrano cinema americano desde quinze anos antes, que se compunha daspessoas que não colaboravam para o Partido. Tudo isso tem aparecidonos últimos anos dez ou doze anos graças à abertura dos arquivos deMoscou.

Eu digo isso para vocês terem uma idéia do sustentáculo econômico eorganizacional da difusão das idéias marxistas. Nenhuma outra nomundo jamais teve isto a seu serviço. Notem bem que a eficácia dessemecanismo ainda nos atinge no Brasil. Onde quer que haja cinco ou seisprofessores marxistas – não no sentido do prof. Alaor Caffé, pelo amorde Deus, porque já vi que ele é um homem sensato –, mas no sentido deum militante efetivamente comprometido, há uma equipe de cães deguarda fielmente empenhada em proibir o acesso ao que quer que nãointeresse ao Partido (qualquer que seja o nome do partido, chame−sePartido Comunista, Worker's Party, como quiser). Eu vou lhes dar umexemplo de como se faz isso: este livro chama−se Dicionário Crítico doPensamento da Direita . É uma obra feita por 140 professoresuniversitários brasileiros; portanto, é representativa de uma classe. Esses140 professores trabalharam durante seis anos, com verbas do CNPq emais dois patrocínios privados, para nos dizer o que é o pensamento dedireita. Ora, depois de ter sido militante do Partido Comunista, eu medediquei durante vinte ou trinta anos a estudar também o pensamento dedireita e tenho a pretensão de conhecê−lo. Muito bem, nenhum dosfilósofos direitistas que eu estudei está aqui: nem Russell Kirk, nem LeoStrauss, nem David Horowitz. Em suma, todos os pensadores quefizeram a cabeça do movimento conservador nos Estados Unidos e naInglaterra estão totalmente ausentes. O que representa o pensamento dedireita aqui? Por exemplo, Goebbels, Julius Streicher (este era ummaluco pedófilo que nem o partido nazista suportou: ele foi expulso doPartido Nazista por pedofilia e consta como pensador de direita!). Então,você compra uma obra baseado na confiabilidade acadêmica de seusautores e tem ali um bloqueio total do que quer que lhe possa dar umaidéia do adversário que não combine com a idéia precisa que este grupode militantes quer impor às pessoas. Esse procedimento não é exceção.Após a abertura dos arquivos de Moscou, nós temos uma documentaçãoenorme sobre o uso desses métodos no mundo inteiro. Ora, isto nos criamais uma dificuldade para estudar o marxismo, porque entre seusmecanismos de defesa existe também o mecanismo de escamotear suaprópria história e a história do adversário. Ressalto: nunca houve umaorganização de tamanho comparável, dedicada a fazer isso no sentidoextramarxista ou antimarxista. Todos os movimentos, atéanticomunistas, que existiram no mundo são esporádicos, locais, de curtaduração e, pior, absolutamente incompatíveis entre si. Para vocês teremuma idéia, o sujeito pode ser anticomunista porque é judeu ortodoxo epode ser anticomunista porque é nazista: vocês não vão querer que o

Marxismo, Direito e Sociedade − 1

12

Page 13: Olavo de Carvalho e Alaor Marxismo Direito e Sociedade

anticomunismo sionista e o anticomunismo nazista se dêem as mãos. Porcausa disto, nós dizemos que a versão marxista das coisas se apresentade maneira tão disseminada e tão impossível de se localizar que todo odebate neste sentido falha logo de início.

Não pretendo, evidentemente, resolver este problema, que estáinfinitamente acima de minha capacidade, mas creio que um primeiropasso é fazer com que essa figura nebulosa e proteiforme do marxismoseja substituída por uma figura mais reconhecível. Daí a minha definiçãodo marxismo como uma cultura. Sendo uma cultura, a sua própriapreservação tem prioridade absoluta e, em nome dessa prioridade,literalmente, vale tudo. Por exemplo, vou ler aqui um trechinho de umlivro de Antonio Negri (vocês devem saber quem ele é), em que elerelata um debate que teve com Norberto Bobbio, a respeito da teoriajurídica do marxismo. Bobbio dizia que, no fim das contas, o marxismonão tinha teoria jurídica alguma, e Negri dizia que tinha. Diz AntonioNegri:

“O problema foi que o objeto da discussão não era o mesmo, nem paraos dois participantes, nem para os espectadores, nem para os partidáriosdos dois lados. Para Norberto Bobbio, uma teoria marxista do Estado sópoderia ser aquela que derivasse de uma cuidadosa leitura da obra dopróprio Marx, e ele não tinha encontrado nada disso. Para o autormarxista radical (isto é, ele mesmo, Antonio Negri), no entanto, umateoria marxista do Estado era a crítica prática das instituições jurídicas eestatais desde a perspectiva do movimento revolucionário – uma práticaque tinha pouco a ver com filologia marxista, mas pertencia antes àhermenêutica marxista da construção de um sujeito revolucionário e àexpressão do seu poder”.

O que nos está dizendo Antonio Negri? Ele está querendo dizer que,embora não haja realmente uma teoria marxista do Estado nos escritosde Marx – existem apenas observações mais ou menos esporádicas ededuções que os discípulos podem tirar delas –, existe uma críticamarxista que está de certo modo embutida na própria práticarevolucionária e na afirmação do seu poder. Ou seja, se queremos saberqual é a teoria marxista do Estado não adianta ler Marx: é necessárioobservar a história do movimento comunista, ver como ele sedesenvolveu e ler a crítica jurídica que está embutida ali. Estácompreendido? Muito bem, só que em seguida ele diz: “ Se havia algoem comum entre Bobbio e seu interlocutor era que ambos consideravamo socialismo real (Sabem o que é socialismo real? É o socialismo cujaexistência foi documentada na União Soviética, na China, na Hungriaetc., com oitenta anos de história.) como um desenvolvimentoamplamente externo ao pensamento marxista. A redução do marxismo àhistória do socialismo real não faz nenhum sentido ”. Ora, mas o que é osocialismo real? Ele não foi precisamente a cristalização histórica doresultado da tal “prática da criação do sujeito revolucionário e aafirmação do seu poder”? Se a teoria marxista do Estado não está nosescritos de Marx e também não está no resultado da práticarevolucionária, onde diabos ela está? Resposta: ela está na prática que

Marxismo, Direito e Sociedade − 1

13

Page 14: Olavo de Carvalho e Alaor Marxismo Direito e Sociedade

naquele mesmo momento Antonio Negri está promovendo. É estaprática que é a legítima, as anteriores não. Isto é uma constante nahistória do movimento socialista.

Tão logo enunciados os princípios do marxismo no ManifestoComunista de 1848, a primeira coisa que os comunistas fizeram foicolocá−los em revisão. O revisionismo é o segundo capítulo da históriado marxismo após a sua fundação, de modo que, aos revisionistas(Bernstein, Kautsky e outros), a associação que o próprio Marxestabelecia entre marxismo e violência era ilegítima. Não nos façamosilusões: Karl Marx sempre disse que a revolução somente se faria pormeio da violência, ele rejeitava qualquer possibilidade de implantar omarxismo por meio da educação ou qualquer outro meio pacífico einclusive dizia, lamentando−se, que “para implantar o socialismo nomundo nós temos de destruir no caminho uns quantos povos inferiores”,sic. Para os revisionistas, esse apelo de Marx à violência não fazia parteda essência do marxismo, mas era uma espécie de excrescência devida aalguma perturbação na cabeça do próprio Marx. No terceiro ato,volta−se à ortodoxia marxista através de Lenin, acreditando−se que éabsolutamente necessário fazer a revolução através do uso da violência;e, através do uso da violência, constitui−se a duras penas, com sacrifíciode milhões de militantes, sobretudo milhões de inimigos e dissidentes, oEstado Soviético. Uma vez pronto isto, o que diz a geração seguinte?“Isto não é representativo, isto não é o verdadeiro marxismo”.

Então, de geração em geração, nós vamos nos perguntando: afinal,quando aparecerá o verdadeiro marxismo? A resposta pode ser dada já:nunca. Porque o verdadeiro marxismo não existe como nenhumaformulação explícita, que possa ser discutida racionalmente. Omarxismo só existe como uma cultura, na qual a formulação doutrinal éapenas um elemento provisório e tático, que pode ser trocado quantasvezes se queira, de modo que o militante possa não somente mudar ahistória anterior, fazendo com que tudo aquilo que foi feito em nome domarxismo já não seja marxismo – e apareça um novo marxismo que eletem na cabeça –, mas consiga também fazer até o milagre oposto: eleconsegue não apenas limpar a memória de seus próprios crimes, masconsegue trazer para si os méritos do adversário. Vou lhes dar umexemplo de como se faz isso, exemplo que tirei do próprio AntonioNegri: ao falar da famosa prática da criação do sujeito revolucionário eda afirmação do seu poder, ele diz que “ isso faz parte da história de umconjunto de lutas pela libertação que os proletários desenvolveramcontra o trabalho capitalista, suas leis e seu Estado, desde o Levante deParis de 1789 até a Queda do Muro de Berlim ”. A Queda do Muro deBerlim integra−se na sucessão das lutas para a criação do sujeitorevolucionário e para a afirmação do seu poder. Só falta então dizer queo único marxista autêntico daquela época era Ronald Reagan. Orepresentante de qualquer religião, ideologia, partido político ou clubeesportivo que se permita uma tamanha elasticidade será evidentementecondenado como charlatão ou internado como louco. Mas dentro domarxismo isto vale. Mais ainda, digo para vocês: não é desonestidade,pelo menos não desonestidade consciente. Isto é possível dentro do

Marxismo, Direito e Sociedade − 1

14

Page 15: Olavo de Carvalho e Alaor Marxismo Direito e Sociedade

marxismo porque ele não é uma doutrina, não é uma teoria que se tenhade defender mediante uma discussão racional.

Marxismo é uma cultura e, na defesa da unidade e preservação de umacultura, todos os meios são legítimos. Mesmo considerações deveracidade e moralidade não devem entrar na linha de conta, porqueveracidade, ciência, cientificidade, moralidade e racionalidade sãoapenas expressões parciais da cultura, de maneira que fazer cobranças àcultura em nome delas parece uma insuportável revolta das partes contrao todo, uma quebra da hierarquia ontológica. Então, a cultura estásempre acima dos padrões de racionalidade que ela mesma cria. Sendo omarxismo uma cultura, todas as mentiras que ele venha a dizer nãopodem ser impugnadas no campo doutrinal, evidentemente. Porque, ounós as impugnaremos no campo moral e, a cultura estando acima damoral, rejeitará nossa argumentação como irrelevante, ou nósargumentaremos em nome da ciência, da racionalidade etc., e a culturacomo um todo jamais poderá se colocar sob a fiscalização da moral edos bons costumes. É tão absurdo você discutir com um marxista sobre asua cultura quanto seria você chegar numa tribo de índios do Alto Xingue dizer a eles que algum de seus costumes é imoral. Ele não entenderá oque você diz, porque a moral para ele são exatamente os costumes datribo, não existe uma moral supracultural a que ele possa apelar. Nóstemos idéia de uma moral supracultural porque vivemos em enormesblocos civilizacionais multiculturais, recebemos o impacto de muitasculturas e podemos compará−las entre si. Isto, por um lado, nos induz aorelativismo e, por outro lado, nos induz à busca de um padrão deabstração e abrangência maiores, mais científicos.

Mas, dentro da cultura marxista só vigora o que ela própria criou, equalquer produto externo só será admitido lá dentro uma vez trabalhadoe modificado no seu sentido, de modo que se torne inofensivo. Porexemplo, o pensamento conservador todo será substituído porpensadores de direita de baixíssimo nível – de preferência psicopatasnazistas que se denunciem a si mesmos na primeira palavra, porque daífica fácil lidar com eles. Ou então, às vezes, procede−se de maneiramenos grosseira, escolhendo certos adversários que até são de alto nível,mas trabalham dentro de uma faixa teórica tão limitada que fica fácilvencê−los saindo de seu quadro categorial, puxando a discussão para umoutro quadro. Por exemplo, a famosa discussão com Kelsen: Kelsen estáapenas tentando definir o que é o Direito considerado em si mesmo. Seexiste, dentro de uma sociedade, um complexo de fatores (direito,economia, moral, religião etc.), nada disso está separado, evidentemente.Porém, no que consiste cada um desses elementos? Se dissermos quecada um dos elementos não é nada, que só existe a mistura, será então amistura de vários nadas que miraculosamente dá em alguma coisa. Naépoca de Kelsen, houve vários esforços em várias ciências totalmentedistintas para conseguir definir seu campo de maneira, como eles diziam,“pura”. Houve o esforço de uma biologia pura com (?) e outros, houve oesforço de uma lógica pura com Edmund Husserl, e evidentementeninguém entenderá uma palavra do que disse Kelsen se não o entenderdentro deste movimento. Como o universo categorial conceitual de

Marxismo, Direito e Sociedade − 1

15

Page 16: Olavo de Carvalho e Alaor Marxismo Direito e Sociedade

Kelsen é bastante limitado (e eu, particularmente, também acho queKelsen está errado ao definir o Direito exclusivamente pela norma), émuito fácil, numa discussão com ele, apelar para conceitos sociológicose históricos que estão infinitamente fora do quadro de referência dele efazer de conta que o derrubou, quando simplesmente não se entrou noassunto. E assim se procede com praticamente todo mundo.

Muito bem, é claro que até o momento eu não disse nada internamentesobre o marxismo, muito menos sobre as teorias jurídicas do marxismo,que eu acredito piamente que não existem. Mas vamos examinar muitorapidamente alguns conceitos marxistas.

Primeiro, Karl Marx havia dito na Crítica da Filosofia do Direito deHegel que a realidade social dos homens condiciona a sua consciência;nas Teses sobre Feuerbach , ele vai um pouco mais além e diz“determina”. Isto quer dizer que você tem uma posição na sociedade queé definida pelo seu papel no sistema de produção e você tem umconjunto de idéias que é determinado por esta posição. Quanto édeterminado? Isso ele nunca diz; o máximo que ele diz é que, em últimainstância, é determinado. Então, qual é exatamente a relação entreposição social e ideologia? Ou existe uma relação efetiva, como dizMarx, ou posição social é uma coisa e ideologia é outra completamentediferente. Se houvesse uma conexão efetiva, então o burguês tem depensar como burguês, o proletário como proletário, podendo haver, éclaro, exceções. Mas qual seria a possibilidade de que justamente oprimeiro teórico da ideologia proletária não fosse um proletário? E osegundo também não? E o terceiro também não? E o quarto tambémnão? E de que praticamente toda a liderança do movimento comunista,ao longo dos tempos e incluindo Antonio Negri, nunca fosse deproletários? Eles podem dizer que são burgueses esclarecidos e queaderiram. Mas se você tem a liberdade de aderir, outros também têm.Portanto, a conexão entre a sua condição social e a sua ideologia é de sualivre escolha, e a famosa conexão não existe.

Outro item (eu poderia dar uns cinqüenta, mas vou usar um que foilembrado aqui pelo prof. Alaor) é o de que cada etapa histórica émarcada por um sistema de propriedade, e que dentro deste sistemaexistem forças de produção que crescem até um certo ponto e derrubameste sistema de propriedade – o prof. Alaor deu como exemplo ofeudalismo. Então, o feudalismo tem lá um sistema de propriedade;quando a produção cresce, ela cria uma incompatibilidade e ofeudalismo cai. Perguntem−me quando isso aconteceu. Respondo:nunca. O feudalismo caiu muito antes de que houvesse qualquer choquesério entre o sistema de propriedade e os meios de produção. O choquedo feudalismo foi com a instituição real ou monárquica. O feudalismofoi derrubado quando o rei, que era um primus inter pares , decidederrubar os seus pares e tornar−se o primus “sem pares”. Para isso, nocaso da França, constitui−se, pela primeira vez, uma imensa burocraciaestatal, com a qual nem os senhores feudais nem muito menos osburgueses puderam competir de maneira alguma. Vejam até que pontoisto é absurdo: diz−se que na Revolução Francesa a burguesia tomou o

Marxismo, Direito e Sociedade − 1

16

Page 17: Olavo de Carvalho e Alaor Marxismo Direito e Sociedade

poder. A burguesia são os capitalistas, não? Façam a lista dos líderes daRevolução Francesa e vejam quantos capitalistas havia ali. Resposta:um. Os outros eram todos padres, aristocratas frustrados, jornalistas etc.Se eles não eram burgueses ou capitalistas pessoalmente, eles podiam teralgum contato com entidades de capitalistas que lhes diziam quais eramseus interesses, interesses que queriam defendidos. Mas nunca houveeste contato. Isso quer dizer que, se a ideologia da Revolução Francesaera a ideologia dos capitalistas ou da burguesia, curiosamente osburgueses se esquivaram de defendê−la: ela foi defendida por pessoasque não tiveram nenhum contato com burgueses e não houve nenhumburguês vindo−lhes pedir que fizessem algo.

Isso é para lhes dar uma idéia de até que ponto a teoria marxista dahistória é pura mitologia e charlatanismo em cada um dos seus itens. Éclaro que, se em meia hora o prof. Alaor não pode expor a parte dele (aqual vocês já estão acostumados a ouvir), muito menos posso eu provartoda essa novidade. Dêem−me alguns anos e eu provo isto com todos osdetalhes.

MEDIADOR : Agora a réplica de trinta minutos do prof. Alaor CafféAlves.

<< parte 1 parte 3 >>

1 − 2 − 3 − 4

Home − Informações − Textos − Links − E−mail

Marxismo, Direito e Sociedade − 1

17

Page 18: Olavo de Carvalho e Alaor Marxismo Direito e Sociedade

Textos >> Marxismo, Direito e Sociedade, parte 3

<< parte 2 parte 4 >>

ALAOR CAFFÉ ALVES : Bem, isso se trata de um debate, e se é umdebate pressupõe um embate de algumas idéias que são postuladas.Obviamente eu não penso como o prof. Olavo no sentido tão global decultura marxista; não considero que isto exista no sentido que foicolocado. Há uma ideologia, obviamente, e toda ideologia pressupõesempre a restrição, em princípio, de seus membros ideologicamentepreparados e geralmente tenta excluir as outras ideologias, tanto quantoa ideologia neoliberal tenta excluir a ideologia marxista – é óbvio, é amesma falta. O importante é estudar a ideologia. É claro que, como foicolocado aqui, a ideologia de Marx nunca foi assim colocada. Marx tematé um trabalho muito conhecido, A ideologia alemã , onde eledesenvolve três conceitos de ideologia; e além disso, depois, no cursodos seus trabalhos, desenvolve outros conceitos. Aliás, a ideologia éplurívoca, tem várias idéias, vários conceitos para definição ecaracterização das ideologias, mas não é tão singelo assim como se fezparecer. Obviamente, foi colocada aqui uma série de questões relativas àhistória do socialismo real, mas nós aqui dissemos aos senhores que issonão significa que reflita de forma nenhuma as bases autênticas dopensamento marxista.

Muitos pensadores, inclusive da estirpe marxista, são de variadasconcepções, de variadas formas de ver o mundo. Não existe “um”marxismo mesmo. Existe o próprio Marx: quem quiser estudar, estudeMarx. Não se postula apenas inicialmente como uma cultura, porqueMarx iniciou seu trabalho cientificamente. Pode ter muita coisa errada,disso não há dúvida nenhuma. Mas que ele iniciou seu trabalho com umaanálise científica da economia burguesa de sua época, ele fez isso. Elenão teve intenção de estabelecer uma sociedade socialista, comunista;ele nem tratou disso, na verdade. Ele sempre propugnava algunsprogramas em bloco, propugnava uma sociedade mais justa.

Aliás, é exatamente esse o problema: como dizer que o marxismo é umconjunto de besteiras, de bobagens, se ele parte exatamente de umarealidade que até hoje é presente? Expliquem para mim a racionalidadede que o bolo social é um só e, no entanto, um grupo pequeno de pessoasamealhe esse bolo, patrimonialize esse bolo, capitalize parte desse bolo,

Marxismo, Direito e Sociedade − 1

18

Page 19: Olavo de Carvalho e Alaor Marxismo Direito e Sociedade

e uma grande quantidade de pessoas não tem absolutamente nada, nemsequer o que comer. Eu já não estou partindo da literatura, nem dopensamento, nem das coisas abstratas. Estou pensando na realidadeatual: milhões de brasileiros não têm o que comer, não têm recurso, eeles participaram na elaboração do bolo. Ou não? Pensar que aquelesque têm um patrimônio imenso, recursos acumulados imensos. Essesrecursos vêm de fora da sociedade? De Deus? Deus seria malvado, nãoé? Ele dá recursos só para um grupo e não dá para os outros. Eles vêm dasociedade conjunta, de todos, e no entanto temos uma diferença tãoprofunda que não há sequer neoliberalismo – que hoje é dominante – queresolva esta questão, e não vai resolver. Assim como se diz que omarxismo não vai resolver, o neoliberalismo também não vai.

OLAVO DE CARVALHO : Tem toda razão.

ALAOR CAFFÉ ALVES : Há anos estão aí, com mais amplitude,globalizados, e tudo o mais; e no entanto nós temos seis bilhões de sereshumanos, dos quais três bilhões estão numa situação de penúria ainda, secontarmos a África, a Ásia, [palavras inaudíveis]. A pergunta é aseguinte: onde está a razão de que um grupo social mantém umaestrutura, e que o Direito está aí presente, ele é um instrumento para essemesmo efeito? Não é que o Direito seja culpado, de forma nenhuma. Osculpados são os homens, não o Direito. Ele não tem pernas próprias. Sãoos homens que fazem isso, somos nós. Como justificar as discrepâncias,as diferenças terríveis que existem nesse país? Dizem que é a nonaeconomia do mundo, mas é a 54 a em distribuição de renda. [Palavrasinaudíveis.]

Perguntou−se a respeito da Revolução Francesa, e se disse querealmente não havia nenhum capitalista na Revolução Francesa. E hojenós temos o sistema mais bem definido, mais bem claro, mais bemcaracterizado que é o sistema capitalista no Brasil e em outros países eeu pergunto: vocês encontram políticos burgueses? São os capitalistasque estão lá fazendo leis? São os capitalistas que estão organizando eque estão governando o país? Não é só no Brasil, não. E aí pensar: “Aíestá o PT agora. O PT é comunista, é socialista.” Claro. Não estãoconseguindo fazer o que queriam fazer? Erguer até operário? Porque osistema é tão forte, a dimensão objetiva estrutural do sistema é tão forte,que podem ter lá idéias comunistas e socialistas que não vão conseguirnada. Porque a estrutura determina isso. A questão científica está emsaber quais são os elos que vão nos explicar por que é que lá, noCongresso Nacional, não temos burgueses, mas as leis são burguesas:interessante essa mecânica. Eu gostaria que se utilizassem instrumentossociológicos, e a sociologia política inclusive, ou a sociologia eleitoralpara mostrar como é que se dá isso. Quantos operários nós temos noCongresso? Nenhum, ou poucos, contam−se com as mãos. No meiorural? Pouquíssimos. E mesmo os restantes não são burguesescapitalistas. Não são os pró−capitalistas. Eles nunca quiseram… Aliás, oempenho deles não é participar no sentido do proscênio político. Já temtoda uma dimensão estruturadora do sistema que se chama “forma deprodução ideológica”. É para isso mesmo. Vamos criticar, por exemplo,

Marxismo, Direito e Sociedade − 1

19

Page 20: Olavo de Carvalho e Alaor Marxismo Direito e Sociedade

as novelas, a mídia, os jornais, os jornalistas. [Palavras inaudíveis.]Criticar todos, porque todos participam desse processo de fazimento,realização e estruturação das idéias dominantes. Idéias estas que definemexatamente essa profunda injustiça que existe.

Então nós temos de nos revoltar contra isto. Sei lá que idéias vocês vãousar, se idéias marxistas, idéias neoliberais, idéias liberais, idéiassocial−democratas. Não importa. O fato importante, fundamental é este,gente: nós temos de vencer as discrepâncias, as diferenças sociaisprofundas que existem nesse país. Isto é muito grave, sério. Poucoimporta, inclusive, o esquema de idéias que vamos utilizar. É natural quediante de uma situação dessas, os homens tendem sempre a tentarequacionar o problema mediante seus conceitos, mediante suacompreensão, como fazer isso tudo, como resolver essa questão dadistribuição da renda. Não é fácil. Dentro do regime de mercado, que étão defendido pelos neoliberais, nós não encontramos nenhuma solução.Até agora nunca houve isso. Pelo contrário, no sistema de mercadotemos uma diferença tão profunda entre os homens: entre muitos quenão têm absolutamente nada, que não vão ter mais nada do que têm, istoé, nada, e aqueles que têm muito, que vão ter a chance de ter, fora isso,mais e mais. É a lei da acumulação. Ela existe ou não existe? É a lei domercado: quem tem recursos, tem como produzir a liberdade, ou nãotem? Quem tem recursos vai à Europa, vai à Ásia, vai conhecer o frutode culturas diferenciadas, vai expandir sua personalidade, vai tereducação, vai ter a medicina, vai ter a saúde, vai ter a sua culturaacrescentada, porque tem recursos. E quem não tem? E quantos não têm?Não têm nem recursos para ter saneamento básico, nem água destinada àsua higiene. Minha gente, isso é uma realidade, eu não estou falandoaqui como se fosse uma construção silogística ou teórica. Isso é real, e omercado está ali, defendido, pois é ele exatamente por enquanto assimjogado às suas próprias forças, autonomicamente desta forma como eleé, que ele é sempre um indutor da miséria e das diferenças profundassociais. Isso não é só o Brasil, não. É em todo o mundo, inclusive nosEstados Unidos. Lá até é um pouco melhor em relação, porque o país ériquíssimo.

Falou−se da KGB. Falou−se da KGB. Claro, quem é que vai aceitar umacoisa como esta? A KGB. Quem é que vai aceitar um negócio desses?Ninguém vai aceitar. Ninguém, na boa consciência dos homens. Estácorreto o professor, o doutor Olavo. Mas é preciso também dizer oseguinte: hoje, os Estados Unidos põem 450 bilhões de dólaresanualmente no seu orçamento militar. Não estou falando em KGB, não.Não estou falando de espionagem. Estou dizendo de máquinasmortíferas: sabe aquelas que caem bombas, sabe aquelas que apertambotões e vai matando gente? 450 bilhões de dólares. Já imaginaram oque é 450 bilhões de dólares em um ano? 450 bilhões de dólares! Se istofosse distribuído para toda a África em três tempos nós teríamos odesenvolvimento de toda a África. É claro que não vão fazer isso, poiseles vão cuidar eles próprios dos seus próprios problemas. Fazer issosignifica criar opressividade para eles. Imagine o que seria 450 bilhõesde dólares aqui no Brasil, de vez; basicamente o país inteiro há muito

Marxismo, Direito e Sociedade − 1

20

Page 21: Olavo de Carvalho e Alaor Marxismo Direito e Sociedade

está precisando. Isso em um ano! Mas eles jogam isso em um ano namáquina, na máquina de guerra! Então, isto está muito claro. Se nósestivéssemos importando recursos deste tipo, não há dúvida que teríamoschances enorme de ter um desenvolvimento enorme imediatamente. Eudiria que, em dez, quinze ou vinte anos, ou trinta anos no máximo,teríamos desenvolvido o globo inteiro; mas esse desenvolvimento não écomportado pelas relações produtivas do sistema capitalista. Estesistema, como vocês vão vendo, não só os 450 bilhões, são bilhões ebilhões derramados não só no exército, mas na estrutura socialamericana, na NASA. A pergunta é a seguinte: vocês já viram aquelascoisas maravilhosas que tem lá? Aquilo custa dinheiro, aquilo custarecursos. Vocês acham que aquilo tudo vem dos Estados Unidos? Vemdo povinho que vai lá, que trabalha e que portanto faz seus programasespaciais, o seu programa de atuação militar, a sua dimensão de políticassociais? Nada! É do mundo inteiro que eles tiram!

Alguém da platéia : A China também, né, professor?

ALAOR CAFFÉ ALVES : Mesma coisa. Que seja. A mesma coisa. Aívocês vêem portanto o que eu quero dizer. Eu não estou falando do povodos Estados Unidos singularmente; eu estou dizendo, gente, que osistema não funciona de outra forma. Vocês, jovens, estão vivendo nacarne hoje o problema do desemprego. O desemprego não é uma questãosimplesmente conjuntural, é uma questão estrutural hoje. Não é noBrasil, é no mundo inteiro.

O fenômeno da globalização: esse desemprego é decorrente do quê? Daintrojeção de tecnologia e ciência no processo produtivo. É muito óbvio.É muito fácil isso. É necessário. Mas na medida em que se vãointrojetando sistemas cada vez mais sofisticados de produção, vai seexpulsando cada vez mais mão−de−obra do processo produtivo. E não ésó expulsão no primeiro ou no segundo setor da economia, na indústriaou no setor rural; também no terciário: cada vez mais vocês têmdificuldades em ter engajamento. E o sistema não tem como fazer,porque ele está entrando em contradições profundas. Ele é contraditóriona sua própria realidade estrutural, na sua dinâmica. Ele é contraditóriomesmo. Ele não vai criando só mercado; ele produz cada vez mais emais, com máquinas, com automatização, com informática, com arobótica, com tudo. Mas os homens vão e se apresentam às fábricas. Mascomo pagá−los, a esses homens, para que eles possam formar omercado, a fim de consumir essas coisas todas produzidas pelasmáquinas sofisticadas? Como? A resposta é: não tem como. E então nãopodemos avançar mais com a economia, não podemos avançar mais coma tecnologia, com a ciência. Nós precisamos distribuir renda.

Isto decorre exatamente da perspectiva, da visão deformativa do que nóschamamos de materialismo histórico: o desenvolvimento das forçasprodutivas está definindo uma nova relação entre os homens. Como sairdessa? É claro que pode levar dez dias, levar dez anos, ou mesmo umacentena de anos; isso aí nunca se sabe, isso é um produto histórico. Masque as contradições internas o estão corroendo, estão. Não porque os

Marxismo, Direito e Sociedade − 1

21

Page 22: Olavo de Carvalho e Alaor Marxismo Direito e Sociedade

homens assim queiram; é porque a estrutura social e econômica estádefinindo esta forma: as relações entre os homens mediante os processosprodutivos e os instrumentos de produção. Talvez não comporte maisesse tipo de relação; uma outra relação onde haja uma [palavrainaudível] cada vez maior, uma produtividade cada vez mais sofisticada,mas uma distribuição que ainda não se enfrentou. Não se distribui maispelo salário, então vai se distribuir de que jeito? Como? Por quê? Contepara mim. Conte. De que jeito vai distribuir? Isso é decorrente,inclusive, da econômica; não é teoria, nem teorético, de jeito nenhum.Com isto todos estão preocupados, inclusive os teóricos burguesesneoliberais; eles sabem disto, estão percebendo isso, certamente, claro.

Ainda se fala no caso do Estado, como se só o Estado aparecesse; comose não houvesse nenhuma alteração do sistema feudal que passou para osistema capitalista, burguês, sem uma modificação específica. O Estado,inclusive, foi tomado primeiramente pelos nobres que atuavam de formaabsoluta, mas não se percebeu aqui que o Estado apareceu justamenteneste momento como Estado absoluto. Por que é que o Estado apareceu?Apareceu justamente na continuidade do que eu havia dito antes, e épreciso analisar, é preciso trabalhar bem a análise analiticamente. O queeu disse? Eu disse que o processo de desenvolvimento das forçasprodutivas determinou que os homens ampliassem o mercado, portantoaparecem neste momento as forças mercantis progressistas queavançaram. Não vão pensar que o capitalismo apareceu como umamazela. Foi muito bom, sem o capitalismo teríamos avançado para forado planeta; tivemos enormes progressos; o individualismo se criou nosistema, quando nobre, adequado, compreendido e evidentementepraticado dentro das condições éticas, tudo bem. Infelizmente o própriosistema exacerbou esse processo pela busca do mundo, pela buscaexacerbada da acumulação desenfreada. Porque o Estado não podiaaparecer neste momento para coibir o processo produtivo.

Vejam uma coisa importante, para que tenhamos uma idéia clara.Quando o trabalho não é mais posto forçadamente… Porque no sistemafeudal, o que aconteceu, isso precisa ser explicado concretamente: osistema feudal, o sistema de trabalho, da produção da vida material doshomens era feito em função de uma imposição por parte de uma forçapolítica, que também era econômica. Como eu disse, os nobres eramdetentores não só do esquema econômico, eram patrimonialistas emfunção do sistema feudal, como também esses nobres eram os políticosdo sistema, ou seja, aqueles que podiam manipular a força para impor otrabalho ao produtor direto. Quando, então, há o desenvolvimentoprogressivo da economia, e era preciso fazer a distribuição de renda afim de criar mercado, em função do desenvolvimento das próprias forçasprodutivas, era preciso tirar, extrair, afastar a questão política da questãoeconômica. Não era possível manter o econômico e o políticoconjugados à força daquele que produzia, não só por razões de interesseeconômico, mas também por questões de ordem política, atuava para queo trabalho fosse força. Na hora em que o trabalho começa a serassalariado (o que precisava sê−lo, para que o sistema funcionasse), aíninguém admite a liberdade e a igualdade necessárias, porque senão não

Marxismo, Direito e Sociedade − 1

22

Page 23: Olavo de Carvalho e Alaor Marxismo Direito e Sociedade

há contrato. É por isso que neste período começa a pensar−seideologicamente no chamado contratualismo: ele se expande entre osteóricos do contratualismo porque o contrato passa a ser uma figura, uminstrumental fundamental para aproximar capital e trabalho. Não haviaisso antes. Por isso é que é preciso estabelecer que todos sejam sujeitosde direito, direitos e obrigações. O capitalista vem e diz: “Você me trazsua força de trabalho e eu lhe pago o seu direito de salário.” Otrabalhador diz: “Está certo. Eu entro com meu trabalho, eu sou obrigadoa empregar a força de trabalho, tenho obrigações, mas eu tenho dereceber o meu salário. Eu tenho o quê? É evidente. Direitos eobrigações.”. E isso se universaliza por toda a sociedade, justamente nosséculos XV, XVI e XVII. E nesse período, o que acontece com opolítico? Ele vai se destacando e se concentrando não mais na sociedadedescentralizada, como havia antes; ele se concentra no poder absolutodos reis, e aí é que aparece o Estado pela primeira vez. Um Estado aindanão adequado à burguesia totalmente, mas como efeito de um processoque correspondia exatamente a esse movimento do capital. Era anecessidade de que o trabalho, o contratado, deveria ser contratado e nãoforçado, conseqüentemente não podia haver a política no processo, masa política deveria estar presente a todo instante em que o contrato fosserompido. Aí era preciso evocar e convocar o político, ou seja, a força,para que o sistema continuasse a funcionar. Como isso é apenasformalizado em nível de mercado e não em nível da produção, porque aprodução ainda continuava a envolver uma inequação profunda (porqueé lá no processo produtivo que havia o processo expropriatório deacumulação), era preciso manter uma estrutura de força para qualquertipo de emergência que houvesse; caso grande parte dessa população quetinha de entregar a sua parte de trabalho para acumular a outra parte, erapreciso que houvesse a emergência possível de uma força, caso falhasseo esquema ideológico. O esquema ideológico começou a desenvolver−seamplamente para que todos aceitassem a situação como natural. Mas amiséria, às vezes, alcança níveis tão altos que o sistema burguêshegemônico tem de ter meios para poder resolver e neutralizar qualquertipo de crise. E como vai fazer isso senão através do Estado, através daforça centralizada do Estado que só aparece no sistema burguês. OEstado é um fenômeno tipicamente moderno. Não havia Estado na épocafeudal; havia organização política, isso havia, mas não Estado. Nãohavia Estado na época clássica, não existe Estado romano. TinhaImpério romano, com uma dimensão descentralizada enorme, por causados senhores de escravos, que atuavam diretamente de suas fazendas;eram as famílias que tinham atuação de poder político. Isso não acontecemais no sistema burguês, não acontece mais no sistema moderno, onde osistema então acrescenta o ponto de vista mercantil, e vai sedesenvolvendo até chegar à Revolução Industrial; e isto se concentraenormemente num processo imenso em que o Estado faz presente ogendarme, o Estado−polícia, para evitar qualquer tipo de proposta queviesse a conflitar com os interesses da política dominante, o queaconteceu mesmo já o século XIX.

O próprio Marx, que postulava idéias estranhas a esse sistema, foiperseguido, e teve de, inclusive, tomar posições complicadas nesse

Marxismo, Direito e Sociedade − 1

23

Page 24: Olavo de Carvalho e Alaor Marxismo Direito e Sociedade

processo, e outros movimentos, é claro, movimentos operários nessaépoca do século XIX. Aí vocês vêem que não há nada de culturalidadeabstrata. É preciso agora (eu disse isso, é claro, de forma muito genérica)mas eu preciso basear agora os erros concretos de cada coisa. Euexplicaria para vocês o contrato, explicaria a hipoteca, explicaria oaluguel, explicaria tudo a partir dessas estruturas! Não posso fazê−loporque tenho apenas meia hora. Portanto, não é uma questão abstrata,ampla, múltipla simplesmente, é uma questão que envolve métodosespeciais singulares.

Outra questão que se colocou a respeito de Kelsen, que se colocou muitobem aqui, porque Kelsen – eu mesmo disse a vocês que ele era muitointeligente –, ele era um leitor fruto das condições do chamadopositivismo, do primeiro quartel do século XX. Ele postulava a idéia deciência pura, a partir de uma idéia do positivismo como ciência doobjetivo. A ciência tem de ser objetiva, de tal maneira a dizer o que acoisa é, não o que ela deve ser. Ele dizia que se há ciência do direito,essa ciência deve dizer o que é o direito. O direito dele lá, como objeto, édever−ser , é norma, não há dúvida – pelo menos isso, pelo menos isso.Mas o direito como ciência tem que dizer o que ele é, e como é, significadizer o que é o dever−ser, como é a norma . E ele, muito bem aparelhadocom a perspectiva e a visão dos positivistas, não só dos positivistasjurídicos, mas dos positivistas filosóficos, os filósofos positivistas, quetentavam buscar a extração do sujeito em relação ao objeto, evitar amistura de sujeito e objeto, pelo contrário, neutralizar o mais possível osujeito para que o objeto se sobressaísse claramente como algo objetivo.Então, tem de se buscar o direito objetivo. Claro está que esta dimensãofoi fracassada, mas não por ele, Kelsen, não por ele, mas pela crítica daprópria sociedade.

Já mesmo nas épocas do começo do século XX, nós encontramos porexemplo um [?], um François [?], esses pensadores, esses sociólogos,que tentaram quebrar a condição formal de Kelsen. E Kelsen ainda dizassim: “Não, mas a questão sociológica não é uma questão jurídica nasua essência.” Nós sabemos muito bem disso. Muito bem! Essa históriaé muito bem contada! Efetivamente, é claro que Kelsen queria só umapequena questão, que é a questão do que é, na sua essência, o jurídico. Oproblema é que ele não foi aceito, não por ele mesmo, mas por váriospensadores que chegaram à conclusão de que o Direito não pode serpuro quanto à sua tese, quanto à sua teoria. O Direito em si mesmo, oDireito como objeto, é claro que ele nunca foi puro, e o próprio Kelsensabia muito bem disso. O Direito é impuro por natureza; pura é a teoriasobre ele, isto é que é puro. Mas é válida do ponto de vista – agora vejao que eu digo – epistemológico. Como uma crítica epistemológica, éválido consignar essa forma de compreender o mundo? Talvez fosseválida naquele momento. Compreensível! Mas depois da SegundaGuerra Mundial, com a conturbação imensa do humano, do homem, jánão se pensava mais em buscar ciências puras, isoladas, solitárias, cadauma de per si . Percebeu−se que os homens tiveram mazelas profundasexatamente por não se comunicarem não só eles, como com as própriasciências. Daí vem toda a questão da interdisciplinaridade que vocês

Marxismo, Direito e Sociedade − 1

24

Page 25: Olavo de Carvalho e Alaor Marxismo Direito e Sociedade

conhecem hoje, que é um problema muito complexo, muito difícil, quenão se soluciona facilmente. Buscar o Direito na sua expressão a partirda forma interdisciplinar, em que envolvemos não só a juridicidadecomo norma, mas também o que é a dimensão social, econômica, eassim por diante. Como compreender uma realidade plenamente senãodescendo às suas próprias raízes? Isso é como imaginar que somente oestudo do caule lhe dê a realidade da planta. Não é isso. E o caulesozinho existe? Não. Ele só existe em ligação com a planta, e este sóexiste em ligação com as suas raízes. Vejam, então, os senhores que,efetivamente, é claro que há muitas outras questões a serem colocadas,como afinal eu queria colocar que é a da violência, da revolução. Marxnunca pensou só na revolução no sentido da violência. Pelo amor deDeus! Foi colocada aqui a questão das teses sobre Feuerbach. Nas Tesessobre Feuerbach , Marx coloca muito claramente o que ele entende porrevolução. Ele não fala especificamente de revolução: ele fala emtransformação pelas raízes. A revolução não tem de ser necessariamenteviolenta, de jeito nenhum. Pode ser outra. Por exemplo, essa questão queeu coloquei agora há pouco, que é a da limitação do próprio sistemaeconômico capitalista que não pode superar−se a si próprio, vai implicaruma revolução, uma transformação profunda. Isso não precisa ser pelocaminho das armas. É até bom evitar isso, evitar a morte das pessoas.Quanto mais as pessoas forem conscientes, mais educadas, mais clarasem ver o mundo, tanto mais facilmente poderemos fazer a transmutação.Por isso é que nós preferimos então a democracia, não uma democraciasimplesmente representativa, mas uma democracia participativa quepermite a todos nós trabalharmos o mercado. Nós vamos contrapor ademocracia participativa não à ditadura, não aos meios autocráticosapenas, mas também, gente, opô−la ao mercado, esse mercado terrívelque não tem força nenhuma que o coíba. É preciso coibi−lo através doquê? Da conjunção, do consenso da comunidade, para buscar melhor aexpressão do valor do uso social! Evitar que esse valor de troca toquetodo mundo. [Palavras inaudíveis.] Esse mercado tem de sofrer impactosrestritivos em prol da comunidade, em prol da dignidade humana, emprol da distribuição para os homens, em prol da paz entre os homens.Isto é fundamental. É disso que se trata.

MEDIADOR : Passo a palavra para Olavo de Carvalho.

OLAVO DE CARVALHO : Então está muito bom. Já que passamos adiscussão para o terreno dos fatos, e partimos de uma situação que Marxteria encontrado e que ainda se encontra mais ou menos igual no mundo,então vamos ver um pouco a relação entre os fatores considerados:mercado e miséria. Segundo o prof. Alaor, o grande culpado da miséria eda desigualdade é o mercado descontrolado. Ele usou a palavra“controlar” e a palavra “coibir”. Portanto, é necessário controlar e coibiro mercado.

ALAOR CAFFÉ ALVES : Não foi isso.

OLAVO DE CARVALHO : Aí eu não sei…

Marxismo, Direito e Sociedade − 1

25

Page 26: Olavo de Carvalho e Alaor Marxismo Direito e Sociedade

ALAOR CAFFÉ ALVES : [Interrupção inaudível.]

OLAVO DE CARVALHO : Quando chegar a sua vez o senhor fala. Eunão lhe dei aparte. O senhor usou as expressões “controlar” e “coibir”.

ALAOR CAFFÉ ALVES : [Interrupção inaudível.]

OLAVO DE CARVALHO : Eu não lhe dei aparte! O senhor espere. Euesperei aqui. Muito bem. “Controlar” e “coibir”. Quanto eu não sei. Acoibição total seria a estatização total dos meios de produção. Não meparece que o prof. Alaor seja um defensor disto, e não creio que existamais, nem mesmo entre os teóricos marxistas, alguém que defendaexatamente isto. Mas, se o grande culpado da miséria e da desigualdadeé o mercado descontrolado, então para melhorar a condição dos pobrestemos de controlá−lo. O controle se faz basicamente de duas maneiras: amais direta, que é a participação do Estado na economia comoproprietário e investidor, e a segunda através de legislaçõescontroladoras e restritivas, seja sob o aspecto fiscal seja sob outrosaspectos.

Muito bem. Nós temos aqui um índice de liberdade econômica.Liberdade econômica seria a ausência de controle. Ausência total nãoexiste, assim como controle total não existe. Mas dentro dessa escala quevai de 1 a mais ou menos 150, nós temos entre os países de economiamais livre do mundo Hong Kong, Nova Zelândia, Irlanda, Luxemburgo,Holanda, Estados Unidos, Austrália, Chile, Reino Unido etc. E assim, àmedida que aumenta o número de controles, supostamente para protegeros pobres, nós vamos descendo na escala de liberdade econômica.Passou a primeira página, passou a segunda, aí mais ou menos no meioda terceira, encontramos o Brasil em 79 o lugar. Quem tem maiscontrole do que o Brasil e, portanto, está abaixo nesta lista? Eu vou daralguns: Paraguai, Nicarágua, Quênia, Zâmbia, Guiné, Ruanda, Tanzânia,e assim por diante. Se vocês pegarem este mesmo quadro transformadopara uma projeção visual, nós temos aqui em verde e azul as regiões demais liberdade econômica e, portanto, de menos controle, e em amareloe vermelho aquelas que têm mais controle. É só você olhar estes dados,que são coletados anualmente com muito critério por um grupo deeconomistas, e você verá que a idéia mesma de melhorar a condição dospobres através de controle é um absurdo sem mais tamanho. Se disseremque o neoliberalismo não vai resolver, é claro que não. Em primeirolugar, porque neoliberalismo não é liberalismo. Neoliberalismo é umliberalismo meia−bomba que também se mistura com um socialismomeia−bomba, e o neoliberalismo é simplesmente um pretexto para fazero que o nosso governo tem feito, que é controlar mais e mais e mais.Hoje em dia, só de dispositivos que regulam o orçamento federal, vocêssabem quantos há? Cinco mil e quinhentos. Isto quer dizer que para umsujeito votar o orçamento com consciência de causa, ele precisaconhecer cinco mil e quinhentas leis. Isto é humanamente impossível.Isto é o controle estatal.

Marxismo, Direito e Sociedade − 1

26

Page 27: Olavo de Carvalho e Alaor Marxismo Direito e Sociedade

Ora, o prof. Alaor reconhece que aqueles que estão no Congresso e quefazem as leis não são capitalistas e, ao mesmo tempo, ele diz que eleslegislam em favor dos capitalistas. Aí eu me permito concluir que sefossem proletários não legislariam necessariamente em favor dosproletários. Porque acabamos de ver que a ideologia e os ideais doindivíduo não são de maneira alguma condicionados nem determinadospela sua condição social. Porque se fosse esse o caso, eu, que sou filhode operário de indústria e neto de lavadeira, deveria ser o mais marxistade todos, ao passo que pessoas como o sr. Eduardo Suplicy e toda essagente seriam pró−capitalistas. Mas, se os legisladores, tanto no Brasilcomo em outros lugares, não são nem capitalistas nem proletários, o queé que eles são?

Ora, eu estava lhes contando a história do fim do feudalismo. Desde oreinado de Luís XIV se começa a formar, para fins militares, umprincípio de organização burocrática estatal. Aos poucos essaorganização burocrática vai tirando da aristocracia feudal as funçõeslocais que elas exerciam (por exemplo, tribunais, juiz de paz, coleta deimpostos etc.) e passando para a burocracia. É evidente que osaristocratas perdiam a sua função sem perder a sua quota dos impostos,criando então uma classe ociosa imensa, contra a qual se volta, com todajustiça, a Revolução Francesa dois séculos depois. Mas ao mesmo tempoque se forma a burocracia estatal, para preenchê−la é necessário terfuncionários preparados. Para ter funcionários preparados, é precisohaver uma expansão do ensino. Então cria−se, para uma multidão depessoas de todas as origens sociais mais pobres, desde a pequenaburguesia até os camponeses, uma promessa de subir na vida através dofuncionalismo público. Este é um fenômeno inédito na História. Eacontece que o funcionalismo público cresce, a burocracia cresce, ejunto com ela cresce o ensino. Mas, naturalmente, o número decandidatos cresce formidavelmente mais. E com isso se cria uma legiãode pessoas que têm alguma instrução e que aspiram ao cargo público enão o têm. É a esta classe que eu chamo a burocracia virtual .

Se você estudar a história de todas as revoluções (Revolução Francesa,Revolução Russa, Revolução Chinesa etc.) não através de impressõesgerais e nomes de classes – gêneros universais como burguesia eproletariado – mas se você for vendo uma a uma a origem social doslíderes, era a esta classe que pertenciam. Esta é a classe revolucionária.Mais ainda: todas as revoluções que ela fez foram sempre em proveitopróprio. Quem sai ganhando com as revoluções não é o proletariado etambém não é a classe capitalista. É a burocracia virtual, que semprelegisla em causa própria, segundo a norma que foi assim enunciada pelopróprio Trotsky: “O encarregado da distribuição jamais se esquecerá dedistribuir a si próprio em primeiro lugar.” Isto é norma, e é por isso queesses países onde o Estado não deixa a economia à sua própria mercê,onde a economia é controlada, são os mais pobres e os que têm os maisaltos índices de corrupção. Isto é necessariamente assim, e não hásolução enquanto o poder da burocracia, sobretudo da burocracia virtual,não for quebrado.

Marxismo, Direito e Sociedade − 1

27

Page 28: Olavo de Carvalho e Alaor Marxismo Direito e Sociedade

Mas é preciso muita cara−de−pau para lhes dizer isto justamente aqui.Porque esta escola existe para isto. Numa pesquisa feita entreuniversitários brasileiros dois anos atrás, verificou−se que menos de 2%deles queriam ser empresários depois de formar−se. Todos queriam umemprego. De cara eu fico espantado, porque eu sempre ouvi dizer que aUniversidade faz parte do aparelho ideológico da burguesia para formara classe dominante, e de repente nós descobrimos que todos eles queremser empregados. Que tipo de empregado? Não é necessário dizer. Então,isto quer dizer que vocês são burocratas virtuais, esperando paratransformar−se em burocratas reais. Portanto, são por excelência apopulação da qual o movimento político revolucionário colhe os agentesde transformação social. Porque, evidentemente, não há lugar para osburocratas virtuais em nenhuma sociedade; só haverá lugar quando elesestiverem no poder. Ora, tomam o poder acreditando que vão pôr fim àsinjustiças. Uns acreditam, outros são mais cínicos e sabem que não.

Vamos fazer aqui uma comparação: aqui nós temos um sujeito maior emais poderoso que está oprimindo este aqui, que é menor e menospoderoso. Então eu entro e digo: vou parar com essa injustiça, eu vouintervir. Ora, para intervir numa briga entre o mais forte que oprime omenos forte, eu tenho de ser necessariamente mais forte que os dois. Istoquer dizer que qualquer intervenção política que vise a diminuir adesigualdade econômica tem de fazê−lo necessariamente aumentando adesigualdade política, portanto concentrando o poder político. Isto é umaregra jamais desmentida em qualquer processo revolucionário violentoou pacífico do mundo. Então, eu vou ter de concentrar o poder;concentra o poder, concentra o quê? O controle.

Por outro lado, se eu concentro o poder político, do que é que vive opoder político? O poder político não custa dinheiro? O próprio prof.Alaor estava falando do orçamento militar americano. Isso quer dizerque se há uma concentração do poder político, há necessariamente umaconcentração ainda maior do poder econômico. E é isto que permitiu aosocialismo realizar um feito jamais igualado na história humana: matarde fome, em cinco anos, trinta milhões de pessoas, no Grande Salto paraa Frente, que foi o quê? A centralização da agricultura chinesa. Isto éuma verdadeira maravilha! Ninguém conseguiu isto. Ora, se vocêsquiserem tentar novamente… Bom, agora querem. O MST, no fundo,quer isto: “Nós vamos fazer uma agricultura centralizada, estatizada,diretamente sob controle do ministério”. Vocês sabem perfeitamente queo MST não produz nada e que vive de cestas básicas. Saiu recentementeum livro de um jornalista chamando Nelson Barreto, que visitou mais detrinta acampamentos rurais e disse: “São favelas rurais”. É claro, nãopoderiam ser outra coisa. A socialização da agricultura sempre dá nisto.Se você pegar todos os países africanos que estão numa condição demiséria atroz, todos eles foram vítimas de políticas estatistas,centralizadoras e socialistas. Hoje em dia, na Etiópia, por exemplo, sevocê toma uma cerveja, você paga 82% de imposto; se você tem umfirma que ganha mais quinhentos dólares por ano, você paga 52% deimposto, e para cada tostão que ultrapassa os quinhentos, você paga maistrinta, e assim por diante. Saiu um livro recentemente descrevendo a

Marxismo, Direito e Sociedade − 1

28

Page 29: Olavo de Carvalho e Alaor Marxismo Direito e Sociedade

economia da Etiópia – é uma maravilha, é o controle. Se o mercado é omonstro que está deixando as pessoas miseráveis, lá eles não corremesse perigo, porque o mercado está amarradinho. Ele está amarradinhona Etiópia, na Zâmbia, no Gabão. Por que é que não imitamos esseslugares? Parece que a presente geração está seriamente inclinada a fazerisso. Por que é que está inclinada? Porque o raciocínio que preside essadecisão, essa escolha, não é um raciocínio baseado na economia, narealidade econômica, na racionalidade econômica. É um raciocínio deordem cultural.

Existe uma cultura marxista que está associada a símbolos de valor ético,de bondade e de solidariedade intergrupal. Ora, você se desvencilhar deuma ideologia ou de uma idéia é relativamente fácil, porque vocêsimplesmente muda de idéia. Mas, como é que você faz para sedesgarrar do meio marxista, da atmosfera marxista? Primeiro, tem deabandonar seus amigos: eles não gostam mais de você. Isto, todos meusalunos depõem, nesse sentido, e eu recebo centenas de cartas: “Eu soudiscriminado porque não sou marxista…” São centenas, e chegam todomês. Não estou acusando os marxistas de serem maus, não é isso o queeu estou dizendo. Se eu fosse fazer um diagnóstico desse tipo, eu nemprecisava vir aqui: eu estou tentando ser o mais científico que eu posso.Científico não quer dizer neutro, quer dizer apenas honesto.

Por exemplo, o professor se refere às novelas, ao poder ideológico queelas têm sobre o público. Vocês já ouviram falar de uma novela chamadaKubanacan ? Vocês sabem o que quer dizer “Kubanacan”? Sabem o quequer dizer essa palavra? É o nome da agência oficial de turismo de Cuba.Se você pegar todas as novelas da Globo, de vinte anos para cá, aseleção ideológica é estrita. No tempo do falecido Dias Gomes haviauma central de seleção de novela. A novela passava por três peneiras deseleção: primeiro, ideológica; segundo, artística; terceiro, comercial.Qual era a primeira instância? Ideológica. Ou seja, se não atende aorequisito ideológico, nem passa à segunda instância. Nós estamosimpregnados de cultura marxista 24 horas por dia; é difícil sair de dentrodela. Mesmo no tempo em que as coisas não eram assim, quem quer queparticipasse desse meio tinha certa dificuldade de sair. Vou lhes contarpor que.

Quando eu comecei a trabalhar na imprensa, a primeira coisa que eu fizfoi entrar no Partidão. O sujeito que me cooptou para o Partidão era umjornalista pernambucano chamado Pedro. Eu vou lá, participo de váriasreuniões da “base” (na época chamava−se base à unidade mínima). Abase era na Folha de São Paulo, que se chamava Empresa Folha daManhã na época. Passa um mês, chega um sujeito muito sinistro doComitê Estadual e nos reúne na ausência do tal do Pedro, que era o chefeda base, e diz: “Companheiros, estamos com um problema. Nós estamosdesconfiados de que o companheiro Pedro arrumou uma amante, e temosrazões para crer que ela é agente do Dops. Não temos certeza, e por istonós precisamos isolar esse camarada enquanto tiramos o assunto alimpo. Para isso precisamos que vocês arrumem um local paradepositá−lo (um cárcere privado, evidentemente) enquanto

Marxismo, Direito e Sociedade − 1

29

Page 30: Olavo de Carvalho e Alaor Marxismo Direito e Sociedade

averiguamos”. Delegou quatro voluntários, entre os quais este que vosfala, para fazer esta porcaria. Eu arrumei um barraco numa favela ondeeu nunca mais conseguiria chegar – é impossível, é depois deDeus−me−livre. E deixamos o camarada lá. Passou uma semana, duas,três, e nós íamos levar comida e cigarros para o sujeito. Daí a equipe deapoio logístico foi trocada e eu passei meses sem ouvir falar docamarada. Um dia eu escuto na redação a seguinte conversa (isto, unsnove ou dez meses depois): “Sabe quem estava aí na portaria? Aquelef.d.p. do Pedro. Nós não deixamos nem entrar.” “Ótimo, estamos livresdo problema.” Passam mais alguns meses, eu estou no bar na frente daFolha tomando um cafezinho e chega o tal do Pedro, magro, chupado,barbudo, verdadeiro mendigo. E veio falar comigo, e eu, como bommilitante, virei−lhe as costas. Este era um processo normal dentro doPartido: excluir as pessoas que lhe eram desagradáveis. Isso nãoaconteceu com um, aconteceu com centenas. Isso é muito comum,porque é considerado uma justa medida de segurança.

Por aí vocês vêem como é difícil sair desse meio. Eu levei vinte anospara sair. Você tem de cortar os contatos um por um, você tem de fazernovas amizades, você tem de mudar de lugar, porque se você está alivocê não vai agüentar a pressão. Isto não é a força de uma ideologia,uma ideologia não pode ser tão forte assim. Uma ideologia não penetraaté às mais íntimas reações emocionais da pessoa. Isto é uma cultura nosentido antropológico do termo, da qual evidentemente fazem parte asformulações doutrinais do marxismo; mas não essenciais, tanto não são,que podem ser trocadas. Eu acabei de lhes citar o caso de que Marxacreditava que era imprescindível o uso da violência (e nisto ele étextual, não há menor possibilidade de dúvida), que a geração seguinte jáacredita que se pode implantar o socialismo pelo voto e que, em seguida,se volta à teoria da violência, e assim por diante, numa sucessãoabsolutamente alucinante de transformações. Então, o marxismo hoje dizisso e amanhã pode dizer uma outra coisa completamente diferente, semperder o senso de unidade – isto é que é miraculoso. Há pessoas quedizem que o marxismo é uma religião; eu digo: de maneira alguma. Elepode ser uma religião no sentido primitivo, em que cultura, religião esociedade formam um amálgama indiscernível. Mas no sentido dasreligiões universais – Judaísmo, Cristianismo e Islam – elas têm de terum dogma perfeitamente identificável, com o qual você possa discutir, eaceitar ou impugnar. Mas o marxismo não tem. O marxismo pode selivrar de qualquer das suas doutrinas, se livrar de qualquer dos seusfeitos, e absorver os feitos do adversário. Eu já lhes provei como éassim.

Um exemplo característico é o das relações entre marxismo e fascismo.O fascismo existiu no mundo e chegou a ter força graças à UniãoSoviética. Por quê? Stalin, analisando marxisticamente o fenômeno,acreditava que aquilo era uma rebelião meio anárquica de classe médiaque conseguiria destruir as instituições das velhas democraciascapitalistas, mas que não conseguiria manter−se no poder. Então, eledizia que os fascistas eram “o navio quebra−gelo da revolução”. Dito deoutro modo, eles ganham e nós levamos. Então, decidiu ajudá−los o

Marxismo, Direito e Sociedade − 1

30

Page 31: Olavo de Carvalho e Alaor Marxismo Direito e Sociedade

mais que pudesse, sobretudo do ponto de vista militar. Vou lhes mostraraqui mais um livro: The Red Army and the Wehrmacht . É a história decomo a União Soviética construiu militarmente a Alemanha nazista. Istofoi escondido durante muito tempo e apareceu agora com a abertura dosarquivos de Moscou. Muito bem. Acontece que esta teoria que Stalintinha a respeito do nazifascismo não era a que Hitler tinha. Hitler tinhaoutra teoria. Em função disso, ele de repente dá para trás e invade aUnião Soviética. Aquilo era tão absurdo do ponto de vista dainterpretação marxista de Stalin que ele levou dois dias para acreditarque aquilo estivesse acontecendo. Ele achou que era uma operação decontra−informação feita pelos malignos ingleses. Bom, durante toda adécada de 30 houve estreita colaboração com o nazismo, antes da eleiçãode Hitler. Hoje todo o mundo sabe do pacto Ribentropp−Molotov de1939. O pacto foi apenas a exteriorização de uma colaboração muitoprofunda que pelo menos desde 1933 construiu o poder militar daAlemanha. Ao mesmo tempo, como operação diversionista, Stalinlançava em alguns países ocidentais, especialmente na França, umaimensa campanha de antifascismo literário, na qual toda aintelectualidade francesa colaborou, sendo muitíssimo bem paga. Atéhoje, a noção de fascismo que nós temos é esta. Em 1933 houve ofamoso atentado ao Parlamento alemão; daí lançaram a culpa numcomunista e prenderam um agente do Komintern, George Dimitrov –vocês já devem ter ouvido falar disto. George Dimitrov chega ao tribunale diz: “Eu estou aqui preso por causa da tirania fascista dos capitalistas,a ditadura dos Krupp e dos Thyssen.” Até hoje as pessoas acreditam quenazifascismo é isto. Não sabem, por exemplo, que o velho Thyssen,quando veio o nazismo, fugiu para a França, de onde foi seqüestrado eobrigado a voltar para colaborar com os seus inimigos. Mas como é queGeorge Dimitrov foi parar na cadeia? É muito simples. Ele era a figuramais importante do Komintern, e estava ali na Alemanha; foi almoçar norestaurante que era o ponto de encontro de toda a oficialidade nazista;vocês imaginem um militante clandestino fazer isso, almoçando comdois de seus assessores ao lado. Foi preso ali, evidentemente, semnenhuma violência, foi levado até o tribunal, onde pôde fazer o seu showe em seguida foi inocentado e devolvido em paz à União Soviética. Seusdois assessores que sabiam da história foram mortos. Isto quer dizer quetoda a nossa concepção corrente de fascismo é um mito publicitário,criado para encobrir a colaboração profunda da União Soviética com ofascismo.

Olhem, eu lhes asseguro com a experiência de quem estuda esse negóciohá trinta anos: eu não sou um teórico neoliberal, não pertenço amovimento nenhum, tenho horror dessa direita brasileira, cuspo na carade todos eles, estou pouco me lixando para o que pensam, não estoufalando em nome de ninguém, e não tenho nenhuma solução para osproblemas do mundo. Eu falo somente daquilo que eu estudei. Essenegócio de marxismo e de história do comunismo eu estudei. Eu lhesgaranto: eu nunca encontrei uma afirmação central, fosse do própriomarxismo fosse da cultura comunista em geral que, examinada, não semostrasse exatamente o contrário da verdade. É uma por uma, a lista nãoacaba mais. Eu mesmo, chegou uma hora em que comecei a ficar

Marxismo, Direito e Sociedade − 1

31

Page 32: Olavo de Carvalho e Alaor Marxismo Direito e Sociedade

alucinado: não é possível, tudo o que eles dizem que é invenção da tal dadireita é verdade.

É experiência de vida que eu tenho para lhes dizer. Para mim foichocante, porque eu saí do Partido não por discordância ideológica; saísimplesmente porque fiquei moralmente confuso com episódios comoesse que eu lhes contei, e durante 25 anos não dei palpite em nenhumassunto político, fiquei quietinho no meu canto, estudando e tentandochegar a conclusões. O material que eu tenho sobre isso é imenso, e meleva a poder dizer: Marx era um charlatão, Marx era um vigarista. Porexemplo, para provar que a evolução do mercado tornaria os ricos maisricos e os pobres mais pobres, ele se socorreu do quê? Do exemplo queele tinha à mão, a Inglaterra, que era o único país da Europa com boasestatísticas na época, e o melhor material eram os Blue Books, relatóriosanuais do Parlamento. Quando Marx foi ver os relatórios, descobriu que,ao contrário do que ele estava dizendo, a condição da classe operáriatinha melhorado. O que é que ele fez? Ele tinha todos os relatórios econsultou um por um. Os registros estão na biblioteca do MuseuBritânico até hoje. Ele conhecia todos os registros, mas como osregistros não comprovavam o que ele queria, ele preferiu usar osregistros de trinta anos antes. Se isso não é vigarice, eu não sei o queseja. Mais ainda: na hora em que o sujeito editou o seu próprio sistemade “materialismo dialético”, vocês já pararam para pensar nessaexpressão? Uma dialética é um fluxo, um processo inteligível de idéias.Em que sentido isto pode acontecer na matéria? Engels diz que a matériatinha estrutura dialética. Por exemplo, hoje nós diríamos assim: o elétroné a tese, o próton é a antítese e o átomo é a síntese. Não é preciso dizerque todas essas idéias foram absolutamente desmoralizadas. Depois dedesmoralizadas, apareceu esta versão que o prof. Alaor defende agora:“Não, Marx não quis dizer isto, mas usou o materialismo apenas nosentido da convivência do homem com a matéria, no sentido da açãohistórica sobre a matéria.” Se o materialismo de Marx diz respeitoapenas à nossa ação sobre a matéria, então a matéria é o fator passivo ealheio ao materialismo dialético. Só existe materialismo dialético,portanto, na ação humana. Mas que raio de materialismo sem matéria éesse aí? Isto não é um materialismo. O que é a matéria para Marx? Marxnão diz absolutamente nada sobre isso, e ele acredita que o processocentral é a “ação transformadora do homem no cosmos”. Ora, quanto docosmos o homem pode transformar? Um pedacinho insignificante dacrosta de um planetinha, e todo o restante do cosmos permaneceperfeitamente indiferente a isto aí. Como é que este processo pode ser ocentro da realidade material? Se você disser que espiritualmente ele é ocentro, isto é possível, aí faz sentido; embora pequeno fisicamente, ele ésignificativo. Colocá−lo materialmente no centro é nonsense e é de umprimarismo filosófico digno de analfabeto. Mas Marx não era umanalfabeto, Marx era simplesmente mentiroso. As provas disso sãoabundantes: a sua falsificação de fontes, as interpretações absolutamenteforçadas. Por exemplo, quando ele diz que inverte Hegel e o põe deponta−cabeça: ele não faz absolutamente nada disso. O que ele faz coma dialética não tem nada a ver com Hegel, ele passa longe. E no entantotodo mundo acredita que é a estrutura da dialética de Hegel que está lá

Marxismo, Direito e Sociedade − 1

32

Page 33: Olavo de Carvalho e Alaor Marxismo Direito e Sociedade

dentro, e assim por diante.

A quantidade de charlatanismo é muito grande para eu poder lhes exporem meia hora, ou até em um mês. Eu tenho dado aulas e mais aulassobre isto, e o negócio não acaba. Então, eu vou terminar esta exposiçãocom um apelo. Não se sai de uma cultura mudando de idéia. A culturaabarca a personalidade das pessoas. Para você abandonar essa cultura,você vai ter insegurança, problemas psicológicos e dificuldadesexistenciais terríveis. Isto quer dizer que dentro da redoma dessa culturanão é a mente ou a opinião das pessoas que está presa: é a alma e aexistência delas. E se é para falar em liberdade, então, antes de querer aliberdade para os outros, experimente o que é a liberdade. Experimenteexaminar a cultura marxista não desde dentro, como ela sempre faz, masexperimente olhar de fora, e vocês terão uma visão bem diferente da quetalvez tenham. Muito obrigado.

MEDIADOR : O prof. Olavo de Carvalho não concorda com passar dezminutos ao prof. Alaor Caffé Alves para tecer comentários.

OLAVO DE CARVALHO : Só se eu também tiver dez minutostambém. Ou é igual ou nada. Ou é tudo ou nada. Ou é honesto ou ésacanagem.

[Há uma discussão sobre a continuação do debate e fica decidido quecada um dos debatedores terá a palavra por dez minutos.]

ALAOR CAFFÉ ALVES : Bem, eu acho que as coisas estavam indomuito bem. Mas esta última, inclusive o aplauso que se deferiu para umtipo de política que me é extremamente estranha e séria, mostrouinclusive que não se sabe o que é o nazismo. Porque os outros, isso quevocês conhecem, vocês sabem o que é… Porque existe uma outra idéiado nazismo que talvez fosse aceitável, como o Olavo falou.Profundamente triste isso. De qualquer forma, a questão de dizer queMarx é um charlatão é muito complicado, é muito difícil formular dessaforma porque é atacar uma pessoa que não está presente, que não temnem a condição de se defender. Mas isso é muito complicado porque nãoexiste só a literatura marxista, existem marxistas, os que sãosimpatizantes de Marx, os que aproveitam parte da concepção marxista,e que admitem perfeitamente a possibilidade de desenvolver tesesinteressantes e importantes, de cunho científico. Marx viveupraticamente a vida inteira naquela biblioteca de Londres dando toda asua vida para isso, e estudou profundamente a sociedade da sua época.Como eu disse, ele pode ter errado em muitas coisas. Até a gente aceitaisso, que Marx errou nisto ou naquilo. Mas atacar uma dimensão moral,contra um intelectual que é um dos primeiros no mundo, é um dosmaiores intelectuais, indiscutível isso… Alguém vai discutir uma coisadessa?

OLAVO DE CARVALHO : Eu vou discutir.

Marxismo, Direito e Sociedade − 1

33

Page 34: Olavo de Carvalho e Alaor Marxismo Direito e Sociedade

ALAOR CAFFÉ ALVES : É, sempre tem alguém. Eu acho tudo muitogratuito isto, colocar essas questões que foram colocadas aqui, muitogratuito. Não, não é assim que vamos discutir. Eu, por exemplo, fiz todauma série de colocações singulares a respeito de como se estrutura osistema, pelo menos aí rapidamente, pelo menos no sentido deverticalização, mas eu fiz umas coisas concretas, de mencionar portantodiscussões conceituais. Quando se penetrou no terreno conceitual, se dizque Marx não sabe nem do quê está falando sobre a matéria, mas Marxnunca se preocupou especificamente com a matéria no sentido físico. Equando ele [Marx] fala em matéria, a matéria corresponde a um esforçoda transformação do homem como um fato importantíssimo, que não foinem colocado aqui. E ele [Olavo] diz que estudou, temos que fazer umaanálise disso. Que é “o” debate. Debate da forma pela qual os homensagem sobre o mundo, transformando o mundo. Dizer que Marx queriatransformar o universo não tem sentido. Não é disso que ele estavafalando. Ele nem pensava nisso…

OLAVO DE CARVALHO : Nem eu disse isso.

ALAOR CAFFÉ ALVES : … ele nem disse isso. Nem foi dito isso,nunca. “A transformação do universo, do cosmos.” A transformação queo Marx propunha era a transformação do homem, do homem na suapequena Terra mesmo, no seu planetinha, direitinho. Mas é o homem,ele estava estudando o homem! Ele não estava estudando um marcianonem nada disso. É o homem e, portanto, os homens, claro, têm umadimensão concreta que é a ação humana, que ele imagina não poderexplicar as questões especulativamente. Era isto o que ele queria dizersó. Que a especulação filosófica, puramente teórica, não é suficiente paracaracterizar o que o homem é. Marx postulava algo um pouco nacontraposição, na contramão dos racionalistas, especialmente umDescartes, que dizia que o homem é um ser pensante. A postulação dohomem, inclusive, como ser pensante, o distinguia dos outros animais, éassim que se pensava em forma clássica. E Marx não acreditousimplesmente nessa posição, ele avançou. Ele não está excluindo a vidateórica, ele foi um teórico. Ele se trancou. Ele quis incluir a vidaemocional dele, a vida da praxis , da ação, da decisão, dos valores. Issoaí ele quis incluir. E é claro que o movimento da praxis envolveexatamente o movimento do homem como um todo, não apenas comointeligência, como um ser especulativo, como lógica. Ele via o homemcomo um movimento do seu corpo, dos seus pés, das suas mãos. E umarelação social, nunca se viu o homem tornar−se solitário. Ele nãopensava na matéria no sentido, por exemplo, dos gregos, buscar a arkhe ,o fundamento de todas as coisas, como se fazia desde Tales de Mileto,Anaximandro, Anaxímenes, Anaxágoras, e esses pensadores todos quepassaram, os pré−socráticos. Na verdade, ele trabalhou muito com essesfilósofos interessantes, que aliás foram trabalhados também por Engels,que é Parmênides e Heráclito, com as suas posições. Pena que não dátempo de desenvolver toda a temática desses pensadores muitomaravilhosos, que foram trazidos para nós, que foram recuperados.

Marxismo, Direito e Sociedade − 1

34

Page 35: Olavo de Carvalho e Alaor Marxismo Direito e Sociedade

Quando Marx faz essa postura, de não ser um homem teórico, é porqueestá vivendo justamente num período que se chama “RevoluçãoIndustrial”. O homem pobre não pode ser simplesmente teórico, ele temque entrar em contato com o mundo, transformar o mundo, ele tem demudar a matéria−prima, ele tem de buscar matérias−primas, ele tem detransformar o mundo com as suas mãos, com a sua indústria. Daí porqueele teve de começar a pensar especificamente, não de forma puramenteteórica, ou de forma especulativa. Esta dialética é diferente. Quando elebusca a materialidade, não é essa materialidade portanto abstrata. Émuito concreto, porque ela é calcada no trabalho humano. Para ele, otrabalho é fundamentalmente aquele núcleo que perpassa o própriohomem. O homem é produto do seu trabalho na história e socialmente.Não há homem sem trabalho, sem ação com o mundo. Trabalho é aadministração do homem sobre o mundo, transformando esse mundo,porque nisso ele transforma−se a si mesmo. É isso que ele quis dizer:matéria transformada permanentemente pela sua própria ação. Não ématéria bruta, como eu contava para ele [Olavo]. Ele nem tinha essaidéia da física nem da química. Não contava para Marx isso. Oimportante para ele era a dimensão fundamentalmente social, isso é queera importante para ele.

Essa questão da burocracia, é claro, todo sistema social hoje, tem de teruma burocracia. Por isso mesmo que se propugna por uma dimensãooutra, que é aquela que o Olavo disse a respeito do poder maior do queaqueles poderes. Um poder que oprime o outro, que pressupõe o outro,que é bem maior. Sabe qual é o poder maior? É a comunidade! É asociedade democraticamente organizada, articulada de foma tal que sepermita coibir (agora sim, a palavra mais correta) a ação sozinha esolitária do mercado. Não pensem os senhores que vamos aqui imaginarque o mercado que age diariamente, com bilhões e bilhões de dólares semovimentando pelo alto, pelo labor da globalização, nós vamosconseguir neutralizar isso. Simplesmente com o quê? Com a vontadesingular de cada um? Ou com recursos que nós não temos? A únicaforma de coibir é exatamente através de uma democracia participativa!Não é através da democracia representativa, que de quatro em quatroanos vocês vão correndinho num domingo determinado de manhã cedo edepositam um voto ali, para eleger os políticos que, em última instância,vão ser cooptados pelo sistema. Não é isso. É a democracia participativaformada por divisão de comissões, de conselhos, de articulação decomunidades. Não é fácil de fazer isso! É lógico que é uma coisa difícil.É ela que vai, de certo modo, se opor às dimensões do mercado, que estásob a decisão de quantos? Eu pergunto aos senhores: quantos? Poucos!Os donos do mundo! Eles decidem o que querem! Onde pôr o capital,investir, tirar, pôr… Eles fazem. Esses movimentos de capitais procuramas comunidades onde a mão−de−obra é mais barata. Dizer… Essaspostulações de que se o Estado interfere o sistema fica pior, ele estápropugnando fundamentalmente que largue tudo ao mercado, que façamtudo de acordo com as forças do mercado, que tudo vai bem. Como, secada pessoa tem o seu poder no mercado em função do quê? Em funçãoda sua entrada, da sua renda. E quantos têm renda? Eu não estoucolocando a questão daqueles que não têm trabalho, porque esses não

Marxismo, Direito e Sociedade − 1

35

Page 36: Olavo de Carvalho e Alaor Marxismo Direito e Sociedade

têm mesmo nada. São aqueles que ainda têm trabalho e que ganhammetade de um salário mínimo, milhões de pessoas aqui. Como é queessas pessoas vão definir situações, vão decidir sobre questões domercado? E essas pessoas vão fazer o quê? Vão ganhar mais? Entãovocês estão percebendo que eu acho que essas questões de colocar Marxcomo espertalhão, como… não é bom. Não fica bem. Não fica bem.Vamos trabalhar mais com os outros filósofos, com outros pensadoresque seguiram, inclusive que houve outras mudanças, outras formasinclusive de considerar Marx, a questão até dessa violência, nunca Marxfalou de materialismo histórico, nunca! Me conta onde Marx dizmaterialismo histórico! O primeiro a aplicar isso foi Paul Lafargue. Foioutra pessoa! Marx nunca falou em materialismo histórico.

OLAVO DE CARVALHO : Falou em “materialismo dialético”.

ALAOR CAFFÉ ALVES : E mesmo sendo “dialético”, Marx nuncaestabeleceu essas formas, esses jargões (que eu concordo, são jargões),que no fim acabam distorcendo até o pensamento, embora dê a entenderMarx nos seus conceitos. Ler O Capital , ler… Tem várias obras delemaravilhosas e interessantes, já que ele [Olavo] está fazendo tantodenegrir, tanto. Eu diria para vocês que há obras notáveis. Obrasnotáveis que exprimem conceitos riquíssimos. Podem não ser todossuficientes para explicar tudo no mundo, é claro que não é isto. Mas quenos ajuda a compreender o homem, como outros mais, não só Marx.Pensem num Weber, por exemplo, um Durkheim. Tem de estudar essespensadores para mostrar plenamente que tudo se compõe, esse sim, oespírito humano, mas como a base fundamental da estrutura de açãohumana constante e permanente, que é o trabalho, que nós devemoscultivar permanentemente. Estou contra essa idéia de “Marx charlatão”.Acho muito baixo para isso. E o prof. Olavo não precisa se socorrerdesse tipo de coisa. Não precisa. Ele é suficientemente filósofo, eu sei,eu conheço o trabalho dele. Dá para dizer uma coisa mais profunda, maistranqüila, mais científica. É isso.

<< parte 2 parte 4 >>

1 − 2 − 3 − 4

Home − Informações − Textos − Links − E−mail

Marxismo, Direito e Sociedade − 1

36

Page 37: Olavo de Carvalho e Alaor Marxismo Direito e Sociedade

Textos >> Marxismo, Direito e Sociedade, parte 4

<< parte 3

OLAVO DE CARVALHO : Em primeiríssimo lugar, é preciso lembraraos senhores que o conceito de fraude intelectual não é um insulto, é umconceito, inclusive jurídico, perfeitamente delimitado, e que eu tenhotodas as provas de que Marx se enquadra nisto, pela falsificação defontes, pela má interpretação proposital de autores que ele conheciaperfeitamente bem, e assim por diante. Em segundo lugar, eu não vejopor que eu deveria me abster de usar a palavra correta para designar oprocedimento dele, quando na verdade eu li Marx durante muito tempo econheço bem o estilo de Marx. Marx se referia a pessoas contra as quaisele não tinha tantas acusações assim chamando−as de cães sarnentos,vendedores de drogas, proxenetas, canalhas. Assim, este é o estilo deKarl Marx. Eu não estou usando nada disso, eu estou usando umconceito perfeitamente delimitado de ordem jurídica, dizendo que isto éfraude intelectual. Outra coisa: eu não posso confundir a tranqüilidadecom a cientificidade. Estar nervoso ou estar calmo não tem nada a vercom esta história. Não vamos confundir calma e tranqüilidade comhonestidade. Só interessa uma coisa aqui: tem de ser honesto. Ou seja,não fingir que sabe o que não sabe nem que não sabe o que sabe: isto é adefinição de honestidade intelectual.

Os indícios, as provas da fraude intelectual de Marx são vastíssimas, e éuma literatura enorme. Infelizmente essa literatura, no Brasil, édesconhecida, porque o ensino universitário aqui é nesta base: existe aredoma. Prova de que existe a redoma é que o prof. Alaor ficouescandalizado quando eu sugeri que havia um outro conceito de nazismoque não fosse aquele expresso por Dimitrov, o que significa que ele nãoconhece, ele nem imagina que existe: ele também está dentro da redoma.As principais obras sobre o nazismo rebatem essa concepção marxista notodo: as obras de Norman Cohn, Eric Voegelin, Leo Strauss, há umabibliografia imensa sobre o nazismo. Se existe uma coisa que é bemconhecida hoje, é o nazismo. Sabemos que ele não foi de maneiraalguma a ditadura do grande capital, sob aspecto nenhum, e muitomenos ainda foi um regime capitalista: foi um dos regimes maissocialistas e mais intervencionistas que houve na história do mundo. Equando eles se chamaram de partido nacional−socialista, não foi à toa,não foi só para parecer. A semelhança estrutural entre nazismo ecomunismo permite dizer que, de fato, a única diferença é entre

Marxismo, Direito e Sociedade − 1

37

Page 38: Olavo de Carvalho e Alaor Marxismo Direito e Sociedade

socialismo internacional e socialismo nacional. É somente isso, e é porisso mesmo que não pode haver uma “Internacional Nazista”, porque sóquem se identifica com a cultura nacional é que pode participar daquelaporcaria. Então, existe outro conceito sobre o nazismo sim. Não é paraficar escandalizado, mas o próprio escândalo do prof. Alaor mostracomo essas idéias e essas informações estão distantes do meiouniversitário hoje. Porque o prof. Alaor não é um homem inculto; aocontrário, é um homem bem informado. Só que é o seguinte:alimenta−se dessa cultura, e tudo o que recebe de fora já come noformato apropriado a esta cultura. Pode−se passar uma vida assim, e eudigo: eu levei vinte anos para sair disto.

Uma outra coisa que foi dita na outra intervenção é a respeito dos 400bilhões de dólares do orçamento militar americano: “Se dessem 400bilhões de dólares para o Brasil ou para a África, nós sairíamos doburaco.” Eu lembraria a vocês um outro dado: só no ano de 2000 (é ainformação mais recente que eu tenho, não tenho outra mais atualizada),os cidadãos americanos – cidadãos e empresas, sem contar o governo –fizeram um total de 200 bilhões de dólares de contribuições paraentidades de caridade, principalmente do Terceiro Mundo. Some com ogoverno, e veja quanto saiu. Ora, o que acontece com esse dinheiro? Édado diretamente aos necessitados? Não, é dado a uma estruturaburocrática da democracia participativa: é a comissão, é o conselho, énão−sei−o−quê etc. E tudo isso tem despesa: tem de pagar telefone, temde pagar aluguel, tem de pagar empregados etc. Vocês sabem como osamericanos definem FMI? FMI é uma entidade que se dedica a tirardinheiro das pessoas pobres nos países ricos para dar às pessoas ricasnos países pobres. Essa definição é muito precisa. De vez em quando nósvemos a nossa esquerda irritada com o FMI (“Ah, porque o FMI…” etc.)como se o FMI fosse um propugnador da economia liberal e não um dosmaiores controladores da economia que existe no mundo: é o órgãocontrolador por excelência fundado por Lord Keynes, que além de serum estatista feroz era um colaborador da espionagem soviética. Ora, istoquer dizer que ficam brabos de vez em quando com o FMI, usando−ocomo símbolo do capitalismo. Mas, quando o FMI estranguloueconomicamente o governo Somoza para dar o poder aos sandinistas,ninguém ficou brabo. Ou seja, o FMI não tem essa identidade ideológicaque lhe estão dando, ele tem uma outra. Quer saber qual é a outra? Eulhe digo: se o senhor fala das grandes fortunas, veja as duas grandesfortunas, Rockefeller e Ford.

Vocês sabem que se não fossem Rockefeller e Ford não existiria aesquerda nacional. Elas subsidiam partidos, ONGs, o Fórum SocialMundial etc, e ninguém pára para pensar que talvez a equaçãosocioeconômica do mundo seja um pouco mais complicada, um poucomais sutil do que o esqueminha marxista admite que você veja. Naverdade, se você pensar: mas por que é que esses grandes capitalistascontribuem para o movimento revolucionário? É por um motivo muitosimples. O sujeito enriquece dentro da economia liberal e acumula tantodinheiro, mas tanto dinheiro, que dali a pouco ele entra na seguinteconsideração: “Não podemos permitir que essa fortuna, que custou tanto

Marxismo, Direito e Sociedade − 1

38

Page 39: Olavo de Carvalho e Alaor Marxismo Direito e Sociedade

esforço, esteja à mercê das forças irracionais do mercado. É precisopreservá−la.” Então, ele deixa de raciocinar capitalisticamente e passa aentrar em considerações dinásticas. Ele tem de assegurar a continuidadedaquela fortuna: o mercado não pode fazer isso, somente o Estado pode.Por isso é que se você pegar as duzentas maiores fortunas de Wall Street,elas jamais apoiaram uma política liberal. Entre dois candidatos nosEUA, eles apóiam sempre o mais intervencionista e estatista. Isto éregular. Por que é que eles podem fazer isso? Porque eles sabem, pelomenos desde a década de 20, que o estatismo total jamais acontecerá.Então, eles estão seguros: por mais estatismo que venha, haverá umamargem de liberdade econômica para quem tenha o poder deassegurá−la. Eles sabem que o estatismo total não funciona, porque istolhes foi demonstrado. Eles aprenderam – e nós, parece que até hoje não –com o economista Ludwig von Mises na década de 20. Ludwig vonMises disse o seguinte: se você implanta o socialismo, você elimina omercado; se elimina o mercado, as coisas não têm preço; se não têmpreço, não dá para fazer cálculo de preço; se não dá para fazer cálculo depreço, não dá para fazer economia planejada; portanto, não existesocialismo. Por isto mesmo, tanto os metacapitalistas quanto osdirigentes socialistas se prepararam para isto. Na União Soviética, porexemplo, sempre se reservou uma quota de 30 a 40% para a economiacapitalista clandestina. E é por isso que se explica o surgimento dosgrandes milionários russos. Que, se era tudo do Estado, de ondeapareceu tanto milionário do dia para a noite? Já eram milionários.Sempre existiu capitalismo na Rússia, como sempre existiu na China. Ouseja, a estatização total nunca acontecerá. Os líderes comunistas sabemdisso, e os grandes banqueiros sabem disso. Por isto, os grandesbanqueiros, as grandes fortunas, só têm um inimigo: chama−seeconomia liberal. Porque ela dissolve as grandes fortunas naconcorrência do mercado e eles precisam do Estado para garantir o seupoder monopolístico; por isto fomentam movimentos socialistas eestatistas em todo o Terceiro Mundo. E nós, idiotas, caímos nessaacreditando que estamos lutando contra o poder do capitalismo quando oestamos servindo. Muito obrigado.

Mediador : Passamos agora às perguntas.

P: Eu vou fazer duas perguntas ao prof. Olavo. A primeira, talvez eutenha compreendido mal – na verdade são três perguntas –, o senhorchegou a dizer que os censores das novelas da Globo tinham umaideologia marxista…

OLAVO DE CARVALHO : Certamente.

P: Eu só queria confirmar isso. Isso não me parece evidente, então eugostaria de um pouco mais de explicação. Com relação à sua concepçãodo marxismo como cultura, no sentido antropológico de termo, eutambém não consigo enxergar claramente todas as dimensões disso,porque a cultura no sentido antropológico implica instituições, e aí eugostaria de enxergar mais claramente quais são as instituições marxistasque nós temos no Brasil, no Paraguai, em qualquer outro desses países.

Marxismo, Direito e Sociedade − 1

39

Page 40: Olavo de Carvalho e Alaor Marxismo Direito e Sociedade

E a última pergunta é que o senhor faz uma aproximação, inclusivemostrando gráficos, entre o Estado intervencionista e centralizado e omarxismo… [troca de fita]

OLAVO DE CARVALHO : Bom, são três perguntas. Em primeirolugar, estude simplesmente as biografias de Dias Gomes e de JaneteClair, que sempre foram militantes do Partido Comunista; em seguida,você vai precisar de informações de um pouco mais de dentro e conheceros scripts de novela que são propostos, que você vai averiguargradativamente a introdução de elementos de propaganda claramenteesquerdista, se bem que light , evidentemente. Porque você vai usar omeio de propaganda conforme a natureza e o público que você vaiatingir. Em segundo lugar, quanto à questão da cultura marxista, aresposta é simples: leia Gramsci. E não é verdade que cultura impliqueinstituições. Cultura, no sentido antropológico, é um termo que abrangedesde culturas indígenas primitivas até às [culturas] modernas. Eu usei“cultura” e não “sociedade” exatamente por este motivo. As instituiçõesdos países socialistas se incluem nisto; fora dos países socialistas vocêpode ter um domínio sobre uma parte das instituições, mas isto não éabsolutamente essencial para o processo que eu estou descrevendo. E,quanto à terceira pergunta, é verdade que naquele momento Marxadvogava o livre câmbio porque as políticas protecionistas erampolíticas herdadas de um concepção mercantilista antiga, e naquelemomento Marx achava que era mais importante liberar a força docapital, para que crescesse e para que, no entender dele, chegasse a criara contradição que resultaria no socialismo. Porém, a verdade é que, noséculo XX, sempre os partidos comunistas e de esquerda favoreceram aspolíticas protecionistas, como no Brasil. Aliás, uma das vantagens daesquerda é ser internacional. Por quê? Porque ela explora as contradiçõesentre países. Então, por exemplo, nos EUA, a esquerda sempre apóiapolíticas protecionistas; e no Terceiro Mundo reclama contra as políticasprotecionistas americanas que ela mesma criou.

P: É o seguinte: eu estava ouvindo aí esses temas – a revolução, ospolíticos, o jurídico, qualidade de vida dos brasileiros, milhões demiseráveis, como resolver isso, distribuir renda – e isso me fez lembrarque três anos atrás aproximadamente eu lia o Joelmir Beting, queescreveu um artigo em que ele defendia, em vez da apropriação dosmeios de produção, a tributação da produção e da renda. Deu comoexemplo países como Suécia, Noruega, Dinamarca e Finlândia. Talvezeu não esteja sendo preciso por uma questão de memória fraca, maseram basicamente esses países da Escandinávia. Eu pesquisei e descobrique exatamente esses países citados pelo Joelmir Beting são países comcargas tributárias extremamente elevadas (30%, 40%, 45%, 50% e mais).E, por coincidência, esses países também são os países com melhoríndice de desenvolvimento humano, ou seja, melhor qualidade de vida.Então, será que nos regimes capitalistas vigoraria o que Joelmir Betingchamou de “socialismo fiscal”?

OLAVO DE CARVALHO : De maneira alguma. Na escala de liberdadeeconômica a Dinamarca está em 12 o lugar. Imposto elevado não basta

Marxismo, Direito e Sociedade − 1

40

Page 41: Olavo de Carvalho e Alaor Marxismo Direito e Sociedade

para caracterizar um controle estatista. É necessário haver legislaçõesrestritivas etc. No conjunto, a economia dinamarquesa é extremamentelivre, está bem mais próxima do liberalismo do que qualquer outra coisa,e assim também os outros países. Se me escreverem para o meu e−mail,eu passo essa escala para quem quiser.

ALAOR CAFFÉ ALVES : Bem, a tributação vem do corte financeiroem cima da sociedade civil. A sociedade civil tem a produção. O Estadoprecisa viver de um recurso, quer dizer, o recurso é extraído daprodução. E conseqüentemente a produção, como não é neutra, elaenvolve capital, o capital muitas vezes resiste à tributação. Vocês vêemque ele resiste à tributação tendo em vista o fato de que isso atrapalha aacumulação dele. Então, ele não quer evitar, ele não quer ter limitaçõesde sua acumulação. A tendência, portanto, é haver uma crise interna,pelo processo capitalista, quando há essa quantidade muito grande,muito acentuada dos tributos. Portanto, mais uma vez existe o problemados conflitos e das contradições internas da sociedade em torno disso.Quando não acontece isso, o sistema cria o “caixa 2”. Vocês já ouviramfalar no “caixa 2”: não paga exatamente para ficar com uma parte econseguir fazer, com isto, a acumulação. Há portanto uma dinâmicaeconômica no processo, muito importante: não é simplesmente tirar dasociedade.

P: Eu gostaria de saber dos dois professores como é que eles definem oatual momento político e ideológico do país, e se os dois têm esperançano Brasil, e no quê eles teriam esperança?

ALAOR CAFFÉ ALVES : Bem, o atual sistema, o atual momentopolítico é um momento à esquerda. Sabemos que é isso. Pelo menoscomo ideário, o sistema que prevalece hoje é o Partido, é o PT. Só que éevidente que o PT não pode tomar posições senão pragmáticas, emfunção da situação. Porque aquilo até que se esperava – que o PTtomasse uma posição mais radical em termos econômicos –, não o fez,aceitando de certo modo as diretrizes de definição econômica e social,tendo em vista os problemas que eles estão enfrentando. Vocês vêem atéque eles estão conservadores no processo, inclusive de aberturaeconômica. Isso significa, é claro, que não é a perda do ideal maissocializante, ou então mais equalizador, do sistema social. Isso éimportante. Não é esta perda. São as impossibilidades que o própriosistema impõe. E essa impossibilidade não é fácil. Por ter uma atuaçãopragmática que tem de fazer, porque tem de governar o país, e nãoperdê−lo mas governá−lo, então ele tem de tomar certas posiçõespragmáticas nesse sentido. É claro que isso implica uma série dequestões e problemas que nós temos de enfrentar como um todo, o paíscomo um todo. E o próprio governo neste caso tem problemas muitograves e gargalos seríssimos. Não porque ele não tenha essa dimensãosocial, mas porque ele enfrenta dificuldades e medidas que eles não têmsuficiente controle e condições de fazer.

OLAVO DE CARVALHO : Muito bem. O presente governo tem duasprioridades e nenhuma delas tem nada a ver com o chamado “social”. A

Marxismo, Direito e Sociedade − 1

41

Page 42: Olavo de Carvalho e Alaor Marxismo Direito e Sociedade

primeira é manter o equilíbrio orçamentário, controlar a inflação e, emsuma, atender às exigências do FMI de, como eles chamam, sanidadefinanceira. Notem bem que essas exigências não têm o teor ideológicoque as pessoas lhes atribuem. Esse mesmo conjunto de exigências podeser usado para esmagar governos de direita ou de esquerda – acabei delhes dar o exemplo de Somoza. Então, dependendo de quem controla oinstrumento, ele aperta aqui ou aperta acolá. Esta é a primeira prioridade.Para quê? Para o governo ter tempo de desenvolver a segunda parte, queé a integração dos movimentos políticos latino−americanos –movimentos revolucionários – e a identificação de Partido com o Estado.São essas duas coisas. Essas duas coisas dão um trabalho miserável.

Eu acho que o governo está fazendo isso da melhor maneira possível. Euacho tudo isso de uma extrema habilidade. Mais ainda: esta é a políticaque Lenin seguiria. Três meses antes de o Lula ser eleito, eu escrevi umartigo chamado “O que Lenin faria”, se ele tivesse o poder na mão. Fariaexatamente isto: acalmar o investidor estrangeiro (através do equilíbriofiscal etc.) e montar um sistema de controle político (através daexpansão indefinida do Partido, da identificação entre Partido e Estadoetc.).

Ter esperança ou não ter esperança é uma coisa que, com relação àpolítica, eu sou incapaz de ter. Eu nunca coloquei nenhuma esperançaem política alguma; nem chego a entender o que as pessoas querem dizercom isso. Eu estou me limitando a estudar a situação e tentar entendê−lada melhor maneira que eu possa. Não tenho nenhuma fórmula parasalvar o Brasil, mas se fosse para fazer uma coisa boa, eu faria algo queo governo Lula anunciou no começo que ia fazer. O governo viu que ogrande número de propriedades imobiliárias irregulares no país (quase80%) impede a formação de capital para os pobres. Ou seja, os pobrestêm o capital na mão, mas é capital morto, não tem liquidez. E ele fez oplano de distribuir títulos de propriedade imediatamente. Mas falou issodurante uma semana e depois broxou completamente. Isto era a coisaboa para se fazer: não tem nada a ver nem com agradar o FMI nem comfazer a revolução latino−americana. Isto eu teria feito se estivesse nolugar deles.

P: Eu gostaria de fazer uma pergunta para o prof. Alaor, e se o sr. Olavoquiser comentar também… Bom, o professor falou que acredita numademocracia participativa, e entende isso como a participação de cadaindivíduo de uma sociedade brasileira diretamente nas decisõesgovernamentais. Eu pergunto: como isso é possível hoje no Brasil, semque haja uma dominação dos meios públicos? Por exemplo, aqui nafaculdade tem o orçamento participativo: os alunos vão, orçamentoparticipativo, pá−pá−pá, chega aqui, assembleísmo, pá, a maioria dosalunos acaba não decidindo porque “não tem tempo, não pôde ver, nãopôde ir para a aula”. Enfim, como é que isso vai acontecer com o restodo povo brasileiro, com o pescador, um sujeito que não entende muitobem de política (com todo o direito), como é que… Enfim, não sei se osenhor entendeu a minha pergunta. Eu não acredito no orçamentoparticipativo. Como é que o senhor acredita?

Marxismo, Direito e Sociedade − 1

42

Page 43: Olavo de Carvalho e Alaor Marxismo Direito e Sociedade

ALAOR CAFFÉ ALVES : Não. Acontece o seguinte: a democraciaparticipativa impõe todo um processo muito amplo de mobilizaçãosocial e de organização social. Se não houver a mobilização e aorganização social não haverá nunca a democracia participativa. Ela éagora uma coisa nova. Na verdade, ela é uma proposta de quê? De dezanos, no máximo. Não tem ainda a organicidade que deve ter, e, muitasvezes, a participativa é cooptada. Esse é que é o problema complicado. Opróprio sistema não quer saber da democracia participativa efetivamente,mas existem indicações. Por exemplo, eu vou dar uma idéia para vocêsentenderem isso. O sistema de conselhos no Brasil é difícil, não é? Elefica praticamente neutralizado e acaba não surtindo os efeitos que devesurtir. O sistema de conselhos seria interessante, não o conselho de rua(geralmente há o conselho de rua). A chamada democraciarepresentativa é a democracia da rua: todas as pessoas vão à rua, ospolíticos vão à rua, propõem as suas colocações, fazem as suasexposições, e tentam amealhar, tentam cooptar as pessoas, ou seja,persuadir as pessoas. Eu acho que essa democracia não é suficiente. Porexemplo, a democracia que envolve a possibilidade de participação detodas as comunidades, inclusive as comunidades escolares, fabris, osclubes, as igrejas, as vizinhanças, mas isso ainda tem muito a caminhar.Nós precisamos trabalhar muito e estudar muito esse aspecto e tentarestabelecer relações internas dessas unidades todas e externas, ou seja,inter−relacionais. Não é fácil. Não é fácil. Nós temos a democraciarepresentativa, que domina completamente. E muitas vezes eu tenhoperguntado aos vereadores, aos deputados etc., se querem a participação.Eles não querem, eles acham que isso diminui, elimina os seus poderesrespectivos. Portanto, eles fazem uma proposta sempre constante dedemocracia representativa, evitando o mais possível o domínio dademocracia participativa. É complicado, demanda consciência, demanda,digamos, uma dimensão muito mais criativa e consciente, politicamente,por parte das organizações. Aqui por exemplo, na faculdade tem muitopouco disso. Precisaria ter muito mais disso, de um movimento políticonesse sentido.

OLAVO DE CARVALHO : É preciso ver se nós estamos discutindo aspalavras pelo seu valor de dicionário e pela sua associação emocional oupela substancialidade das situações de fato que elas representam. Comrelação ao conceito genérico de participação, ninguém pode ser contra.Santo Tomás de Aquino já dizia que qualquer sociedade política só podeestar segura da sua sobrevivência se todos os seus membros participaremda política. Quer dizer, isto é uma espécie de consenso universal.Ninguém discute isso há sete séculos. O problema é o como. Ora, aestrutura partidária da representação que nós temos já é suficientementecomplexa para que nenhum cidadão possa dizer que a conhece. Agora,multiplique isso por uma infinidade de conselhos, comissões,assembléias etc., e ademais pergunte: todas as pessoas que vão dirigirtodas essas coisas são militantes trabalhando gratuitamente? Ou seja, aconcepção atual da participação é tão complexa e tão custosa que eu aafastaria de cara como simples psicose. A proposta de democraciaparticipativa pode servir como um instrumento propagandístico paradesmoralizar o sistema representativo, que já não está muito bem das

Marxismo, Direito e Sociedade − 1

43

Page 44: Olavo de Carvalho e Alaor Marxismo Direito e Sociedade

pernas. Mas que vá substituí−lo é absolutamente impossível.

ALAOR CAFFÉ ALVES : Bom, é óbvio que o “como” é complicadomesmo. Mas ele demanda mesmo uma complicação em função de umasociedade altamente complexa. Não há dúvida. Não há dúvida. O queocorre é que a democracia representativa não assumiu, e não assume deforma nenhuma, as dimensões necessárias para compor políticaspúblicas de forma a efetivamente trazer à comunidade a satisficaçãonecessária, tendo em vista exatamente esses problemas que nóselencamos, como, por exemplo, o caso das diferenças profundas entre aspessoas. Essa democracia que nós temos, a representativa, ela tem umproblema de representação das camadas sociais e das classes sociaismuito distorcido. Não há possibilidade de um aproveitamento claronesse sistema. Por outro lado, a questão de comissões etc. depende dos“bolsões”. Não é comissão para toda coisa geral. Tem a comissão domeio ambiente, a comissão da educação, disto ou daquilo, as comissõessingulares, que vão atuando em sistemas capilares. É claro que isso écomplexo mesmo. É um assunto altamente complexo, numa sociedadecomplexa como a nossa. O que nós não podemos é ter uma posição,digamos, pessimista quanto a isso, porque depois não há sistemanenhum, nenhuma engenharia social ou institucional que nos permitarealmente tomar conta da sociedade. Para largar a sociedade justamentepara quem? Para aqueles que são os donos do sistema, os hegemônicosdo sistema, os donos do capital.

OLAVO DE CARVALHO : Quando você fala dos “donos de capital”,eu queria lembrar uma coisa a você. A chamada corrente liberal só temuma instituição que a defende: chama−se Instituto Liberal. O InstitutoLiberal de São Paulo fechou por falta de verbas. Jamais faltam verbaspara o Fórum Social Mundial, para o PT, para o MST etc. Portanto, adistribuição do poder e do dinheiro não é exatamente esta quegeralmente se pensa: “Aqui estão os burgueses defendendo os seusinteresses e ali estão os partidos de esquerda heroicamente lutando emfavor dos pobrezinhos.” Simplesmente não é assim. Eu não vim aquipara defender proposta nenhuma, o meu ponto de vista é a realidade, e arealidade no momento é esta. Por exemplo, essa capilaridade se faz emgrande parte através de ONGs. Vocês sabem que nenhuma das ONGsque nascem no Brasil é produto local? Vocês sabem que a ONU tem umcurso de formação de movimentos sociais no Terceiro Mundo queanualmente espalha vinte mil profissionais disso para tudo quanto élugar, subsidiados por outras ONGs enormes financiadas porRockefeller, George Soros, Morgan etc.? Vocês têm idéia de que essa talda democracia participativa é ela mesma uma obra de engenharia socialque está sendo implantada em toda a parte, e não está surgindo de baixo?Estudem esse assunto. Estudem a estrutura atual da ONU. Existe umlivro do Pe. Michel Schooyans, que foi professor de filosofia no Brasil,chamado La face cachée de l'ONU (“A Face Oculta da ONU”), que tratadessas coisas. Então, notem bem que a estrutura do poder global é bemdiferente do que uma análise marxista permitiria imaginar. A estruturado poder não corresponde a isto. Muita coisa que parece movimentosocial vem diretamente do grande capital.

Marxismo, Direito e Sociedade − 1

44

Page 45: Olavo de Carvalho e Alaor Marxismo Direito e Sociedade

P: Eu acho as posições dos dois muito radicais, né. Então, eu queriasaber a opinião de “um”, que coloca que aparentemente não há solução,e a do professor, que o sistema capitalista não seria a solução. Eu queriasaber se dentro do próprio sistema capitalista vocês não achamcompletamente inviável uma coisa que o pessoal abomina: ohobbesianismo, o princípio do interesse próprio. Na verdade o interessepróprio de cada indivíduo capitalista, digamos, não pode encaminhar emdireção ao interesse social, sem pensar num idealismo romântico, semapelar para o bom senso ou para a caridade, mas que o próprio capitalpara se manter ele vai criar, e cria – como tem criado – a função socialdas empresas, a ação voluntária das pessoas, para desenvolver ospróprios mercados que ele quer explorar e não, ao contrário, destruirmercados dos quais ele precisa.

ALAOR CAFFÉ ALVES : Não, não se trata disso, do fato de que ocapital não faça o possível para ficar com uma fachada boa e muitointeressante. E não se trata do fato de que o capital não faça tambémalguma coisa de cunho social. Eu não coloquei essa questão, eu coloqueiuma questão de estrutura interna. De qualquer forma, todas as empresasvão buscar o quê? Elas querem mercado, querem tentar colocar os seusprodutos. O que eu disse aos senhores é que com a inclusão dasofistificação grande da técnica e da ciência, o sistema se coloca a simesmo em xeque. Há uma contradição interna no sistema (que não foicomentada aqui), e eu falei com toda a clareza: o sistema, por recebertoda a dimensão muito sofisticada da produção… Não porque ocapitalista queira, ele não quer isso mesmo. Qual é o dono do capital quevai querer isto? Vai querer nada. Mas ele é obrigado a fazer em termosda sua competição mundial, ele precisa fazer isso. Mas ao fazer isso, elelibera necessariamente a mão−de−obra porque faz parte dos custos. Eletem de tirar isso da frente. Os custos mais facilmente tiráveis, ou seja,que são possíveis de ser eliminados, são os custos relacionados com amão−de−obra. A matéria−prima ele tem de aplicar, as máquinas ele temde fabricar e tem que utilizá−las, não tem jeito. E as máquinas e amatéria−prima vão todas para o produto. A única coisa que ele podeeliminar é a mão−de−obra. Mas na hora em que ele elimina amão−de−obra (não é porque ele queira, ele vai ter de fazer isso), mesmofazendo ajustes sociais, fazendo tudo o que você imaginou, a beleza dacoisa, se ele está metido em algum processo de acumulação, ele vaiprecisar necessariamente continuar o processo de expansão da economia,porque a lei do capital é esta mesma: é de permanente ampliação eacumulação. Ele entra num processo de crise e de conflito, que tem umlimite, é claro. O capital tem limite, gente. Ele é um processo social,histórico. E como ele tem um começo, um dia vai ter um fim. Um dia vaiter, mas eu não sei nem quando. Qual é a idéia que se vai ter disso? Ele éum processo social. Ou o capitalismo é eterno? De repente apareceu ofinal da História: é o “Fim da História”? Quebrou aqui e aqui, e não temmais? Não é isso. Nós estamos mostrando as contradições que levam osistema a outra situação, mesmo um sistema que seja em geral“bonzinho”.

Marxismo, Direito e Sociedade − 1

45

Page 46: Olavo de Carvalho e Alaor Marxismo Direito e Sociedade

OLAVO DE CARVALHO : Bem, evidentemente o capitalismo podeacabar. Se o socialismo acabou, por que é que o capitalismo não podeacabar? Ademais, o capitalismo não tem de ser defendido como idealpara resolver o que quer que seja, porque, em primeiro lugar, ocapitalismo já existe. E quando eu o defendo – e mesmo assim comlimitações, que eu não sou nenhum entusiasta do capitalismo – é apenascomo algo que está funcionando, que funciona bem onde lhe permitemfuncionar. Destruí−lo em função de hipóteses como “democraciaparticipativa” é suicídio. Até o momento se falou em contradições: éclaro que tem contradições, toda sociedade tem contradições. Mas nuncao capitalismo chegou às tais contradições que Marx denominava“contradições antagônicas”, que o destruiriam desde dentro. A isso nãochegou até hoje; e o socialismo chegou. O socialismo mostrou que éincapaz de passar de um certo ponto. Em matéria de contradiçõesantagônicas, o socialismo está ganhando.

ALAOR CAFFÉ ALVES : Parece que não se percebeu claramente a leido materialismo histórico. É que a indução do socialismo no séculopassado foi artificial. Não é que socialismo acabou, como você estádizendo. Ele nem começou.

OLAVO DE CARVALHO : Ah!

ALAOR CAFFÉ ALVES : Nem começou.

OLAVO DE CARVALHO : Então me enganaram o tempo todo!

ALAOR CAFFÉ ALVES : Enganaram todo o tempo. Quer dizer, isso dever fantasmas socialistas de anos atrás por toda a parte [palavrasinaudíveis], isso realmente obscurece a pessoa.

OLAVO DE CARVALHO : [Risos.]

ALAOR CAFFÉ ALVES : É preciso ter clareza disso aí. O socialismocomo tal, como o próprio Marx disse, teria de fazer com que as forçasprodutivas avançarem de tal maneira a chegar no limite das relaçõessociais de produção. O fato é que até agora não se chegou aos limites dosistema. Está se percebendo agora que está começando a entrar nesseprocesso.

OLAVO DE CARVALHO : Puxa, que maravilha…

ALAOR CAFFÉ ALVES : A crise está começando a entrar agora. Agoraé que estão começando a se desenvolver os problemas de desemprego,do social etc., né? A crise mundial, onde as coisas são irracionais. Umsistema como esse americano, que faz a coisa mais absurda e irracional,como atacar um país inteiro sem motivo praticamente, a não ser ummotivo pessoal, um motivo articulado do próprio país, que é a busca deenergia que ele precisa tanto para desenvolver o seu sistema. Porque seele não tem energia, minha gente, ele cai, ele cai completamente. Eleprecisa segurar a energia. É por isso que eles fizeram isso. Não é o Bush

Marxismo, Direito e Sociedade − 1

46

Page 47: Olavo de Carvalho e Alaor Marxismo Direito e Sociedade

que é mau, não. O Bush não é malvado (pode até ser, mas a gente nuncasabe). Ele tem de fazer isso em razão da própria impulsão do sistema.Pode estar certo, Olavo: o socialismo não começou, não. Ainda temosmuita coisa para ver. Muita água ainda vai correr embaixo da ponte.Infelizmente, eu gostaria que as coisas fossem mais rápidas, mas nãosão. O que aconteceu foi o desenvolvimento de um tipo de revoluçãoartificial, que não chegou justamente aos limites que o sistema vai ter.Porque os limites o sistema vai ter. E está tendo já, está começandoagora. Não sei quanto tempo, pode durar duzentos anos, sei lá. Noentanto, é isso mesmo. Estamos agora já com a indicação histórica quealguma coisa agora está condenada pelo sistema capitalista. É isso aí queeu estou dizendo. Agora, se vai ser socialismo… que tipo de socialismo,que forma de socialismo. isso nós não sabemos. É claro, isso nãosabemos.

OLAVO DE CARVALHO : Bom, vocês sabem quantos livros forampublicados com o título de “A Crise Geral do Capitalismo”?

ALAOR CAFFÉ ALVES : Ih, muitos…

OLAVO DE CARVALHO : Milhões e milhões. Todos faziam essediagnóstico: “Agora sacamos a crise, agora cai, e agora virá osocialismo.” E quando se diz que muita água vai correr, não: muitosangue ainda vai correr. Matar cem milhões não foi o bastante. Notembem, uma ideologia que, com esses mesmíssimos argumentos daestrutura de classe, da ideologia, do mercado etc., tomou o poder em umterço do globo terrestre, matando cem milhões de pessoas e sóconseguindo gerar miséria em proporções jamais vistas, como se gerouna China – depois de tudo isso, é preciso ter muita cara−de−pau paradizer: “Não, mas aquilo não era o verdadeiro socialismo. Nós vamostentar outra vez. Vocês me dêem mais um creditozinho de confiança, edesta vez nós vamos acertar.” Ora, por que vamos dar esse crédito deconfiança? Baseado em quê? Na autoridade dos cem milhões que vocêsmataram? Chega disto! O capitalismo não é grande coisa, o capitalismochega a ter aspectos até demoníacos. Porém, esse tipo de malefício elejamais fez: nunca chegou tão profundamente. Portanto, não vamosdestruir uma coisa razoável que temos, que pode ser mudada eaperfeiçoada muito, para tentar apostar novamente no socialismo. Maisainda: porque não é possível uma teoria dizer ao mesmo tempo que asidéias não existem separadamente da história, que as idéias só existempela sua encarnação material na história, e em seguida dizer que toda ahistória deles durante um século não o compromete de maneira alguma,e que ele como ideal permanece puro e intocável no céu das idéiasplatônicas. Isso é charlatanismo.

ALAOR CAFFÉ ALVES : [Palavras inaudíveis.] É evidente que istonão é uma resposta. Em primeiro lugar, ninguém está aqui defendendo aUnião Soviética, nem está pretendendo que era isto que eu estariafazendo. Ele [Olavo] está com fantasma na cabeça. Também isso nemprecisa mais pensar, que isso já foi mesmo, é coisa da História. Então éum fantasma pensar que o que se propugna é aquilo que estava lá. Não é

Marxismo, Direito e Sociedade − 1

47

Page 48: Olavo de Carvalho e Alaor Marxismo Direito e Sociedade

nada disso. Soube−se que houve erros profundos, sérios, seríssimos.Exatamente porque se propôs impor um sistema fora da hora, fora daHistória, da dimensão histórica. Porque não se viu realmente a dimensãohistórica. Então, é isso que se está colocando aqui. Não é a defesa decoisa nenhuma, de três milhões, de cinco milhões, de trinta milhões queforam perdidos em relação a isto; mesmo porque outros sistemas[palavras inaudíveis], ele [Olavo] não provou que o capitalismo não feztantas mortes.

OLAVO DE CARVALHO : Não fez!

ALAOR CAFFÉ ALVES : Não?

OLAVO DE CARVALHO : Não fez! Não fez! De jeito nenhum!

ALAOR CAFFÉ ALVES : Tantas mortes e muitos problemasgravíssimos de muitas guerras, desde que existem claramente,basicamente as guerras deste mundo inteiro? Quem fez isto, senão todo osistema burguês capitalista que fez isto? É evidente que houve tambémessa ampliação burocrata em termos objetivos por parte do socialismo.Então, neste caso, o certo é o seguinte, só para terminar: não adiantaentrar nesta questão. Eu quero que ele me explique como é que ele vairesolver o problema das contradições dele (mas claro, tem de ser relidocom conceitos) decorrentes deste processo que está ocorrendo com odesenvolvimento tecnológico das forças produtivas, expulsando amão−de−obra, expulsando a capacidade de poder consumir aquilo que opróprio capital produziu. Eu quero que ele me explique, me explique!

OLAVO DE CARVALHO : Essas contradições são exatamente asmesmas que Lenin diagnosticava em 1915, e em nome das quais se fez arevolução. Agora, quanto ao morticínio, está aqui: O Livro Negro doCapitalismo . Quando saiu O Livro Negro do Comunismo , feito porpessoas de esquerda, que provava documentadamente que os comunistashaviam matado cem milhões de pessoas, encomendou−se a um monte deintelectuais que produzissem, de qualquer maneira, cem milhões devítimas do capitalismo. Então, eles produziram este livro: são trintaautores de alto prestígio no meio esquerdista. Então, para chegar aoscem milhões, foi preciso atribuir ao capitalismo todas as vítimas daSegunda Guerra Mundial (cinqüenta milhões, todas as vítimas de todosos lados), todas as vítimas da Revolução Espanhola (de todos os lados),todas as vítimas da Primeira Guerra Mundial… Isso é charlatanismo.Todo marxista é um charlatão.

P: Eu gostaria que os dois debatores comentassem algumasconsiderações minhas e vou fazer uma pergunta específica para o prof.Olavo. Pelo tema do debate, eu esperava que houvesse uma discussão arespeito das principais teses desenvolvidas pelo Marx, mas infelizmenteas discussões tomaram outro rumo, e eu percebo que as tesespropriamente de Marx foram tangenciadas. Como por exemplo a críticafeita ao materialismo, se ele não é o poder de a matéria gerar frutos, oque me parece uma concepção inclusive meio bíblica – o homem feito

Marxismo, Direito e Sociedade − 1

48

Page 49: Olavo de Carvalho e Alaor Marxismo Direito e Sociedade

do barro etc. Quando na realidade o fundamento do marxismo residejustamente na interação do homem com a natureza, que é, segundo opróprio Marx, o corpo inorgânico do homem, e a produção da ideologiase dá a partir dos pressupostos da atividade espiritual humana. Então,nós estamos aqui fazendo o quê? Nós estamos aqui debatendo, mas nósestamos aqui vestindo roupas, nós estamos calçados, os debatedoresestão tomando água, fumando cigarro. E de onde vêm essas coisas?Tudo isso foi produzido, tudo isso foi criado de alguma forma através dealguma espécie de intervenção humana. Isso é a produção da ideologia, enão dizer que o trabalhador tem de pensar como proletário e o capitalistatem de pensar como um crápula. E isso é ridículo. E a maior prova aocontrário dessa fórmula é o Presidente Lula, que é um trabalhador e quediz: “Eu nunca fui de esquerda.” Então, a questão é mais por aí. Eugostaria que os debatedores comentassem essa minha consideração.Outra delas é que me pareceu ali muito claro o tempo todo que osocialismo foi discutido em termos de planificação estatal, quando narealidade a teoria de Marx é muito diferente disso. Não se trata deperfectibilizar o Estado ou de aprimorar as camadas políticas, tampoucode controlar o mercado. A perspectiva de Marx é radical. A perspectivade Marx é a destruição do mercado, a destruição do Estado, mas adestruição do mercado não para substitui−lo pela planificação, mas parasubstitui−lo pela apropriação social. Esse é segundo ponto que eugostaria que fosse comentado. E aí, por fim, a pergunta para o prof.Olavo. Eu fiquei muito feliz com a vinda do senhor aqui, pelaoportunidade de pedir um comentário sobre um artigo que eu li há cercade um ano ou um ano e meio no jornal O Globo , se não falha amemória, em que você afirma que o então presidente Fernando HenriqueCardoso estaria mancomunado com o MST e preparando a transição doBrasil ao socialismo. Eu gostaria que o senhor comentasse esse seuponto de vista.

OLAVO DE CARVALHO : Vocês façam a conta de quanto saiu dogoverno FHC para o MST. Sem isso, o MST simplesmente não existiria.É só isto: ele fez o MST, ele é o criador do MST. Quais foram asintenções ideológicas, eu não sei, evidentemente. Porém, houve umasérie de artigos publicados por Alain Touraine na Folha de São Paulo(Alain Touraine é uma pessoa que tem influência grande sobre a cabeçade FHC), nos quais ele traçava o plano de uma virada do Brasil àesquerda. Eu não sei se foi isto que FHC quis ou não – nem me cabeconjeturar –, mas eu estou apenas cotejando dois fatos e vendo que épossível haver uma ligação. Quanto saberemos se houve isso ou não?Daqui a muito tempo, certamente. Mas que o governo FHC construiu oMST com verbas do Estado, isso é um fato inegável.

ALAOR CAFFÉ ALVES : Eu não tenho muito que comentar àformulação dessas questões. Elas estão muito corretas para mim, né? Ouseja, o fato de que a materialidade depende das relações de produção doshomens. Por exemplo, o caso que foi colocado aqui: nós estamos aquinessa mesa, tudo está sendo visto, todos estamos vestidos, temos nossaalimentação já preparada, temos nossas roupas; amanhã ainda teremosporque outras pessoas estão trabalhando para nós também. Nós estamos

Marxismo, Direito e Sociedade − 1

49

Page 50: Olavo de Carvalho e Alaor Marxismo Direito e Sociedade

trabalhando para eles, e eles para nós. Há uma relação social envolvidanecessariamente. Isto é uma dimensão social grave e séria. Eu não possoestabilizar que os homens, apenas pelas suas idéias, é que transformamas coisas ou fazem as coisas; fazem através do movimento prático dapraxis deles, dentro da estrutura social e econômica onde há a troca entreos homens, fundamentalmente. Portanto, eu não muito o que dizer sobreesse aspecto da matéria. Não é a matéria no sentido, como eu disse avocês, abstrata, mas é a matéria do ponto de vista das relações humanasconcretas, o homem agindo sobre o meio e transformando o meio. Equanto à apropriação social, que foi uma das propostas, mostraclaramente que a apropriação social é feita de uma forma totalmentedesequilibrada. Por isso, se houver essa questão que foi colocada aquipelo Olavo, pelo jornalista Olavo, foi colocada a respeito da necessidadede estabelecer uma esquerda, de uma posição à esquerda. Se for para adistribuição melhor da sociedade, uma distribuição das riquezas, quevamos para a esquerda. Ué, se há uma miséria imensa, e nós vemos queas estruturas tradicionais não resolvem a questão, não tem importância:vamos à esquerda. Pois se ela tentar resolver e se resolve, melhor. EAgora, nós não temos a certeza de tudo isso, é verdade. Mas dizer que osistema é bom, é quase que dizer… Primeiro ele diz: “Olha, eu não souum arauto do sistema, de forma nenhuma, mas vamos então admiti−locomo bom, que ele é a única coisa boa que tem.” Mas nós temos tambémexpectativas, utopias, nós temos também meios de ver o mundo, nóstemos também aspirações, nós temos nossa imaginação, e nósprecisamos realmente imaginar um mundo melhor e utópico. Isso éotimismo. Não é um pessimismo que diz que tudo o que está à frente, sefor à esquerda, não presta. Quer dizer, aqui se defende exatamenteposições de direita dizendo não está se fazendo isso: “Não estou fazendoisso.” Está aqui atacando a esquerda e dizendo: “Não é uma diferença deidéias.” É um ataque com toda força à esquerda, às visões marxistas etc.,que são razoáveis em muitas questões. Como eu já disse, não é perfeito.Não é que seja a panacéia, e não será mesmo. Nós temos de criar a nossaprópria panacéia. Nós temos de criar o nosso mundo, a nossa utopia.Não é Marx no século XIX. O importante é que temos de utilizar isso. Épena que tudo isso que nós conversamos e desenvolvemos nós pensamosem falar em “Marxismo, Direito e Sociedade”, especialmente a questãodo Direito. E eu vi que isto fugiu completamente. Talvez eu tenha sidovítima da direita. A esquerda também é vítima, embora ele diga que não,porque tudo aqui é da esquerda, todos são, até as novelas são deesquerda, a Globo é de esquerda. É ver as coisas que não tem, que nãoexistem mais. Até esse fantasma do chamado comunismo, isso acabou.Nós temos de agora buscar uma outra vida, uma outra forma, uma outrasociedade. É isso que tem de fazer, e não ficar remoendo problemas dopassado. Existe aqui até um movimento muito sério, muito grave em SãoPaulo, chamado TFP (Tradição, Família e Propriedade), que faz essetipo de coisa, ficam agindo nas ruas como se houvesse ainda essefantasma, como se essa esquerda fosse o quê? Ela simplesmente vaitentar desenvolver um sistema onde haja mais distribuição social. Mas ésó isso que se pretende fazer. O que se pretende fazer? Uma igualação,uma igualdade melhor entre os homens. É isso que se pretende fazer. Oque é que se pretende fazer? O que é que se pretende fazer senão melhor

Marxismo, Direito e Sociedade − 1

50

Page 51: Olavo de Carvalho e Alaor Marxismo Direito e Sociedade

igualdade, maior igualdade, para condicionar uma vida de paz social, eque as pessoas tenham oportunidade de aprimorar sua personalidade, asua vida… Enfim, é isso que nós queremos. Não queremos mais nada doque isso. E não ficamos aqui apresentando esses exemplos; essesexemplos históricos que são mais do que conhecidos, sabemos que temisso. Até ele [Olavo] chega a dizer que esses exemplos são todos elesterríveis; do outro lado, o nazismo não teve nenhum problema…

OLAVO DE CARVALHO : [Olavo protesta.]

ALAOR CAFFÉ ALVES : “Nós não sabemos, não conhecemos nada.”E o capitalismo é um sistema absolutamente muito bom. O que é que éisto? Todos estão de acordo com esse tema que ele está, com essadistribuição terrível que ele está, com essa miséria do Brasil? Daqui apouco vai se falar que a miséria é determinada pelos esquerdistas, pelaesquerda…

OLAVO DE CARVALHO : E é, e é.

ALAOR CAFFÉ ALVES : … como está se fazendo colocando a questãode que o FMI é de esquerda, os EUA é de esquerda, Rockefeller é deesquerda etc. Isso é uma coisa maluca. É uma questão emocional muitograve…

OLAVO DE CARVALHO : Ora, o prof. Alaor tem a pretensão dediagnosticar os meus problemas emocionais. Dele, eu só diagnosticouma coisa: ignorância. Primeiro, ignorância dos escritos de Marx. Elediz que a matéria é função da produção; Marx diz exatamente ocontrário: Marx subscreve inteiramente as concepções atomísticas deDemócrito e aceita a ciência newtoniana como a tradução perfeita darealidade. Ademais, a idéia de uma dialética interna da matéria estáexposta nos escritos do próprio Engels e faz parte da tradição domovimento comunista. Abolir tudo isso, dizendo que Marx só falou daprodução é absolutamente ridículo, é coisa de ignorante, para não dizermentiroso. Não o acuso de mentiroso mas o acuso de ignorante. Emsegundo lugar, com um homem que chega para mim e diz por um ladoque “ah, esse momento é da esquerda, a esquerda está com tudo” e, poroutro lado, diz que não existe esquerda nenhuma, em algum ponto acoisa está falhando. Em terceiro lugar, o conselho de “esqueçamos aHistória, nada disto aconteceu, vamos tentar de novo, vamos confiar”,isso é uma palhaçada, isso é pueril. Não se pode aceitar uma discussãonessa base.

ALAOR CAFFÉ ALVES : Bem, eu evidentemente não estava esperandoessa agressividade. Essa foi demais.

OLAVO DE CARVALHO : Agressividade é a sua, que começa a falarem problemas emocionais.

ALAOR CAFFÉ ALVES : Veja bem, tem de respeitar. Chamar a gentede ignorante, e pressupor que eu não conheça Marx…

Marxismo, Direito e Sociedade − 1

51

Page 52: Olavo de Carvalho e Alaor Marxismo Direito e Sociedade

OLAVO DE CARVALHO : Pressupor não: afirmo!

ALAOR CAFFÉ ALVES : ... e ele diz também que quatro décadas foido Partido Comunista. Maluco isso! Nunca foi coisa nenhuma! Foi nada!

OLAVO DE CARVALHO : O quê? Está me acusando de mentiroso?

ALAOR CAFFÉ ALVES : O senhor me acusou de mentiroso aqui.

OLAVO DE CARVALHO : Não, eu te acusei de ignorante.

ALAOR CAFFÉ ALVES : [Palavras inaudíveis.]

[Tumulto.]

OLAVO DE CARVALHO : Você é que está mentindo.

ALAOR CAFFÉ ALVES : Você é que me xingou!

OLAVO DE CARVALHO : Você é mentiroso! Safado!

ALAOR CAFFÉ ALVES : Ele vem aí com coisa [palavras inaudíveis]anti−socialista ou antimarxista e vem dizer que já foi, sabe, e conhecetão profundamente. Imagine que ele agora não é, porque ele analisou tãoprofundamente isso e está dizendo…

OLAVO DE CARVALHO : Pois foi exatamente isso que você nuncafez.

ALAOR CAFFÉ ALVES : Ora, pelo amor de Deus!

OLAVO DE CARVALHO : Você é um idiota.

Alaor Caffé Alves : Olha aí! Quer dizer, eu estou falando ao mesmotempo; agora, se você disser que eu sou idiota. Olhem, vocês meperdoem. Eu sou da Faculdade. Eu não vou permitir uma coisa dessa!Isso é uma agressão pessoal. Eu esperava…

OLAVO DE CARVALHO : Você me agrediu primeiro, falando deproblemas emocionais.

ALAOR CAFFÉ ALVES : Eu comecei muito bem, dei para vocês omais possível a minha idéia a respeito de um conceito sobre Direito,sobre a questão que o Marx colocou; e a coisa foi num crescendo que eunão vou me admitir, vocês me perdoem.

ALGUÉM DA PLATÉIA : Está fugindo?

ALAOR CAFFÉ ALVES : Estou fugindo. Vou fugir. Estou fugindo pararespirar. Eu sei que vocês, grande parte de vocês, foram mobilizados.Houve uma mobilização aqui, séria, grave, séria, e eu não vou me

Marxismo, Direito e Sociedade − 1

52

Page 53: Olavo de Carvalho e Alaor Marxismo Direito e Sociedade

permitir, como professor da casa, ser agredido dentro da minha casa, poruma pessoa como esta. Vocês me perdoem.

* * *

Nota de O. de C.: Ao final dos debates, há um tumulto geral, aplausos evaias misturam−se de maneira indiscernível. A maior parte das vaiascondena a atitude de desistência do prof. Alves, mas num canto da salaouve−se distintamente o refrão gritado por um grupo organizado dejovens de idade manifestamente inferior à da média da platéia: “Alerta!Alerta! Alerta aos fascistas! A América Latina será toda socialista.”. –O. de C.

FIM

<< parte 3

1 − 2 − 3 − 4

Home − Informações − Textos − Links − E−mail

Marxismo, Direito e Sociedade − 1

53