OLIVEIRA, A. de. "Os Recusados". Uma Experiência de Moradia Transitória Infanto-juvenil No Campo...

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Adriano de Oliveira “Os recusados” Uma experiência de moradia transitória infanto-juvenil no campo da Saúde Mental MESTRADO EM PSICOLOGIA SOCIAL SÃO PAULO 2015

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Título em inglês: OLIVEIRA, A. de. "The unwanteds". An experience of children and youth’s temporary residencial care in the Mental Health Policy. Dissertation (Master of Social Psychology), Pontifical Catholic University of Sao Paulo (PUC-SP), Sao Paulo, 2015.Ao estudar uma Unidade de Acolhimento Infanto-juvenil, a presente pesquisa quis pensar criticamente a atualidade das práticas de cuidado e proteção direcionadas às crianças e adolescentes ditos em situação de vulnerabilidade social. Mais especificamente, são os modos de cuidar e modos de proteger, ou, em última análise, modos de governar certas crianças e adolescentes o foco deste trabalho. Para a constituição do campo de análise, fomos guiados pelos trabalhos genealógicos de Michel Foucault e Robert Castel. Num segundo momento, retomamos aspectos da história das práticas direcionadas à determinada população infanto-juvenil no bojo das políticas sociais, seguindo agora com Foucault e Jacques Donzelot. Em seguida, foram traçados alguns aspectos da história dos modos de governo executados pelas políticas assistenciais direcionadas à infância e adolescência no Brasil, para então apresentar alguns modos de governo operados a partir das composições das políticas sociais (Saúde e Assistência Social) com a Justiça. Por fim, fizemos uma breve passagem pela história das políticas de drogas no intuito de considerar o contexto em que se propõe uma unidade de acolhimento no campo da Saúde Mental, para daí acompanhar sua emergência na cidade de São Paulo, e realizar alguns apontamentos sobre o acolhimento institucional como estratégia de cuidado. Perguntou-se que rachaduras essas novas modalidades de atenção são capazes de produzir naqueles modos de governo, ainda herdeiros das práticas punitivas e estigmatizantes tão presentes na história da assistência à infância e adolescência no Brasil. Podemos inferir que a UAI diz da urgência de se inventar outros modos de cuidar, da urgência de acolher e não aprisionar.

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  • PONTIFCIA UNIVERSIDADE CATLICA DE SO PAULO

    PUC-SP

    Adriano de Oliveira

    Os recusados

    Uma experincia de moradia transitria infanto-juvenil no campo da Sade Mental

    MESTRADO EM PSICOLOGIA SOCIAL

    SO PAULO

    2015

  • PONTIFCIA UNIVERSIDADE CATLICA DE SO PAULO

    PUC-SP

    Adriano de Oliveira

    Os recusados

    Uma experincia de moradia transitria infanto-juvenil no campo da Sade Mental

    MESTRADO EM PSICOLOGIA SOCIAL

    Dissertao apresentada Banca Examinadora da Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo, como exigncia parcial para obteno do ttulo de Mestre em Psicologia Social, sob a orientao da Profa. Dra. Maria Cristina Gonalves Vicentin.

    SO PAULO

    2015

  • Banca examinadora

    ________________________________________________

    ________________________________________________

    ________________________________________________

  • AGRADECIMENTOS A Cristina Vicentin, pela generosidade e ateno cuidadosa com que orientou esse trabalho, e pela fora que tem de nos instigar a pensar diferentemente. Aos pesquisadores do Ncleo de Pesquisas em Lgicas Institucionais e Coletivas que me acompanharam nesse percurso, acolhendo angstias e inquietaes e sugerindo caminhos. Em especial, s amigas Julia Joia e Alyne Alvarez. Aprendi muito em suas companhias. s professoras Bader Sawaia e Andrea Scisleski, pelas sugestes e apontamentos durante o exame de qualificao, fundamentais para a continuidade do trabalho. CAPES, pelo apoio realizao desta pesquisa. s professoras Isa Maria Ferreira da Rosa Guar e Maria do Rosrio Corra de Salles Gomes, pelas preciosas interlocues sobre o tema das polticas para a infncia e adolescncia. Aos trabalhadores do CAPS I e da UAI onde esta pesquisa se realizou, por todo o suporte e abertura que me deram para a realizao da pesquisa. Aos amigos de So Paulo, que foram pacientes e compreensveis nesse perodo de escrita: Paulina, Victor, Marcel, Igor, Claudia, Cris, Cy. Aos amigos da poca da faculdade, que mesmo estando longe, esto presentes de diferentes formas na minha vida: Ndia, Mirian, Marice, Camila Nagai, Dayana, Bruno, Daniel (Du), Lauren, e tantos outros. Pela alegria dos encontros. Um agradecimento especial a Leonardo Klein, que esteve ao meu lado nos momentos finais da escrita, cuidando da janta, preparando o ch e papeando sobre assuntos que sequer sabia do que se tratava. Pela escuta e pela palavra, obrigado. minha famlia. A todos que, de alguma forma, apoiaram ou participaram da realizao deste trabalho.

  • RESUMO

    OLIVEIRA, A. de. Os recusados. Uma experincia de moradia transitria infanto-juvenil

    no campo da sade mental. Dissertao (Mestrado em Psicologia Social), Pontifcia

    Universidade Catlica de So Paulo (PUC-SP), So Paulo, 2015.

    Ao estudar uma Unidade de Acolhimento Infanto-juvenil, a presente pesquisa quis pensar

    criticamente a atualidade das prticas de cuidado e proteo direcionadas s crianas e

    adolescentes ditos em situao de vulnerabilidade social. Mais especificamente, so os

    modos de cuidar e modos de proteger, ou, em ltima anlise, modos de governar certas

    crianas e adolescentes o foco deste trabalho. Para a constituio do campo de anlise,

    fomos guiados pelos trabalhos genealgicos de Michel Foucault e Robert Castel. Num

    segundo momento, retomamos aspectos da histria das prticas direcionadas

    determinada populao infanto-juvenil no bojo das polticas sociais, seguindo agora com

    Foucault e Jacques Donzelot. Em seguida, foram traados alguns aspectos da histria dos

    modos de governo executados pelas polticas assistenciais direcionadas infncia e

    adolescncia no Brasil, para ento apresentar alguns modos de governo operados a partir

    das composies das polticas sociais (Sade e Assistncia Social) com a Justia. Por fim,

    fizemos uma breve passagem pela histria das polticas de drogas no intuito de considerar

    o contexto em que se prope uma unidade de acolhimento no campo da Sade Mental,

    para da acompanhar sua emergncia na cidade de So Paulo, e realizar alguns

    apontamentos sobre o acolhimento institucional como estratgia de cuidado. Perguntou-se

    que rachaduras essas novas modalidades de ateno so capazes de produzir naqueles

    modos de governo, ainda herdeiros das prticas punitivas e estigmatizantes to presentes

    na histria da assistncia infncia e adolescncia no Brasil. Podemos inferir que a UAI diz

    da urgncia de se inventar outros modos de cuidar, da urgncia de acolher e no

    aprisionar.

    PALAVRAS-CHAVE: SADE MENTAL, MORADIA TRANSITRIA, INFNCIA E ADOLESCNCIA,

    CUIDADO E PROTEO, DROGAS

  • ABSTRACT

    OLIVEIRA, A. de. "The unwanteds". An experience of children and youths temporary

    residencial care in the Mental Health Policy. Dissertation (Master of Social Psychology),

    Pontifical Catholic University of Sao Paulo (PUC-SP), Sao Paulo, 2015.

    When studying a Children and Youths Residencial Care, this research wanted to think

    critically about the nowadays practices of care and protection of children and adolescents

    in situation of vulnerability, personal or social risk. More specifically, are the ways to take

    care of and ways to protect, or, ultimately, ways of governing certain children and

    adolescents the focus of this work. For constituting the analysis field, we are guided by the

    genealogical work of Michel Foucault and Robert Castel. After, we take some aspects of

    history of practices directed at certain children and adolescents in the cern of social

    policies, in dialogue with Michel Foucault and Jacques Donzelot. Secondly, will be drawn

    some aspects of the history of types of government run by welfare policies directed to

    children and adolescents in Brazil, to finally present some ways of government operated

    from the compositions of social policies (Health and Welfare) with Justice. Finally, we make

    a brief passage through the history of drug policy in order to consider the context in which

    it proposes a residencial care service in the field of Mental Health, and from there follow

    its emergence in the city So Paulo, to finally make some notes on the institutional care as

    a care strategy. This wonders what cracks these new modalities of care are able to produce

    those modes of government, even heirs of punitive and stigmatizing practices as gifts in the

    history of assistance to children and adolescents in Brazil. We conclude that the Childern

    and Youths Residencial Care says the urgent need to invent other ways of caring, the

    urgency to care and not imprison.

    KEYWORDS: MENTAL HEALTH, TEMPORARY RESIDENCIAL CARE, CHILDHOOD AND

    ADOLESCENCE, CARE AND PROTECTION, DRUGS

  • "Vem por aqui" dizem-me alguns com os olhos doces Estendendo-me os braos, e seguros De que seria bom que eu os ouvisse Quando me dizem: "vem por aqui!"

    Eu olho-os com olhos lassos, (H, nos olhos meus, ironias e cansaos)

    E cruzo os braos, E nunca vou por ali...

    (...) Ide! Tendes estradas,

    Tendes jardins, tendes canteiros, Tendes ptria, tendes tetos,

    E tendes regras, e tratados, e filsofos, e sbios... Eu tenho a minha Loucura !

    (...) Ah, que ningum me d piedosas intenes,

    Ningum me pea definies! Ningum me diga: "vem por aqui"!

    A minha vida um vendaval que se soltou, uma onda que se alevantou,

    um tomo a mais que se animou... No sei por onde vou, No sei para onde vou

    Sei que no vou por a! Cntico Negro

    Jos Rgio

    Ainda vo me matar numa rua. Quando descobrirem, principalmente, que fao parte dessa gente que pensa que a rua a parte principal da cidade. Paulo Leminski

  • SUMRIO

    INTRODUO

    Apresentao 11

    A pesquisa e seus intercessores 14

    CAPTULO 1 POLTICAS SOCIAIS E A GESTO DAS MULTIPLICIDADES

    Biopoder: uma gesto calculada da vida 24

    Governamentalidade, poder pastoral e produo de subjetividade 27

    Paradoxos do liberalismo: liberdades e segurana 33

    CAPTULO 2 INSTITUIES DA INFNCIA

    Do governo de crianas e adolescentes 38

    A assistncia infncia no Brasil 41

    Polticas sociais, vulnerabilidades e virtualidades 53

    Sade, Assistncia social e Justia: relaes de poder e regimes de saber 59

    CAPTULO 3 A UNIDADE DE ACOLHIMENTO INFANTO-JUVENIL

    Contexto histrico: breves apontamentos 71

    A moradia transitria como modalidade de ateno em Sade Mental 74

    So Paulo, um lugar de afrontamento 77

    Surfando no Centro: a UAI e a rede 80

    Intersetorialidade x circuitos transinstitucionais: do que (se) trata a UAI? 81

    Especializao x ateno s singularidades 87

    O hibridismo da casa 91

    Os recusados 94

    O menino selvagem: o cuidado na errncia 96

    Responsabilidade sanitria: proteo e autonomia x medicalizao 100

    (Des)cuidado e (des)proteo na crise: o no-lugar da rede 103

    CONSIDERAES FINAIS 110

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS 119

  • Lista de siglas

    AI Anlise Institucional

    BID Banco Interamericano de Desenvolvimento

    CAPS Centro de Ateno Psicossocial

    CAPS AD - Centro de Ateno Psicossocial lcool e outras Drogas CAPS I - Centro de Ateno Psicossocial Infantil

    CAT Casa de Acolhimento Transitrio

    CIEJA Centro Integrado de Educao de Jovens e Adultos

    CMDCA Conselho Municipal dos Direitos da Criana e do Adolescente

    Conad Conselho Nacional Anti-Drogas

    Confen Conselho Federal de Entorpecentes

    CRATOD Centro de Referncia de lcool, Tabaco e outras Drogas CREAS Centro de Referncia Especializado da Assistncia Social

    CRECA Centro de Referncia da Criana e do Adolescente

    CT - Conselho Tutelar

    DATASUS Banco de Dados do Sistema nico de Sade ECA Estatuto da Criana e do Adolescente

    Febem Fundao do Bem Estar do Menor

    FMUSP Faculdade de Medicina da Universidade de So Paulo

    Funabem Fundao Nacional do Bem Estar do Menor

    GCM Guarda Civil Metropolitana

    HIV Sindrome da Imunodeficincia Adquirida

    LOAS Leio Orgnica da Assistncia Social

    MNMMR Movimento Nacional dos Meninos e Meninas de Rua

    MP Ministrio Pblico

    OSS Organizao Social de Sade

    PAS Plano de Atendimento Sade

    Pead - Plano Emergencial de Ampliao de Acesso ao Tratamento e Preveno em lcool e outras Drogas

    PNBM Poltica Nacional de Bem Estar do Menor

  • PNCFC Plano Nacional de Promoo, Proteo e Defesa do Direito da Criana e do Adolescente

    Convivncia Familiar e Comunitria

    PTS Projeto Teraputico Singular RAPS Rede de Ateno Psicossocial

    Saica Servio de Acolhimento Institucional de Crianas e Adolescentes

    SAID Servio de Atendimento Integral ao Dependente

    SAM Servio de Assistncia ao Menor

    Senad Secretaria Nacional de Polticas sobre Drogas

    SINASE Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo

    Sisnad Sistema Nacional Antidrogas

    SMAS Secretaria Municipal de Assistncia Social

    Suas Sistema nico de Assistncia Social SUS Sistema nico de Sade TPAS Transtorno de Personalidade Antissocial

    UA Unidade de Acolhimento

    UAA Unidade de Acolhimento Adulto

    UAI Unidade de Acolhimento Infanto-juvenil UBS Unidade Bsica de Sade

    Unicef Fundo das Naes Unidas para a Infncia

    VIJ Vara da Infncia e Juventude

  • 11

    INTRODUO

    Apresentao

    A questo da infncia e adolescncia, ou melhor dizendo, das infncias e

    adolescncias - no plural - como objeto e objetivo de polticas sociais a problemtica em

    torno da qual esse trabalho se debruou. Ao assumir como campo problemtico as

    polticas direcionadas infncia e adolescncia, a presente pesquisa quer pensar

    criticamente a atualidade das prticas de cuidado e proteo direcionadas s crianas e

    adolescentes ditos em situao de vulnerabilidade e risco pessoal e social1.

    Mais especificamente, so os modos de cuidar e modos de proteger, ou, em ltima

    anlise, modos de governar certas crianas e adolescentes o foco deste trabalho. Nossa

    inteno , portanto, contribuir para uma reflexo crtica sobre as interfaces sade

    mental e assistncia social, seus modos de dizer/fazer cuidado e dizer/fazer proteo, em

    suas composies e tensionamentos.

    Abordar essa temtica relevante diante das pesquisas recentes que constataram

    as seguintes situaes: a) hospitais psiquitricos continuam servindo de destino a crianas

    e adolescentes com questes de sade mental, em especial aqueles com diagnstico de

    transtorno de conduta ou decorrente do uso abusivo de lcool ou outras drogas (BENTES,

    1999, JOIA, 2006; SCISLESKI, 2006, 2010; CUNDA, 2011; BLIKSTEIN, 2012); e b) a existncia

    de servios de acolhimento no campo da assistncia social ditos especializados que

    servem como espaos de recluso das anormalidades (RIZZINI, 2008a; ASSIS, 2011;

    ALMEIDA, 2012).

    Outra razo que despertou o desejo de realizar esta pesquisa foi a minha

    experincia de trabalho no campo das polticas para infncia e adolescncia. Ainda na

    graduao estive envolvido em projetos de pesquisa e estgios que assumiam tais

    polticas como campo de atuao: seja no mbito da ateno em sade, educao ou

    socioassistencial, o foco foi predominantemente as crianas e adolescentes, e suas

    1 Nesta introduo usamos a noo de vulnerabilidade e risco pessoal e social apenas no seu sentido

    descritivo, isto como termo que aparece nas polticas sociais atuais para designar o campo de interveno de determinados servios de assistncia pblica. Neste trabalho, a noo ser abordada em termos de produo de vulnerabilidade, ou vulnerabilizao, desde uma perspectiva crtica, de modo a colocar em anlise as polticas que assumem essa noo como norteadora de suas aes.

  • 12

    famlias. No obstante, depois de formado encontrei no campo da Assistncia Social

    abertura para as primeiras experincias profissionais como psiclogo, atuando em

    servios de proteo bsica e proteo especial (de mdia e alta complexidade)2.

    Nessa experincia, pude notar que a persistncia de prticas fortemente tutelares,

    estigmatizantes e desqualificadoras da infncia e adolescncia no era incomum nos

    diversos dispositivos onde se propunha uma prtica em torno da infncia. No lugar de

    especialistas, de adultos, muito falamos sobre a infncia: quando no explicando sua

    prpria falta, buscando nesta etapa da vida as explicaes para o que aparece como falta

    na vida adulta. A despeito do ordenamento jurdico brasileiro ter reconhecido as crianas

    e adolescentes como sujeito de direitos, desde a promulgao do Estatuto da Criana e

    do Adolescente, permanece nesse campo prticas de sujeio. Em certa medida, as

    formas como as crianas respondem a essas prticas, submetendo-se a elas ou as

    recusando, muitas vezes tomado como um parmetro para definir o que uma

    experincia normal de infncia. Ou seja, no raro que a recusa dessa posio tutelada e

    submissa seja identificada como um desvio, uma anormalidade.

    Essas questes, a meu ver, conectam-se problemtica em torno da qual a

    pesquisa se debruou, que a dos modos de dizer/fazer cuidado e proteo no campo da

    infncia e adolescncia. Assume-se aqui que o lugar da infncia e adolescncia na

    sociedade, atravessado por determinadas relaes histricas e sociais, repercute nas

    formas de cuidado e proteo praticadas no interior das polticas sociais (mas tambm

    nas relaes familiares e socioculturais mais amplas). Da mesma forma, importante

    sublinhar que cuidado e proteo so conceitos polissmicos, e seus sentidos, sempre

    cambiveis, forjados dentro de um dado contexto cultural e social.

    Definido o campo problemtico sobre o qual a pesquisa se debruou, escolhemos

    como campo emprico da pesquisa um servio de moradia transitria para crianas e

    adolescentes usurios de substncias psicoativas na cidade de So Paulo, denominada

    Unidade de Acolhimento Infanto-juvenil (UAI). Regulamentado pela Portaria 121 de 2012

    do Ministrio da Sade, uma Unidade de Acolhimento um ponto de ateno na Rede de

    2 De acordo com os parmetros da atual Poltica Nacional de Assistncia Social, de 2004, os servios

    socioassistenciais so classificados, de acordo com suas estratgias e objetivos, como a) Proteo Social Bsica; b) Proteo Social Especial de Mdia Complexidade; c) Proteo Social Especial de Alta Complexidade (BRASIL, 2004).

  • 13

    Ateno Psicossocial (RAPS), de carter residencial, transitrio e voluntrio, destinado

    tanto ao pblico adulto Unidade de Acolhimento Adulto (UAA) , mas tambm de

    crianas e adolescentes Unidade de Acolhimento Infanto-juvenil (UAI), com

    necessidades decorrentes do uso de Crack, lcool e Outras Drogas, e que

    necessariamente conta com um Centro de Ateno Psicossocial de referncia para o

    cuidado dos acolhidos (BRASIL, 2012).

    Assim, a UAI se caracteriza por ser um dispositivo que pretende a um s tempo

    operar como promotor de cuidados em sade mental e mecanismo de proteo social.

    Expressa, portanto, o cruzamento de aes e tecnologias prprias ao campo das polticas

    de Sade Mental e de Assistncia Social, uma vez que lana mo do acolhimento

    institucional (medida de proteo socioassistencial) como estratgia teraputica e

    protetiva para crianas e adolescentes que se encontrem em situaes que acentuam sua

    vulnerabilidade.

    Ela composta por um corpo profissional formado por 02 tcnicos de nvel

    superior que compartilham a funo de coordenadores, um formado em Educao Fsica

    e outra formada em Psicologia, e 08 acompanhantes comunitrios, que trabalham em

    esquema de revezamento de planto, 01 durante o dia e 02 noite. A UAI conta com um

    Centro de Ateno Psicossocial Infantil (CAPS I) de referncia. Este CAPS I d cobertura a

    uma regio com mais de 400.000 habitantes, e conta com uma gerente, e 15 tcnicos de

    diferentes formaes, alm dos profissionais de nvel mdio ou tcnico que compem a

    equipe.

    O objetivo da pesquisa foi: a) dar visibilidade a prticas em sade mental e

    proteo social que se apresentam como alternativas ou mesmo substitutivas

    internao psiquitrica e a modelos de ateno que representem isolamento ou recluso,

    e b) contribuir para uma reflexo crtica a respeito das prticas direcionadas a crianas e

    adolescentes ao questionar os modos de cuidado e proteo que comparecem neste

    campo.

  • 14

    A pesquisa e seus intercessores: algumas consideraes sobre o mtodo

    Ao se inserir no campo de estudos e pesquisas que se ocupam do tema das

    polticas para crianas e adolescentes, este trabalho reflete nosso interesse em compor o

    debate sobre os modos de cuidado e de proteo que vem se operando na atualidade das

    polticas sociais direcionadas s crianas e adolescentes, reconhecendo que prticas

    forjam subjetividades, acionam processos de subjetivao, e que modos de existncia

    emergem de jogos de fora.

    Para nos guiar nesta empreitada, evocamos a noo de intercessores proposta por

    Deleuze (2004) para chamarmos de pensamentos-intercessores aqueles que, na sua

    potncia de produzir derivas ou desvios (RODRIGUES, 2010), animam o exerccio do

    pensar, intercedem num dado regime de verdades possibilitando novas articulaes ou

    mesmo inventando outros regimes (VICENTIN, OLIVEIRA, 2012). Deleuze chama de

    intercessores os encontros, alianas, conexes, que mobilizem o pensamento em sua

    potncia criativa. Pensamentos-intercessores, nesta perspectiva, so aqueles que nos

    convocam a pensar diferentemente (FOUCAULT, 2012b).

    Dito isso, seguimos algumas pistas metodolgicas deixadas por Foucault que nos

    ajudam a pensar, quando no re-pensar, e at mesmo dis-pensar, alguns modos de dizer

    e de fazer presentes no campo das polticas de sade e assistncia social para crianas e

    adolescentes. Ousaremos roubar-lhe (DELEUZE, PARNET, 1998) alguns conceitos-

    ferramentas para colocar em anlise as relaes de poder e os modos de governar

    condutas presentes nessas polticas.

    Foucault realiza seu projeto sustentando um modo de compreenso da noo de

    poder que lhe peculiar, qual seja, o poder no como uma substncia ou propriedade,

    uma coisa, ou algo que pode ser localizado mais como uma estratgia, como embate de

    foras, como conjunto de mecanismos e procedimentos; ao mesmo tempo em que se

    ope ideia de poder como represso ou interdio, apoiando-se na sua dimenso

    produtiva (FOUCAULT, 1989). Para Foucault poder ao sobre ao, e no recepo

    passiva. No deriva de seus trabalhos, portanto, uma teoria geral do poder, mas sim uma

    analtica das relaes de poder (IDEM, 1995).

  • 15

    Aqui, retomaremos algumas proposies de Foucault, em particular as

    decorrentes das pesquisas por ele empreendidas a partir da dcada de 1970, em que o

    tema geral das pesquisas concentrou-se na genealogia das relaes de poder, do

    problema do governo enquanto conduo das condutas e das polticas de constituio da

    verdade, que ele desenvolve ancorado nas noes de biopoder e governamentalidade

    (FOUCAULT, 2005, 2008a, 2008b, 2012a).

    Apostamos que tais noes operam como grade analtica que nos permite encarar

    o desenvolvimento e funcionamento das polticas sociais como dispositivos de produo

    de verdades e de governo das condutas de si e dos outros, conforme as modificaes nas

    formas de exerccio do poder e nas racionalidades que as fundamentavam em

    determinados perodos histricos.

    A perspectiva genealgica adotada por Foucault (1979), inspirado pelo

    pensamento de Nietzsche, nos servir como bssola na medida em que prope a

    identificao das linhas de fora e dos jogos de poder em curso a partir dos quais certa

    realidade conformada.

    A genealogia comporta uma anlise da provenincia tratando-a no como ponto

    de fundao ou de continuidade, mas em sua dimenso heterogentica e de disperso ,

    e uma histria das emergncias daquilo que se produz em um determinado estado de

    foras. Portanto, no h busca das origens ou da verdade oculta por trs dos

    acontecimentos, mas um exerccio de diagnosticar o presente, identificar as linhas que o

    configuram, as relaes de poder e saber3 em jogo, reconhecendo a historicidade dos

    regimes de verdade, com o propsito de marcar a singularidade dos acontecimentos

    (IDEM, p. 15).

    Entre as provenincias e as emergncias, a genealogia implica, do lado da anlise

    das provenincias, encarar o corpo como superfcie de inscrio dos acontecimentos,

    3 Lembrando que, para Foucault, poder e saber so imanentes, ou seja, so irredutveis um ao outro. Em

    suas palavras, [...] poder e saber esto diretamente implicados; que no h relao de poder sem a constituio correlata de um campo de saber, nem saber que no suponha e no constitua ao mesmo tempo relaes de poder. Essas relaes de poder-saber no devem ser analisadas a partir de um sujeito de conhecimento que seria ou no livre em relao ao sistema de poder; mas preciso considerar ao contrrio que o sujeito que conhece, os objetos a conhecer e as modalidades de conhecimento so outros tantos efeitos dessas implicaes fundamentais do poder-saber e de suas transformaes histricas. Resumindo, no a atividade do conhecimento que produziria um saber, til ou arredio ao poder, mas o poder-saber, os processos e as lutas que o atravessam e o constituem, que determinam as formas e os campos possveis do conhecimento (FOUCAULT, 1975, p. 161)

  • 16

    mostrar o corpo inteiramente marcado de histria e a histria arruinando o corpo; e do

    lado da histria das emergncias, faz-la no na busca da origem ou da verdade oculta

    dos acontecimentos, mas a partir das suas condies de possibilidade, em que a sua

    forma no presente nada mais que o episdio atual de um estado de foras (FOUCAULT,

    1979a).

    Para tanto, Foucault prope o conceito de dispositivo, compreendido como uma

    rede que se estabelece entre elementos heterogneos, o dito e o no dito4, que responde

    a uma urgncia histrica, com uma funo estratgica, e que se apoia em outros

    dispositivos (FOUCAULT, 1979a). Dreyfus e Rabinow (1995) destacam da ideia de

    dispositivo as prticas elas mesmas, atuando como um aparelho, uma ferramenta,

    constituindo sujeitos e os organizando (p. 135, grifos meus), por meio de enunciados

    cientficos e no cientficos, instituies, organizaes arquitetnicas, regulamentos, leis,

    medidas administrativas, proposies de diferentes naturezas.

    Por conseguinte, a noo de genealogia apoiada no conceito de dispositivo que

    atravessa os propsitos desse trabalho implica na anlise da emergncia e do

    funcionamento da UAI feita com base no apenas em seus efeitos, mas considerando o

    prprio servio, seu aparecimento e localizao na rede institucional mais ampla de

    ateno a crianas e adolescentes como efeito de um jogo de foras.

    Ao tomarmos as condies de possibilidade de um novo servio na rede de

    ateno infncia e adolescncia como problema de pesquisa, adotamos o termo

    emergncia, que em suas acepes, diz tanto do aparecimento, do surgimento de algo,

    como de uma necessidade imediata, uma urgncia. A emergncia, diz Foucault, designa

    um lugar de afrontamento. Fazemos aluso perspectiva genealgica de Foucault

    (1979a, 2005), para quem o mtodo genealgico requer marcar a singularidade dos

    acontecimentos, longe de toda finalidade montona; espreitlos l onde menos se os

    esperava e naquilo que tido como no possuindo histria.

    Tambm fuamos algumas ferramentas metodolgicas que nos legou Ren Lourau

    e a Anlise Institucional Francesa (AI), para pensar a UAI em suas dimenses

    4 Ensina Foucault (2001) que os discursos esto submetidos uma ordem, a um conjunto de regras, que

    qualifica alguns enunciados e desautoriza outros, distribui e regula certos discursos, e impede a circulao de tantos outros, segundo uma vontade de verdade prpria de dado momento histrico. O dito e o no dito como elementos que compem o dispositivo referem-se aos regimes de verdade que se atualizam no seu funcionamento.

  • 17

    institucionais, sua posio na rede de ateno infncia e adolescncia da cidade de So

    Paulo, e as problematizaes que coloca em evidncia especialmente aquelas derivadas

    dos encontros (e desencontros?) entre as polticas de Sade e Assistncia Social.

    A AI, como um campo de coerncia, atenta-se aos tensionamentos entre as

    formas institudas e as foras instituintes por meio do questionamento das prticas

    forjadas na histria e que se atualizam permanentemente, materializando-se no presente

    na forma de normativas e equipamentos assistenciais, mas principalmente nos fazeres

    cotidianos desses servios.

    Entre Foucault e Lourau, reconhecemos um comum que se destaca na

    heterogeneidade de seus pensamentos, e que arriscamos afirmar como uma mirada

    tico-poltica, qual seja, a recusa dos universais. A pretenso aqui foi arguir prticas,

    historiciz-las, criar rachaduras que abrem para novos possveis. Portanto, no se trata de

    abordar A Criana, O Adolescente, tampouco A Poltica de Sade ou de Assistncia Social

    como categorias gerais, mas de compreender como certas crianas e adolescentes

    passam a ser objeto de interveno de determinadas polticas; mais ainda, de analisar

    como certas polticas operam o governo das condutas.

    Assumimos esta postura quando, nesse trabalho de pesquisa, interessamo-nos

    pelos movimentos no plano micropoltico do campo de interveno das polticas sociais

    que se ocupam de cuidar, proteger e governar certas crianas e adolescentes. Portanto,

    no tomamos o campo da infncia e adolescncia como objeto de interveno poltica

    como um algo j dado, mas sim ele prprio formado, identificado e delimitado em funo

    de determinadas prticas.

    Da nos propormos a pensar as prticas de cuidado e proteo em suas dimenses

    institucionais, atravessadas pelas instituies da infncia e adolescncia. Instituio,

    enfim, como criao prpria de um momento histrico-poltico, que forja certas formas

    de existncia em articulao a uma rede de saberes-poderes que as sustentam.

    Em geral, instituio considerada sob o aspecto do institudo, confundida com

    algum tipo de estabelecimento, quando no reduzida a uma dimenso normativa ou em

    referncia a um sistema de regras, ainda que sejam compostas por essas dimenses, e

    mesmo assumir essas configuraes em determinados contextos. Conforme ensina

    Baremblitt, (1992, p. 27):

  • 18

    As instituies so lgicas, so rvores de composies lgicas que, segundo a

    forma e o grau de formalizao que adotem, podem ser leis, podem ser normas

    e, quando no esto enunciadas de maneira manifesta, podem ser pautas,

    regularidades de comportamentos.

    Para a AI, instituio designa a forma como efeito de um encontro de foras.

    Assim, possvel afirmar que as instituies remetem s relaes e campos de foras

    institudos, tomados muitas vezes como naturais e imutveis, mas que coexistem e

    tensionam com outros campos de foras instituintes, de subverso e de mudana

    (COIMBRA; NASCIMENTO, 2004; AGUIAR; ROCHA, 2007).

    Nas palavras de Lourau, se certo que toda instituio atravessada por todos

    os nveis de uma formao social, a instituio deve ser definida necessariamente pela

    transversalidade (LOURAU, 2004a, p. 76). O que quer dizer que no h estabilidade e

    homogeneidade plena e final, ou qualquer essncia ou natureza imutvel a ser

    descoberta em relao instituio, mas sim deslocamentos, pequenas mutaes

    marginais e at clandestinos s estruturas oficiais e consagradas (BAREMBLITT, 1992, p.

    38), por isso as instituies devem ser analisadas em sua historicidade e em movimento,

    produo constante dos modos de legitimao das prticas sociais. (BENEVIDES DE

    BARROS, 2007, p 230-231).

    Assumindo essa perspectiva, cabe-nos a ressalva de que nos furtaremos de

    trabalhar os documentos oficiais que orientam o funcionamento da UAI contrastando-os

    com o cotidiano do servio para verificar se h qualquer obedincia s normas. Pelo

    contrrio, encararemos texto e contexto, documento oficial (na forma de Portaria, neste

    caso) e o carter local das prticas que se atualizam no servio, em suas dimenses

    micropolticas, formadas por linhas que, ao se cruzar, tensionam e forjam um campo que

    extrapola e atravessa a atualidade5 da instituio.

    Assim, parte da pesquisa realizou-se por meio da leitura dos documentos legais

    que orientam a criao das unidades de acolhimento como ponto de ateno da rede de

    5 A novidade de um dispositivo em relao aos precedentes chamamos sua atualidade, nossa atualidade.

    (...) O atual no o que ns somos, mas o que nos tornamos (...) o outro, nosso devir-outro. Em todo dispositivo, necessrio diferenciar o que ns somos (o que j no somos mais) e o que estamos em vias de nos tornar: a parte da histria e a parte do atuar. (DELEUZE, 1989, apud, RODRIGUES, 2005)

  • 19

    ateno psicossocial, bem como daqueles que informam as polticas de acolhimento

    institucional infanto-juvenil no mbito da Assistncia Social. Buscamos contextualizar o

    surgimento da UAI na cidade de So Paulo, de modo a reconhecer suas especificidades e

    identificar as linhas de fora e dimenses scio-polticos que a configuram.

    Para compor o trabalho de anlise das interfaces entre Sade Mental e Assistncia

    Social em suas prticas de cuidado e proteo a crianas e adolescentes, escolhemos

    entrevistar no somente profissionais diretamente ligados aos servios onde a pesquisa

    se realizou por entender que as questes e as problemticas colocadas neste tipo de

    trabalho esto para alm de suas prticas, ou seja, diz de um campo mais amplo e

    heterogneo que o das polticas sociais para infncia e a adolescncia.

    Apostamos, ento, em conversar com duas pesquisadoras do campo da infncia e

    juventude, pela sua insero e atuao na produo de polticas pblicas.

    Num segundo momento foram realizadas visitas tanto UAI, mas tambm ao

    Centro de Ateno Psicossocial Infantil (CAPS I) de referncia do servio, uma vez que

    ambos funcionam de maneira diretamente articulada.

    Desde que comeamos a visitar a UAI, percebemos uma rotatividade significativa

    entre os acolhidos: entre uma visita e outra, o grupo se alterava, o que denotava o

    carter pontual e provisrio do acolhimento. Alm disso, os horrios dos adolescentes

    eram tomados por atividades que compunham seu Projeto Teraputico Singular (PTS),

    que envolviam a participao nos espaos oferecidos no CAPS I, frequncia escolar, rotina

    de cuidados em sade, visita famlia (principalmente nos finais de semana).

    Dada essa particularidade do servio, lanamos mo de conversas no cotidiano

    como estratgia metodolgica (SPINK, 2007), assumindo o lugar de um pesquisador-

    conversador. No houve a oportunidade de uma estadia mais prolongada no servio, pelo

    encurtamento do tempo de execuo da pesquisa6.

    Ainda assim, tive a oportunidade de conversar com alguns profissionais e

    trabalhadores da UAI, bem como com alguns adolescentes acolhidos. Entrevistas e

    conversas no cotidiano foram realizadas tambm com profissionais que atuam no CAPS I,

    alm de consultas aos pronturios dos adolescentes (tanto os que j foram acolhidos e os

    6 Com a demora nos trmites relativos ao Comit de tica em Pesquisa a realizao de algumas etapas da

    pesquisa ficou invivel. E, mesmo aps a aprovao do CEP, enfrentamos dificuldades em iniciar o trabalho de pesquisa nos equipamentos, uma vez que dependeu de uma segunda rodada de exigncias burocrticas.

  • 20

    que ainda esto em acolhimento), favorecendo a produo de dados que permitem

    analisar os fluxos que atravessam o servio.

    Tambm foi possvel acompanhar uma reunio tcnica no CAPS I na qual a equipe

    colocou em anlise a UAI em relao rede de ateno infanto-juvenil do centro de So

    Paulo, a partir de casos tomados como emblemticos do funcionamento do servio.

    Os momentos em que estive nos servios foram registrados em um dirio de

    campo. Relatos, cenas e casos extrados do dirio de campo foram selecionados por

    reconhecermos neles a possibilidade de reconstituio analtica de determinadas

    situaes, a desconstruo de determinadas naturalizaes e a convocao da potncia

    de produo de realidades alternativas.

    No deixando de lembrar que, enquanto pesquisadores, estamos enredados em

    posies nos territrios que ocupamos para realizar nossa pesquisa - em relao com os

    outros que tambm fazem parte deste cotidiano (BENEVIDES DE BARROS, 2007). Em AI

    prope-se o conceito de implicao para trabalhar a anlise do lugar do pesquisador.

    Implicao um conceito inspirado pelas noes de transferncia e contratransferncia

    da Psicanlise, mas que as superam na medida em que se considera, para alm de uma

    relao dual, uma dinmica coletivo-institucional. Recusa, portanto, a uma postura de

    exterioridade e neutralidade no ato de pesquisar (PASSOS; BENEVIDES DE BARROS, 2009).

    A implicao no um ato voluntrio, pois implicado se est, no h como se

    furtar das relaes. Cabe, assim, ao pesquisador realizar a anlise das implicaes. Para

    Coimbra e Nascimento (2001), a anlise de implicaes se d no plano da imanncia, no

    plano da micropoltica, e opera a anlise dos modos de existncia sem apelar a valores

    transcendentais. Em suas palavras, a anlise de implicaes tornar visvel e audvel as

    foras que nos atravessam, nos afetam e nos constituem cotidianamente.

    As etapas foram consideradas para a identificao ou construo de analisadores

    durante o processo da pesquisa. Analisador , nas palavras de Benevides de Barros:

    ... aquilo que produz anlise. Apesar de bastante sinttica, esta

    definio, tomada ao p da letra nos parece precisa: falas, atos, fatos

    que se insurgem no campo de interveno, produzindo

    desmanchamento daquilo que at ento aparecia como natural.

    (BENEVIDES DE BARROS, 2007, p.333).

  • 21

    O conceito foi forjado no campo da Psicoterapia Institucional por Felix Guattari,

    para quem a anlise (...) no mais interpretao transferencial dos sintomas em funo

    de um contedo latente preexistente, mas inveno de novos focos catalticos suscetveis

    de fazer bifurcar a existncia (GUATTARI, 2012, p. 30). Para Lourau, na noo de

    analisador:

    (...) encontramos a ideia essencial da decomposio de uma totalidade

    nos elementos que a compem. O analisador qumico aquele que

    decompe um corpo em seus elementos, produzindo, em certa medida,

    uma anlise. Neste caso, encontramo-nos nas cincias fsicas. No caso

    da pesquisa socioanaltica, no se trata de interpretar neste primeiro

    nvel, mas de decompor um corpo. No se trata de construir um discurso

    explicativo, mas de trazer luz os elementos que compem o conjunto

    (LOURAU, 2004a, p. 70).

    H, nesta acepo, um deslocamento do ato de analisar da figura do

    analista/pesquisador para o acontecimento (AGUIAR; ROCHA, 2007). No entanto, tal

    deslocamento no significa a neutralidade do pesquisador no fazer da pesquisa. Pelo

    contrrio, como afirma Lourau (2004a) "o importante para o investigador no ,

    essencialmente, o objeto que 'ele mesmo se d' (segundo a frmula do idealismo

    matemtico), mas sim tudo que lhe dado por sua posio nas relaes sociais, na rede

    institucional", convocando anlise o jogo de interesses e de poder presentes no

    processo de pesquisa.

    Dito isso, vale sublinhar que no territrio do centro de So Paulo, est presente

    uma diversidade de Organizaes Sociais de Sade (OSS), que executam boa parte dos

    servios l instalados. Segundo dados da Prefeitura de So Paulo, atualmente o municpio

    mantm convnio ou parceria com 11 OSS, que juntas assumem 279 dos 985 servios de

    sade, sendo responsveis pela contratao de 40.981 trabalhadores de Sade (mais da

    metade daqueles que atualmente atuam na rede, que contabilizam 81.760). De 2012 para

    c, segundo levantamento recente do municpio, cerca de R$ 1,5 bilho foram repassados

    a essas organizaes por ano (PREFEITURA DE SO PAULO, 2014).

    Em particular, com relao aos servios de sade mental, existem atualmente 80

  • 22

    CAPS na cidade, 28 sob administrao direta e 52 sob a gerncia de OSS (IDEM). Um dos

    entraves decorrentes desse cenrio, ao nosso ver, a falta de alinhamento na execuo

    dos servios, pois cada OSS estabelece um modo de organizar e executar a ateno de

    acordo com suas polticas internas, que nem sempre dialogam com os preceitos tico-

    polticos que fundamentam as normativas.

    A presena de entidades do terceiro setor no setor da Sade Pblica uma

    tendncia no municpio que remonta a meados dos anos de 1990, quando o Plano de

    Atendimento Sade (PAS), proposto pela gesto municipal de Paulo Maluf, estabeleceu

    que a gesto dos equipamentos de sade ficaria a cargo de cooperativas de profissionais

    criadas para esta finalidade, de modo que no fato recente que o modelo de poltica

    sanitria de So Paulo vem sendo confrontado por uma srie de questionamentos

    (CONTREIRAS, 2011). Nos ltimos anos, as crticas recaem sobre o atual modelo de gesto

    baseado na parceria pblico-privada e na falta de transparncia sobre os processos de

    contratao ou convnio das OSS.

    Do lado do Poder Pblico, a gesto municipal afirma sua responsabilidade de

    assumir o gerenciamento da poltica de sade, ainda que elas fossem executadas pelas

    OSS. Os movimentos sociais, por sua vez, fazem uma crtica a esse modelo de gesto,

    reconhecendo aqui a tendncia privatizao do servio pblico, e denunciando uma

    lgica neoliberal que atravessa esse modo de organizao dos servios, transformando as

    demandas de sade em algo rentvel, no interior do mercado dos servios especializados.

    Alm do mais, trata-se de uma privatizao to desregulada como a observada na cidade

    de So Paulo [que] compromete o carter pblico (...) do prprio Estado. A destinao de

    recursos bilionrios de forma opaca e no fiscalizada suscita terreno propcio para a ao

    de interesses particulares, como avaliou Contreiras (IDEM, p. 97).

    Considerar esse pano de fundo nos pareceu pertinente para dar incio a uma

    leitura da cidade de So Paulo como um lugar de afrontamento, dado que se trata de um

    cenrio de disputas econmicas entre diferentes organizaes, com interesses bastante

    particulares. Contexto em que o corpo das crianas e adolescentes em situao de rua,

    usurios de drogas, introduzido no mercado, capitalizado no mais como fora de

    trabalho, mas como corpo doente, vulnervel, em torno do qual toda uma tecnologia

  • 23

    mdica e sanitria vai se estabelecer: ainda que poltica social, nunca deslocada do

    liberalismo da poltica econmica (FOUCAULT, 2010).

    Tal dimenso que no pode deixar de ser considerada ao se propor a pensar sobre

    a implantao da UAI em So Paulo, mas tambm por se tratar de uma linha de fora que

    certamente contorna as condies de possibilidade da realizao da prpria pesquisa.

    Para nos guiar, elegemos algumas linhas de fora que nos oferecem pistas para

    compor uma anlise das provenincias e uma histria da emergncia deste servio na

    cidade de So Paulo. A primeira linha refere-se definio do campo de anlise, baseado

    nos trabalhos genealgicos de Michel Foucault e Robert Castel.

    A segunda composta por algumas anlises sobre a histria das prticas

    direcionadas determinada populao infanto-juvenil no bojo das polticas sociais, em

    dilogo com Michel Foucault e Jacques Donzelot. Como desdobramento dessa linha,

    traamos alguns aspectos da histria da produo de infncias desiguais (NASCIMENTO,

    2002), relativos aos modos de governo executados pelas polticas assistenciais

    direcionadas infncia e adolescncia no Brasil, para enfim apresentar alguns efeitos das

    composies das polticas sociais (Sade e Assistncia Social) com a Justia.

    Por fim, uma terceira linha deriva de uma breve passagem pela histria das

    polticas de drogas no intuito de considerar o contexto histrico em que se prope um

    servio de moradia transitria como estratgia no campo da Sade Mental. Para a partir

    da acompanhar sua emergncia na cidade de So Paulo, para enfim realizar alguns

    apontamentos sobre o acolhimento institucional como estratgia de cuidado.

  • 24

    CAPTULO 1 POLTICAS SOCIAIS E GESTO DAS MULTIPLICIDADES

    Biopoder: uma gesto calculada da vida

    Em torno da demanda de proteo presente nas sociedades democrticas

    contemporneas, verifica-se um desejo cada vez maior de um Estado Securitrio,

    desembocando muitas vezes numa naturalizao das intervenes autoritrias e

    repressivas sobre parcelas significativas da populao, mesmo que isso contrarie o

    quadro normativo vigente. Como bem observou Castel (2005) vivemos em tempos de

    insegurana, no qual cada vez mais h espao para o impondervel. Parece que, na

    mesma medida em que desejamos cada vez mais uma vida longa, que investimos nosso

    presente com projetos para o futuro, menos o futuro cabe em nossas vidas.

    Para Foucault (2010, 2012) no toa a lgica da proteo produz o clamor e o

    consentimento da populao s intervenes das instncias formais de governo, mesmo

    quando expressam aes violentas como forma de garantir a segurana da sociedade.

    Vejamos como o desenvolvimento de uma economia especfica de poder, apoiada numa

    srie de tecnologias de gesto no corpo social, torna esses paradoxos possveis.

    Foucault nos fala de um poder sobre a vida, que ento se insere nos objetivos da

    poltica de uma maneira distinta, por meio da regulao da populao. A essas

    tecnologias de administrao da populao, que se estabeleceu no sculo XVIII, Foucault

    chamou de biopoder (FOUCAULT, 2005, 2008a, 2012a). Escreve Foucault:

    Concretamente, esse poder sobre a vida desenvolveu-se a partir do sculo XVII,

    em duas formas principais; que no so antitticas e constituem, ao contrrio,

    dois polos de desenvolvimento interligados por todo um feixe intermedirio de

    relaes. Um dos polos, o primeiro a ser formado, ao que parece, centrou-se no

    corpo como mquina: no seu adestramento, na ampliao de suas aptides, na

    extorso de suas foras, no crescimento paralelo de sua utilidade e docilidade,

    na sua integrao em sistemas de controle eficazes e econmicos - tudo isso

    assegurado por procedimentos de poder que caracterizam as disciplinas:

    antomo-politica do corpo humano. O segundo, que se formou um pouco mais

    tarde, por volta da metade do sculo XVIII, centrou-se no corpo-espcie, no

    corpo transpassado pela mecnica do ser vivo e como suporte dos processos

  • 25

    biolgicos: a proliferao, os nascimentos e a mortalidade, o nvel de sade, a

    durao da vida, a longevidade, com todas as condies que podem faz-los

    variar; tais processos so assumidos mediante toda uma srie de intervenes e

    controles reguladores: uma bio-poltica da populao. As disciplinas do corpo e

    as regulaes da populao constituem os dois polos em torno dos quais se

    desenvolveu a organizao do poder sobre a vida. A instalao durante a poca

    clssica, desta grande tecnologia de duas faces - anatmica e biolgica,

    individualizante e especificante, voltada para os desempenhos do corpo e

    encarando os processos da vida - caracteriza um poder cuja funo mais

    elevada j no mais matar, mas investir sobre a vida, de cima a baixo. A velha

    potncia da morte em que se simbolizava o poder soberano agora,

    cuidadosamente, recoberta pela administrao dos corpos e pela gesto

    calculista da vida. Desenvolvimento rpido, do decorrer da poca clssica, das

    disciplinas diversas - escolas, colgios, casernas, atelis; aparecimento,

    tambm, no terreno das prticas polticas e observaes econmicas, dos

    problemas de natalidade, longevidade, sade pblica, habitao e migrao;

    exploso, portanto, de tcnicas diversas e numerosas para obterem a sujeio

    dos corpos e o controle das populaes. Abre-se, assim, a era de um 'biopoder'

    (FOUCAULT, 151-152, 2012a)

    Na passagem dos Estados Absolutistas para os Estados Administrativos, e

    posteriormente, para os Estados Liberais, o bom governo deve garantir sade, riqueza

    suficiente, seguranas, proteo contra acidentes etc. Afinal, uma nova ordem econmica

    comea a se estabelecer criando uma necessidade de se ter corpos politicamente dceis e

    economicamente produtivos (FOUCAULT, 1975).

    Assim, o que marca o advento da modernidade, segundo as anlises de Foucault,

    so as modificaes nas formas de relao de poder e suas racionalidades nos diferentes

    tempos histricos. Foucault no deixa de reconhecer, contudo, que a populao j havia

    sido objeto de intervenes polticas em outros perodos histricos, mas sublinha que h

    uma abordagem caracterstica do problema no sculo XVIII, na Europa (AVELINO, 2011).

    Na Idade Mdia, o exerccio de poder estava fundamentado sobre a sabedoria e a

    verdade do texto religioso. Na passagem para os Estados Modernos, o poder do Soberano

    torna-se central, e o exerccio de poder para alm de ser orientado pela sabedoria

    religiosa, tambm incorpora a sabedoria do Prncipe, que por sua vez vai paulatinamente

  • 26

    dando lugar a uma nova racionalidade governamental, cada vez mais baseada nos

    problemas do mercado, da populao, e da economia (IDEM).

    Nas sociedades ocidentais sob o regime da soberania, o poder funciona

    principalmente como um mecanismo de subtrao das riquezas e da vida, portanto, um

    poder negativo e restritivo, em que o soberano pode matar para fazer valer seu poder.

    Trata-se, enfim, de um poder de fazer morrer e deixar viver. A partir das transformaes

    na racionalidade governamental, que representa uma mudana geral no regime de poder,

    as figuras da vida e da morte ganham novos contornos, e o poder passa a funcionar

    predominantemente na base da incitao, do reforo, do controle, da vigilncia, visando,

    em suma, a otimizao das foras que ele submete (PELBART, 2011, p. 56).

    As transformaes do cenrio econmico e a emergncia da populao como um

    problema de governo foram condies de possibilidade para o estabelecimento de uma

    nova modalidade de exerccio do poder. Do lado do indivduo, mecanismos disciplinares

    que incidem sobre o corpo, com vistas a produzir utilidade econmica e docilidade

    poltica - opera uma ortopedia corporal que individualiza; do lado da populao, uma

    srie de intervenes e controles reguladores sobre a vida em sua dimenso biolgica -

    doravante chamados de dispositivos de segurana.

    Em ambos, observa-se uma gesto calculada da vida que se d por uma conjuno

    de tecnologias que permite a um s tempo controlar a ordem disciplinar do corpo e os

    acontecimentos aleatrios de uma multiplicidade biolgica (FOUCAULT, 2005, p. 302).

    [...] no sculo XVIII, o que interessante, em primeiro lugar, uma

    generalizao destes problemas: todos os aspectos da populao comeam a

    ser levados em conta (epidemias, condies de habitat, de higiene etc.) e a se

    integrar no interior de um problema central. Em segundo lugar, tm-se,

    correlatos a este problema, novos tipos de saber: aparecimento da demografia,

    observaes sobre a repartio das epidemias, inquritos sobre as amas de leite

    e as condies de aleitamento. Em terceiro lugar, o estabelecimento de

    aparelhos de poder que permitiam no somente a observao, mas a

    interveno direta e manipulao de tudo isto. Eu diria que neste momento

    comea algo que se pode chamar de poder sobre a vida, enquanto antes s

    havia vagas incitaes descontnuas para modificar uma situao que no se

    conhecia bem. (FOUCAULT, 1979a, p. 275)

  • 27

    Apesar de Foucault reconhecer uma mutao dos dispositivos de poder a partir do

    desenvolvimento das tecnologias biopolticas, ele afirma que no se trata da substituio

    dos mecanismos jurdicos e disciplinares pelos de segurana, mas sim de uma

    reorganizao do sistema de correlaes entre esses mecanismos. Dito de outro modo a

    interdio da lei e a regulamentao das disciplinas passam a operar conforme as

    regularidades biopolticas no interior de uma sociedade de normalizao7 (FOUCAULT,

    2008a).

    E tais objetivos eram perseguidos atravs da formao de uma rede institucional

    complexa, formada tanto por aparelhos do Estado, quanto pelos empreendimentos

    privados e entidades filantrpicas; pela medicina (seja de iniciativa privada ou pblica),

    pela educao, e tambm pelas famlias.

    Governamentalidade, poder pastoral e produo de subjetividade

    Com Foucault, vemos um tipo de poder, individualizante e totalizante, que se

    alastrou por todo o corpo social ao encontrar apoio em uma diversidade de prticas e

    instituies. A gesto das multiplicidades exige um saber, pois o bom governo depende

    do conhecimento daquilo que se governa, ou dito de outro modo, da produo de uma

    verdade sobre aquilo que se governa.

    7 Se a norma e o normal surgem como exigncias de filiao a um corpo social que se quer homogneo no

    interior das sociedades disciplinares, industriais (FOUCAULT, 1975), nas sociedades de segurana, o problema maior como realizar a gesto das anormalidades. O que fundamental e primeiro nos dispositivos disciplinares no o normal e o anormal, mas a norma - e neste caso Foucault prefere falar em normao. A disciplina tem por objetivo enquadrar na norma, no modelo, e o normal aquele capaz de se conformar norma. A disciplina funciona segundo uma lgica centrpeta e prescritiva, de distribuio segundo um sistema de legalidade que regulamenta sobre o que permitido, isolando, classificando, adestrando. No caso dos mecanismos de segurana, prprios da gesto biopoltica das populaes, em primeiro vem o normal ou a identificao das normalidades, de onde deriva a norma. O normal aqui no identificado em relao a uma norma preestabelecida, mas sim atravs de alguns procedimentos: a)levantamento e clculo dos riscos e probabilidades, com o consequente desenvolvimento da noo de perigo como risco diferenciado, b) anlise de caso tomando um acontecimento localizado como referncia para analisar um fenmeno que atinge uma dada parcela da populao, c) identificao da crise quando se d a multiplicao de certos casos e escalada do perigo, e d) a produo de diferentes curvas de normalidade. Os dispositivos biopolticos inserem os fenmenos em sries de acontecimentos provveis, funcionando num movimento de centrifugao: sem cessar so integrados elementos novos para que se possa observar e conhecer suas regularidades, e a partir da produzir um conhecimento sobre seu funcionamento e desenvolver novas tecnologias de gesto. (FOUCAULT, 2008a).

  • 28

    Paralelo a essas mutaes no exerccio do poder, Foucault (2008a, 2008b, 2012a)

    identifica o aparecimento de uma nova racionalidade governamental a partir do sculo

    XVI, em que a questo do governo passa a ser central: tornava-se imperativo definir uma

    forma de governo especfico, prpria ao Estado8, que dever servir para o trato com a

    coisa pblica.

    por meio de um Estado de Polcia9, instncia administrativa que se volta para

    promover sade e bem-estar populao, para assegurar a circulao de mercadorias e

    pessoas, e garantir obedincia, que o Estado intervm e maximiza seu alcance sobre a

    populao (FOUCAULT, 2008a, 2012c).

    Foucault (2008a) forja o termo governamentalidade para se referir ao conjunto de

    instituies, procedimentos e de prticas que permitem exercer uma forma bem

    especfica de poder sobre a populao, acompanhados do desenvolvimento de uma

    variedade de aparelhos especficos de governo, de um lado, de uma srie de saberes, de

    outro. possvel falar, a partir de ento, de uma governamentalizao do Estado ou de

    estatizao das governamentalidades, como expresso de uma estatizao de

    determinadas prticas de governo.

    8 importante mencionar que a noo de governo, conforme trabalhada por Foucault (2008a, 2008b), no

    se confunde com uma prtica meramente administrativa e burocrtica que tem por objeto a unidade poltica do Estado ou um territrio, como geralmente o termo designado. O tema do governo revisitado em suas acepes anteriores clssica concepo que o reduz finalidade do Estado administrativo. Nos seus estudos sobre as artes de governar, o autor atenta para os diferentes modos que a noo de governo empregada desde o sculo XVI, poca em que o governo aparece como problema terico e prtico em diferentes instncias. Foucault (IDEM) identifica o tema da conduo das condutas numa srie de publicaes no religiosas, em textos tericos que se ocupavam em examinar a arte poltica de governar, alm de realizarem uma reviso inclusive da prpria funo do soberano. Se Maquiavel escreve O Prncipe (1513), que trata essencialmente da questo do principado como uma relao de exterioridade com os sditos colocando como problema a manuteno do seu poder, outros textos aparecem refletindo a questo do governo sob perspectivas diferentes. Por exemplo, o de Guillaume, que pensa as artes de governo na sua multiplicidade, ou seja, governar no como uma atribuio exclusiva do Estado, mas como prtica que se d em diferentes esferas (famlia, igreja, escola, etc.). Foucault tambm cita outro terico, Franois La Mothe Le Vayer, que sugere trs tipos de governo: o governo de si (moral), o governo da famlia (economia) e o governo do Estado (poltica), defendendo que haveria uma relao de continuidade entre eles. Trata-se, portanto, de uma noo de governo que diz de uma diversidade de formas de governar, entre as quais se podem identificar o governo do Estado, o governo da famlia, ou mesmo o governo de si, conforme analisa Foucault. 9 O termo polcia, no sculo XVI, referia-se uma estratgia de governo que atende necessidade do

    soberano garantir paz e evitar guerras civis, paralelamente aos dispositivos diplomticos, que cuidavam das fronteiras.

  • 29

    [...] um Estado que j no essencialmente definido por sua territorialidade,

    pela superfcie ocupada, mas por uma massa: a massa da populao, com seu

    volume, sua densidade, com, claro, o territrio no qual ela se estende, mas

    que de certo modo no mais que um componente seu. E esse Estado de

    governo, que tem essencialmente por objeto a populao e que se refere e

    utiliza a instrumentao do saber econmico corresponderia a uma sociedade

    controlada pelos dispositivos de segurana. (FOUCAULT 2008a, p. 146)

    Se at o sculo XVI a arte de governar estava ligada ao modelo absolutista,

    monrquico e territorial, no sculo XVII vai se estabelecer aquilo que Foucault chamar

    de Razo de Estado10, em que se governa segundo as regras que lhes so prprias. O

    problema do governo passa a ser tratado para alm da manuteno da soberania, mesmo

    que ainda submetido ao poder soberano11. A prtica governamental reconhecida como

    a arte de exercer o poder segundo uma finalidade, um fim adequado; um poder que se

    encarrega da disposio das coisas, de conduzi-las, da relao dos homens com outros

    homens e as coisas (FOUCAULT, 2008a, 2008b).

    O abandono das concepes teolgicas, jurdico-morais na explicao de

    determinados fenmenos12, naturais ou sociais, deu lugar ao estudo dos fatores que

    concorriam para a sua ocorrncia e busca da sua natureza, a fim de que fosse possvel

    desenvolver mecanismos de gesto dos acontecimentos. Conhecer a regularidade dos

    fenmenos, a sua naturalidade, comea a ser o princpio de um bom governo: o

    10

    Qual ser a ratio status do soberano? Foucault (2008a, 2012c) cita alguns autores da poca, como o jesuta italiano Giovanni Botero (1540-1617), que propunha uma definio de Estado como a dominao precisa sobre os povos, e a Razo de Estado como o conhecimento dos meios prprios para se fundar, conservar e fortalecer essa dominao; e tambm Giovanni Antonio Palazzo, que em 1604, props uma conceituao de Razo como meio de conhecimento que permite a vontade regular-se segundo a prpria cincia das coisas, e de Estado como a juno de quatro elementos: domnio, jurisdio, condio devida e qualidade de uma coisa. Governar, segundo uma Razo de Estado, um ato contnuo de criao e conservao do Estado. 11

    O exerccio de poder sobre os sditos passou a se sustentar segundo nova racionalidade, combinando vigilncia das condutas individuais e controle das atividades econmicas e das riquezas, por meio do Estado de Polcia. Enquanto tcnica de governo do Estado, designava o conjunto de agentes pblicos que atuava no interior de uma comunidade para aumentar seu poder e exercer sua potncia em toda sua amplido (VON JUSTI, 1756, apud FOUCAULT, 2012c, p. 375) por meio da promoo do bem-estar e da felicidade da populao. 12

    Foucault exemplifica com o problema da escassez de alimentos, que at a primeira metade do sculo XVIII era tratada como m sorte ou castigo divino. No interior de um sistema baseado em mecanismos jurdico-disciplinares, a tentativa de enfrentar o problema era buscando prevenir a escassez atravs da regulao do comrcio por meio de prticas de vigilncia, e limitando a estocagem de alimentos, aplicando-se um sistema de legalidade excepcional.

  • 30

    problema da segurana torna-se preocupao poltica no momento em que os Estados

    tiveram de lidar com certos tipos de fenmenos que aconteciam aleatoriamente.

    A partir do final do sculo XVII e primrdios do sculo XVIII acontece uma

    transformao da racionalidade governamental, que se desloca da Razo de Estado onde

    havia um modo de governar interventivo, para o que Foucault (2008b) chamar de Razo

    Governamental Liberal, baseado na autolimitao interna do governo. As prticas de

    governo deixam de ser postas em questo a partir de referncias externas por exemplo,

    pelo direito que coloca em xeque os abusos do soberano , mas de acordo com os efeitos

    do prprio ato de governar, ou seja, h uma regulao interna da prpria racionalidade

    governamental. O estatuto de verdade sobre a realidade dado pela economia poltica13

    que assumiu o lugar de inteligibilidade do governo.

    Com base neste princpio possvel identificar a emergncia das racionalidades

    governamentais como imanente ao desenvolvimento da Estatstica ou Aritmtica Poltica.

    Esta cincia poltica busca revelar a regularidade prpria dos acontecimentos e das

    populaes, que devero ser calculadas, reguladas e eventualmente modificadas

    (FOUCAULT, 2012c).

    Segundo as anlises de Foucault (2008a, 2008b), h um desbloqueio histrico

    desta nova arte de governar entre os sculos XVII e XVIII em funo do aumento da

    produo agrcola e abundncia monetria. O problema do governo passa a ser refletido

    para alm da manuteno do poder soberano, agora alicerado numa economia poltica

    que se desenvolvia, favorecendo a emergncia de um Estado administrativo, marcado

    pelas regulamentaes e disciplinas. Com o pice do mercantilismo e a expanso

    demogrfica, coloca-se um novo problema para o Estado: a gesto da populao.

    A Razo Governamental Liberal, no entanto, no deve ser tomada em oposio

    Razo de Estado que a antecede, mas como uma inflexo no interior da prpria

    racionalidade governamental, uma vez que noo prpria da Razo de Estado mantm-

    se associadas a ideia de utilidade e de segurana. 13

    Uma certa noo de uma economia poltica se estabelece: a economia, que era pensada como um tipo de governo especfico o governo da famlia ou o governo da casa torna-se o modelo por excelncia de governo poltico. Economia poltica ser o estudo da natureza das coisas, da regularidade dos fenmenos, enquanto a Estatstica aparece como um instrumento privilegiado para o desenvolvimento das governamentalidades possvel afirmar, portanto, que h uma relao estreita entre o problema da populao como finalidade de governo e o desenvolvimento de uma racionalidade cientfica (FOUCAULT, 1989, 2008a, 2012c).

  • 31

    Um dispositivo de segurana s poder funcionar bem, em todo caso aquele de

    que lhes falei hoje, justamente se lhe for dado certa coisa que a liberdade, no

    sentido moderno [que essa palavra]* adquire no sculo XVIII: no mais as

    franquias e os privilgios vinculados a uma pessoa, mas a possibilidade de

    movimento, de deslocamento, processo de circulao tanto das pessoas como

    das coisas. E essa liberdade de circulao, no sentido lato do termo, essa

    faculdade de circulao que devemos entender, penso eu, pela palavra

    liberdade, e compreende-la como sendo uma das faces, um dos aspectos, urma

    das dimenses da implantao dos dispositivos de segurana.

    A ideia de um governo dos homens que pensaria antes de mais nada e

    fundamentalmente na natureza das coisas, e no mais na natureza m dos

    homens, a ideia de uma administrao das coisas que pensaria antes de mais

    nada na liberdade dos homens, no que eles querem fazer, no que tm interesse

    de fazer, no que eles contam fazer, tudo isso so elementos correlativos. Uma

    fsica do poder ou um poder que se pensa como ao fsica no elemento da

    natureza e um poder que se pensa como regulao que s pode se efetuar

    atravs de e apoiando-se na liberdade de cada um, creio que isso a uma coisa

    absolutamente fundamental. No uma ideologia, no propriamente, no

    fundamentalmente, no antes de mais nada uma ideologia. primeiramente

    e antes de tudo uma tecnologia de poder, em todo caso nesse sentido que

    podemos l-lo. (FOUCAULT, 2008a, p. 64)

    Se a liberdade das coisas e das pessoas condio para o bom governo do Estado,

    o liberalismo pode ser tomado, ento, como prtica de produo, gesto e organizao

    das liberdades. Os dispositivos de segurana regulam o fluxo das coisas e das pessoas, e o

    liberalismo aparece como prtica governamental fundamentada numa economia poltica

    que visa fazer funcionar essa liberdade, para que os indivduos produzam e consumam

    suficientemente.

    Em resumo, o Estado se consolida entre os sculos XVII e XVIII como unidade

    poltico-administrativa, e a economia poltica se estabelece como princpio de

    compreenso do real, daquilo que , mas tambm daquilo que dever ser critrio

    normativo e regulador da realidade.

    Foucault (2012c) identifica trs pilares que aliceram a constituio dos Estados

    Modernos: as tcnicas diplomtico-militares como meios de proteger-se contra os

  • 32

    ataques externos, a polcia, que diz respeito s prticas que objetivam o fortalecimento

    interno do Estado atravs da interveno direta deste sobre sua populao para

    maximizar a fora dos homens, e o poder pastoral como modelo de governar condutas.

    O poder pastoral, ou pastorado, uma arte de governar que encerra aspectos

    individualizantes e totalizantes do poder. Segundo os escritos hebraico-cristos estudados

    por Foucault (2012a), o pastorado caracterizava-se por ser um poder que no se exercia

    sobre um territrio - como o caso do modelo grego de governo da polis -, mas em torno

    de uma multiplicidade em movimento. A imagem trabalhada por Foucault a do pastor-

    guia e seu rebanho que se desloca: o pastor zela pelo conjunto e por cada um, numa

    viglia constante, para assegurar a salvao individual no outro mundo, nem que isso

    represente o seu sacrifcio ou de qualquer membro do rebanho.

    Uma das razes que torna possvel relacionar o modo de governo das condutas da

    pastoral crist14 com o chamado Estado Providncia15 o problema da obedincia,

    presente no exerccio de poder governamental, nas prticas de governo das populaes,

    que se estabelecem em ltima instncia como governo dos indivduos por sua prpria

    verdade (FOUCAULT, 2012c, p. 363).

    Alm disso, possvel reconhecer na passagem do poder soberano aos Estados

    governamentalizados, uma ligao entre modo de exercer o poder a certas formas de

    individualizao e totalizao, bem como a processos de subjetivao por meio da

    produo de uma verdade.

    No entanto, ainda que seja possvel identificar os Estados como uma nova forma

    do poder pastoral, Foucault salienta que h diferenas entre seus objetivos. Enquanto o

    poder pastoral tinha por finalidade conduzir os indivduos para a salvao em outro

    14

    O modo de governar condutas tpico da pastoral crist pressupe: a) a formao de laos morais entre o pastor e o rebanho, o que significava que o pastor deveria dar conta de cada uma das aes dos membros de seu rebanho; b) o lao entre pastor e rebanho de obedincia submisso pessoal, concerne a uma relao de dependncia individual e completa, ou seja, a obedincia (...) no , como para os gregos, um meio provisrio para alcanar um fim, mas antes um fim em si mesmo; c) que haja uma forma de conhecimento particular do pastor sobre cada um dos membros do rebanho, que era garantido por meio da incorporao, no sem modificaes, de duas prticas caras cultura helnica: o exame de conscincia e a direo de conscincia, operadas por meio da confisso; d) que a ascese crist atinja o objetivo da mortificao, uma renncia do indivduo a si e a este mundo, uma espcie de morte cotidiana (FOUCAULT, 2012a, p. 360-362). 15

    Para Foucault (2012a), uma das numerosas reaparies do delicado ajustamento entre poder poltico exercido sobre sujeitos civis e o poder pastoral que se exerce sobre indivduos vivos (p.359)

  • 33

    mundo, o problema dos Estados Modernos ser assegur-la imediatamente (FOUCAULT,

    1995).

    Se a gesto das multiplicidades conforme o princpio pastoral exige um saber, pois

    o bom governo depende do conhecimento daquilo que se governa, por outro lado, a

    formao do Estado Liberal, que tem como fundamento a lgica do contrato social, s se

    efetiva a partir do momento em que se produziram subjetividades obedientes. Ou seja,

    desde a governamentalizao dos Estados, a produo de racionalidades

    suficientemente obedientes aos objetivos do poder um problema poltico

    historicamente importante (AVELINO, 2011, p. 89).

    Paradoxos do liberalismo: liberdades e seguranas

    Tomando aquele mesmo contexto de transformaes das artes de governar do

    Estado, foi em torno da figura do assalariado que Castel procedeu a sua genealogia. Diz

    Castel (1978) que o sculo XVIII descobriu a relao entre riqueza e trabalho, o que

    reposiciona os considerados indigentes na estrutura da sociedade, num tempo em que a

    Revoluo Francesa romperia com o sistema de privilgios do clero e da nobreza,

    instaurando a sociedade liberal contratual e fundando uma nova ordem jurdico-poltica

    baseada na igual soberania dos indivduos, com impactos em todo continente europeu.

    Se nas sociedades pr-industriais a condio de assalariado era considerada

    indigna, com a industrializao h uma nova inscrio do trabalhador na estrutura social,

    em torno da figura do assalariado que a vida social passou a se organizar (IDEM).

    Todavia, havia aqueles que no se enquadravam na nova ordem econmica de produo.

    A nova organizao de um mercado de trabalho, fundamentado na ideia de venda da

    fora de trabalho pelo indivduo livre, no garante a absoro de todos aqueles que

    viviam em condies de misria. Pelo contrrio, diz Castel cria ele prprio [o mercado de

    trabalho] a indigncia, pela poltica de baixos salrios, a constituio de uma faixa de

    desemprego, a frequncia das crises econmicas, etc. (1978, p. 121-122), afinal:

    O princpio do livre acesso ao trabalho , de fato, o quadro legal da explorao

    operria, e no o livre acesso de todos aos meios de subsistncia. Que a riqueza

    esteja fundada no trabalho significa, na realidade, que o rico tem necessidade

  • 34

    do pobre e que dele deve poder dispor para assegurar seu prprio lucro.

    (CASTEL, 1978, p. 121)

    A proteo e a segurana dos indivduos16 deixam de ser garantidas por sua

    pertena a uma comunidade (proteo de proximidade) - comum nas sociedades pr-

    industriais -, e passam a depender principalmente da propriedade individual. Os que no

    possuem propriedade devem alcan-la pela venda de sua fora de trabalho: o salrio

    torna-se um tipo de propriedade privada (CASTEL, 2005, 1998).

    Uma nova paisagem da assistncia comea a se estabelecer diante das condies

    distintas de acesso ao trabalho que a ordem de produo econmica impe. Se por um

    lado, era preciso promover fora de trabalho nas indstrias e a produtividade destes

    trabalhadores, de outro era preciso garantir a paz e a ordem na sociedade. A misria

    identificada como potencializadora de revoltas e motins, no injustia, j que uma

    consequncia necessria do funcionamento da mquina social. Mas, representa, no

    obstante, um mal e um perigo (CASTEL, 1978, p. 125).

    A defesa da propriedade privada e a busca do lucro so os fundamentos da

    ordem social e no poderiam ser colocados em questo. Portanto, nenhum

    direito dos pobres que possa contradizer as leis do mercado, nada de "caridade

    legal", em nome da qual os mais desmunidos possam reivindicar o que s

    exigvel como contrapartida de uma troca. Mas, se a desigualdade das

    condies uma justa consequncia do crescimento das sociedades, preciso

    controlar seus efeitos, a fim de que ela no atinja um limiar de ruptura, a partir

    do qual, os sacrificados se precipitariam em solues extremas, declarando a

    guerra social. (IDEM, grifos meus).

    16

    Castel (1998), fala de sociabilidade primria e secundria para diferenciar os modos de solucionar problemas - individuais ou coletivos - em diferentes sociedades. Na sociabilidade primria, caracterizada pela existncia de redes de interdependncia e pertencimento, e organizadas segundo um conjunto de regras e tradies, possvel identificar uma forma de engajamento coletivo em torno das necessidades que se impem ao grupo - sem mediao institucional. A sociabilidade secundria, por sua vez, marcada pela forma de proteo que ofertada pelo Estado, e supe a participao em grupos especficos e uma especializao das atividades e das mediaes institucionais, modelo tpico das sociedades modernas ps-industriais. Castel assinala especialmente a exploso demogrfica e crescimento das cidades e seus efeitos de cronificao da pobreza e desterritorializao do trabalho como fatores de desproteo, decorrentes da nova ordem econmica que se instaurava. Ver tambm: CASTEL, 2005.

  • 35

    Enfim, os pobres e os improdutivos de toda ordem precisam ser gerenciados, e um

    campo de gesto da misria reservado no conjunto da sociedade: o social.

    Para Castel (1998), o social a expresso da divergncia entre o modelo

    econmico liberal que comea a se estabelecer e a nova conjuntura jurdico-poltica

    inaugurada no fim do sculo XVIII, baseada na igualdade de direitos. Assim, o social

    passou a ser definido e considerado como campo e objeto de intervenes do Estado, no

    intuito de responder ao hiato entre a nova organizao poltica e o sistema econmico

    (MACERATA, 2010).

    A gesto da pobreza, at ento apoiada principalmente nas prticas de caridade e

    assistncia clerical, ou por meio do sequestro macio dos mendigos e improdutivos, e dos

    desviantes de toda ordem, atravs dos grandes internamentos, torna-se cada vez mais

    insuficiente e com alcance limitado, quando no muito oneroso para o Estado, diante do

    aumento da misria da populao.

    Dado que a nova configurao econmica incidiu na precarizao das redes

    primrias de proteo, e que nem todos possuam condies de garantir suas seguranas

    pela via do trabalho, os Estados europeus modernos institucionalizam a proteo atravs

    de mecanismos que asseguram, minimamente, os recursos necessrios para que a

    populao pobre, no represente um perigo ordem social.

    Castel (1998) identifica o desenvolvimento daquilo que ele chamar de gesto

    racional da indigncia no final do sculo XVIII, a partir da construo de uma rede

    institucional social-assistencial, sustentada numa relao que no mais de

    reciprocidade formal e sim de subordinao regulada. Uma relao de tutela. Tal a

    matriz de toda poltica de assistncia (CASTEL, 1979).

    O individuo sujeito autnomo enquanto for capaz de se dedicar a

    intercmbios racionais. Ou ento sua incapacidade de entrar num sistema de

    reciprocidade o isenta de responsabilidade e ele deve ser assistido. (...)

    Familiarismo ou tutelarizao por um mandato pblico, no haver, para ela,

    outra alternativa. (CASTEL, 1979)

    A questo da proteo, enfim, torna-se um problema de governo. Esto postas as

    condies para a institucionalizao do social (MACERATA, 2010) que se deu,

  • 36

    especialmente, pelo desenvolvimento da filantropia em suas diferentes modalidades -

    assistencial e higienista - como desdobramento e refinamento das prticas caritativas

    (DONZELOT, 1980).

    Filantropia , portanto, a estratgia fundamental de gesto e sujeio das massas,

    fundamentada num conjunto de prticas, teorias, saberes e tratados, tanto de

    administrao pblica como de medicina. A assistncia pblica aos indigentes e

    improdutivos torna-se uma questo de polcia e de administrao; passa a ser um dever

    do governo; e at mais, uma necessidade do Estado (CASTEL, 1978, p.119).

    Para Castel, este movimento expressa o paradoxo do liberalismo: as populaes

    liberadas, cada vez mais pauperizadas, agora precisam ser enquadradas, vigiadas e

    domesticadas. Ainda para o autor:

    a liberdade da circulao dos bens e dos homens lhe necessria para a

    obteno dos lucros mximos. Mas, destruindo as territorializaes naturais e

    as relaes sociais orgnicas, ela exige, para a sua prpria sobrevivncia,

    regulaes que contradizem seus princpios.

    Donde, uma segunda linha de recomposio da problemtica da assistncia:

    enquadrar, vigiar e domesticar as prprias populaes "liberadas" e, em

    primeiro lugar, esse exrcito de pobres que o progresso aumenta atravs de seu

    prprio desenvolvimento. Estratgia inversa do enclausuramento, j que se

    trata de submeter as populaes no seu prprio meio, sem arranc-las do

    movimento que elas produzem. (CASTEL, 1978, p.127-128, grifos meus).

    possvel compreender o paradoxo liberal no como uma contradio, mas como

    uma necessria combinao de elementos heterogneos a servio de uma economia

    poltica. Foucault (2010a) mostra, por exemplo, que o estabelecimento do capitalismo

    no produziu a privatizao da prtica mdica, pelo contrrio, estabeleceu as condies

    para sua realizao como uma atividade social, uma prtica direcionada ao corpo social.

    Afinal, o capitalismo:

    [...] socializou um primeiro objeto que foi o corpo enquanto fora de produo,

    enquanto fora de trabalho. (...) O controle da sociedade sobre os indivduos no

    se opera simplesmente pela conscincia, ou pela ideologia, mas comea no

  • 37

    corpo, com o corpo. Foi no biolgico, no somtico, no corporal que, antes de

    tudo, investiu a sociedade capitalista. (FOUCAULT, 1979b, p. 80)

    Castel, por sua vez, localiza as ligaes que o exerccio da medicina estabelecer

    com o Estado, na identificao que se comea a fazer da criminalidade com a loucura,

    pois na medida em que a estrutura contratual da sociedade se generaliza, ela impe a

    rejeio daqueles que no podem entrar no seu jogo. Sociedade liberal e instituio

    totalitria funcionam muito bem como um par dialtico. (CASTEL, 1978, p. 75, grifos

    meus).

    E nesse ponto, Castel esclarece que, quando as instituies totalitrias so

    colocadas sob novas racionalidades cientficas, este deslocamento marca o nascimento da

    medicina social, inspirando uma poltica geral da assistncia.

    Enfim, naquele contexto, tanto Castel (1978) como Foucault (2010a) nos mostram,

    estavam dadas as condies de possibilidade para a ampliao do poder psiquitrico para

    alm das instituies totalitrias.

    At ento, com Foucault (2008a, 2008b) acompanhamos os diferentes tempos e

    funcionamentos da racionalidade governamental apontando para um tipo especfico de

    governamentalidade liberal ligado diretamente produo da verdade, como o quadro

    geral da biopoltica. Em paralelo dialogamos com Castel (1978, 1998), procurando

    compreender a formao do campo social enquanto objeto de governo.

    Com ambos, vimos que, diante da urgncia histrica poltica e econmica de

    governo das populaes, um tipo de poder, individualizante e totalizante, se alastrou por

    todo o corpo social por meio de uma diversidade de prticas e instituies. Agora, o que

    nos interessa localizar a figura da criana no interior dessas prticas, para por em

    evidncia aqui tambm as lgicas tutelares que Castel faz meno quando analisou os

    processos de vulnerabilizao em curso na sociedade liberal.

  • 38

    CAPTULO 2 INSTITUIES DA INFNCIA

    Do governo de crianas e adolescentes

    Como visto, o advento do capitalismo industrial teve impactos na vida das

    pessoas, e fez emergir novos problemas polticos a serem enfrentados pelo Estado, como

    a exploso demogrfica e crescimento das cidades e seus efeitos de cronificao da

    pobreza e desterritorializao do trabalho como fatores de vulnerabilizao (CASTEL,

    1998). Este quadro por sua vez, tensionou o campo social ao produzir desigualdades,

    colocando o Estado diante da problemtica de inocular os efeitos de revolta que a misria

    acentuava.

    Diante do perigo social, mecanismos e estratgias de tutelarizao de

    determinados setores da sociedade, diversas das antigas formas de dominao (que,

    contudo, no desaparecem totalmente) so criados como condio de existncia das

    sociedades baseadas na lgica contratualista, justamente para dar conta daqueles que,

    por uma srie de razes, no poderiam participar do sistema de reciprocidade formal.

    Compem estes setores os pobres que no tinham acesso ao trabalho, os loucos e as

    crianas.

    Nas crianas, em particular, todo um investimento em profilaxia social passa a ser

    depositado, na medida em que se reconhece nesta etapa da vida o momento crucial da

    formao do carter e da preveno dos desvios de toda ordem.

    Podemos afirmar, com Aris (1981), que infncia e criana so conceitos que no

    se confundem, uma vez que as crianas ocuparam, historicamente, o espao social de

    maneiras distintas. Podemos, ento, falar de produo e reproduo dos modos de ser

    criana (VICENTIN, 2005). Somente no decorrer do sculo XVIII que um sentimento de

    infncia toma corpo nas sociedades ocidentais europeias, perodo que tambm a sade

    da populao se torna finalidade poltica.

    O surgimento de um interesse especial pela infncia est atrelado ao lugar central

    que a criana passa a ocupar nas relaes familiares e sociais. Primeiro, no que tange

    conservao da sua sade e educao (entendida no apenas como transmisso de

    conhecimento). E tambm como vigilncia e enquadramento moral, traduzido num modo

  • 39

    de organizao familiar relacionada construo de uma identidade de classe burguesa

    (ARIS, 1981).

    O reconhecimento da particularidade da infncia nas sociedades ocidentais

    modernas foi acompanhado de um intenso investimento psicolgico e preocupaes

    morais de conform-la s normas (VICENTIN, 2005, p. 26). Em torno da criana se

    estabeleceu a medicalizao da famlia e do social e a prtica mdica se expandiu e se

    fortaleceu.

    Ao problema "das crianas" (quer dizer de seu nmero no nascimento e da

    relao natalidade mortalidade) se acrescenta o da "infncia" (isto , da

    sobrevivncia at a idade adulta, das condies fsicas e econmicas desta

    sobrevivncia, dos investimentos necessrios e suficientes para que o perodo

    de desenvolvimento se torne til, em suma, da organizao desta "fase" que

    entendida como especfica e finalizada). No se trata, apenas, de produzir um

    melhor nmero de crianas, mas de gerir convenientemente esta poca da vida.

    (FOUCAULT, 1979, p. 199)

    Naquele mesmo perodo, assinala Foucault, a criana aparece como objeto

    privilegiado das aes do Estado: toda uma preocupao com a sade das crianas, com a

    sua sobrevivncia, comea a se consolidar. Ser preciso investir nesta idade da vida de

    modo a garantir seu bom desenvolvimento.

    Alis, a construo de certa noo de desenvolvimento foi chave naquele perodo

    para o fortalecimento dessas duas reas, atreladas a todo um conjunto de regimes

    disciplinares que aparecero em torno delas. A noo de desenvolvimento diz de um

    modo de compreender o processo prprio da vida biolgica e psicolgica do indivduo,

    segundo o qual possvel comparar os indivduos, separ-los e situ-los em funo de

    uma mdia, que se torna uma espcie de norma. Modalidade de poder disciplinar que foi

    a condio de possibilidade para psiquiatrizao da infncia e a extenso do poder

    psiquitrico para o campo social.

    A criana que apresentasse desvios no seu desenvolvimento seria agora designada

    como anormal: para alm da loucura, a imbecilidade e a idiotia passam a ser domnio

    das cincias psi. (FONSECA, 2002). Nas palavras de Donzelot (1980, p. 121) o lugar da

    psiquiatria infantil toma forma no vazio produzido pela procura de uma convergncia

  • 40

    entre os apetites profilticos dos psiquiatras e as exigncias disciplinares dos aparelhos

    sociais.

    Foucault (2006) descreveu uma empreitada institucional da disciplina em torno

    das famlias no sculo XIX, que chamou de funo-psi, referindo-se organizao de um

    dispositivo disciplinar que vai se ligar, se precipitar onde se produz um hiato na soberania

    familiar (FOUCAULT, 2006, p. 106), ou seja, onde a famlia fracassa na sua funo, uma

    srie de outros dispositivos disciplinares so acionados, calcados nos discursos

    psicolgicos, psiquitricos, psicossociolgicos, etc., emergentes naquele perodo.

    Cada vez que um indivduo julgado incapaz de seguir a disciplina escolar ou a

    disciplina da oficina, ou a do exrcito, no limite da disciplina da priso, a

    funo-psi intervinha. E intervinha com um discurso no qual ela atribua

    lacuna, ao enfraquecimento da famlia, o carter indisciplinvel do indivduo

    (IDEM).

    Donzelot (1980) chamou de Complexo Tutelar o dispositivo formado por prticas

    de caridade, tecnologias filantrpicas e de assistncia mdico-higienista, sustentadas pela

    autoridade judiciria ao mesmo tempo em que a fortalecia. Esse dispositivo representou

    uma ampliao da tutela da infncia enquanto objeto de intervenes sociais.

    A famlia, por sua vez, se concentrou, se limitou, se intensificou, ao ser inserida

    nos cdigos, incorporada aos discursos morais, jurdicos e cientficos. Foi necessrio

    delimitar a famlia: reduzida s relaes afetivo-sexuais baseadas no parentesco e filiao,

    com funo bastante explcita: manuteno dos sistemas disciplinares. (FOUCAULT, 2006,

    p. 103). Alvo privilegiado das prticas filantrpicas assistenciais e higienistas nos sculos

    XVIII e XIX, ela foi colocada num jogo foras que, ao mesmo tempo entendida como um

    ponto de apoio para o controle das massas na esfera pblica e como um agente

    recuperador das normas estatais no mbito privado (DONZELOT, 1980).

    A seguir, consideraremos alguns aspectos da histria da assistncia s crianas e

    adolescentes no Brasil, na tentativa de compreender como certos mecanismos

    disciplinares e biopolticos passaram a operar por aqui.

  • 41

    A assistncia infncia no Brasil

    At o sculo XVIII, a infncia no chegava a ser uma questo que o Estado

    brasileiro tinha que se ocupar, sendo preocupao de mbito privado, familiar e religioso.

    As primeiras polticas de Estado direcionadas a esta populao dirigiu-se s crianas

    abandonadas. A Roda dos Expostos pode ser considerada a primeira forma de assistncia

    oficial dirigida a crianas no Brasil, que remonta ao perodo coloni