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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO FACULDADE DE EDUCAÇÃO THELMA CADEMARTORI FIGUEIREDO DE OLIVEIRA É tudo faz-de-conta: as relações entre o poder e o currículo de História em uma sala de aula da escola pública. São Paulo 2008

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Dissertação de mestrado realizada na FEUSP - Área Ensino de História, Currículo - Orientadora: Profa. Katia Abud - Defesa abril/2008

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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULOFACULDADE DE EDUCAÇÃO

THELMA CADEMARTORI FIGUEIREDO DE OLIVEIRA

É tudo faz-de-conta: as relações entre o poder e o currículo de História em uma sala de aula da escola pública.

São Paulo2008

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THELMA CADEMARTORI FIGUEIREDO DE OLIVEIRA

É tudo faz-de-conta: as relações entre o poder e o currículo de História em uma sala de aula da escola pública

Dissertação apresentada ao programa de pós-graduação da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo para obtenção do título de Mestre em Educação.

Área de concentração: Didática, Teorias de Ensino e Práticas EscolaresOrientadora: Profa. Dra. Kátia Maria Abud

São Paulo2008

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FOLHA DE APROVAÇÃO

Thelma Cademartori Figueiredo de OliveiraÉ tudo faz-de-conta: as relações entre o poder e o currículo de História em uma sala de aula da escola pública.

Dissertação apresentada ao programa de pós-graduação da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo para obtenção do título de Mestre em Educação.Área de concentração: Didática, Teorias de Ensino e Práticas EscolaresOrientadora: Profa. Dra. Kátia Maria Abud

Aprovado em:

Banca Examinadora

Prof. Dr.__________________________________________________________________

Instituição:______________________ Assinatura:_________________________________

Prof. Dr.__________________________________________________________________

Instituição:______________________ Assinatura:_________________________________

Prof. Dr.__________________________________________________________________

Instituição:______________________ Assinatura:_________________________________

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... entro eu também em uma vita nuova, marcada agora por este novo lugar, esta nova hospitalidade. Tento

assim deixar-me levar pela força de toda a vida viva: o esquecimento. Há uma idade em que se ensina o

que se sabe; mas surge em seguida uma outra em que se ensina o que não se sabe: a isso se chama

procurar. Chega agora, talvez, a idade de uma outra experiência: a de desaprender, de deixar germinar a

mudança imprevisível que o esquecimento impõe à sedimentação dos saberes, das culturas, das crenças

que atravessamos. Essa experiência tem, creio eu, um nome ilustre e fora de moda que ousarei aqui

arrebatar, sem complexos, à sua etimologia: Sapientia: nenhum poder, um pouco de saber, um pouco de

sabedoria e o máximo de sabor possível.

Roland Barthes

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DEDICATÓRIA

Aos meus pais, por todos os inícios.

Às minhas filhas, pela continuação dos sonhos.

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AGRADECIMENTOS

Embora acredite que toda a escrita seja um espelho de seu autor, num trabalho acadêmico são poucas as oportunidades de uma expressão de si mais acentuada. Assim sendo, tomo a liberdade de, neste espaço, ser bastante pessoal, talvez até incomodamente pessoal para os cânones acadêmicos. Entretanto, é um direito que considero conquistado depois de enfrentar as inúmeras dificuldades da escrita científica e pelo qual assumo todos os riscos. Também é uma oportunidade de um agradecimento sincero, no qual me coloco por inteira, sem os filtros do academicismo.

Profa. Kátia Abud, obrigada pela confiança, pela orientação e pela amizade em todas as etapas dessa jornada. Mesmo nos meus momentos de delírio teórico, você teve a paciência de me trazer para a realidade do que tinha de ser alcançado. Todos os apontamentos foram justos e necessários. A convivência com você me fez aprender muito e admirá-la ainda mais. Obrigada pela amizade e por ser tão generosa como orientadora.

Profa. Ernesta Zamboni e prof. Julio Groppa Aquino, foi muito importante e definidor o momento da qualificação, graças aos comentários significativos com os quais vocês me presentearam. Eles desvendaram caminhos e traçaram rumos não previstos no início deste estudo, mas que trouxeram o inusitado e o desafiador. Muito obrigada.

Prof. Nelson Schapochnik, obrigada por permitir que eu participasse da disciplina de Metodologia do Ensino de História, através do projeto PAE. Além disso, o texto do Hébrard que você me cedeu foi o que permitiu o pontapé inicial dessa escritura, de parto tão complicado quanto demorado para começar.

Prof. Jorge Ramos do Ó, as suas aulas e seminários foram inspiradores de uma nova visão do que pode ser a escrita científica e essa perspectiva me acompanhou durante o caminho. Agradeço muito.

Profa. Dislane Zerbinatti, amiga e grande companheira de viagem, obrigada pelas conversas em que aprendo muito, pela amizade e pelo companheirismo de várias horas.

Colegas do grupo de orientação André Chaves, Milton Joeri, Ronaldo Alves, Elizabeth Salgado, sou grata pelo apoio amigo que vocês ofereceram a essa estrangeira.Murilo Rezende, Norberto Soares, Regina Oliveira, colegas do grupo e também de outras paragens, que bom contar com a amizade de vocês, com as conversas sérias e as engraçadas e com as nossas socializações (que também é preciso).

Daniel Canecchio, o seu conhecimento aliado a um coração generoso tornou possível a confecção de vários pontos desse trabalho. Passando pelo mesmo momento de elaborar a sua dissertação, ainda encontrou o tempo para ajudar uma amiga. Luciene Souza, a literatura e as conversas de conterrâneas que você me ofereceu foram sempre de grande ajuda. Valeu! Aos dois, muito obrigada.

Dalila Damião, agradeço pela indicação bibliográfica no início do trabalho. Ajudou bastante.

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Rafael Scavone, Rafael Bennemann, Rafael Schwalm e Rodrigo Graef, amigos e suporte técnico insuperáveis. Valeu por tudo.

Flávio Pietrobelli, obrigada pelo apoio e pelo interesse.

Profa. Sonia Bercito e Profa. Tereza Van Acker, uma me apresentou à outra e as duas me apresentaram o mundo acadêmico paulista. Não vou esquecer. É muito bom tê-las como amigas. Obrigada, meninas.

Prof. Anderson Z. Vargas e Prof. Benito B. Schmidt, lembro muitas vezes da nossa convivência em Porto Alegre, que deixou bases sólidas que ainda agora utilizo nessa retomada acadêmica. Sempre admirei as pessoas que vocês são e hoje os professores e pesquisadores que vocês se tornaram.

Maristel, Adalberto e Carolina Pereira Nogueira, a nossa amizade de tantos anos é parte do que sou. Mesmo distantes vocês compõem a minha história.

Alberto F. de Oliveira e Irlandina F. de Oliveira, obrigada por fornecerem todas as minhas bases e pela compreensão em relação a tudo o que não pude fazer nos últimos meses. Mãe, obrigada pela versão do resumo para o inglês.

Ildo e pessoal do grupo de trabalho, conseguimos! Que trajetória, amigos. Chegamos ao final, ou estamos iniciando. O fato é que sem vocês nada disso seria possível. Que venham os próximos desafios.

Patcha e Maína, obrigada pelo suporte técnico e pelas correções de português, estilo e normas, feito com tanto desprendimento. Sedimentaram a raiz! É isso.Porém, como agradecer pelos anos de alegria e companheirismo, pelos momentos em que choramos juntas e por aqueles em que voltamos a conseguir sorrir? Ou pelo aprendizado que vocês me proporcionam dia a dia? Inclusive o de saber mais de mim pelos olhos de vocês. Não existem gestos nem palavras suficientes. Até porque a lição maior que me proporcionaram não tem como ser mensurada, que é a de aprender a amar, profunda e incondicionalmente. Devo também agradecer a uma força maior que permitiu que vocês, como se apenas companheiras não bastasse, sejam ainda minhas filhas.Por tudo isso, e na falta da palavra suficiente, obrigada, meus amores.(a ordem de apresentação foi pelo nascimento, Maína)

Patucha (in memorian), é muito bom saber que o amor não desaparece com a distância física.

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RESUMO

OLIVEIRA. T. C. F. É tudo faz-de-conta: as relações entre o poder e o currículo de História em uma sala de aula da escola pública. 2008. 128 f. Dissertação (Mestrado) - Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2008.

Esse trabalho parte da constatação de que as escolas não conseguem administrar as questões que estão postas no mundo contemporâneo. Há uma grande disparidade entre aquilo que se espera que a escola produza em termos de significação do mundo para o aluno e o que ela tem condições concretas de dar conta, da maneira como está formulada. Nesse contexto, procurou-se averiguar o que se produz em sala de aula a partir do currículo de História. Para isso, buscou-secompreender como funciona esse currículo e que tipo de conhecimento e de relações ele realmente produz, diante da realidade contemporânea complexa e multifacetada. Com esse intuito, foi realizada uma observação de duas salas de aula de uma escola pública estadual de São Paulo. Essa etapa do trabalho foi desenvolvida através de uma pesquisa de campo qualitativa, com inspiração na etnografia. Esse tipo de investigação possibilita a observação do espaço da sala de aula buscando apreender, dentro dos pequenos acontecimentos cotidianos, as diferentes dinâmicas que se desenvolvem no grupo observado. Posteriormente, foi realizada a análise do material coletado através de referências dos autores que se dedicam a estudar a estruturação do ensino de História, assim como das referências das Teorias Críticas e Pós-críticas do currículo. Esse trabalho se caracteriza por um aporte teórico híbrido, que permita dar conta da complexidade das relações que se estabelecem no ensino na atualidade. A pesquisa analisou nessa etapa os cadernos dos alunos, o livro didático utilizado, os discursos em circulação na sala de aula, as teorias acadêmicas e o programa curricular institucional, os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN), tomados como dispositivos curriculares. O que se constatou é que existem muitos currículos em funcionamento em uma sala de aula de História. As suas propostas variam de complexidade, capacidade de aprofundar conteúdos e de dar conta das questões contemporâneas. Porém, o currículo que é utilizado no trabalho com os alunos, nessas salas de aula observadas, se apresenta com um caráter aligeirado e empobrecido em relação aos conteúdos historiográficos. Enquanto os discursos legitimadores sobre a disciplina trazem a permanência da idéia do seu aspecto formativo. Confirmou-se a hipótese inicial da impermeabilidade do currículo de História que é posto em funcionamento nessa sala de aula em relação às propostas acadêmicas e programáticas, no caso, os PCN.

Palavras-chave: Currículo, História, Teorias Críticas, Teorias Pós-críticas, Hibridismo Teórico,Dispositivo, Aligeiramento, Permanências.

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ABSTRACT

OLIVEIRA. T. C. F. It’s all make believe: the relations between the History curriculum and the power in a classroom of a public state school. 2008. 128 f. Dissertation (Master’s degree) -Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2008.

This work begins with the corroboration of that the schools do not get to manage the questions that are put in the contemporary world. There is a great disparity between what we hope the school produces – in terms of signification of the world to the student and what he has the concrete conditions of understand of such a manner it is formulated. In this context, we tried hard to investigate what we can produce in a classroom starting the History curriculum. Then, we tried to comprise how it perform these curriculum and what kind of knowledge and relationship it really produces in front of the contemporary complex and multifaceted reality. With this purpose it was put in practice the observations in two public state schools of São Paulo. That step of the work was developed through a qualitative field research with inspiration in the ethnography. This kind of investigation let us observe the space in the classroom seeking to perceive in the small and daily events – as the distinct dynamics that develops in the group that was watched. After some time later, it was done the analysis of the gathered material by means of the authors that are devoted to study the structure of the History teaching – as well as of the references of the Critical and Post- Critical of the curriculum. This work is characterized by an theoretical and hybrid approach that is able to demonstrate the complexity of the teaching today. The search has analysed at that time the pupil’s notebooks, the didactic books utilized, the speeches in circulation in the schoolrooms, the academic theories and institutional curricular program, the “Parâmetros Curriculares Nacionais” (PCN) (National Curriculum Parameters) – took as curriculum devices. It was proved that there are many curriculums functioning in a schoolroom of History. Their proposals differ of complexity, capacity of deepen their contents and define the contemporary questions. But, the curriculum utilized in the work with the students – in those classrooms observed – presents a superficial and impoverished character in relation to the historiographical contents. While the legitimating speeches about the discipline bring the permanency of the idea of his formative aspect. It was confirmed the initial hypothesis of the impermeability of the curriculum of History that is functioning in this classroom in relation to the academic and programmatic proposals, in this case, the PCN.

Key words: Curriculum, History, Critical Theories, Post-Critical Theories, Theorical Hybridism,Device, Superficiality, Permanency.

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO.......................................................................................................................... 11

1.1 O tema, as perguntas, as possíveis respostas ....................................................................... 11

1.2 Como compreender essas questões: o método .................................................................... 16

1.2.1 A pesquisa de campo .................................................................................................... 16

1.2.2 A Professora e a escola................................................................................................. 17

1.2.3 Algumas considerações de ordem prática .................................................................... 20

1.3 A orientação do olhar: a teoria ............................................................................................ 21

2 CADERNOS............................................................................................................................... 31

3 LIVRO DIDÁTICO.................................................................................................................... 54

4 DISCURSOS DA SALA DE AULA ......................................................................................... 83

5 A TEORIA E OS PROGRAMAS CURRICULARES............................................................. 101

5.1 Histórico da disciplina de História e da noção moderna de currículo ............................... 101

5.1.1 Mas quando se começou a pensar sobre o currículo?................................................. 104

5.1.2 Pesquisas sobre currículo no Brasil ............................................................................ 107

5.2 A questão institucional: os PCN........................................................................................ 111

5.3 Ensino e as teorias da História........................................................................................... 116

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................................... 119

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ........................................................................................ 124

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1 INTRODUÇÃO

1.1 O tema, as perguntas, as possíveis respostas

Tu deves amar os livros, pois nada há que os supere.

Tenho visto todos os ofícios, e quero que ames os livros mais do que à sua mãe.

O artífice, em seu forno, com os dedos como escamas de crocodilos, fede mais do que ovas de peixe.

O carpinteiro é mais cansado que um camponês: seu campo é de madeira e sua enxada de bronze.

O oleiro está sempre no meio do barro, e vive sujo como um porco.

O tecelão tem sempre os joelhos no estômago.

O mensageiro sempre anda no deserto à mercê dos ladrões.

O sapateiro, com seus couros curtidos, é como quem vive entre cadáveres.

Vê, não há profissão sem patrão a não ser para o escriba – ele é o patrão!

Logo, se souberes ler e escrever, boas coisas te virão no futuro!

Não serás como nestas profissões que lhe mostrei, cada uma pior que a outra!

O que te digo durante este caminho é por amor a você!

Aproveita bem cada dia de aula, pois os benefícios serão eternos!

Portanto, agradece a teu pai, que te encaminha para os livros!1

Um texto, tido como jocoso na Antigüidade, mostra (e ironiza) a cantilena da promessa de

um futuro melhor trazido nas asas do conhecimento. É significativo que, para nós, o seu sentido

irônico não fique tão claro, uma vez que ainda se discursa sobre a educação através desse sentido

emancipatório e libertador dos quais ela é, em princípio, a portadora.

Contudo, na atualidade há uma grande disparidade entre aquilo que se espera que a escola

produza em termos de significação do mundo para o aluno e o que ela tem condições concretas de

dar conta, da maneira como está formulada. Os valores nos quais os discursos sobre educação

ainda se baseiam – como o da escola favorecer a autonomia, a independência e a

responsabilidade, contraditoriamente criando regras para adaptar o jovem ao funcionamento da

sociedade – não têm mais uma correspondência direta com o que está estabelecido como os

valores desse mesmo mundo. Desde meados do século XX até hoje, transformações aceleradas

em todos os níveis, político, sócio-econômico e cultural, vêm modificando normas e valores e 1 Texto da antigüidade egípcia, de autor desconhecido, são conselhos de um pai para seu filho proferido a caminho da escola no primeiro dia de aula. Foi bastante copiado nas escolas egípcias como texto para exercícios, com um sentido de sátira bem humorada (BACHA, 1997, p. 31).

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provocando deslocamentos em todas as áreas, sejam as científicas ou aquelas ligadas às práticas

mais cotidianas.

Esses deslocamentos da contemporaneidade provocaram uma desestabilização dos

critérios baseados na razão e na verdade iluministas, criando diferentes perspectivas que parecem

não se encaixar na maior parte dos discursos praticados nas esferas ligadas à educação: meio

acadêmico, meio institucional e mesmo dentro das próprias escolas. Assim, se configuram uma

série de discursos dispersos, com uma coerência aparente (afinal todos falam sobre educação),

mas que, quando convivendo dentro da sala de aula, geram dissonâncias que tornam manifestas

as diferentes redes discursivas que estão ali em choque.

No currículo da disciplina de História também há uma aparente estabilidade, no sentido

em que o consenso em torno do que deve compô-lo situa-se na incorporação das renovações

historiográficas e das atualizações de tópicos contemporâneos através dos temas propostos pelos

Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN). No entanto, na minha prática docente observei que o

aparente consenso dos discursos sobre que conteúdos devem fazer parte do currículo de História,

quando vistos a partir da sala de aula, são pura dispersão e conflito.

Os alunos não compreendem a relevância que as informações transmitidas (na maior parte

do tempo são apenas informações) podem ter para a compreensão do seu cotidiano. E outros

sentidos que a disciplina possa apresentar não são oferecidos pela forma como ela é abordada na

maior parte das salas de aula.

Por outro lado, os professores se encontram paralisados na sua prática diante das muitas

prescrições e exigências a que são submetidos, na maior parte, alheias ao seu verdadeiro ofício,

fazendo com que este acabe se tornando quase tão desprovido de sentido para eles quanto é a

disciplina para os alunos.

Essas dificuldades acompanharam a minha prática docente, assim como de colegas da

área de História na escola em que trabalhei em Porto Alegre, o Colégio Farroupilha, no período

de 1994 a 2000. As discussões em torno desses temas nos levaram a desenvolver um projeto de

modificação do currículo de História da escola, no qual trabalhamos a partir de 1996. As

modificações propostas pelo grupo de cinco professores iniciaram quando alteramos a seqüência

da disciplina, partindo do conteúdo de Pré-história geral e da América na 5ª série, até os temas de

História Contemporânea no 3º ano do Ensino Médio, sem haver retornos ou interrupções.

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A modificação proposta, aparentemente simples, partia de uma série de pressupostos que

foram bastante discutidos entre nós. Para que não houvesse a necessidade de se retornar aos

conteúdos anteriores, se fazia necessário um aprofundamento maior tanto dos conteúdos

trabalhados quanto da metodologia empregada. Optamos por trabalhar com conceitos da área

(Estado, poder, cultura e revolução, entre outros), numa proposta de currículo em espiral, onde

estes fossem constantemente retrabalhados em novos conteúdos, acompanhando a sua

complexidade e a faixa etária dos alunos.

Ao longo dos anos em que atuei nesse projeto, revisando-o e reformulando-o à medida

que a sua prática em sala nos indicava novos caminhos, pude constatar, junto com os demais

colegas, as possibilidades que a disciplina de História oferece quando se dispõe de mais tempo

para o trabalho com cada tema e de uma proposta conceitual que forneça a base para o seu

desenvolvimento. O grupo como um todo observou que o envolvimento dos alunos com a

disciplina aumentou. Percebemos que os seus questionamentos em sala de aula eram mais

consistentes, que demonstravam mais interesse pelas atividades (sendo que algumas eram

propostas por eles) e que levantavam discussões trazidas da sua própria vivência, ou de

conclusões a que chegavam sobre um assunto visto em aula.

Entretanto, apesar da significativa melhora na qualidade do trabalho, manteve-se a

estrutura de conteúdo e a seqüência cronológica própria do currículo de História tradicional.

Embora o avanço tenha sido significativo, ficou o questionamento em relação às reais inovações

obtidas. A estrutura curricular seqüencial aplicada nessa escola foi um passo, mas não modificou

o currículo de História estruturalmente.

Ao buscar um aprofundamento teórico sobre esse tema para melhor avaliar o projeto

realizado e poder avançar nas reflexões, iniciei leituras nessa área e, ao mudar para São Paulo,

resolvi me dedicar a estudá-lo de uma forma mais sistemática. Foi então que tomei contato com a

ampla literatura sobre o assunto e o nível de desenvolvimento teórico que ele possui. Atualmente

a pesquisa no campo de Currículo é uma das mais desenvolvidas na Educação a receber

influências das mais variadas áreas do conhecimento acadêmico, como a Antropologia, a História

e a Filosofia. Mais recentemente, recebe também contribuições do pensamento Pós-moderno e do

Pós-estruturalista.

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A partir das leituras que realizei, aumentaram as minhas inquietações a respeito do quanto

as pesquisas nessas áreas e as suas formulações teóricas – tanto em Educação e Currículo quanto

daquelas em História – alcançam as escolas. Elaborei então um projeto de pesquisa para

participar da seleção na pós-graduação da Faculdade de Educação (FEUSP) que inicialmente

buscava compreender o currículo praticado na sala de aula a partir de alguns conceitos como os

de Nação, nacionalismo, identidade nacional e cultural, a partir de uma pesquisa de campo em

escola pública. Porém, ao ingressar na pós-graduação e iniciar o trabalho de campo, a professora

que observei não trabalhou esses temas com os alunos, embora eu houvesse escolhido uma sala

de 5ª série, buscando observar como questões culturais eram abordadas nas aulas de História

Antiga, e uma de 7ª série, para observar o trabalho com os conceitos citados em História

Moderna e em História do Brasil.

A partir de então, ao longo e ao término das observações, vi-me no centro dos discursos

que não se encontravam. Havia as minhas leituras sobre Educação e Currículo, avançando na

direção da quebra dos paradigmas iluministas, e também as leituras voltadas para as questões da

História Cultural, que também rompe com paradigmas, abrindo a possibilidade das pesquisas

historiográficas abordarem outros campos da vida dos homens, como as práticas simbólicas e as

idéias das pessoas comuns, a partir de uma valorização por igual de todos os aspectos da cultura.

E havia a prática da Professora, realizada dentro de um universo institucional completamente

alheio a essas questões.

As diferentes perspectivas dos discursos com os quais estava envolvida foram, na

verdade, um espelho da realidade multifacetada em que vivemos, provocada pelos deslocamentos

da contemporaneidade citados anteriormente. Só consegui articulá-los a partir da qualificação,

quando foi sugerido pela banca composta pelos professores Julio Groppa Aquino, Ernesta

Zamboni e pela orientadora do trabalho Kátia Abud, que a pesquisa se desenvolvesse em torno do

currículo nas diferentes instâncias nas quais ele é formulado: no discurso teórico acadêmico

(teorias críticas e pós-críticas do currículo e teorias da História), no discurso oficial (Parâmetros

Curriculares Nacionais), na ação da Professora, nos livros didáticos e, finalmente, no seu produto

final: os cadernos dos alunos fotografados durante a observação.

Nesse sentido, cada um desses âmbitos passou a ser uma fonte para o estudo, um

documento, e cada um é uma camada pela qual o currículo de História trafega, sem que haja a

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melhor ou a mais correta, mas todas representando os discursos da sua época. E investigar essas

fontes como os diferentes discursos que estão em luta para estabelecer as suas verdades é

investigar também a questão do poder como produtor dessas verdades.

A partir desse deslocamento na minha investigação, passei a analisar o material coletado

nas observações de sala de aula, averiguando as formulações curriculares nas diferentes

instâncias da sua produção, desde a acadêmica e institucional até o seu uso em sala de aula. Nessa

trajetória procurei responder a algumas indagações: as renovações na academia e as propostas

institucionais se traduzem em reformulações curriculares que realmente inovam, no sentido de

aproximá-las da prática e das necessidades da sala de aula? Diante da realidade contemporânea,

complexa e multifacetada, qual é o sentido daquilo que se propõe como currículo de História e

como funciona esse currículo nos diferentes níveis que ele percorre até chegar à sala de aula?

Quais as transformações, os acréscimos e os silêncios que são produzidos a partir dele? Quais são

as relações de poder que se estabelecem a partir da prática com esse currículo? Em síntese, o que

se produz nas salas de aula através do currículo de História?

A minha hipótese é que as propostas teóricas formuladas nas áreas acadêmicas

relacionadas ao tema e as indicações dos documentos curriculares institucionais não alcançam a

maioria das salas de aula brasileiras, nas quais o currículo da disciplina de História permanece

com a sua estrutura linear e conteudista, impermeável a proposições que talvez trouxessem

aportes significativos para a História ensinada, como as propostas que buscam incorporar outras

explicações para aspectos políticos ou econômicos através da cultura, inserindo grupos sociais

diversos, bem como as pessoas comuns, no contexto explicativo da História. Assim sendo, ao não

passar por inovações teóricas, o currículo de História ainda é visto e utilizado como vetor de um

discurso relacionado ao caráter da disciplina como “mestra da vida”, formadora das virtudes

morais tanto quanto das intelectuais. Como último ponto, fica a questão: se as discussões teóricas

não alcançam as escolas e se a História ainda é vista como formadora da moral, interessa

compreender qual é o tipo de conhecimento que é trabalhado na disciplina, uma vez que, nestas

condições, dificilmente este poderia ser voltado à reflexão e a um aprofundamento das questões

historiográficas. Nosso objetivo, portanto, é averiguar como essas questões se dão na sala de aula,

buscando compreender como funciona o currículo de História e que tipo de conhecimento e de

relações ele realmente produz.

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1.2 Como compreender essas questões: o método

1.2.1 A pesquisa de campo

O trabalho na sala de aula foi desenvolvido através de uma pesquisa de campo qualitativa,

com inspiração na etnografia. Esse tipo de investigação possibilita a observação do espaço da sala

de aula buscando apreender, dentro dos pequenos acontecimentos cotidianos, as diferentes

dinâmicas que se desenvolvem no grupo observado.

Atualmente, esse recurso é bastante utilizado em pesquisas de campo na educação2, pois

permite que se ultrapassem os limites das impressões iniciais e se aprofunde a capacidade do

pesquisador de enxergar as camadas menos aparentes dos acontecimentos da sala de aula a partir

do estranhamento em relação ao objeto investigado. Na escola essa tarefa se torna mais difícil,

por ser um ambiente ao qual todos estão acostumados de uma forma ou de outra, mas ainda assim

não impossibilitou completamente o meu “olhar estrangeiro”, afinal, não conhecia nenhum dos

envolvidos e nem a escola em questão. Além disso, a dinâmica de uma sala de aula sempre nos

traz surpresas, ainda que seja a constatação de que certas coisas não mudam.

Elsie Rockwell assinala que essa técnica de pesquisa, que provém da Antropologia, é

utilizada principalmente para estudar outras culturas que não a nossa. No entanto, pode ser

empregada na investigação sobre a escola, gerando uma pesquisa descritiva e analítica a partir de

um trabalho de campo com um tempo e um espaço definido (ROCKWELL, 1985, p. 1). Ao

utilizar o termo “descrição densa”, Clifford Geertz assinala que, para fazer falar os dados obtidos

em campo e descritos no trabalho, é necessário o emprego de uma análise realizada através de um

arcabouço teórico consistente (GEERTZ, 1989). Nesse sentido, a “descrição densa” procura

interpretar os significados, buscando compreender uma cultura – que, no nosso caso, é a cultura

escolar – a partir dela mesma, através da observação de seus conflitos, suas contradições e seus

diferentes contextos.

2

Ver, entre outros: ANDRÉ, Marli Eliza D. A. de. Etnografia da prática escolar. 8a ed. Campinas, São Paulo: Papirus, 2002. (Série prática pedagógica); EZPELETA, Justa e ROCKWELL, Elsie. A construção social da escola. In: Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos. Rio de Janeiro: Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos, 1994; ROCKWELL, Elsie. Reflexiones sobre el processo etnográfico. Centro de investigacion y estúdios avanzados del instituto politécnico nacional. México,1985; BOGDAN, Robert e BIKLEN, Sari. Investigação qualitativa em educação: uma introdução à teoria e aos métodos. Porto: Ed. Porto, 1997; LÜDKE, Menga e ANDRÉ, Marli. Pesquisa em educação: abordagens qualitativas. São Paulo: Cortez, 2002.

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Como técnicas empregadas na observação, utilizei um caderno (meu “diário de campo”)

onde registrei aquilo que pude observar da forma mais textual possível, com o intuito de não

deixar passar qualquer percepção, por mais pessoal que ela fosse. Aceitar a subjetividade do olhar

como objeto do conhecimento é também uma característica da pesquisa etnográfica, porém, um

pouco desconfortável para quem é formada na noção de objetividade da ciência. Como forma de

orientar essa subjetividade, volto ao principal aspecto da “descrição densa”, isto é, utilizar autores

que nos possibilitem contrapor a nossa experiência de campo com outros trabalhos de pesquisa,

tanto teóricos quanto empíricos, que balizem a análise, permitindo tirar do material o que ele tem

de mais significativo para responder às perguntas propostas.

1.2.2 A Professora e a escola

No início de abril de 2006, comecei a busca por uma escola para fazer a observação

empírica, nesse momento em que as atividades escolares já estão em pleno andamento e o ritmo

da sala de aula estabelecido. Foram várias as recusas, até encontrar uma em que o coordenador

me recebeu e, após expor o meu projeto a ele, solicitei fazer o acompanhamento de aulas de

História da escola. O coordenador me apresentou para a Professora de 5ª a 7ª série. Ela foi

receptiva, mas sem oferecer muita abertura. Deixei-a livre para escolher as classes que ela

permitiria que eu observasse, apenas solicitando que fosse uma sala de 5ª e uma de 7ª série,

devido à proposta de pesquisa que eu desenvolvia na época. Ela disse que não havia problema e

escolheu uma sala de cada. No caso, a 5ª e a 7ª mais calmas, segundo ela. Como o meu objetivo

não era observar diretamente a atitude e a disciplina dos alunos, penso que esse fator não alterou

significativamente a análise.

Comecei as observações em junho, com a interrupção da licença da Professora na última

semana do mês e das férias de julho, e terminei em novembro, pois a Professora tirou licença

prêmio. O anonimato foi empregado como condição oferecida à escola, à Professora e aos alunos,

por questões éticas envolvidas nesse tipo de pesquisa, na qual não se pode expor os envolvidos,

uma vez que a observação é feita em um espaço muito particular, que deve ser respeitado em

todas as suas instâncias.

Inicialmente observei uma aula por semana em cada sala, porém, senti falta da percepção

do processo no qual se desenrolava o trabalho. Então, pedi permissão à Professora para assistir

todas as aulas da semana, sempre que possível. Ela permitiu e eu intensifiquei as observações.

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Nas aulas eu sentava junto com os alunos e fazia anotações no meu caderno, sempre reservando

as margens para anotações complementares observadas por mim e anotações posteriores

realizadas em casa (essas feitas a lápis para marcar os diferentes tempos em que foram

realizadas). A Professora não abriu espaço para que eu participasse ou sugerisse alguma

atividade. Como fui para a pesquisa de campo com a disposição de manter um olhar que

mergulhasse naquela realidade sem expectativas prévias, procurei observar as aulas aproveitando

as oportunidades de convívio, mas respeitando o espaço da Professora e seguindo nele de acordo

com as diretrizes que ela me oferecia.

Na transcrição para o computador, optei por usar cores: azul para o que registrei como

comentário ainda em aula e verde para o que registrei em casa. Procurei ser o mais literal

possível, para não perder o envolvimento com os momentos passados naquele ambiente e para

poder captar, o mais fielmente possível, resguardadas todas as implicações da minha

subjetividade, o que eu percebi nos momentos em que compartilhei com a Professora e os alunos

daquele espaço e daquelas significações (material nos Anexos do CD ROM).

Em relação à escola, esta se situa no bairro Saúde, de classe média de São Paulo. É uma

escola grande, apenas de Ensino Fundamental. As salas de 1ª a 4ª série ficam num prédio

separado e menor e as de 5ª a 8ª ficam em outro prédio, de dois andares. Esse prédio principal é

maior, pois, além das aulas, ali funciona a parte organizacional da escola: secretaria, sala dos

professores, sala da direção e orientação e saguão de entrada. As salas de 5ª e 6ª séries ficam no

primeiro andar e as de 7ª e 8ª séries no segundo.

Os professores têm estacionamento com entrada pelo pátio. Este é bem grande, com duas

quadras de esportes, espaço com árvores, cantina com mesinhas, um tanque de azulejo grande

com 4 torneiras e banheiros. É uma escola bem cuidada, com um bom espaço externo para os

alunos e uma estrutura bem organizada.

No geral, em termos de atitude dos professores e funcionários, se vê dois aspectos:

afetividade de alguns adultos em relação aos alunos, somada a uma falta de compromisso com

aspectos da organização e cuidado com os afazeres da escola por parte de quase todos (auxiliares,

professores, secretárias e direção). Na semana de recuperação do final do ano, alunos mais velhos

entraram na sala em que os menores estavam tendo aula e nada aconteceu, a Professora que

estava na sala não tomou qualquer providência. Os alunos saíram por vontade própria, depois de

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interromper a atividade que realizavam os que estavam na sala. Ninguém se responsabiliza por

nada, essa é a imagem que fica. Porém, apesar disso, ou por estarem acostumados com isso,

parece que os alunos gostam da escola.

Conversei com um grupo que me informou que havia um laboratório para assistirem

filmes (o laboratório era sala de vídeo?), mas a 7ª série estava usando como sala de aula (depois

conheço o “laboratório”, que têm pias e balcão, mas é utilizado como sala de aula normal). Há

uma biblioteca, mas os alunos só usam para pesquisa, isto é, não costumam freqüentar apenas

para ler ou retirar livros. Ia abrir uma sala de informática, mas esta ainda não existe. Há um

elevador, instalado esse ano, porque entrou um aluno “cadeirante”. Os alunos confirmaram que

gostam da escola, de uma maneira geral.

O professor que é o atual coordenador da escola me forneceu mais informações que me

auxiliaram a traçar um perfil dos seus freqüentadores. No aspecto sócio-econômico a escola

atende um público variado: alunos mais humildes, médios e os de classe média que os pais não

conseguem mais pagar uma escola particular. Alguns pais trabalham pela redondeza em funções

pouco prestigiadas socialmente e com baixo poder econômico. São zeladores, empregadas

domésticas, ou trabalham no comércio da região. Conseguem colocar os filhos na escola muitas

vezes com falsos comprovantes de endereço.

Essa procura, inclusive por parte da classe média, segundo o coordenador, acontece

porque a escola tem fama de séria, tem bom nome e também por ser rígida (“não no sentido

antigo, mas cuida da disciplina, tem normas”). Muitos alunos moram longe, em Divisa Diadema,

por exemplo. Apesar das diferenças no perfil sócio-econômico dos alunos, a convivência entre

eles é boa, “sem conflitos”. O professor relata que os alunos menos preparados, com pais sem

instrução, aprendem com os outros alunos de famílias mais preparadas e com melhor nível social

e intelectual. Já os alunos de melhor nível “aprendem com os mais pobres outras coisas” (ficou aí

subentendido uma aprendizagem do que está à margem dos valores socialmente relevantes e

dignos).

A escola atende 1ª a 8ª série, ou I e II Ciclos. Os laboratórios de Ciências foram

desativados para ocupar as salas com aulas normais, pois há excesso de alunos. Hoje são 22 salas:

11 pela manhã e 11 pela tarde. Segundo o coordenador, existem laboratórios (desativados, como

constatamos e o próprio coordenador explicou), sala de vídeo, sala de informática e sala de

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leitura. Esta é usada pelo professor que tem treinamento para isso pela Secretaria de Educação e é

a diretoria que convoca para esses treinamentos. Existe o projeto de leitura, que faz parte da

grade de disciplinas. Nas conversas com os alunos vimos que ou eles não conhecem as salas, ou,

se conhecem, não as utilizam.

As orientações e treinamentos dos professores (como o da sala de leitura) têm suporte do

estado e se dão em forma de parcerias. Como exemplo, ele cita um treinamento que fez junto à

Petrobrás sobre meio ambiente. Quando voltou para a escola, ele reproduziu o que aprendeu.

Perguntei a ele se, depois de passar para os professores o que aprendeu na orientação, essa

atividade entra nas disciplinas como o tema transversal meio ambiente. Ele diz que sim, “com

certeza”.

Como essas informações são passadas para os professores? Nas reuniões de 3ª e 4ª feiras,

em horário coletivo, contrário ao turno de aulas (as HTPC). São reuniões fixas, obrigatórias e

pagas. Pela manhã, acontecem das 10h30min até as 12h30min. À tarde, ocorrem das 12h30min

até as 14h30min. Nessas reuniões são discutidos os projetos, os planejamentos, a disciplina na

escola, etc. Não existe reunião por área. Como horário extra de atividades, em abril de 2007 iria

começar o projeto de recuperação paralela, que antes não existia. As recuperações eram

realizadas em horário normal de aula: tanto as aulas quanto as provas, como está na observação

de sala de aula.

1.2.3 Algumas considerações de ordem prática

A grande quantidade de material advindo da pesquisa de campo nos fez optar por colocá-

lo à disposição do leitor em um CD ROM afixado ao final do trabalho, composto pelo Anexo 1 e

2, onde estão os cadernos dos alunos; Anexo 3, os planos de ensino da Professora; Anexos 4 ao

19, as imagens das páginas do livro didático referenciadas no capítulo 3; e no Anexo 20 estão as

observações de aula.

As fotos são citadas no corpo do trabalho pela série e pelo seu número correspondente,

sendo que são dois cadernos por série, cuja referência é o primeiro número (exemplo: 5ª série –

1.21, isto é, caderno um da 5ª série, foto número 21). Ao falar das anotações realizadas no

acompanhamento da sala de aula, a referência é “observação das aulas”.

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Outro ponto importante a salientar é que as definições teóricas que estão no início do

Capítulo 1 e do Capítulo 2, sobre caderno escolar e livro didático, foram ali colocadas por

oferecer um panorama referente à outra área de pesquisa, no caso a História da Educação, que

tem aportes teóricos específicos e importantes, como campos de conhecimento bem estabelecidos

que são. Nesse caso, as considerações realizadas têm sentido dentro do contexto desses capítulos,

mas não nas outras partes que compõem o trabalho.

1.3 A orientação do olhar: a teoria

O campo do Currículo no Brasil se caracteriza como uma área de estudos polissêmica e

híbrida, em que é possível combinar as tentativas de preservar certo horizonte utópico das teorias

críticas com o pensamento radical realizado pelo pós-modernismo, como propõe Moreira

(MOREIRA, 2003). Em que pesem todos os rompimentos pós-modernos (descrença na razão que

levaria inexoravelmente ao progresso, na verdade científica e nos grandes discursos

universalizantes, ou metanarrativas, para citar alguns), Moreira segue o pensamento de

Boaventura Santos para propor “a formulação de uma utopia, a invenção ou reinvenção tanto do

pensamento emancipatório como da vontade de emancipação” (MOREIRA, 2003, p. 21).

Sem confiar muito em uma emancipação possível, mas não descuidando da idéia, a

proposta desse trabalho se caracteriza teoricamente por ser um estudo híbrido, que busca

compreender uma realidade também polissêmica e híbrida e, portanto, não pode prescindir de

análises realizadas por diferentes vertentes do pensamento. Os autores das teorias críticas e pós-

críticas do currículo serão utilizados ao longo do estudo, aliados àqueles que se dedicam a

pesquisar a estruturação do ensino de História, com os devidos cuidados teóricos no trabalho com

as suas formulações. O objetivo é desenvolver uma pesquisa que permita a rearticulação das

diferentes proposições, para estudar a construção do conhecimento histórico na sala de aula.

Assim sendo, a perspectiva que percorre a pesquisa como um todo é a de historicizar as

práticas relacionadas à educação, procurando, com isso, perceber o quanto elas não são naturais e

onipresentes no tempo e no espaço. Entre os autores que trabalham sob essa ótica está Thomas

Popkewitz, que analisa o currículo e as reformas educacionais utilizando conceitos que

privilegiam a compreensão da historicidade dos processos da escolarização, em uma visão a

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partir da “virada lingüística” 3. Na relação com o conhecimento escolar, historicizar significa

perceber as “relações de poder entranhadas na seleção, organização e avaliação do

conhecimento” (POPKEWITZ, 2002, p.183). É a busca pela compreensão de como se materializa

tudo aquilo que temos como natural na escola: seus sistemas de idéias, suas práticas, suas

relações institucionais. É uma investigação que procura perceber as rupturas e descontinuidades

da vida institucional, quebrando a percepção de progresso linear, que subjaz a própria noção de

reforma, pois esta traz naturalmente a tendência de perceber o novo como uma evolução em

relação ao que existia antes (POPKEWITZ, 1997).

O conhecimento é construído a partir de “processos de categorização” que definem os

fenômenos e ordenam, através de “lentes conceituais”, aquilo que tomamos como um dado pré-

definido e anterior a qualquer conhecimento. Ao desvendar os sistemas de idéias a partir da sua

construção, de como foram constituídos e categorizados, percebemos as práticas sociais e de

poder que moldaram o atual sistema de escolarização. Nesse sentido, Popkewitz usa o método

histórico para

compreender como os problemas atuais da escola, definidos pelo conceito de

reforma escolar, são constituídos da forma que são: como viemos a colocar os

problemas referentes a conhecimento escolar, crianças, ensino e avaliação da

forma como fazemos (POPKEWITZ, 2002, p. 174).

Este autor aborda os seus problemas de investigação através do conceito de

“epistemologia social”, que procura enfatizar as relações sociais entre o conhecimento e as

práticas do poder e perceber como este atua nas instituições. O uso do termo epistemologia não

está vinculado apenas às reflexões em torno do conhecimento humano, mas também às relações

de poder que se estabelecem através da forma como o conhecimento “organiza as percepções, as

formas de responder ao mundo e as concepções do eu” (POPKEWITZ, 2002, p. 174). Com a

qualificação de “social”, Popkewitz procura dar conta das implicações sociais do conhecimento e

dos padrões de regulação historicamente formados nos processos de escolarização.

3 “Na análise pós-estruturalista, o momento no qual o discurso e a linguagem passaram a ser considerados como centrais na teorização social. Com a chamada ‘virada lingüística’ ganha importância a idéia de queos elementos da vida social são discursiva e lingüisticamente construídos. Noções como as de ‘verdade’, ‘identidade’ e ‘sujeito’ passam a ser vistas como dependentes dos recursos retóricos pelos quais elas são construídas, sem correspondência com objetos que supostamente teriam uma existência externa e independente de sua representação lingüística e discursiva”. (SILVA, 2000, p. 111)

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Dessa forma, o currículo é visto por este autor como um conhecimento sobre o “modo

como as crianças tornam o mundo inteligível”, conhecimento este também contextualizado na

história (POPKEWITZ, 2002, p. 174). Ao analisar as diferentes formações curriculares,

percebemos que ali estão postas maneiras de organização sobre o que se deve conhecer e como se

deve conhecer. É uma forma de “disciplinamento” dos indivíduos. Na escola as irregularidades e

as descontinuidades não estão aparentes, afinal, o seu papel é o de homogeneizar

comportamentos e conhecimento.

Entramos, então, em outro conceito importante para o autor, que é o de “regulação

social”. O currículo seleciona (incluindo e excluindo conteúdos), organiza, molda visões do

mundo e do “eu”. É construído, e constantemente reformulado, dentro de concepções políticas e

sociais que procuram disciplinar os indivíduos através de “sistemas simbólicos”, que dizem como

se deve ver o mundo e estar nele. Essas diferentes formas de “disciplinarização” dos indivíduos

começaram a ser construídas a partir do século XIX, quando se desenvolveram, através das novas

concepções científicas, diversos conceitos para se pensar a sociedade e o mundo, como, por

exemplo, raça, classe, pobreza e capitalismo.

Também foram importantes na “disciplinarização” as mudanças no pensamento social,

que se deram a partir do surgimento da estatística e do “raciocínio populacional”, como uma nova

forma de pensar e categorizar a sociedade, dividindo as pessoas por critérios, de acordo com as

necessidades do Estado, criando “novas formas de individualidade. Uma individualidade na qual

a pessoa é definida normativamente em relação a agregados estatísticos que atribuíam um

‘crescimento’ ou ‘desenvolvimento’ a ser monitorado e supervisionado” (POPKEWITZ, 2002, p.

189). Ao construir uma média, a estatística forneceu também os padrões de normalidade de

sujeitos e instituições.

Esses novos conceitos e formas de interpretar o mundo foram sendo incorporados pelo

senso comum e hoje fazem parte do nosso cotidiano. E não estão de fora do que é a escola, pois

esta também é uma das construções ocorridas na modernidade. Popkewitz trabalha com a

historicização no sentido de tornar aparentes esses processos que hoje estão tão capilarizados na

nossa forma ocidental de ver o mundo que não conseguimos mais nos afastar a ponto de

estranharmos – no sentido antropológico – o nosso entorno, para que possamos melhor refletir

sobre ele.

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Assim, o método histórico permite que percebamos os processos de regulação que

ocorrem na escola, primeira instância de convivência social do indivíduo, e onde ele adquirirá os

padrões para interpretar e produzir conhecimento e sua visão de mundo. Esses padrões vinculam

a formação do “eu” com as relações socioeconômicas, políticas e culturais do Estado moderno.

Surgem daí as classificações racionais (e universais) de rendimento escolar, de desenvolvimento

psicológico, de estágio de aprendizagem e de qual currículo conhecer. Para analisar a reforma

escolar e as concepções de currículo – compreendendo a construção dos padrões de regulação

social que estão implícitos a elas – “essas regras de representação não podem ser pressupostas:

elas têm que ser historicizadas” (POPKEWITZ, 2002, p.191).

Na perspectiva da História, Raimundo Cuesta Fernandéz também destaca a importância

do pensamento histórico e social na análise educacional. Ele situa a disciplina escolar de história

como um “arbitrário cultural”, isto é, uma construção criada em determinado tempo e condições

sociais (FERNANDÉZ, 1997, p. 10).

Porém, se diferencia de Popkewitz ao colocar em cena os “agentes sociais” nessa

construção, como alunos e professores (POPKEWITZ, 2002). Para Popkewitz, os agentes saem

de cena para se problematizar o que é tomado como natural; no caso da educação, se explora as

regras e sistemas de idéias que a embasam, questiona-se sua construção, conformação e validade,

para reintroduzir o sujeito em um outro cenário. Nesse novo cenário, aquilo que antes era dado e

universal torna-se contingente e relacionado ao momento histórico e a questões sociais e de

poder.

Contudo, Cuesta Fernandéz também aponta os perigos de se reificar o conhecimento,

qualquer que ele seja, mas, em especial, quando se trata de compreender os processos da

escolarização. Nesse sentido, demonstra também as dificuldades teóricas que a noção de

progresso científico traz, dessa vez, ao estudo da disciplina de História. Essa visão faz com que se

perceba a disciplina escolar como uma “miniaturização” do saber acadêmico de referência que

vem se desenvolvendo contínua e progressivamente e gerando suas subsidiárias, entre elas, a

matéria escolar. Sobre isso, nos diz Cuesta Fernandéz:

esta idea de progreso científico, despojado de todo componente social o

histórico, tiene su correlato en la consideración de la escuela como um escenario

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o receptáculo vacío de significados sociales y culturales, al que llega siempre la

ciencia de la Historia con un cierto retraso (FERNANDÉZ, 1997, p. 13).

Este autor destaca, ainda, que a própria institucionalização da História como curso

acadêmico foi muito tardia, impossibilitando uma análise da vinculação com a disciplina escolar

que use as mesmas referências para o século XIX que para a atualidade. Portanto, as disciplinas

escolares “poseen una autonomia constitutiva (con respecto a las ciencias de referencia)”, uma

originalidade que é adquirida na transposição da academia para a constituição de um outro tipo de

conhecimento formado em outro contexto social e cultural que é a escola (FERNANDÉZ, 1997,

p. 18).

Embora a discussão sobre o estatuto da História escolar não faça parte do tema deste

estudo, a noção de progresso pelo desenvolvimento contínuo e linear da ciência de referência é

uma idéia que nos interessa ressaltar. Ela traz como pressuposto que a disciplina também deve

incorporar os avanços científicos, pois são necessariamente melhores do que aquilo que existe

atualmente. Essa percepção forma uma rede de discursos reformistas na educação, que justificam

todas as mudanças apresentadas como necessárias para trazer melhorias ao ensino, sendo

automáticas e completamente absorvidas pelos envolvidos no processo, quando sabemos que essa

é uma afirmação bastante questionável.

Cabe, ainda, destacar que muitas dessas discussões têm a sua origem nas referências da

Nova Sociologia da Educação, principalmente nos trabalhos de Ivor Goodson, que tiveram

grande repercussão nas pesquisas, tanto internacionais como naquelas desenvolvidas no Brasil.

Esse autor trabalha com a idéia de currículo como uma construção social, porém, não se filia à

“virada lingüística”.

Ele emprega o conceito de “currículo pré-ativo” para implementar a análise das “normas

básicas” que antecedem sua formação curricular, mas que estão presentes e são transmitidas

através do currículo escrito (GOODSON, 2005). Utilizando autores como P. Jackson, Maxine

Greene e Michael Young, Goodson demonstra a importância dos significados anteriores que

estão estabelecidos no currículo, das lutas e conflitos do passado que estruturaram o que se

encontra nas definições pré-ativas e que algumas vezes é ignorado por reformistas nos conflitos

atuais que envolvem as questões curriculares. Sem usar o termo “historicizar”, ele ressalta a

importância do conhecimento da história que precede o currículo escrito para uma melhor

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compreensão dos debates que ocorrem nos processos da escolarização atual. Nesse estudo,

Goodson se concentra “na ‘confecção do currículo’ em nível pré-ativo”, afirmando que:

este entendimento nos fará conhecer melhor tanto os valores e objetivos

patenteados na escolarização quanto a forma como a definição pré-ativa pode

estabelecer parâmetros para a ação e negociação interativa no ambiente da sala

de aula e da própria escola (GOODSON, 2005, p. 21).

Ele busca com isso não desvalorizar a sala de aula, tomando apenas o “currículo como

fato”, mas demonstrar como a compreensão do “currículo na prática” pode ser idealizada, se não

for mediada pela compreensão dos conflitos históricos em torno das escolhas que prevaleceram

na sua construção. Daí a importância dessa análise, que procura apreender a construção social do

currículo (no caso, o pré-ativo) para entender a sua prática em sala de aula, chamada por ele de

“fase interativa”. Nesse sentido, Goodson e Popkewitz se aproximam ao não aceitarem o

currículo como um dado natural, pressuposto ao que acontece em sala de aula. Goodson também

problematiza aquilo que foi aceito como a versão correta de determinado conhecimento e de

práticas escolares, procurando a contingência histórica que motivou a inclusão ou exclusão de

conteúdos, valores e práticas.

Além disso, Goodson caracteriza a trilogia pedagogia, currículo e avaliação como a forma

moderna de se pensar o ensino, processo que começou a emergir no final do século XIX. Ao

mesmo tempo, a criação do sistema de sala de aula com horários, matérias e notas foi se

padronizando nesse período. Com a divisão das aulas em horários com disciplinas

compartimentadas, a matéria escolar aparece como “a manifestação curricular dessa mudança”

(GOODSON, 2005, p. 35). Essa concepção adquiriu proeminência e hoje há a percepção de

currículo como matéria escolar. Com o surgimento do Certificado Escolar e dos exames para

obtê-lo, temos o outro vértice do triângulo já citado: a avaliação, que se soma ao currículo e à

pedagogia como a maneira naturalizada de pensarmos a educação nos tempos que correm.

A fim de tornar operativa a análise, tratamos de articular as diferentes fontes investigadas

por meio de alguns discursos que foram recorrentes nos vários âmbitos do currículo e da

disciplina. Entre eles se encontram os discursos legitimadores da História, que são perceptíveis na

permanência de concepções a respeito do valor formativo da História como disciplina escolar.

Também há o aligeiramento dos conteúdos ministrados no ensino público, causados pelo

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empobrecimento do trabalho com o arcabouço teórico e metodológico da disciplina. Para

avaliarmos as condições citadas, tomamos as fontes – os cadernos escolares, o livro didático, os

discursos da sala de aula, a legislação e as teorias acadêmicas – como diferentes dispositivos

curriculares, que se cruzam em vários níveis com variadas intensidades.

A concepção de “dispositivo”, empregada por Foucault, parte de uma mudança

metodológica nos seus trabalhos, ocorrida a partir da década de 1970, e do diferente

entendimento deste autor sobre as relações de poder. Na verdade, o uso desse termo, segundo

Judith Revel, advém da substituição do conceito de episteme, utilizado pelo autor em relação a

sua análise dos discursos. É um termo que está vinculado ao projeto de compreender o poder não

através de uma concepção jurídica e institucional, mas como mecanismos de dominação. Dessa

forma, “a episteme é um dispositivo especificamente discursivo, enquanto o ‘dispositivo’ (...)

contém igualmente instituições e práticas, isto é, ‘todo o social não-discursivo’”, segundo a

acepção de Foucault que a autora resgata (REVEL, 2005, p. 40).

Edgardo Castro também faz essa distinção de dois momentos na obra de Foucault, sendo

o primeiro aquele em que o uso do termo episteme corresponde ao que seria o projeto

arqueológico, ligado à descrição dos discursos, mas não às condições da sua produção. Ao

introduzir a questão do poder, com as relações “entre lo discursivo y lo no-discursivo”, entra em

cena o projeto genealógico, atuando por meio de dispositivos (CASTRO, 2004, p. 36).

A acepção mais citada desse conceito pelos autores que o empregam é aquela estabelecida

por Foucault em uma entrevista transcrita no livro Microfísica do Poder, em que ele aborda as

questões levantadas pelo primeiro volume da obra História da Sexualidade. Nessa entrevista esse

autor o define como

um conjunto decididamente heterogêneo que engloba discursos, instituições,

organizações arquitetônicas, decisões regulamentares, leis, medidas

administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas, morais,

filantrópicas. Em suma, o dito e o não dito são os elementos do dispositivo. O

dispositivo é a rede que se pode estabelecer entre estes elementos (FOUCAULT,

1989, p.244).

Interessa a Foucault a relação entre esses elementos, as suas diferentes configurações e

mudanças, que podem se materializar

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como programa de uma instituição ou, ao contrário, como elemento que permite

justificar e mascarar uma prática que permanece muda; pode ainda funcionar

como reinterpretação desta prática, dando-lhe acesso a um novo campo de

racionalidade (FOUCAULT, 1989, p.244).

Por meio desse conceito, então, podemos analisar muitas das práticas relacionadas à

disciplina de História, desde os seus fundamentos teóricos e os seus componentes curriculares,

até as intenções do seu ensino, explicitadas ou não. Também podemos inserir aí as metodologias

aplicadas, que aparecem nos diferentes discursos da prática da sala de aula, os seus suportes, no

caso analisado neste estudo são os cadernos de aula e o livro didático, ou as leis e os programas

que atuam no plano institucional, como dispositivos curriculares da prescrição do que é válido

como conteúdo e conhecimento.

A função estratégica do dispositivo também é importante como fundamento teórico dessa

pesquisa, pois, “em um determinado momento histórico, teve como função principal responder a

uma urgência” (FOUCAULT, 1989, p.244). Nesse caso, identificamos aí a possibilidade de,

através desse enfoque, buscar compreender como os dispositivos curriculares colocados em

funcionamento na sala de aula articulam a posição dos discursos legitimadores da disciplina nos

currículos escolares e a quais necessidades esses discursos respondem. Nesse ponto nos interessa

também a acepção de Deleuze, que o percebe como “um emaranhado, um conjunto multilinear

(...) composto de linhas de natureza diferente (...) submetidas a variações de direção, bifurcante e

engalhada, submetida a derivações” (DELEUZE, 1996, p. 30). Através dessas concepções, pode-

se aceder ao aspecto dos diferentes atravessamentos aos quais os dispositivos estão sujeitos, as

linhas de força que os cercam e envolvem provocando efeitos inesperados.

Sobre os efeitos que os dispositivos podem provocar a partir da sua posição estratégica,

Foucault define que há uma “sobredeterminação funcional”, pois esses efeitos estabelecem uma

rede de rearticulações, intencionais ou não, com conseqüências que não se pode prever ou

controlar. Daí a noção de poder como uma instância que não tem necessariamente uma

articulação pré-determinada e intencional, cuja gênese pode ser sempre rastreada nos aparatos

burocráticos do Estado, ou naqueles da repressão policial. A sua noção de poder é mais difusa,

pois que ele não parte de determinado ponto e chega a outro de uma forma linear e contínua. Os

efeitos dos dispositivos formam um “processo de perpétuo ‘preenchimento estratégico’”, isto é,

são imprevisíveis e podem ser rearticulados e aproveitados em novas estratégias, gerando nova

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rede de poder que “ocupou o espaço vazio ou transformou o negativo em positivo”

(FOUCAULT, 1989, p.245). É um ângulo diferente daquele de conceber o poder como,

necessariamente, fruto de artimanhas e maquinações dos poderosos.

Foucault então nos fala “que é possível deduzir qualquer coisa do fenômeno geral da

dominação da classe burguesa. O que faço é o inverso: examinar historicamente, partindo de

baixo, a maneira como os mecanismos de controle puderam funcionar” (FOUCAULT, 1989, p.

185). É nesse sentido que a nossa pergunta é como o currículo de História funciona na sala de

aula, quais são os mecanismos que definem a sua estratégia de funcionamento e porque, ou como,

os discursos relacionados a ele são tão dispersos. O currículo passa por uma rede de dispositivos

que mudam constantemente de aparência, mas são estrategicamente articulados para, no fundo,

não mudar a sua estrutura? Será que essa é a sua estratégia de funcionamento?

O presente estudo é uma análise dos diferentes dispositivos curriculares que atuam em

uma sala de aula de História, caracterizando uma dispersão de elementos heterogêneos, mas que

funcionam no mesmo tempo e espaço, produzindo relações de força que operam constantes

rearticulações de poder. Assim, as fontes analisadas exercem forças uma sobre a outra, num

constante deslocamento de suas funções e do seu espaço de poder.

Para realizar essa análise, dividimos o estudo em capítulos que forneçam uma visão do

material coletado em aula. Do primeiro ao quarto capítulo analisamos o material coletado nas

observações seguindo a proposta do trabalho. Estes são compostos do estudo dos cadernos

escolares fotografados, do livro didático utilizado em aula, dos discursos que circulam na sala de

aula e das teorias do Currículo e da História em conjunto com os Parâmetros Curriculares

Nacionais (PCN). Respectivamente, cada estudo foi realizado em um capítulo, buscando

compreender os diferentes cruzamentos que determinam o funcionamento curricular em cada

uma dessas instâncias. Nas Considerações Finais, procuramos responder aos questionamentos

propostos na Introdução, articulando cada etapa do trabalho na compreensão das diversas

composições que o currículo de História assume e os efeitos que produz em sala de aula.

No início da escrita desse trabalho selecionamos alguns trechos de obras do próprio

Foucault e de outros autores que utilizam suas formulações para trabalhar com educação,

procurando manter um eixo que conduzisse as nossas análises. A leitura desses pequenos textos

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serviu como um guia ao longo do percurso que realizamos e, nesse sentido, tomamos a liberdade

de situá-las nesse espaço, com a intenção de que se tornem uma referência também para o leitor.

[o poder] não é algo que se possa dividir entre aqueles que o possuem e o detêm exclusivamente e aqueles

que não o possuem e lhe são submetidos. O poder deve ser analisado como algo que circula, ou melhor,

como algo que só funciona em cadeia. Nunca está localizado aqui ou ali, nunca está nas mãos de alguns,

nunca é apropriado como uma riqueza ou um bem. O poder funciona e se exerce em rede. Nas suas malhas

os indivíduos não só circulam, mas estão sempre em posição de exercer este poder e de sofrer sua ação;

nunca são os alvos inertes ou consentidos do poder, são sempre centros de transmissão. Em outros termos,

o poder não se aplica aos indivíduos, passa por eles (FOUCAULT, 1989, p. 183).

Deve-se, antes, fazer uma análise ascendente do poder: partir dos mecanismos infinitesimais que tem uma

história, um caminho, técnicas e táticas e depois examinar como estes mecanismos de poder foram e ainda

são investidos, colonizados, utilizados, subjugados, transformados, deslocados, desdobrados, etc., por

mecanismos cada vez mais gerais e por formas de dominação global. Não é a dominação global que se

pluraliza e repercute até embaixo. Creio que deva ser analisada a maneira como os fenômenos, as técnicas

e os procedimentos se deslocam, se expandem, se modificam; mas sobretudo como são investidos e

anexados por fenômenos mais globais; como poderes mais gerais ou lucros econômicos podem inserir-se

no jogo destas tecnologias de poder que são, ao mesmo tempo, relativamente autônomas e infinitesimais

(FOUCAULT, 1989, p. 184).

O efeito desse micro-poder é a ‘produção de almas, produção de idéias, de saber, de moral.’ E é

justamente essa produção de almas, idéias, saber e moral que, para Foucault, estabelece uma diferença

radical entre poder e violência. Para ele, suas diferenças não são de intensidade, mas de natureza.

Enquanto uma ação violenta age apenas sobre um corpo, age diretamente sobre uma coisa, submetendo-a

e a destruindo, o poder é uma ação sobre ações. Ele age de modo que aquele que se submete à sua ação o

receba, aceite e o tome como natural e necessário (VEIGA-NETO, 2004, p. 143)

A pedagogia se formou a partir das próprias adaptações da criança às tarefas escolares, adaptações

observadas e extraídas do seu comportamento para tornarem-se, em seguida, leis de funcionamento das

instituições e forma de poder exercido sobre a criança (FOUCAULT, 2004, p. 61).

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2 CADERNOS

Seguindo a perspectiva que nos interessa nesse trabalho, procuraremos resgatar o aspecto

da historicidade dos suportes da escrita escolar – uma vez que, nesta etapa, analisaremos os

cadernos de História fotografados durante as observações – para demonstrar que o caráter, o

sentido e a materialidade dessas anotações se constroem em diferentes tempos e circunstâncias e

se modificam em maior ou menor escala, conforme mudam as práticas constituídas pelo seu uso.

Essas práticas, entre outras, geram efeitos no que é produzido na disciplina de História e na forma

como o currículo é resignificado nessa que é a sua ponta final: a sala de aula.

Houve uma trajetória até o caderno tornar-se um dos muitos artefatos da nossa vida

cotidiana, pois adquiriu diferentes formatos e atributos ao longo de sua história e ficou cada vez

mais acessível com o advento da industrialização.

O aparecimento da escrita e o seu registro tiveram, no decorrer do tempo, diversos

materiais como suporte, desde as tabuletas de argila da Mesopotâmia até a difusão do papel na

Época Moderna. Na Europa, o papiro (utilizado até o século VI, pelo menos) e depois o

pergaminho foram os materiais mais utilizados para se escrever durante a Antigüidade e o

medievo, até que os árabes difundissem o uso do papel por esse continente, no seu processo de

expansão, entre os séculos XII e XIII. Eles aprenderam a confeccioná-lo com os chineses e

trouxeram a tecnologia para a Península Ibérica, de onde, lentamente, disseminou-se pelas

diferentes regiões européias. A utilização do papel acabou trazendo consigo a necessidade de se

estabelecer uma configuração diferente na relação com esse novo suporte da escrita.

Seguindo Jean Hébrard (2000), o emprego do papel em folhas retangulares, que depois

poderiam ser montadas em livro, implicou em uma outra forma de organizar a escritura para

compor a página, bastante diferente do que se fazia em um material como o papiro ou o

pergaminho, que eram guardados em rolo. Havia que se escrever pensando na divisão da folha

que deveria ser dobrada em duas ou mais vezes para compor os cadernos, que depois seriam

agrupados em um livro. A partir de indícios do século XVI, já se percebe a utilização do papel na

escola próximo ao que conhecemos hoje como caderno escolar: folhas, que poderiam ser

costuradas já dobradas, antes ou depois de terem sido escritas, formando o caderno. Em pinturas

da época aparece o uso mais generalizado da folha solta, caso em que a costura dos papéis

poderia ser feita até em casa.

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Preocupado em reconstituir a história das práticas e processos relacionados ao papel e sua

conexão com a escritura pessoal, Hébrard localiza no Dictionnaire universel, de Antoine

Furetière, alguns dos usos dados a esse importante suporte no século XVII, como pelos varejistas

do papel, que denominavam de cayers (como se grafava na época) as unidades de venda das

folhas; ou como na linguagem dos impressores, na qual um livro era (e ainda é) composto por

vários cadernos. Interessa-nos aqui, particularmente, aquele relacionado à educação, último

sentido que aparece no dicionário de Furetière. Nesse caso, falamos dos cayers que constituíam

as folhas com o que era escrito na aula sob a orientação do professor e que deveria ser

reapresentado a ele para se “obter um atestado de seu tempo de estudo”, conforme está no

Dictionnaire (HÉBRARD, 2000).

Hébrard pesquisou os mesmos verbetes no Dictionnaire de la langue française, de Paul-

Emile Littré, do século XIX, que acusava um uso menos técnico destes. Aqui, a acepção escolar

veio imediatamente após a explicação do sentido original, como “cadernos de um curso, aulas de

um professor tomadas por escrito” (HÉBRARD, 2000, p.36). Esse deslocamento aponta o sentido

da palavra cahier voltado então, a partir do século XIX, preponderantemente para o uso escolar.

Porém, poderia também ser utilizado/apropriado para atividades variadas, como acontece ainda

hoje.

É interessante notar a historicidade das práticas para se trabalhar com o caderno, desde o

início do Período Moderno. Primeiro, os indícios apontam para o seu uso nos cursos mais

avançados, pelos alunos mais adiantados, e não nos períodos iniciais da vida estudantil.

Anotavam-se as aulas ditadas pelo professor, de retórica e gramática, por exemplo, assim como

se preparava a coletânea de “lugares comuns”. Esta era uma atividade pedagógica comum no

século XVI, que consistia em anotar citações interessantes tiradas das sucessivas leituras para

reorganizá-las em verbetes segundo “os grandes capítulos da teologia, da história natural ou do

direito, etc.”, criando as máximas que comporiam os thesaurus que portavam os intelectuais

renascentistas (HÉBRARD, 2000, p. 52). Outro modo de trabalho escolar era a impressão de

textos latinos, deixando largas margens e entrelinhas, aonde o estudante encontrava espaço para

realizar as suas próprias anotações. É uma forma mais sofisticada do emprego da escrita pessoal

sem perder a continuidade do texto traduzido e interpretado, mostrando uma elaboração maior no

uso do espaço da folha, aqui igualmente impressa, e traduzindo um domínio por parte do aluno ao

lidar com as suas idéias no espaço concreto do papel. A partir do século XIX e da entrada de

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estudantes de camadas populares na escola, esta se tornou “o lugar de uma aprendizagem sutil

dos gestos gráficos elementares” (HÉBRARD, 2000, p. 57).

Como vimos nessa breve exposição, as anotações escolares como ação objetiva e

pragmática na vida do aprendiz não representam uma novidade. Mas é significativo apontar para

o surgimento do caderno escolar e para as transformações que o seu uso vem sofrendo:

transformações no aprendizado de como lidar com aquele espaço, como registrar informações,

como resgatar essas informações, como guardar o material e como torná-lo utilizável em aula ou

em casa. E já que aprender a tomar notas do que foi dito pelo professor, a redigir textos e a

organizar as idéias para dispô-las nesse espaço concreto, vem sendo uma atividade normalizada

pela escola, é no caderno que podemos distinguir alguns aspectos do dia-a-dia escolar e da

configuração que o currículo toma nesse cotidiano.

Porém, não há como apreender todo o sentido dos conteúdos e das atividades escolares

que são registradas nesse suporte se o tomarmos como dado, sem pensarmos na sua constituição.

Os cadernos têm uma história que apresenta os entrelaçamentos das atividades desenvolvidas nos

processos de escolarização e da construção das normas que passaram a regular essas atividades e

os conteúdos nelas trabalhados. Seguindo esse raciocínio, uma abordagem interessante é aquela

que possibilita pensar que o caderno não apenas sofre os efeitos da escolarização, mas igualmente

produz efeitos nesse processo.

Entre eles, podemos perceber as relações de poder que se estabelecem através do controle

da realização das atividades de aula pelo professor e da produção do autocontrole do aluno

através do aprendizado das normas para lidar com esse material. Também é possível traçar uma

analogia entre a normalização do caderno e o conteúdo que se expressa nele, portanto, do que

está sendo produzido em sala de aula a partir do currículo de História, tema do nosso estudo. Para

desenvolver melhor as idéias acima, utilizaremos as autoras Silvina Gvirtz e Anne-Marie

Chartier, que localizam o caderno como um dispositivo escolar, utilizando o conceito de

Foucault.

Para Gvirtz, o conceito de dispositivo permite que se considere o caderno não como uma

idéia ou representação dos conteúdos e programas seguidos pela escola, mas “como um conjunto

de práticas discursivas escolares que se articulam de um determinado modo produzindo um

efeito” (GVIRTZ, 1999, p.14). Entre os seus efeitos, Gvirtz entende que o caderno produz o saber

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de como ocupar o seu espaço, como lidar com as tarefas na sucessão de folhas, com as margens,

com o lugar das datas, dos títulos, das lições, dos textos – produção que, como vimos, vem se

construindo ao longo da história da escolarização. Nesse sentido, podemos observar como essas

idéias se traduzem no corpo dos cadernos analisados nesse trabalho, onde a normalização é

perceptível e indicativa do controle exercido sobre as atividades dos alunos.

Já Chartier diferencia o conceito técnico de dispositivo utilizado nos discursos

pedagógicos (dispositivo de recuperação, de treinamento, de formação) do conceito teórico

elaborado por Foucault (CHARTIER, 2002, p. 12). Indica ainda que outra característica do

dispositivo é a sua não autoria. Esse conceito é tirado das experiências comuns e cotidianas, pois

está onde menos se percebe e só passa a ser um dispositivo quando sua existência está

naturalizada: não se pensa sobre ele a não ser “quando ele é atualizado, reformado ou

‘desmobilizado’”, e essas mudanças “provocam acontecimento, discursos, resistências, o

imprevisto, conflitos”. (CHARTIER, p.13).

O dispositivo, então, tem de ser assimilado e praticado a ponto de tornar-se uma realidade

tida como atemporal e ahistórica, perene no tempo e no espaço. E daí vem o seu poder: unir, de

forma tida como natural, diferentes realidades, de diferentes tempos e lugares, como se

houvessem estado sempre ali. A sua força vem da sua transparência. Não os enxergamos com

clareza como dispositivos de controle, mas os sentimos como películas invisíveis que dão forma e

sentido às diferentes coisas do mundo. Para Chartier:

um dispositivo assimilado é, portanto, uma realidade interior tanto quanto

exterior, subjetiva tanto quanto objetiva, representada tanto quanto instituída.

Fala-se dele sem que se pense nele (CHARTIER, p. 15).

Esse é o caso do caderno escolar, prática tão assimilada e invisível que, dentre as

inúmeras preocupações das pesquisas em educação, apenas há pouco tempo vem fazendo parte

dos estudos na área. O caderno é um meio material fixado e quadriculado (FOUCAULT, 1989), e

tanto professores como alunos operam com as regras da sua normalização e com as formas de

fiscalização desses procedimentos. Daí o nosso interesse em resgatar a historicidade dos usos de

um espaço concreto para a escrita até chegar ao caderno como o temos hoje, mostrando uma

pequena parte da construção de um meio operativo do sistema escolar atual que nos parece tão

natural e incorporado ao nosso dia-a-dia que nos esquecemos que há não muito tempo, em alguns

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lugares do Brasil, nossos avós escreviam em pequenas lousas de ardósia, frágeis e quebradiças,

apagando os exercícios depois de realizados e, podemos supor, mantendo uma outra relação com

a memória e o aprendizado.

Nessa trajetória observamos, denotando o óbvio, que os atributos do caderno de História

em uma escola pública de São Paulo são diferenciados em relação aos primeiros cayers do

período moderno, ou mesmo às lousas de ardósia de nossas avós e os seus conteúdos. Mas o

sentido para o qual é utilizado não mudou tanto assim. Ainda é empregado a partir de regras

estabelecidas, com a função de anotar a matéria e os exercícios, e ainda passa pela avaliação de

um professor. Mas podemos chamá-lo de dispositivo pelas características que encerra. Além do

seu aspecto normalizador, no caderno circula uma rede onde se cruzam as regras para a sua

utilização, a fiscalização e o controle sobre o conteúdo e os exercícios, assim como uma

pretendida aprendizagem da matéria e, acrescentaríamos, a historicidade dessas construções.

Também estão presentes nessas intersecções as diferentes normas estabelecidas pelos

currículos das diversas disciplinas, desde o currículo institucional – os PCN – ao currículo

presente nas aulas planejadas pelos professores, ou ao que está presente nos conteúdos

selecionados pelos livros didáticos. Do mesmo modo, no caso da disciplina que aqui nos

interessa, podemos perceber a intersecção das diferentes concepções teóricas da História

presentes na academia, nos currículos oficiais, na concepção da Professora, e que acabam por

conformar a visão dos alunos em relação a essa matéria escolar. Dessa forma, tomaremos os

cadernos escolares como dispositivos curriculares, por expressarem os cruzamentos de diferentes

proposições de currículos de História que perpassam muitas camadas até chegar a eles. E é a

partir desses pressupostos que analisaremos os cadernos de História da 5a e da 7a séries que foram

fotografados como parte do nosso trabalho de observação da sala de aula.

Portanto, iniciaremos a nossa análise por um dos efeitos da utilização do caderno, que é a

conformação da escrita na folha. Nesse aspecto, é perceptível a diferença no processo de

absorção das normas da disposição das datas, dos textos e dos exercícios entre a 5ª e a 7ª série.

Nos cadernos analisados da 5ª série, existe uma mudança na sua organização quando o professor

rubrica as páginas e quando interrompe esse processo. A desordem na seqüência do conteúdo e

na disposição deste na folha torna-se perceptível quando não há rubrica. Isso se percebe no

caderno 1 da 5ª série (1.18) onde se encontra parte de um texto sobre o período Neolítico, que é

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copiado novamente na página seguinte (1.19) e só então o texto é concluído. Na foto 1.20 há um

questionário sem respostas. Na 1.31, o questionário sobre Egito inicia na pergunta 2, e na 1.32

existe apenas a indicação de uma atividade do livro (“Sistematizando o conhecimento”) que o

aluno não concluiu. Já nas fotos 1.37 até 1.43, o professor substituto rubricou as atividades e

colocou observações (1.41) e, nessas páginas, novamente o conteúdo aparece organizado.

Outros exemplos são encontrados no caderno número 2 da 5a série, onde as anotações das

aulas iniciam mais tarde, em 13/03, e em agosto o aluno copia em seqüência vários conteúdos

diferentes (Mesopotâmia, Big Bang, Egito, Pré-história), assim como copia o mesmo texto sobre

a Idade dos Metais na pré-história três vezes, em 18/04 (2.7), em 29/05 (2.11) e em 7/08 (2.16).

Aparentemente, isso não representa uma dificuldade para o aluno, pois o resto do caderno segue

organizado, inclusive ganhando um excelente do professor substituto (2.24).

Isso nos leva a pensar que esses alunos ainda estão pouco ambientados com a utilização

desse espaço gráfico nas matérias específicas do Ensino Fundamental II. E a sua organização

exige um esforço que só vale a pena se o professor for exercer a sua prerrogativa de fiscalização.

Essa análise encontra um respaldo maior ao se comparar os cadernos da 5a com os da 7ª série,

onde as normas de como lidar com esse dispositivo parecem já estar bem assimiladas, pois o

aluno está mais independente no seu uso e, conseqüentemente, a seqüência das atividades

apresenta maior regularidade. Fica, inclusive, mais fácil comparar os dois cadernos de 7ª série,

cujas datas das atividades realizadas e/ou a sua ordem coincidem entre si, ficando pouca coisa

destoante entre eles. Já na 5ª série, são poucos os momentos em que conseguimos comparar as

atividades nos dois cadernos, o que passa a impressão de falta de organização dos alunos.

Talvez possamos pensar no sentido da rubrica e na sua historicidade. No período

moderno, como vimos, o caderno deveria ser apresentado ao professor para se obter o atestado do

curso: hoje, o sentido é que o professor está passando o conteúdo e acompanhando/fiscalizando

se o aluno está copiando corretamente. Será que são sentidos tão diferentes? Não podemos

esquecer que hoje a autonomia do professor se encontra bastante restrita pela burocratização do

ensino. São planejamentos a cumprir, tarefas a solicitar, provas e trabalhos a avaliar e, dessa

forma, o processo de fiscalização que antes se dava somente sobre o aluno, amplia-se atualmente

também sobre o professor. Diretores, coordenadores pedagógicos e pais de alunos possuem no

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caderno um importante balizador do que se passa, pelo menos na sua parte visível, na sala de

aula.

Já outras questões, como a aprendizagem dos conteúdos registrados, não são significativas

para a atividade de rubricar, pelo menos atualmente. O professor, por uma questão de tempo e

número de alunos, apenas verifica se as atividades foram realizadas e se o caderno está em

ordem, de uma maneira geral. A verificação do aprendizado parece se restringir apenas aos

momentos de avaliação escrita, na forma das interpretações de texto devolvidas para a Professora

ou nas provas bimestrais, no caso observado. E não podemos garantir que no passado o tema da

aprendizagem estivesse presente, mesmo se fosse para fornecer o atestado comprovando que o

aluno cumpriu o curso.

Assim, a rubrica marca – como um dispositivo de controle – que o processo foi realizado,

mas sem se preocupar com os seus fins. E é significativo que a cor seja um traço distintivo da sua

função tão importante a ponto da Professora refazer uma rubrica que estava em azul,

reescrevendo-a ao lado ou mesmo em cima desta com o tom normalizado para essa função, o

vermelho (fotos 1.10-1.12 e 2.8-2.9). E quando isso não acontece e ela permanece em azul, fica

até no observador a sensação de que algo não está funcionando como deveria (fotos 2.15-2.18 e

2.29-2.30).

Parece-nos, portanto, que a rubrica normaliza as atividades dos alunos, acostumando-os

ao processo de vigilância por um mecanismo rápido de homogeneização da forma como se deve

compor o espaço do caderno. E mesmo o professor não escapa dessa norma, assim como quem

observa as diferentes atividades de uma sala de aula, todos nós acostumados com essa forma

aparentemente tão banal de controle exercida nas atividades escritas dos alunos, inclusive por

termos passado pelo mesmo processo na escola.

Outro indício de que a normalização e a fiscalização das regras impõem uma determinada

maneira de organizar o caderno, que depois são empregadas também nas atividades de aula, são

os comentários recorrentes feitos nas observações de aula (Anexo 20), sobre a organização e o

capricho de todas as atividades, inclusive as que são entregues para a Professora para serem

avaliadas. Foi surpreendente constatar como a realidade do caderno da 5ª série se apresentava

diferente, fora da ordem e com algumas atividades e textos incompletos. Nas atividades de

interpretação de texto, que são devolvidas para a Professora e avaliadas para compor a nota

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bimestral, as respostas são completas e a organização, na maioria dos trabalhos, é impecável nas

séries observadas.

Somando-se esse fato às observações das aulas, parece haver uma desconexão entre

aquilo que a Professora trabalha em sala e aquilo que realmente fica como registro que será

manuseado em algum outro momento, como em uma revisão no período de provas, por exemplo.

O que reforça o argumento da análise sobre o significado da produção e utilização desse material:

o que se torna mais importante é que as regras sejam observadas, pelo menos quando há a

vigilância materializada na rubrica, e que ocorra o autocontrole por parte do aluno ao incorporá-

las.

Ainda como efeito do processo de utilização do caderno, agora alcançando o conteúdo da

disciplina, um dado interessante são as indicações dadas pela Professora do número de linhas que

devem ser deixadas para as respostas dos questionários. Como exemplo, podemos tomar as

anotações das observações de aula do dia 31/08, no “Questionário sobre o Egito Antigo” da 5ª

série, pois temos as fotos correspondentes a essa atividade, que foi realizada pelos alunos no

caderno (1.31 – 2.18-2.20). Esses números foram colocados pela Professora no quadro de giz (ao

final das perguntas) e variam conforme cada questão, mas os alunos cujos materiais observamos

não copiaram essa informação nos seus cadernos. No entanto, embora o número de linhas que

utilizaram para as respostas não tenha variado muito daquilo que a Professora determinou na

lousa, existem alguns pontos interessantes. Como na pergunta três sobre o que é o papiro, com

indicação dada pela Professora de 5 linhas para a resposta. No caderno 1, o aluno ocupa duas

linhas com uma resposta coerente, mas sucinta, e no caderno 2 a resposta está mais completa e

ocupa 3 linhas.

E aí vemos um efeito sobre o conteúdo trabalhado, pois já há uma predefinição do que os

alunos devem responder, a qual eles parecem estar acostumados, mas nem sempre seguem

integralmente. E essa predefinição é bastante aleatória, se pensada em termos da significação das

informações. Por exemplo, para a pergunta sobre o que é o papiro são indicadas 5 linhas para a

resposta, em uma questão cuja importância não é tão significativa para a compreensão da

estrutura da civilização egípcia – e os alunos respondem de forma adequada com menos linhas

que as sugeridas.

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Contudo, esse é o mesmo número indicado para responder uma questão mais complexa e

que fornece uma explicação importante sobre a composição social e política dos egípcios, que é a

definição de monarquia teocrática. E para a pergunta ainda mais complexa sobre a caracterização

da monarquia egípcia como despotismo oriental são indicadas 4 linhas. Se as linhas são

definidoras da quantidade de termos utilizados para explicar a complexidade de um assunto, seria

de se esperar que a Professora indicasse uma quantidade maior para assuntos mais complexos.

Mas não é isso o que ocorre com o tema da vinculação entre política e religião no Egito Antigo.

Chartier observa que, entre os aprendizados realizados pela criança ao usar esse

“’dispositivo’ de escrita” (CHARTIER, p.22), está a percepção de que há uma hierarquia entre as

diferentes disciplinas. Na análise dos cadernos que ela realiza, a matemática e o francês, por

exemplo, são matérias cujas anotações são constantemente observadas e corrigidas, denotando

uma preocupação por parte dos professores e da instituição com o seu aprendizado. Enquanto

outras disciplinas que não trabalham com caderno têm um caráter menos valorizado na

instituição. Isso leva às crianças a perceberem essa disposição e, embora elas gostem de

Educação Física, por exemplo, sabem que no currículo ela não tem a mesma importância que as

disciplinas citadas acima. No Brasil essa hierarquia também é claramente perceptível, inclusive

na carga horária das disciplinas. Matemática e Português são as que têm um número de aulas por

semana (4 ou 5 aulas) bem maior que outras como a História que tem, em geral, 2 ou 3 aulas

semanais.

No caso que analisamos, observamos que há uma hierarquia – passível de crítica – dentro

do próprio conteúdo de História, expresso no caderno pela demarcação do espaço das respostas, e

absorvido pelo aluno. E nesse caso, para os alunos de 5ª série, percebemos que a compreensão do

significado da resposta sobre o papiro está correta, pois foi realizada a contento de acordo com o

que consideraram mais importante como resposta.

Na análise dos conteúdos de História que estão presentes no caderno, aparecem algumas

atividades que indicam a possibilidade de se fazer um trabalho mais aprofundado com o

conteúdo. Existe na parte final do caderno 2 da 7a série (2.44), um trabalho bastante interessante

nesse sentido. É solicitada a escolha de três temas estudados na disciplina como os mais

importantes vistos no ano. O aluno deve definir esses temas e justificar historicamente por que os

escolheu. Justificar uma escolha de conteúdo explicando a sua importância histórica é uma

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habilidade bastante sofisticada de raciocínio, pois envolve capacidade de inferir as conseqüências

de determinado acontecimento pelo seu significado em determinado contexto histórico. E embora

em uma resposta haja repetições de fatos já citados na pergunta (o que chamamos coloquialmente

de “enrolação”), algumas informações são acrescentadas e formam o sentido daquilo que foi

solicitado (Anexo 2 – Trabalhos dos alunos - TRABALHO A).

No caso da resposta um, a repetição tem o sentido de enfatizar a importância da guerra

para o início do absolutismo na Inglaterra. Já na resposta dois, a aluna não consegue pensar a

questão na sua justificativa, inclusive colocando o fim do absolutismo e do feudalismo na mesma

situação histórica. E contrariando o esquema copiado no caderno que fala sobre o término das

relações feudais – termo indicado, nesse contexto, para as relações sócio-econômicas (e não do

feudalismo como um todo) – e o fortalecimento do capitalismo (1.25 - 2.28). Mas na questão três,

ela não apenas pensa no fato escolhido, como também define a sua importância em um sentido

mais amplo.

Em termos de seleção de conteúdo, embora o trabalho seja em cima do conhecimento

formal presente na maioria dos currículos, a atividade solicitada foge ao padrão de repetição de

informações da maioria das atividades desenvolvidas até então. E é interessante notar que isso

acontece em novembro, sugerindo que tenha sido uma atividade pensada como um resultado do

que foi trabalhado ao longo do ano. E a aluna não se saiu mal, demonstrando que algo acontece

além do caos que não poucas vezes associamos à escola pública brasileira.

Nesse mesmo sentido, podemos analisar os apontamentos feitos no final do caderno 1 da

7a série. É um resumo da matéria, realizado sem a menor preocupação com as normas aprendidas.

O que traz um caráter muito especial a essas folhas (1.41-1.42), que foram fotografadas com a

expressa autorização da sua proprietária, mas que, nesse momento, é quase como se a

expiássemos no seu processo de estudo através de uma porta entreaberta. O tema é a Revolução

Industrial inglesa. A diagramação da página é pessoal (com partes escritas a lápis, outras a caneta

e com divisões feitas à mão livre no meio da página), mas indicativa do raciocínio que ela

desenvolve ao longo do conteúdo trabalhado.

O conteúdo aparece na sua forma tradicional, mas uma coisa foi corrigida. O Tratado de

Methuen, que várias vezes foi escrito nas cópias do caderno como Tratado dos Panos (1.22 e

2.25, nas aulas do professor substituto em final de junho), ficou com uma denominação que

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esquece que também haviam os vinhos exportados por Portugal, o que gerava o déficit na balança

comercial portuguesa pelo baixo valor arrecadado com sua venda comparado à compra dos

tecidos manufaturados ingleses. Esse lapso se repete nos exercícios sobre as razões do

pioneirismo inglês na Revolução Industrial (1.26 e 2.29), em outro exercício posterior (1.28 e

2.32) e na revisão da matéria do caderno 2 (2.34). Mas embora o vinho tenha sido acrescentado

pela aluna no título do tratado (Tratado dos Panos e Vinhos), nessa revisão pessoal a análise da

sua importância não foi aprofundada.

Isso talvez se deva ao fato de que uma explicação mais detalhada sobre o tema está na

página 77 do livro didático, do capítulo 6, que trata sobre a mineração no Brasil. Mas a parte do

livro que foi trabalhada em aula é o capítulo 9, “A Revolução Industrial”. E nessa parte a

definição do tratado é exatamente a que a aluna copiou no caderno: “De acordo com esse tratado,

os ingleses forneciam tecidos a Portugal, que pagava com o ouro extraído de Minas Gerais. Todo

o lucro obtido com essas exportações foi investido na indústria.” (VAZ; PANAZZO, 2002, 7ª

série, p. 177). Nesse caso, a falta se deve mais a necessidade de uma explicação ou retomada do

assunto pelo professor. E podemos perceber aí um aligeiramento na maneira de abordar os

conteúdos, pois o tema é importante para a compreensão da dependência econômica de Portugal

em relação à Inglaterra. Da forma como ficou, nada nos garante que ela conseguiu entender o

significado dessa relação. Apenas podemos inferir, pela estrutura geral do resumo, que ela

compreendeu o texto que copiou – a maior parte do livro didático – até pela seleção das partes

importantes para a composição de um esquema explicativo da matéria.

Um outro exemplo que identifica a compreensão do texto por parte da aluna aparece no

mesmo resumo quando ela aborda o tema da origem da mão-de-obra inglesa e da definição de

proletariado e burguesia, assim como o das difíceis condições de trabalho e as conseqüentes

reações dos proletários a essa situação. Há uma boa síntese da matéria, levantando as principais

questões sobre o assunto. Do mesmo modo, o entendimento do sentido geral do conteúdo pode

ser inferido pelo acréscimo de informações que ela fez, colocando-as no contexto correto. Essas

informações podem ter sido obtidas nas explicações da Professora ou nos próprios textos

copiados no caderno. Contudo, nas duas situações, não temos como saber se essa compreensão

acontece pelo sentido do texto e da sua lógica intrínseca, ou se chega a atingir o conteúdo

histórico nas suas relações e complexidade.

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Sobre a questão do aligeiramento dos conteúdos, visível nas situações apontadas acima,

lançamos mão da análise realizada por Julio Groppa Aquino para pensarmos mais amplamente

sobre esse tema. Em uma discussão dura, mas consistente, Aquino avalia as condições do ensino

no Brasil demonstrando as tensões que atravessam o meio escolar. Entre elas, as diferenças entre

o ensino público, “de qualidade indigente”, e o “privado de qualidade farsesca”, mas em ambos

os casos um ensino deficiente. Para Aquino, e é o que nos interessa nesse trabalho, o ensino

público é um “trabalho escolar convertido em assistencialismo para pobres, por meio de uma

oferta pedagógica aligeirada, fracionada e diluída” (AQUINO, 2007, p.22). Embora tenhamos

tido a oportunidade de evidenciar que existem trabalhos importantes e diferenciados sendo

oferecidos por professores da escola pública, o que estamos analisando ainda representa a

situação geral das aulas de História4. Esse fato fica bastante evidente nesse caso, ao percebermos

que os conteúdos de História são trabalhados de forma a cumprir etapas mais ligadas à

burocracia, como seguir o livro e realizar as avaliações, que a questões pedagógicas. Afinal o

Tratado de Methuen foi dado em aula, e isso é o que está programado no currículo oficial e é o

que fica registrado em planos de ensino e no caderno de chamada.

Contudo, não estamos falando aqui de desinteresse por parte da Professora, ou das

dificuldades trazidas pelo processo da sua substituição em junho e novembro, o que também

ocorre nas escolas particulares. E sim da estrutura geral na qual o trabalho em sala de aula se

insere e se realiza (a situação geral do ensino público brasileiro, amplamente analisada por vários

autores), que conformam as características de aligeiramento e superficialidade no tratamento do

conteúdo – e já adquiriram um caráter de normalidade em todos os discursos que ouvimos na

escola.

A diluição e o fracionamento citados por Aquino, no caso dos conteúdos da História por

nós observados nas atividades do caderno, não permitem que se desenvolvam as relações que

tornam a disciplina significativa para a compreensão do presente. Perceber as relações entre

diferentes aspectos de um acontecimento histórico é um dos fatores que possibilita compreendê-

4 Em curso que ministramos para professores da rede municipal de São Paulo, tomamos contato com projetos interessantes desenvolvidos pelos professores de História da rede. Já no acompanhamento de relatórios desenvolvidos pelos alunos da disciplina de Metodologia do Ensino de História da Faculdade de Educação da USP, dentro do projeto PAE (Programa de Aperfeiçoamento do Ensino) do qual participamos, aparece uma realidade mais diversificada, com uma minoria de professores interessados e preparando boas aulas, dentro de um universo bem maior de professores desestimulados e realizando o estritamente necessário na sua atividade profissional.

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lo de forma mais ampla. Seria através desse tipo de abordagem que o aluno poderia desenvolver a

capacidade de observar o entorno com maior amplitude na avaliação dos acontecimentos e,

consequentemente, desenvolver a visão crítica do presente, tão propagada nos diferentes

discursos sobre o conhecimento histórico escolar. Porém, da forma como foi abordado, há um

empobrecimento do conteúdo que certamente o relegará ao pronto esquecimento terminado o

momento da necessidade da sua memorização.

Nas duas atividades analisadas, o trabalho de selecionar os três temas mais importantes do

ano e o resumo do conteúdo no final do caderno, deixam espaço para se inferir sobre a

possibilidade de realização de um trabalho mais aprofundado com os alunos em cima do

conteúdo estabelecido no currículo de História. Independentemente do que está sendo prescrito

pelo currículo oficial, ou pela seqüência do livro didático ou do plano estabelecido pelo professor

para a escola, percebemos que, em relação aos alunos, existe um potencial para ser explorado em

uma situação de aprendizagem que fosse mais favorável em todo o contexto da escolarização.

Porém, a formação do aluno crítico, tão propagada em diversas instâncias, torna-se uma quimera

maior ainda na medida do esvaziamento do potencial explicativo dos conteúdos da disciplina,

assunto que será recorrente ao longo do nosso estudo na proporção em que são recorrentes os

apelos à possibilidade crítica da História.

Avançando na direção da percepção que a Professora tem da disciplina e que aparece na

análise do conteúdo nos cadernos, percebe-se uma preocupação nos textos passados por ela para a

5ª série (nas aulas iniciais em que são trabalhadas questões de cunho teórico) com a história dos

excluídos e em desenvolver a noção de uma História crítica que se concentra na visão dos

vencidos (1.11). Essa concepção foi bastante utilizada na década de 80, no momento pós-ditadura

no Brasil, quando se passou a discutir os motivos pelos quais apenas os personagens ligados ao

poder eram tratados pela História, e a quais interesses esse tipo de abordagem servia. Era um

questionamento à História política, dos heróis nacionais e dos grandes feitos, como as guerras.

Esses debates advinham de uma renovação historiográfica que buscava incorporar

algumas idéias e abordagens teóricas de autores estrangeiros e discutir a produção nacional

aproveitando o momento, propiciado pela abertura política no Brasil, de troca de idéias e

informações. E foi, igualmente, um momento de reaproximação entre a academia e os professores

das escolas em torno da luta pelo retorno da autonomia das disciplinas de História e Geografia,

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unidas como Estudos Sociais durante o período da ditadura militar, e em torno das reformulações

curriculares que estavam sendo propostas em todo o país5. Contudo, as discussões do período

pós-ditadura também representavam uma certa autocrítica, pelo tipo de saber histórico que foi

veiculado pelos professores durante a ditadura, obrigatoriamente ou não. Em todos os sentidos,

podemos afirmar que foram momentos de participação intensa por parte dos professores no

processo de redemocratização. Daí provavelmente advém a permanência dessas concepções hoje

tão esvaziadas do seu significado original.

Um outro aspecto presente nesses debates, e que permanecem visíveis nos textos passados

pela Professora, é o da renovação do discurso legitimador da História como disciplina constante

dos currículos escolares, que buscava afastar-se de uma visão de conhecimento enciclopédico e

memorialista, e marcar a sua significação e validade para constar no currículo regular das escolas.

A partir de então, com o retorno da História como uma matéria independente, o discurso da

necessidade de superar o ensino dito tradicional e alcançar um ensino que possibilite formar

cidadãos críticos e conscientes, tem sido uma constante tanto entre professores quanto entre os

acadêmicos que pesquisam o Ensino da História.

E podemos perceber que essas dimensões persistem sem retoques na visão da História

transmitida pela Professora através dos escritos dos cadernos. Provavelmente pelo fato da sua

formação ter ocorrido na época em que essas discussões estavam mais em voga. E, como

comentado acima, pela necessidade contínua por parte de acadêmicos e professores, de renovar o

discurso legitimador sobre a presença da História nos currículos escolares, tema abordado por

Ivor Goodson (data) e retomado por F. Javier Merchán Iglesias (2002) e por Rafael Valls (2006).

Contudo, para Merchán Iglesias o discurso não corresponde necessariamente a uma

prática dentro da sala de aula:

el análisis de las declaraciones de profesores y profesoras sobre la importancia,

objetivos y valor formativo de la historia nos permite reseñar los elementos más

significativos de este nuevo discurso y destacar, al mismo tiempo, su carácter

5 Discussões sobre esse momento do ensino de História no Brasil e as propostas curriculares daí advindas podem ser encontradas, entre outros autores, em: ABUD, Kátia Maria. Conhecimento histórico e Ensino de História: a produção do conhecimento histórico escolar. In: XIV Encontro Regional de História -Sujeitos na História: práticas e representações. Bauru, SP: EDUSC, 2001. v 2. BITTENCOURT, Circe Maria Fernandes. Capitalismo e cidadania em propostas curriculares de História. In: Anais do II Encontro Perspectivas do Ensino de História. São Paulo: 12 a 15 de fevereiro de 1996.

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retórico, desvelando la existência de una historia imaginaria que alimenta el

ethos profesional y la literatura oficial sobre la enseñanza de la asignatura, un

imaginário que contrasta fuertemente com la realidad a la que diariamente se

enfrentan los mismos docentes en el interior de las aulas (IGLESIAS., 2002,

p.46).

Esse contraste do discurso com a realidade cotidiana das aulas fica nítido ao percorrer o

conjunto dos cadernos, onde não encontramos nos conteúdos trabalhados qualquer abordagem

que parta do referencial citado. Claro que não se apresenta a História como a vida dos heróis e a

narração dos grandes feitos, mas segue-se privilegiando os conteúdos com importância política,

econômica e social geral, nos quais pouco ou nada se fala a partir da visão dos vencidos. Quando

se aponta as dificuldades do proletariado e sua exploração por parte do capital, por exemplo, é

uma referência a partir da crítica histórica formal.

Outro aspecto característico do discurso da validação da disciplina é o que procura

superar a percepção de que a História é o estudo do passado. A homilia é que ela estuda o

passado, mas tem uma utilidade atual, pois serve à compreensão do presente e essa compreensão

auxiliará na modificação do futuro, como vemos nas definições citadas nos cadernos:

Caderno da 7ª série (1.2):

“História é a ciência que estuda os fatos do passado (causas) e suas aplicações no futuro

(conseqüências)”.

Caderno da 5ª série (1.10):

“A importância da História [título]

Porque estudar História?

R: Estudando o passado podemos entender melhor o nosso presente e podemos modificar

o nosso futuro.

O que é a História?

R: A história é a ciência que estuda os fatos do passado (causa) e suas implicações no

futuro (conseqüências)”.

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Essa é uma concepção bastante difundida em sala de aula e nos livros didáticos, como

veremos adiante. E demonstra a contradição vivida pelos professores entre as discussões teóricas,

as inovações didáticas e a realidade do seu trabalho. E novamente fica clara a proposição de

Merchán Iglesias sobre a distância entre o imaginário dos professores e a realidade das suas

experiências cotidianas, pois nos cadernos os conteúdos não apresentam conexão com os fatos

que nos cercam na atualidade. Seguindo uma linha de análise semelhante à desenvolvida por

Merchán Iglesias, Rafael Valls considera que, além de compreender o presente, entre os objetivos

do ensino dessa disciplina levantados pelos professores, está “el desarrollo del razonamiento

lógico de los alumnos y también la de suministrarles un saber humanístico válido para la

formación de las personas em valores tales como la tolerancia y la capacidad crítica” (VALLS,

2006, p.257). Seguindo a hipótese levantada nos cadernos – de que, tratada dessa forma (como

estudo do passado para compreender o presente e modificar o futuro) a História, implicitamente,

despertaria o espírito crítico dos alunos – podemos deduzir que uma das tarefas primordiais da

disciplina no currículo escolar não se concretiza, pois ali não ficou registrado qualquer trabalho

que levasse a consolidar a proposição citada.

Outra questão que podemos levantar é que o discurso de conhecimento do passado já

enfrentou questionamentos nos meios acadêmicos e escolares, chegando-se inclusive a um uso da

História do tempo presente como uma “negação do tempo seqüencial e a valorização do

cotidiano e da participação” dos alunos (ABUD, 2001, p. 134)6. Entretanto, por mais que tenha

havido uma pretensão nas discussões teóricas acadêmicas e entre os próprios professores para

renovar essa visão de “ciência do passado”, nesse caso essa percepção ainda permanece visível

no seu produto final, o registro escrito das atividades. Nas aulas expositivas a Professora procura

fazer algumas conexões com o presente, e são momentos que despertam a atenção dos alunos e

nos quais eles próprios fazem comentários a respeito do assunto tratado, mas elas não se

materializam nas suas anotações, como já foi observado.

A permanência dos discursos que procuram validar a disciplina encontra ainda outro

aspecto a ser pontuado, que é a procedência dos valores formativos relacionados a ela, e a

apreciação da historicidade desse aspecto talvez auxilie a nossa compreensão a respeito desse

6 Outra análise a respeito da utilização e da validade dessa abordagem também se encontra em BITTENCOURT, Circe Maria Fernandes. Ensino de História: fundamentos e métodos. São Paulo: Cortez, 2005.

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tema. Raimundo Cuesta Fernández, ao estudar as origens do código disciplinar da História, nos

fornece indicações das raízes dessas concepções, indicando que “recuperar su gênesis como

disciplina escolar equivale a una labor de ‘redescubrimiento’ de los niveles más lejanos a nuestra

propia conciencia del presente” (FERNÁNDEZ, 1997, p. 26).

Nesse sentido, volta até a concepção clássica greco-romana da História, tida como

narrativa da sucessão dos fatos importantes e dos feitos das pessoas ilustres do passado, feita com

elegância e rigor, aproximando-a da oratória e ocupando um lugar junto à literatura. Na verdade,

a História era vista como um gênero literário que permitia aprendizagens de estilo e recitação,

assim como desenvolvia a capacidade de memorização e o cultivo de qualidades morais. Essas

características não se perdem com o tempo, mas são acrescidas, no medievo, de uma perspectiva

universalista cristã e de uma percepção teleológica da evolução humana, assim como de uma

organização cronológica baseada nos períodos antes e depois do nascimento de Cristo.

Dependente de outras disciplinas como a Teologia e a Retórica, baseada na memória

(faculdade mental secundária) e, pelo seu caráter de resgatar exemplos morais do passado, sendo

a “mestra da vida”, a História segue por um longo período como um saber secundário. Mesmo

entre os jesuítas e a sua organização da rotina do ensino como a conhecemos ainda hoje, não se

pode situá-la como uma matéria formal, pois seu conhecimento se fazia através do estudo dos

autores clássicos em um espaço mais próximo à literatura. Portanto, é somente na segunda

metade do século XIX que podemos falar da História como disciplina escolar, de forma mais

generalizada e não apenas como educação dos nobres.

Temos a partir de então, a História como uma construção da revolução burguesa que a

incorporou ao sistema de educação estatal, onde irá servir como uma das bases para se edificar a

idéia de nação. Mas a estrutura “memoria-erudición-literatura, trilogia asociativa que inexorable e

indefectiblemente comparece cuando buscamos la genealogia de la Historia escolar” permanece

bastante audível nos diversos discursos presentes no caderno escolar (FERNÁNDEZ, 1997, p.

72). Ouvimos esses ecos na permanência dos discursos sobre os valores da História e a

conseqüente necessidade da sua presença nos currículos escolares, assim como na prática das

atividades registradas onde se continua a trabalhar com a disciplina basicamente no nível da

erudição e da memória.

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Essas observações trazem uma série de questões relevantes ao voltarmos a nossa pergunta

inicial: o que os cadernos nos revelam sobre o que se produz em sala de aula a partir do currículo

de História? Essa é uma análise que concluiremos efetivamente ao fim do trabalho, quando

tivermos seguido o fio condutor que inicia nos cadernos escolares e segue o currículo até a sua

formulação institucional nos PCN. Mas em alguns setores podemos avançar, correndo o risco de

uma revisão final.

Em termos das normas de uso do caderno, voltamos a Silvina Gvirtz que nos traz a idéia

de que essas normas são produtos culturais e, como tal, só podem ser construídas no aprendizado

dentro da escola (GIVIRTZ, 1999). E retomando a idéia de que estas produzem efeitos,

observamos os efeitos gráficos, por assim dizer, que determinam para o aluno a forma como os

conteúdos devem aparecer no caderno e cujo controle se materializa no uso da rubrica pelo

professor. O que acaba produzindo uma grande diferenciação nos cadernos dos alunos menores,

entre as partes que são rubricadas pelo professor e as que não o são.

Além disso, os efeitos produzidos pelas normas de uso dos cadernos, como o lugar dos

títulos, a organização das perguntas, ou o número de linhas predeterminado para as respostas,

acabam por influir na formação do texto e na escolha dos conteúdos que devem ser relevantes

para a resposta das atividades. Assim, “el cuaderno que parece operar como contexto, termina por

contribuir a la formación del texto” (GVIRTZ, 1999, p.16), criando efeitos de conteúdo. Porém,

nesse texto-efeito produzido nos cadernos observados não são incluídas operações que levem o

aluno a elaborar um pensamento próprio, estabelecendo relações ou tirando conclusões a respeito

de um assunto da disciplina. Esse fator acaba por determinar um automatismo onde a habilidade

que mais se desenvolve é a de localizar rapidamente as informações solicitadas e reproduzi-las no

espaço determinado para isso. Temos, então, como apontado na proposição de Gvirtz, o caderno

como parte da “administración de los saberes curriculares”, com o sentido de criar uma

padronização que elimine as ambigüidades, torne homogêneo e estabilize “aún más su universo

discursivo” (GVIRTZ, 1999, p. 136).

Os momentos em que o caderno é trabalhado com autonomia por parte dos alunos são

raros, mas interessantes por indicarem a possibilidade de se realizar um trabalho mais

aprofundado com o conteúdo. Porém, uma interpretação pessoal da História feita pelos alunos

fica mais aparente quando assistimos às aulas, nas suas falas, como apontamos.

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Outra questão sobre a qual podemos pensar, é que a estrutura do caderno se adequou

perfeitamente ao conteúdo de História, pela sua própria configuração espacial. Ao contrário de

um fichário, ou das anotações em folhas costuradas no período moderno, no caderno atual as

folhas são fixas e a sua escrituração se desenrola ao longo do tempo escolar. Gvirtz coloca que

“en el cuaderno se puede llegar a marcar y delimitar de esta forma también una unidade temporal.

Esta última se caracteriza porque señala los tiempos sucesivos de trabajo” (GVIRTZ, 1999, p.31).

E esse tempo também corresponde à sucessão do tempo característico da disciplina de História.

E, para Gvirtz, esse dado limita a geração de produtos diferentes, como se faz no computador ou

em um fichário, por exemplo. Assim, nos causa estranheza o caderno 2 da 5ª série, quando a

aluna copia conteúdos fora da ordem do tempo histórico e do tempo do caderno. Embora, como

já foi dito, isso pareça afetar mais quem já está completamente adestrado nessas normalizações

do que o próprio aluno de uma 5ª série. E esse nos parece um ponto muito importante – a

capacidade de fugir às normas apresentada pelos alunos menores e entrevista no resumo da aluna

da 7ª série – o que, muitas vezes, é visto como desorganização, ou até incapacidade de

compreender o conteúdo, por quem trabalha com eles ou os acompanha em uma observação.

Nesse caso, é pertinente pensar: o que aconteceria se eles não fossem exercitados para

cumprir regras? Que tipo de pensamentos, inquietações, perguntas, conclusões ou deduções

poderiam surgir? Que movimentos, que deslocamentos seriam produzidos? Qual seria a sua

relação com o conteúdo expresso no caderno? Que tipo de visão da História esses alunos

construiriam? Seria muito diferente daquela que se apresenta hoje? Essas possibilidades parecem

bastante inquietantes para sistemas normalizados da forma como a escola como um todo, o

currículo de História e os cadernos em particular, se apresentam. Por isso todas as constrições e

esquadrinhamentos. Assim, o produto final é sempre previsível e não há espaço para dúvidas ou

inovações que desacomodem o que está estabelecido e já se tornou tão natural.

Dessa forma, os alunos correspondem, de forma geral, a uma análise da produção do

autocontrole no uso do caderno e na assimilação das noções básicas da disciplina trazidas por um

currículo regulado pela concepção histórico-crítica acadêmica da década de 80/90, com uma

seleção de fatos vinculados às suas causas e conseqüências no tempo histórico formal. É um

currículo forjado através do cruzamento da seleção de teorias e temáticas da História, que estão

presentes no planejamento e nas aulas da Professora, assim como nos conteúdos do livro didático.

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Em se tratando dos conteúdos curriculares da História, estes são apresentados aos alunos,

em muitos momentos, de forma aligeirada e empobrecida, impossibilitando a aquisição de um

conhecimento histórico pleno das relações que o tornariam passível de suscitar questões que

fossem significativas para a compreensão do presente, o que é tido como um dos objetivos da

disciplina. O que nos parece um acontecimento limitado e, por conseguinte, um desperdício de

energia e material humano por parte de todos os envolvidos no processo. Pois é possível entrever

possibilidades muito ricas de trabalho nos momentos em que os alunos se manifestam em aula,

quando respondem questões de acordo com a sua percepção do significado do conteúdo, ou

quando realizam atividades com maior autonomia, como um resumo de estudos.

Assinalamos também, a permanência dos discursos legitimadores da História no currículo

escolar. A justificativa para a permanência da História nos currículos escolares é uma questão

bastante incômoda por não ser clara nem para os próprios protagonistas do ofício, os professores.

É tão incômoda que os alunos dela muito usufruem como último recurso para atormentar o

professor e desviar o tema da aula, e se resume na pergunta sobre a finalidade da História.

Analisamos brevemente a conjuntura histórica brasileira onde esses discursos legitimadores se

produziram e nos cabe agora pensar na situação atual.

Após as mudanças históricas da década de 90 e suas conseqüentes transformações sócio-

econômicas, como a globalização, a derrocada do Estado como promotor de bem-estar social e a

reorganização neoliberal da economia, houve um reordenamento dos caminhos da educação. Esta

foi direcionada para a inserção de mão-de-obra no mercado de trabalho, atuando no treinamento

do uso de novas tecnologias e possibilitando uma formação mais flexível dos futuros

profissionais. O aluno deve sair da escola treinado em múltiplas habilidades e com capacidade de

adaptação a diferentes situações de vida e de trabalho. Para Abud, “objetivos como transformar a

sociedade, fazer do aluno agente da história, foram substituídos por verbos como reconhecer,

identificar, respeitar, analisar conhecer” (ABUD, 2001, p. 138). E o professor participativo do

processo de redemocratização, se vê hoje completamente afastado das discussões sobre o seu

campo de conhecimento e de trabalho. A ele cabe o cumprimento de inúmeras tarefas

burocráticas, como suprir carências afetivas e formativas dos alunos, identificar e encaminhar

alunos “problema”, entre tantas outras atribuições que entraram perniciosamente no lugar do

trabalho com o conhecimento.

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Assim, só resta ao professor repetir o discurso de uma época na qual, provavelmente, se

sentia mais alinhado com as questões que ainda lhe diziam respeito em termos de atuação pessoal

e profissional. Voltamos à análise de Abud, para quem:

o sistema educativo descarta a importância dos valores regionais e da

participação dos excluídos no processo de transformação social. Concebe a idéia

de uma sociedade pronta, na qual devem ser inclusos aqueles que estão

excluídos. A inclusão do aluno na sociedade é concebida como inclusão como

força de trabalho, não como agente transformador, pois a idéia de transformação

desapareceu (ABUD, 2001, p. 137).

Nesse sentido, pensar a disciplina na sua acepção de formadora de valores e do espírito

crítico dos alunos encontra problemas. Se os alunos não são mais colocados como agentes

transformadores da História, para quê desenvolver neles a capacidade crítica? Assim, há um

esvaziamento do sentido desses discursos nos tempos que vivemos. E como ficou claro nos textos

passados pela Professora, nenhuma outra reflexão foi realizada que superasse essa anterior. E os

alunos poderão usufruir por mais tempo ainda desse tema tão precioso no seu catálogo de idéias

sobre “Perguntas para Desestruturar o seu Professor” – para que devemos estudar História?

Outro ponto importante é o valor retórico dos discursos em prol da disciplina, como trata

Mérchan Iglesias, que pouca ligação apresenta com a prática vivida pelos professores, pois

estamos discutindo uma situação que nem se concretiza no material analisado. O aspecto crítico

da História está colocado em termos de uma formulação acadêmica que não necessariamente

produz uma visão crítica por parte dos alunos. Ao chegar ao caderno de forma que o aluno copie

o tema proposto, faça o exercício com perguntas cujas respostas são diretamente encontradas no

texto e com número de linhas predeterminadas, o aspecto crítico, que muitas vezes já se perdeu

em um desses cruzamentos – proposta do PCN, livro didático, planos de aula, aulas expositivas –

não é perceptível para qualquer um dos envolvidos no processo educativo. Fica apenas o

aprendizado das normas relativas ao trato com a disciplina.

No sentido de auxiliar a elaborar melhor essas idéias, Ivo Mattozzi aborda questões

interessantes na discussão sobre os valores formativos da História. Para ele, a História só

educaria em valores se houvesse uma continuidade entre àquela praticada pelos historiadores e a

escolar. Entre os pontos que ele levanta para fundamentar o seu pensamento, está que a História

ensinada “não possui a riqueza de referências, de conceptualizações, de teorias, de argumentações

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que poderiam favorecer aquelas funções educativas” (MATTOZZI, 1998, p.23). O nível de

aprofundamento e a quantidade de obras historiográficas sobre um mesmo tema são muito

maiores que os desenvolvidos em um livro escolar, e permitem a ampliação de concepções

formativas. Para ele, é necessário admitirmos que a História ensinada possa não causar qualquer

efeito na promoção de uma visão crítica ou compreensão dos fatos do presente ou mesmo na

formação de valores éticos. Pelo contrário, a História ensinada pode contribuir para formar idéias

indesejadas e fornecer a base para pensamentos autoritários, preconceituosos, nacionalistas, entre

outros, como já se viu acontecer.

Se não estiver profundamente vinculada à formação cognitiva em relação ao

conhecimento histórico, a disciplina pode servir a qualquer tipo de apropriação de seus

conteúdos. Se estes estiverem afastados da sua inserção teórica e conceitual, que os situam como

um conhecimento que tem um arcabouço interpretativo, tudo pode passar a ser História, e daí

advém tantas aberrações na redução de conteúdos e teorias acadêmicas. Mattozzi reivindica uma

retomada do sentido da disciplina, menos ingênua, como vemos:

Estamos, pois, empenhados em estabelecer uma forte coerência entre os valores

afirmados nas finalidades e nos objetivos, o sistema de conhecimentos

históricos, a qualidade dos textos historiográficos escolares, a formação de

estruturas cognitivas e as formas de mediação didáctica e dos processos de

aprendizagem.

Tentei descobrir na formação cognitiva a gênese dessa coerência. Mas seja qual

for o critério fundador dessa coerência, considero-o capaz de formar não só

cidadãos democráticos esclarecidos como também um número cada vez maior

de bons conhecedores da História, o que pode contribuir para o progresso dos

estudos históricos, numa ligação virtuosa de história erudita e história escolar

(MATTOZZI, 1998, p.48).

Para Mattozzi, não há garantias nem que a História seja a melhor disciplina para formar

valores. Temos outras dentro das ciências humanas, como a Antropologia e a Filosofia, por

exemplo, que cumpririam muito bem essa função, talvez até com mais sucesso. Porém, colocado

esse papel para a História, pensar um currículo que atinja realmente os objetivos formadores da

disciplina é uma atividade que se faz necessária, mediante o esvaziamento das propostas

colocadas até aqui. Partindo do pressuposto de que é preciso usar as capacidades cognitivas para

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fazer escolhas entre diferentes maneiras de encarar o mundo postas pelos vários conteúdos

disciplinares, pensamos que uma opção interessante é fazer uma retomada do conhecimento

histórico e da sua validade por si mesmo. E só então, a partir e através do conhecimento dos

conteúdos e fundamentos da História, traçar o que é possível construir em termos de perspectivas

éticas para o presente.

Essas são as primeiras apreciações, no sentido do que se produz em uma aula de História

na escola pública, mas que continuarão a ser investigadas ao longo do trabalho.

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3 LIVRO DIDÁTICO

A utilização de suportes para o ensino não é uma característica nova nas atividades

educativas, como o visto em relação aos cadernos. Porém, o surgimento de uma literatura voltada

para a escola, no Ocidente, é um movimento que está profundamente vinculado ao processo de

institucionalização da educação. Este processo se situa no contexto de competição pela conquista

de almas, conseqüência da rivalidade entre as diferentes vertentes do cristianismo que surgiram a

partir da Reforma. Assim, o uso de um material didático de apoio para consolidar o conhecimento

adquirido, foi construído nos moldes de perguntas e respostas ligadas à catequese e promovido

pela necessidade de uma ação evangelizadora eficaz.

Esse processo de constituição de uma literatura voltada para a escola teve continuidade

no século XIX, quando passou a assumir um importante papel relacionado à formação dos

Estados Nacionais e à conseqüente passagem das atribuições educativas das famílias e das

autoridades religiosas para a esfera pública. Dessa forma, a literatura escolar mais próxima do

que se conhece hoje como livro didático, foi construída como “um símbolo da soberania

nacional”, com um conteúdo voltado a formar e manter as novas gerações no ideário das

diferentes nações surgidas a partir de então (CHOPPIN, 2004, p.555).

No Brasil, o contexto de formação do Estado Nacional seguiu as idéias do liberalismo

europeu do final do século XIX e início do século XX. No rastro dos ideais liberais, um

contingente mais amplo de pessoas passou a participar da vida política local e, com isso, houve a

necessidade de estender o ensino a um conjunto maior da população, que deveria ser educada

para isso. Contudo, não houve no país um rompimento com a Igreja Católica no processo de

construção da nacionalidade, como ocorreu em alguns países da Europa, e a formulação de novos

planos para o país aconteceu em uma alternância entre o poder da Igreja e o do Estado,

principalmente na disputa em torno da proposição de projetos educacionais (BITTENCOURT,

1993).

Nessa construção, as discussões em relação ao livro escolar se deram em torno da escolha

do tipo de conteúdos que deveriam ser veiculados. Questão esta que aparece sempre como um

ponto estratégico nas decisões relativas ao ensino. As opções giravam em torno de fazer cópias

dos manuais europeus ou escrever manuais nacionais, da mesma maneira que se discutia sobre a

validade de incorporar os novos conhecimentos das ciências modernas (como a Física e a

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Química). No projeto brasileiro prevaleceu, inicialmente, a produção local, com a inclusão da

Geografia e da História Nacional nos conteúdos dos currículos e dos livros didáticos, devido à

necessidade da “formação do ‘sentimento nacionalista’ sem deixar, entretanto, que as futuras

gerações de letrados perdessem o sentimento de pertencer ao mundo civilizado”

(BITTENCOURT, 1993, p.31).

Percebe-se, assim, a profunda vinculação entre os aspectos políticos mais amplos e a

produção do livro didático, mesmo quando este ainda era apenas um simples material de leitura

utilizado nas escolas. No início essa vinculação estava voltada para a delimitação do seu

conteúdo, definido em torno da História Geral e da História do Brasil, mas, contemporaneamente,

também assume contornos importantes nos aspectos de sua produção e consumo. Para Choppin,

os livros didáticos:

pueden ser reproducidos en gran número y ser difundidos en todo el território de

um país. Fijando por escrito el contenido educativo, [...] su eficacia procede

también de la lenta impregnación que permite su utilización frecuente,

prolongada, repetida. Constituyen así poderosas herramientas de unificación –

hasta de uniformización – nacional, lingüística, cultural y ideológica

(CHOPPIN, 1998, p.169).

Como se pode perceber, a conexão estratégica entre as relações de poder nos seus

diferentes níveis e a utilização do livro em sala de aula foi adquirindo um grau de complexidade

cada vez maior, pelas próprias características que permitiram a ele se tornar um veículo

popularizado pelas necessidades do processo de escolarização e de formação do Estado Nacional.

Esta complexidade também aparece quando tentamos definir esse objeto como uma fonte de

pesquisa, primeiramente pela dificuldade em determinar as relações que esse suporte do ensino

estabelece com diferentes níveis da esfera política, econômica e educacional, que se expressam

de forma mais nítida em alguns dos seus aspectos. Na esfera política, aparece na sua relação com

o âmbito institucional, como as leis, propostas curriculares e programas de avaliação de livros

didáticos (no caso brasileiro, o Programa Nacional do Livro Didático - PNLD). No aspecto

econômico, isto é percebido na relação com as editoras que produzem esse tipo de material e no

mercado de proporções gigantescas que o consome. Já no âmbito educacional, esta complexidade

se dá nas questões epistemológicas do conhecimento produzido na academia e na sua apropriação

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pelos livros didáticos. Na sala de aula aparece na metodologia e na seleção dos conteúdos

curriculares que o livro didático põe em funcionamento.

Em segundo lugar, por ser um tema de pesquisa muito recente, apresenta-se ainda pouco

definido, conforme analisa Alain Choppin, no artigo no qual faz um estado da arte sobre os

livros e edições didáticas (CHOPPIN, 2004). Isso se traduz, por exemplo, na grande quantidade

de expressões existentes para designá-lo como objeto e na inexistência de obras de sínteses, uma

vez que os estudos do tema são apresentados, em geral, em artigos ou capítulos de livros. Antonio

Augusto G. Batista também coloca a complexidade em definir com exatidão este objeto de

estudo, principalmente para aqueles que pesquisam o aparecimento desse material nas diferentes

formas em que se estabeleceu (BATISTA, 2007). Atualmente, essa tarefa não se torna mais

simples, pois, novamente, o texto didático aparece não apenas no formato de livro editado, mas

também em várias linguagens tecnológicas alcançadas através do computador (bibliotecas

virtuais, sites de pesquisa) e outros suportes ligados à informática, como CD ROM, por exemplo.

Outro aspecto complexo para a sua definição é quanto à utilização que se faz do material

didático, que apresenta variadas configurações, dificultando a definição de regularidades no seu

manuseio.

Em decorrência destas características, que demonstram a complexidade dessa fonte,

trabalharemos com a denominação de livro didático ao material impresso e publicado por uma

editora, que contém o conteúdo da disciplina e os exercícios relativos a ele e que é utilizado como

um manual em sala de aula pelo professor e pelos alunos em uma relação de ensino-

aprendizagem7. A sua análise será realizada a partir da perspectiva de que ele também se constitui

como um dispositivo curricular, pois, na materialidade do livro didático, cruzam-se as diferentes

determinações político-institucionais, econômicas e educacionais apresentadas acima.

Embora o livro didático não seja um dispositivo de não autoria, como o aspecto

destacado por Chartier em relação aos cadernos, ele aparece como um artefato naturalizado no

processo de escolarização. Diferentemente do material voltado para a literatura, o uso do livro

didático é cotidiano ao longo de todo o ano escolar: ele é trazido para a aula quase que

diariamente, é lido com freqüência e, para consternação governamental (o livro didático é

7 Para uma discussão sobre a conceituação de livro didático no Brasil, ver também: LAJOLO, Marisa. Livro didático: um (quase) manual de usuário. Em Aberto. n 69, ano 16. 1996.

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fornecido para o sistema público de forma gratuita e deve ser reutilizado, mas, para isso, deve ser

não consumível), é muitas vezes rabiscado e manuseado de diferentes formas. Por estes motivos,

empregamos o termo uso – ao invés de leitura – para delimitar as “tantas práticas diversificadas”

que se estabelecem no seu manejo, incorporando a definição de Munakata (2007, p.578).

Outro aspecto a se destacar na apreciação do livro didático como um dispositivo

curricular, voltando à análise realizada por Choppin, é que ele se distancia de outras obras

escritas também pela regulamentação que é exercida na sua produção e nas formas do seu

consumo, como segue:

ella [a produção do livro] es más estricta, se ejerce en la forma de esta obra (elaboración,

concepción, fabricación, autorización) o en su uso (modo de difusión y financiamiento,

procedimientos de selección, utilización). El libro de texto constituye así un precioso

indicador de las relaciones de fuerza que estabelecen (...) los diversos actores del sistema

educativo pues el grado de libertad que gozan sus redactores y quienes los utilizan puede

variar considerablemente (CHOPPIN, 1998, p. 170).

Conforme será apresentado adiante, essa característica dos livros didáticos define muitos

de seus aspectos, como a configuração do conteúdo que será veiculado e o uso que professores e

alunos farão desse material na relação ensino-aprendizagem que o caracteriza.

Dessa forma, esse material será investigado da mesma maneira que os cadernos escolares,

como uma fonte para o estudo do que se produz em sala de aula a partir do currículo de História.

Embora haja cuidados a serem tomados nessa abordagem – como a possibilidade de se analisar

apenas os conteúdos e desconsiderar os aspectos técnicos, sociais e econômicos, que também

condicionam esse material (GALVÃO; BATISTA, 2003) – será avaliado neste estudo, junto aos

aspectos anteriores, um outro, que é o que nos interessa de fato: o dos efeitos produzidos pelo uso

desse tipo de dispositivo curricular nas práticas da sala de aula de História.

Além disso, como a proposta do trabalho é percorrer as diferentes camadas através das

quais circula o currículo de História, seguiremos a proposição de Galvão e Batista de usar como

estratégia de análise o cruzamento de outras fontes que auxiliem a realização de um exame que

perceba amplamente os diferentes aspectos presentes na materialidade desse tipo de obra e que

acabam por influir na seleção curricular presente nas coleções.

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Este cruzamento de fontes é parte integrante da visão analítica que propomos em todas as

camadas examinadas neste estudo, pois nos interessa “o conjunto dos procedimentos discursivos

dos quais esses conteúdos fazem parte”, sejam eles da estrutura institucional e política, das

relações de poder que os regulam e que eles fazem regular, ou dos saberes que instituem

(GALVÃO; BATISTA, 2003, p.167).

Neste caso, referem-se à análise do currículo estabelecido pelo livro didático na sua

intersecção com os aspectos da sua regulação, postas pela avaliação e seleção dos livros realizada

através do PNLD e pela dinâmica econômica do mercado editorial, para que se possa, então,

realizar a análise do uso que se faz desse material pela Professora e pelos alunos, através do

cruzamento do que se expressa nos cadernos escolares e nas observações de aula.

Dessa forma, pretendemos averiguar como se estabelece o currículo de História presente

em uma coleção didática na intersecção dessas variadas demandas e como elas acabam por influir

no seu conteúdo e no currículo que põem em funcionamento na sala de aula.

Para iniciarmos uma avaliação que contribua na compreensão das formas de regulação

exercidas sobre a produção do material didático e sobre a definição do seu conteúdo curricular, é

importante considerar o controle exercido pelo Estado, na proporção em que afetam a produção e

consumo dessas obras. Existem diferentes modalidades de se exercer essa regulação, segundo

Choppin (1998). Em alguns países, os sistemas de produção e consumo são fechados e o próprio

Estado produz o material para o ensino, cujo uso é obrigatório. Já em outros é necessária uma

autorização prévia dos administradores da educação para a utilização dos livros, apesar da sua

produção estar a cargo de empresas privadas. Uma terceira configuração é aquela em que a

produção das obras é privada e os professores podem escolher livremente o material a ser

adotado. Todavia, nele não se prescinde do controle do Estado, que pode vetar obras com caráter

ideológico ou que tenham um conteúdo ultrapassado.

É neste último sistema que o Brasil se encaixa, ao instituir o controle através do processo

de avaliação do PNLD, que sanciona as coleções que podem ser adotadas nas escolas públicas

brasileiras. A existência de políticas públicas de controle do material didático não é recente no

Brasil, uma vez que a instituição desses materiais esteve atrelada à formação do nacionalismo,

conforme visto anteriormente. Nesse sentido, é esperado que o Estado tenha exercido um controle

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das obras para adequá-las aos padrões de divulgação de determinados valores vinculados ao

nacionalismo, como foi o caso, no Brasil, do período do Estado Novo ou da ditadura militar.

Atualmente essa política de avaliação assume um caráter diverso, ao determinar as

coleções que poderão ser adquiridas pelo governo para a distribuição gratuita nas escolas

públicas. O programa de avaliação brasileiro teve seu início efetivo – para a 5ª até a 8ª série – a

partir de 1996, num cenário político democrático, de configuração econômica neoliberal. A partir

de então houve três processos avaliativos dos livros de História, realizados em 1999, 2002 e

2005, e a publicação do Guia de Livros Didáticos (pelo Ministério de Educação - MEC), que

divulga os resultados da avaliação realizada pelo programa, assim como a exclusão dos livros que

não atendem aos parâmetros mínimos estabelecidos para cada disciplina.

Esse panorama alterou profundamente o mercado editorial brasileiro, primeiramente pelo

volume de livros que são comercializados nas vendas para o governo a partir dessa seleção.

Atualmente a produção de livros didáticos movimenta mais de 50% da indústria editorial

brasileira, criando uma grande dependência das editoras em relação a ela (CASSIANO, 2004).

Além disso, houve uma reconfiguração desse mercado no Brasil, promovida a partir desse

programa. Editoras desapareceram (algumas em função da não recomendação de seus livros

depois da avaliação), outras se fundiram em grupos editoriais e parte delas foram compradas por

empresas estrangeiras de grande porte (MIRANDA; LUCA, 2004). O conjunto dessas

características originou muitas críticas ao PNLD, sendo algumas por parte dos autores e editoras

que viram os seus livros serem excluídos do programa. Outra crítica que se faz é sobre a

constância com a qual as mesmas grandes editoras aparecem com as maiores vendagens de livros

para o governo, apenas com pequenas alterações na ordem dos seus títulos (CASSIANO, 2004).

Uma série de considerações pode ser feita em relação ao PNLD. Mesmo que alguns de

seus aspectos sejam passíveis de questionamentos, não se pode negar que entre os seus mais

importantes efeitos estão a melhoria da qualidade do material didático produzido para as escolas

públicas. Participando da revisão de uma coleção para adequá-la às normas exigidas para

participar dessa avaliação, tivemos a experiência de perceber quantas alterações são efetivadas,

melhorando os aspectos gráficos, a abordagem do conteúdo e, inclusive, corrigindo erros que

passaram na edição fornecida para o consumo das escolas particulares. De certa forma, é

reconfortante pensar que a própria ordem econômica perversa e excludente na qual vivemos, ao

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buscar um lucro assombroso com a venda de livros ao governo, engendre esse tipo de dinâmica,

na qual as escolas públicas saem ganhando, pelo menos nesse aspecto.

Quanto aos critérios de avaliação dos livros de História, os mais relevantes para a

exclusão de uma obra têm sido a existência de erros, preconceitos ou proselitismo de qualquer

natureza, bem como de incoerências graves entre a proposta metodológica do livro e a sua

aplicação ao longo da obra. O que permitiria pensar que distorções desse tipo não mais

ocorreriam, pois esse posicionamento traria a conseqüente perda de mercado pelas editoras.

As autoras Tânia de Luca e Sonia Miranda, que coordenam a Área de História da

Comissão Técnica do MEC, destacam que o processo de avaliação tem como meta não ser

prescritivo, mas que, dentro da diversidade dos materiais analisados, procura adotar critérios que

permitam uma percepção das diferentes propostas pedagógicas do ensino de História presentes

nas coleções. Assim, esses critérios são compostos pelos itens: Metodologia de Aprendizagem

(30 pontos), Metodologia da História (30 pontos), Manual do Professor (15 pontos), Cidadania

(15 pontos) e Aspectos Editoriais (10 pontos) (MIRANDA; LUCA, 2004, p. 143). A

Metodologia da Aprendizagem e a Metodologia da História assumem um maior valor pelo seu

caráter de estabelecer a estrutura na qual se configurarão os conteúdos dos livros.

A avaliação desses itens não é realizada de forma linear. O que se busca é cruzar

informações em gráficos que acabam por situar as coleções dentro de quatro temáticas mais

significativas para o panorama de interesses atuais em relação ao ensino de História. São estas: “a

perspectiva quanto à visão de História, a relação com o processo de construção do conhecimento

pelo aluno, a orientação curricular e a relação genérica com o conhecimento” (MIRANDA;

LUCA, 2004, p. 134). Cada uma destas classificações gerais possui alguns subitens, dentro dos

quais as coleções são agrupadas conforme o tipo de abordagem que utilizam. Neste trabalho

descreveremos apenas os subitens nos quais a coleção utilizada na escola se encaixa, permitindo

que se possa compreender melhor como esses critérios são materializados na coleção que ora

analisamos.

Ainda visando uma melhor compreensão das quatro temáticas e de seus subitens, segue

quadro explicativo:

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Perspectiva quanto à visão de História

Relação com o processo de construção do

conhecimento pelo aluno

Orientação curricular

Relação genérica com o

conhecimento

Visão global Paradigma cognitivista História integrada Renovada

Visão procedimental Paradigma informativo História nacional Tradicional

Visão informativa História temática EcléticaTabela 1: Temáticas das coleções.

A coleção estudada intitula-se Navegando pela História e suas autoras são Silvia Panazzo

e Maria Luísa Vaz. É publicada pela Quinteto Editorial e foi aprovada pelo PNLD na sua

primeira edição, de 2002. Nela é aplicada a perspectiva quanto à visão de História designada por

“visão global”, isto é, a que articula a visão informativa do conteúdo com a sua cronologia e

seleção de temas tradicionais, buscando alterná-la com a percepção da construção do

conhecimento histórico, problematizando fontes e relativizando explicações. Essa abordagem

oferece uma visão da perspectiva explicativa da História, sem esquecer que o seu conhecimento é

provisório, pois sofre constantes revisões a partir das diferentes perguntas que lhe são feitas.

Já no que diz respeito à relação com o processo de construção do conhecimento pelo

aluno, os temas propostos na coleção, pela sua abordagem, se situam no “paradigma

cognitivista”, propondo um diálogo com o aluno através das possibilidades explicativas da

História e do estabelecimento de analogias. Quanto ao programa que propõe (ou seja, sua

orientação curricular), trata-se da “História integrada”, que busca articular a História Geral com a

História da América e do Brasil. Um último quesito se refere à relação que as obras mantêm com

o desenvolvimento historiográfico e, nesse caso, situa-se no âmbito “eclético”, isto é, “mantém a

narrativa com base nos recortes clássicos de conteúdos, mas as obras abrem-se de modo

significativo e relevante para uma renovação historiográfica de caráter tópico” (MIRANDA;

LUCA, 2004, p. 141).

No caso da coleção analisada, como é um material que compõe o terceiro processo

avaliativo, sendo então aprovada, podemos inferir que sua formulação já se deu no processo de

adequação ao PNLD. Nesse sentido, torna-se interessante observar os efeitos desses critérios

sobre a disposição do currículo de História, da metodologia e das atividades propostas nessa obra.

Ainda procurando observar as diferentes articulações que acabam por influir no seu conteúdo e

na seleção curricular, empregaremos os critérios do PNLD como guia na análise da coleção.

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Outra observação que gostaríamos de apontar é que, como as classes observadas são de 5ª e 7ª

séries, os volumes que analisaremos são os correspondentes a estas duas séries.

Apesar da coleção se situar dentro da perspectiva da visão global, o aspecto da

problematização de fontes e da relativização de explicações, quando há, se restringe às atividades

finais dos capítulos. Quanto ao aspecto da proposta do programa ser a História integrada, o

volume de 5ª série é dedicado ao estudo da Pré-História e História Antiga, desconsiderando o

estudo de temas relacionados à pré-história brasileira ou americana. Somente em boxes e textos

complementares é possível encontrar algumas informações sobre a Pré-História brasileira. Como

é o caso dos textos sobre os índios em box das páginas 24, 51 e 52 (Anexo 4) e na seção

denominada Texto Complementar da página 26 (Anexo 4).

Há uma exceção no tocante à origem do homem americano, tratada como texto do

capítulo 4, na página 44 (Anexo 5), mas sem referências aos povos pré-colombianos. O recorte

feito em relação a esses povos também é temporal, pois o seu estudo não aparece no tema de pré-

história do volume da 5ª série, mas aparece como primeiro subtítulo no processo de colonização

da América da Unidade I da 7ª série, como conteúdo que antecede cronologicamente a chegada

dos europeus no continente.

Os textos de conteúdos não são, em sua essência, diferentes dos encontrados em outros

livros didáticos. Uma introdução que apresenta o tema ao leitor inicia os textos dos capítulos,

seguida de um item que aborda o espaço ocupado pela sociedade em estudo. A organização

política, a organização social, a cultura e a economia de cada povo são abordadas em diferentes

subtítulos, demonstrando a formatação homogênea das unidades, já que, em todos os capítulos,

praticamente os mesmos sub-temas são abordados.

A maior parte do volume concentra-se, contudo, nos temas da Antigüidade Oriental e

Antigüidade Clássica, guiados pela linha cronológica do surgimento das civilizações, distribuindo

os conteúdos da seguinte forma:

- Unidade III. Cultura e sociedades do Oriente Antigo: estudo de caso

6. Povos da Mesopotâmia

7. Egípcios

8. Hebreus

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9. Persas

10. Fenícios

- Unidade IV. Culturas e sociedade do Ocidente Antigo: estudo de caso

11. Gregos

12. Romanos

Como podemos observar, os conteúdos relacionados não fogem aos tradicionais,

distribuídos numa seqüência temporal. Além disso, se emprega a expressão “estudo de caso” sem

que efetivamente se realize tal estudo. Aliás, esse tipo de investigação não se coaduna com a

produção didática, pois se caracteriza por ter como objeto de estudo uma entidade bem definida,

seja um programa, uma instituição ou um sistema educativo. Esse estudo também propõe analisar

em profundidade as características de seu objeto de estudo, utilizando para isso grande variedade

de estratégias no desenvolvimento da pesquisa. Em síntese, a produção de uma obra didática tem

exigências que tornam impossível um estudo de caso. Aí se tentou inserir uma inovação que ficou

deslocada do contexto da obra.

Em forma de box ou textos complementares, alguns sub-temas são tratados de forma

inovadora, introduzindo documentos originais, análises historiográficas e muitas ilustrações de

boa qualidade, que, em tese, poderiam ser utilizadas pela Professora para um trabalho pedagógico

motivador com os alunos. Os textos complementares, tanto no volume de 5ª quanto no de 7ª série,

provêm tanto de livros paradidáticos, revistas e jornais, quanto de trechos de obras de

historiadores consagrados, além de alguns compostos por pinturas e charges (no caso do volume

destinado à 7ª série8). Os exercícios propostos na seção Atividades são regulares em toda a

coleção e compostos das seguintes partes: Ampliando o Vocabulário, Sistematizando o

Conhecimento, Aprofundando o Conhecimento e Extrapolando o Aprendizado. Em geral, são

exercícios que buscam avançar na aquisição de habilidades cognitivas, como fazer relações e

análises de acontecimentos históricos.

8 A justificativa dessa inserção está no texto do caderno Apoio Pedagógico, situado ao fim dos volumes: “Em alguns casos, charges, fotografias, reproduções de obras de arte constituem o próprio Texto Complementar, cuja leitura e interpretação têm os mesmos objetivos da linguagem escrita” (VAZ; PANAZZO, 2002, p. 7).

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A configuração do tratamento do conteúdo através da História integrada só inicia a partir

da 6ª série, quanto se intercalam História da América e do Brasil e História Geral. Porém, cada

unidade abrange apenas um dos tipos de conteúdos nos seus capítulos internos: ou História Geral,

ou da América e do Brasil, sem que necessariamente seja trabalhada uma relação entre eles. Estes

conteúdos seguem a periodização clássica da História (História Antiga, Medieval, Moderna e

Contemporânea) e a sua correspondente na História do Brasil (Colônia, Império e República) em

uma seqüência de tempo linear.

Nessa perspectiva, a organização do volume destinado à 7ª série mescla conteúdos da

História da América e do Brasil colonial e da História Européia:

- Unidade I: O processo colonizador

1. Diversidade cultural das sociedades pré-colombianas

2. A colonização do Brasil

3. A colonização da América

- Unidade II: Crise açucareira e mineração no Brasil

4. Disputas pelo açúcar

5. Rumo ao interior

6. As minas das gerais

- Unidade III: A consolidação da burguesia

7. Revoluções inglesas do século XVII

8. O Iluminismo

9. A Revolução Industrial

10. A Revolução Francesa

11. A Europa napoleônica e pós-napoleônica

- Unidade IV: O processo de emancipação colonial

12. O fim do domínio metropolitano

13. O processo de independência do Brasil

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- Unidade V: Emerge uma nação

14. O primeiro reinado

15. A Regência

Da organização do volume de 7ª serie, manteve-se a introdução, que apresenta o tema ao

leitor, mas a forma de distribuição dos conteúdos pelos capítulos não segue critérios pré-

estabelecidos, nem se organiza de forma igual pelo volume, como acontece no caso da 5ª série. É

fácil compreender por que isso ocorre. Como o critério de seleção é meramente temporal, não

existe possibilidade de se organizar igualmente temas como a descoberta de ouro no Brasil e a

Revolução Industrial, por exemplo. Faz-se um breve comentário no texto, que às vezes fica

incompleto pela sua descontextualização (lembremos do “Tratado dos Panos”, porque os ingleses

forneciam tecidos para Portugal em troca do ouro das minas, versão empobrecida do tema,

analisada no capítulo sobre o caderno dos alunos).

Na Unidade IV desse volume, há um capítulo que se aproxima da proposta de História

integrada através de um tema e não da cronologia. Este trata da emancipação colonial (Vaz;

Panazzo, 2002, 7ª série, p. 140-153) e nos permite avaliar o alcance da proposta e as

possibilidades abertas pelas atividades indicadas nos exercícios. No capítulo 12 (O fim do

domínio metropolitano) é tratado o processo de independência das treze colônias inglesas e da

América espanhola. Ainda que os assuntos sejam abordados em duas partes (poderiam ser três, se

houvesse a continuação da proposta com a independência brasileira), pelo menos estão colocados

na mesma unidade e na seção Atividades busca-se uma articulação entre eles. Como exemplo,

pode-se citar o exercício 1, de Sistematizando o Conhecimento, que propõe uma síntese das

diferenças entre os dois processos de colonização. No exercício proposto no Aprofundando o

Conhecimento, é solicitado ao aluno que faça uma articulação entre a Independência dos Estados

Unidos e a Revolução Francesa, como acontecimentos que fazem parte da crise do Antigo

Regime, através da Declaração dos Direitos do Homem elaborada pelos franceses e da

Declaração da Independência dos Estados Unidos e da sua Constituição. O exercício pede que os

alunos levantem as semelhanças das idéias contidas nos documentos e se os documentos trazem

ideais iluministas. Por fim, pergunta se os contextos da sua produção podem ser relacionados

(VAZ; PANAZZO, 2002, 7ª série, p. 152).

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Essas atividades permitem que se empreguem diferentes níveis de habilidades cognitivas

– como comparar acontecimentos e identificar informações em documentos – que possibilitam

uma compreensão ampla do contexto histórico trabalhado. Isso demonstra que a proposta de

integrar realmente os conteúdos de forma simples, porém efetiva, é passível de ser aplicada.

Muito embora ela pudesse já estar diretamente no texto, um outro tipo de intervenção serviu de

auxiliar para a consolidação da proposta, como foi feito nesse caso com as atividades. Demonstra

também que uma aula na qual essas relações fossem apresentadas teria um bom respaldo em uma

revisão feita através desses exercícios.

No contexto geral da coleção, vimos que nos conteúdos dos capítulos há a “visão

informativa”, numa seqüência cronológica. Contudo, a parte mais inovadora da coleção, como a

problematização de fontes, o estabelecimento de analogias (que comporia o “paradigma

cognitivista”) e o diálogo com temas da renovação historiográfica (que compõe o recorte

“eclético” dentro da avaliação), ocorrem de forma periférica, através de boxes, textos

complementares e exercícios. Eles são inseridos, como o descrito pelas próprias coordenadoras,

“com um caráter tópico” (MIRANDA; LUCA, 2004, p. 141).

Esta disposição daquilo que seria o realmente inovador dentro de uma coleção didática da

História nos leva a fazer algumas reflexões. Uma das questões que pode ser pensada a esse

respeito refere-se ao mercado editorial de livros didáticos. Kazumi Munakata alerta para o fato de

que uma das facetas desse material na atualidade é a sua contextualização como mercadoria.

Nesse caso, o livro didático atende às demandas do seu tempo ao incorporar discursos presentes

em outras instâncias, como o saber acadêmico e as prescrições curriculares oficiais que, por sua

vez, são setores que também refletem as demandas políticas e sociais de sua época

(MUNAKATA, 1998). O livro didático se adapta a essas modificações e assume os contornos

dessas demandas para se tornar uma mercadoria vendável no lucrativo mercado editorial do país9.

Desde o primeiro ano de avaliação dos livros de História pelo PNLD, em 1996, estes vêm

sendo acrescidos de vários tipos de fontes históricas e textos historiográficos incorporados do

saber de referência, conforme observado na coleção que ora analisamos, com um tratamento que

9 Sobre o livro didático como mercadoria no Brasil, uma análise interessante, entre outras, é a de: BATISTA, Antonio Augusto Gomes. Um objeto variável e instável: textos, impressos e livros didáticos. In: ABREU, Márcia (org). Leitura, história e história da leitura. Campinas: Mercado de Letras: Associação de Leitura do Brasil; São Paulo: FAPESP, 1999. (Coleção Histórias de Leitura). 2ª Reimpressão: junho de 2007.

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varia quanto ao grau de aprofundamento. Igualmente, vêm incorporando os discursos – como os

que também aparecem nos cadernos – de despertar a consciência crítica e cidadã dos alunos,

propondo para isso uma História reflexiva e democrática, temas presentes nas propostas

curriculares oficiais e na proposta didático-metodológica da coleção que será analisada adiante.

Essas são inovações propostas pelo processo de renovação dos materiais didáticos,

exigido pela avaliação estatal e pelo mercado consumidor. Então, não podemos afirmar que o

livro em questão não atenda as propostas inovadoras, pois elas ali estão para que o professor as

utilize. Porém, neste estudo, vemos que essas propostas apenas tangenciam o conteúdo que está

nos livros didáticos. Podemos dizer que houve uma renovação em termos de atualização de

informações, mas as abordagens propostas no cerne dos conteúdos dos livros sofreram pouca

alteração.

Em relação à História integrada, na perspectiva das coordenadoras da Área de História do

PNLD a partir do que está disposto nos livros avaliados, ela é definida pelo:

tratamento da História da civilização ocidental de modo articulado com os

conteúdos de História do Brasil e História da América (...) tendo por eixo

condutor uma perspectiva de tempo cronológica e sucessiva, definida a partir da

evolução européia. Integram-se, a partir desse epicentro, as demais culturas não

européias pelo viés cronológico (MIRANDA; LUCA, 2004, p. 139).

Todavia, alguns autores, como Circe Bittencourt, apontam problemas em relação ao tipo

de abordagem integrada (BITTENCOURT, 2005). Um deles é a diminuição dos conteúdos de

História do Brasil decorrente da visão, da qual ainda somos tributários, da superioridade cultural

da Europa e do conseqüente papel periférico da nossa história nacional em relação a ela. Essa

diminuição de conteúdos não ocorre de forma gritante na coleção, mas no volume da 5ª série

vimos o exemplo da abordagem periférica da pré-história brasileira e americana em relação à pré-

história geral.

Embora considere que a história brasileira deva ser compreendida de forma integrada aos

acontecimentos com os quais se relaciona, Bittencourt vê essa integração de conteúdos de forma

mais ampla, isto é, não passando apenas pelas nossas conexões com a Europa. No caso, defende

que não se omita a história de outros povos vinculados à nossa formação, como os norte-

americanos e africanos. Trata-se de procurar ultrapassar o modelo eurocêntrico de compreensão

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histórica da nossa sociedade, ampliando a percepção do espectro de relações que a nossa

constituição como povo e como cultura possui, inclusive abrangendo o ponto de vista das

diferentes regiões brasileiras, através da incorporação dos estudos regionais.

Outro aspecto a ser avaliado está relacionado à linearidade temporal do currículo dos

livros didáticos de História e a sua divisão em períodos, mesmo compondo uma História

integrada. Em uma análise a respeito da proposta de ensino temático como eixo curricular para o

ensino da História, Katia Abud avalia os problemas trazidos para a compreensão do conteúdo

através dessa sucessão quadripartida (ABUD, 1996).

Primeiramente, ela define estágios progressivos da humanidade com o correr do tempo,

sendo o guia da chegada a um estágio contemporâneo, onde o progresso positivista se encontra.

Outro aspecto apontado por Abud é que essa divisão produz a exclusão do tempo de outras

culturas. A América e a África não se encaixam nessa trajetória, a não ser perifericamente, o que

nos conduz, mais uma vez, à visão eurocêntrica da História ensinada. Uma terceira questão se

refere à ênfase dada aos fatos políticos, que são os definidores da passagem de uma etapa a outra

da História. Assim, a queda do Império Romano ou a Revolução Francesa são episódios da

História que ganham um destaque maior em relação a outros acontecimentos de outros tempos e

lugares.

Porém, em termos de conteúdos dos livros didáticos, essas críticas e as discussões em

torno delas, embora venham sendo feitas já há algum tempo, ainda não surtiram o efeito que se

esperaria pela consistência que possuem. Como conseqüência deste fato, esses aportes ainda

encontram dificuldades em se concretizar de forma sólida e as proposições lineares não são

superadas. Segundo Miranda e Luca, 76% dos livros avaliados têm como programa a História

integrada e 7% trabalham com a História nacional, sendo ambas as abordagens tratadas através da

cronologia (MIRANDA; LUCA, 2004). Os outros 17% trabalham com História temática, que

mereceria uma outra discussão que não nos cabe aqui fazer.

Um dos fatores que dificulta a inclusão dos estudos e das propostas curriculares das

regiões mais afastadas do país, por exemplo, é o fato das editoras estarem centralizadas na região

sudeste, notadamente em São Paulo, distantes das pesquisas realizadas em outras regiões. Outro

ponto é que trabalhar com especificidades regionais ou com uma abordagem de História

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integrada que fosse mais do que a colagem de assuntos no contexto cronológico exige muito

preparo por parte dos professores e um grau de especialização que nem todos possuem.

Há ainda as razões de mercado, nas quais Rafael Valls situa a dificuldade das editoras em

definir a grade curricular do livro didático (VALLS, 2006). Para atender à capacidade de

aprendizagem dos alunos, a opção deveria ser por realizar uma seleção restritiva dos temas a

serem trabalhados, possibilitando um tratamento mais aprofundado dos mesmos. Ocorre que são

os professores que escolhem o material a ser adotado durante o ano, sendo que alguns preferem

um livro com uma abordagem tradicional dos conteúdos e grande quantidade de fatos históricos,

enquanto outros preferem que o livro apresente mais inovações historiográficas. Por questões

econômicas, a opção das editoras é incluir o máximo de material possível nas edições, atendendo

às diferentes demandas dos professores, mesmo que isso resulte em:

un tratamiento didáctico más superficial [dos temas], con lo que dificilmente se

logra que los alumnos lleguen a uma comprensión mínimamente asentada de los

mismos, dado el escaso margen de tiempo disponible para cada uno de estos

temas (VALLS, 2006, p.253).

A escassa presença dos estudos regionais, segundo Valls, e que acrescentamos aos fatores

da análise anterior, acontece também por motivo econômico. Para a incorporação desse tipo de

material seria necessário criar muitas variantes dentre as coleções, o que requer muito tempo e

investimento. A opção que se faz no contexto espanhol, que nesse aspecto é semelhante ao

brasileiro, é acrescentar algum subtítulo ou Texto Complementar colocando as questões mais

importantes sobre esses temas, como acontece no livro da 5ª série em relação à pré-história

brasileira e americana.

Dessa forma, os estudos historiográficos regionais, ou uma História integrada que não seja

apenas encaixe de conteúdos na ordem cronológica, quando são incorporados ao conteúdo

escolar, não o são através do livro didático, no qual a inclusão desse tipo de temática ainda é

insuficiente. Pode-se supor que, quando se realizam esses estudos em sala de aula, seja a partir de

outros materiais produzidos localmente, ou através de livros paradidáticos. Quanto à História

integrada, esta é trabalhada na maior parte do tempo sem qualquer inovação em termos de

abordagem e com pouca contextualização efetiva das relações que ela permitiria realizar.

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No capítulo 13 (O processo de independência do Brasil), há uma outra aproximação à

História temática (VAZ; PANAZZO, 2002, 7ª série, p. 154-170). Este traz os principais aspectos

dos movimentos emancipatórios no país, a vinda da família real, o papel das idéias liberais em

Portugal e a insatisfação dos portugueses com o afastamento da família real, que gerou a

Revolução do Porto, até a emancipação política propriamente dita. Embora não falte o

indefectível quadro de Pedro Américo, chamado “Independência ou Morte” (sem nenhuma

contextualização), o texto articula bem as questões envolvidas nesse processo histórico, como os

interesses políticos e econômicos em jogo, e dispensa considerações ufanistas, como a celebração

do Dia do Fico, por exemplo. Outro aspecto relevante é o acréscimo de fontes no corpo do texto,

como o folheto de divulgação das idéias da Conjura Baiana. Também há partes de textos

historiográficos clássicos, como um trecho do livro “História Econômica do Brasil”, de Caio

Prado Júnior.

A apreciação dos capítulos confirma a análise realizada por Valls a respeito da definição

dos conteúdos presentes nos livros didáticos, que é realizada ainda na editoria (VALLS, 2006).

Fica nítida a opção pelo maior número de informações possível, algumas mais e outras menos

adequadas à proposta metodológica da coleção, visando atender a todo tipo de demanda. Cabe

então ao professor realizar a seleção daquilo que melhor se adapte ao seu trabalho em sala de

aula.

Como falamos sobre o caráter de mercadoria como um dos aspectos do livro didático,

cabe aqui uma referência às características editoriais da sua produção, pois elas ajudam a nos

informar sobre o tipo de texto elaborado e os critérios técnicos nos quais esses textos tiveram que

se inserir. Essas características também nos permitem pensar a respeito da regulamentação

constitutiva desse tipo de obra, aspecto ressaltado por Choppin (1998).

Dessa forma, a primeira observação a ser feita é sobre o corpo técnico que realiza a

produção da coleção. As autoras do material, Silvia Panazzo e Maria Luísa Vaz, são licenciadas

em História e professoras no Ensino Fundamental, Médio e Superior (no caso de Maria Luisa

Vaz). A confecção dos livros conta ainda com duas editoras, duas editoras assistentes e um editor

de arte. Há também o responsável pelo projeto gráfico e pela capa, assim como um grupo de três

ilustradores, três pessoas responsáveis pela iconografia e uma pessoa responsável pelos mapas. E

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ainda há uma empresa responsável pela editoração eletrônica. São treze pessoas diretamente

relacionadas com a produção da coleção, além das duas autoras e da empresa contratada.

Esse fator nos possibilita pensar, entre outras questões, sobre o grau de autonomia na

autoria da obra. Em geral, tantos profissionais com tarefas especializadas na produção do livro

acabam por alterar o texto inicial desenvolvido pelas autoras, pois, no trabalho de edição, é

realizada uma revisão para uniformizar o estilo da obra, assim como para adequar o texto à

diagramação da página, ao trabalho dos ilustradores e dos responsáveis pela pesquisa

iconográfica e de mapas. Além disso, o livro deve ter uma proposta apropriada à sua inserção no

mercado consumidor, assim como tem de estar apto a passar pela avaliação para ser aprovado no

PNLD. Para isso, deve ainda incorporar algumas das novas temáticas da historiografia. Estas

trazem um apelo grande para um determinado tipo de professor que o consome, basta ver alguns

anúncios já realizados nas capas de alguns livros, ou mesmo em seus títulos, que utilizam termos

como cotidiano, ou anunciam seguir essa ou aquela proposta temática.

Essas são questões relevantes nas relações que se estabelecem na produção do livro

didático, pois ele depende de profissionais cada vez mais especializados para manter um padrão

na qualidade do texto final e da adequação do aspecto gráfico. Munakata relata que, nas maiores

editoras, o corpo técnico é dividido nas diferentes áreas do conhecimento e, muitas vezes, é

composto por pessoas graduadas ou até pós-graduadas nelas (MUNAKATA, 1998). Estes

aspectos são importantes também pela ótica da regulação que sofre esse dispositivo curricular,

pois o que chega às mãos de professores e alunos é um material que sofreu inúmeras alterações

desde a sua concepção original e estas alterações nem sempre são para melhor. Ao comentar

sobre a intervenção do editor de texto, Munakata ressalta que, muitas vezes, a organização da

obra e o seu conteúdo são modificados, alterando o seu projeto inicial, às vezes com resultados

desastrosos.

No capítulo 6 (Povos da Mesopotâmia) do volume da 5ª série, há um exemplo de uma

dessas situações na página 68 (Anexo 6). Nele há uma ilustração de um Texto Complementar,

com uma interpretação que, rigorosamente, deveria ser vetada pela avaliação do PNLD. Trata-se

de uma ilustração demonstrando que em “algumas sociedades” o castigo físico ainda é utilizado,

na qual aparece um homem sendo castigado com uma vara por outro que, além desse artefato,

carrega uma metralhadora (detalhe completamente fora de contexto) na outra mão. Ambos estão

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caracterizados como os povos árabes, com turbante e mantos. O texto trata da Lei de Talião,

presente na Bíblia, e que se constituía na base das leis, escritas ou não, de vários povos da

Antigüidade.

É uma imagem que carrega em si uma alta carga de preconceito, uma vez que nem todos

os povos árabes adotam punições físicas e, mesmo entre povos que as adotam, há que se

contextualizar culturalmente essa questão sem que se faça qualquer juízo de valor a seu respeito.

Já no texto do corpo do capítulo existe margem para uma interpretação, no mínimo

limitada, das leis do Código de Hamurabi, que adotava o princípio “olho por olho, dente por

dente”. Destaca-se muito a questão dos castigos nas leis selecionadas para compor o texto (daí

talvez a interpretação, não corrigida, do ilustrador), sem apontar outros aspectos muito

interessantes do mesmo código. Um exemplo é o padrão de justiça em relação à classe mais alta

dos homens livres, os awilum, que merecem as maiores compensações por injúrias, mas que

também têm de pagar as multas mais pesadas quando cometem ofensas. Outro exemplo é o fato

de ser permitido aos escravos possuir propriedades e à mulher desfrutar de uma liberdade que não

era comum no mundo antigo, inclusive podendo ter negócios, às vezes junto com o seu marido,

estando amparada pela legislação. Existem ainda inúmeros outros aspectos que poderiam ser

trabalhados no texto, como a legislação relativa ao comércio, à família (tratando inclusive da

separação de casais e dos direitos de cada cônjuge, do pátrio poder, da adoção), ao trabalho

(criando o que seria hoje o salário mínimo, legislando sobre as categorias profissionais e o

amparo ao trabalhador) e à propriedade (manutenção da rede de canais, compra, venda e locação

de imóveis).

Contudo, é necessário apontar que a especialização de funções demonstra, também, a

sofisticação que a produção de livros didáticos adquiriu nas últimas décadas, editando materiais

com boa qualidade gráfica e incorporando alguns novos paradigmas da historiografia, sem

entrarmos aqui no mérito da qualidade com a qual essas abordagens são tratadas. As novas

propostas gráficas e de conteúdo ampliaram o alcance do material didático no aspecto

econômico, com o lançamento de coleções especializadas em determinadas visões da História e

na produção de livros paradidáticos, visando atingir todo o tipo de público, inclusive o

consumidor de livros de História não especialista (MUNAKATA, 1998). Esse tipo de material

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também passou a ter a sua importância cultural, pois serve de divulgação de pesquisas

acadêmicas, tornando as temáticas atuais da historiografia mais acessíveis para o leitor comum.

Em relação aos livros que estamos analisando, especificamente, observa-se que estes são

ricamente ilustrados, com farto material iconográfico. A quantidade de textos é um pouco maior

no livro de 7ª série, conseqüentemente há mais ilustrações na 5ª série, indicando uma

preocupação gráfica com a adequação à faixa etária dos alunos. Ao fim de cada capítulo, há um

Texto Complementar, em papel com cor diferente das páginas brancas do capítulo, e em outra cor

ainda há a parte de Atividades. Esse aspecto facilita o manuseio com o material, pois, pela visão

lateral do livro, já se pode localizar com facilidade, se for o caso, a parte de textos extras e

exercícios de cada capítulo.

Ao observar o aspecto gráfico da coleção, percebe-se que, no geral, há uma harmonia

entre as cores dos ícones, dos títulos e dos subtítulos (esses sempre com o mesmo tom de

marrom), do fundo das páginas do Texto Complementar e das Atividades, assim como dos textos

destacados em boxes. As cores em vários tons de marrom, amarelo e sépia, não sobrecarregam as

páginas ao se comporem com as imagens. A capa dos diferentes volumes também é ilustrada nos

mesmos tons. Assim, observamos um cuidado técnico esmerado na composição da coleção, que

não a torna cansativa para quem a manuseia e permite explorar mais a iconografia dos livros.

Há ainda outra questão que é relevante em relação ao aspecto gráfico e que também

acompanha toda a coleção. São fotos do capitel de uma coluna grega e das ruínas do Partenon. A

foto do capitel aparece no início de cada capítulo, na margem superior esquerda de todas as

duplas de páginas. Junto a ela está a foto triplicada do Partenon em tom sépia, que se encontra em

todas as duplas de páginas normais (Anexo 7). A foto do Partenon também está na parte inicial da

seção Atividades, assim como há o mesmo ícone do capitel da coluna grega antes de cada número

dos exercícios e ao lado do número de todas as páginas.

É significativa a escolha desse tema como elemento unificador dos diferentes conteúdos

da coleção, pois isso já é uma indicação sobre a posição do material em relação à seleção

curricular do livro. Esta fundamenta as bases da chamada Civilização Ocidental no postulado

clássico que coloca a nossa procedência política e cultural na Grécia Antiga. Outro elemento

gráfico que traz uma unidade à coleção é a figura de uma ampulheta, mais um tema caro à

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História, indicativo da sua ligação com a passagem do tempo. Esta imagem se situa como um

ícone junto aos subtítulos e aparece ainda na margem da página direita do início dos capítulos.

Em relação ao que é proposto como metodologia da coleção, deve-se considerar o caderno

localizado ao final de cada livro e direcionado ao professor, referenciado como Apoio

Pedagógico (Anexo 8). Trata-se de um mesmo texto que aparece em todos os volumes. Nessa

parte do material, as diferenças entre os livros são relativas somente ao tratamento dos Objetivos

e Comentários dos capítulos de conteúdo de cada livro.

Na seção Apresentação encontramos uma síntese dos objetivos da coleção, que parte do

princípio de que o aluno constrói o seu conhecimento, sendo que o material se apresenta como

uma contribuição nesse processo. O objetivo final é que, através do conhecimento histórico, haja

uma melhor compreensão do mundo contemporâneo e da importância do papel transformador do

aluno. O professor é colocado como o agente mediador desse processo, pois o livro em si “não

‘produz’ um aluno crítico e autônomo” (VAZ; PANAZZO, 2002, p. 2). Essa mediação deve se

realizar pela seleção, adaptação e criação de atividades e pelo fornecimento de elementos para um

trabalho criativo. Tudo isso realizado de forma crítica a autônoma (termos que aparecem grifados

no original) pelo professor.

É interessante observar que nessa pequena introdução está explícita a questão da oferta

excessiva de elementos no livro didático, colocando-a como uma proposta das autoras para que o

professor possa fazer opções didático-metodológicas com autonomia, de acordo com as suas

necessidades e possibilidade de trabalho em sala de aula. E reintroduz ainda a questão do objetivo

final do ensino de História – jargão que aparece também nos textos copiados pelos alunos nos

cadernos – que é o de ser o veículo da formação crítica que propiciará a ação transformadora do

aluno na sociedade.

Já o tópico que fala dos critérios para seleção dos temas se apresenta confuso e incoerente

em vários momentos, pois utiliza muitas citações de documentos e de autores que trabalham com

Educação e com o Ensino de História especificamente, sem contextualizá-las com o assunto

abordado. O que se pode considerar é que as autoras situam como critérios que fundamentaram a

seleção de conteúdos a referência dos “PCNs, baseadas sobretudo em eixos temáticos” (VAZ;

PANAZZO, 2002, p.4). Essa informação é surpreendente, visto que o trabalho com eixos

temáticos não aparece como indicativo da orientação curricular da coleção em nenhuma parte dos

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livros. Vimos que existem aproximações com a proposta da História integrada em torno de um

tema em alguns poucos momentos, mas isso não significa um material que tenha sido elaborado

através de eixos temáticos. Indo além, na definição da estrutura da coleção, volta-se a esse ponto

e se acrescenta que, além dos já citados eixos, os temas transversais dos PCN também fazem

parte da abordagem da coleção.

A justificativa das autoras para o estudo da História, e conseqüentemente a existência de

livros didáticos para isso, se dá pela importância que tem a disciplina ao oferecer “acesso às

referências que nortearam o pensamento ocidental. Por isso, a opção por alguns temas clássicos

da historiografia e por sua disposição cronológica não representa uma visão evolutiva e

progressista da História”. No caso, as autoras têm o intuito de que o aluno “desconstrua” a noção

do sujeito universal posta pelo liberalismo e pelo positivismo, conhecendo outras “práticas

cotidianas dos agentes históricos” e, para isso, “é preciso que conheça o contexto em que esse

sujeito foi construído” (VAZ; PANAZZO, 2002, p.6).

Embora essas idéias não nos pareçam muito claras, entendemos que a disposição

tradicional dos conteúdos, nesse caso, não se apresenta como uma visão histórica “evolutiva e

progressista”, porque proporciona ao aluno o acesso aos bens culturais da sociedade ocidental

como contexto da construção desse mesmo sujeito ocidental. Retomando a análise de Abud, é

difícil que uma abordagem cronológica não estabeleça padrões de um estágio superior a ser

atingido ou que não exclua outras culturas e privilegie determinados fatos históricos de forma

arbitrária (ABUD, 1996).

Esse não é o caso da coleção em geral, que trabalha bem alguns conteúdos do chamado

Oriente Antigo, por exemplo, conforme acontece no Capítulo 6 (Povos da Mesopotâmia) do livro

da 5ª série, ao qual retornamos dessa vez com elogios, demonstrando que nem tudo são espinhos.

Já o título está bem colocado, ao não falar em Civilização Mesopotâmica – o termo civilização já

seria polêmico – como se fosse composta por um único povo com características sócio-

econômicas, políticas e culturais comuns. O nome Mesopotâmia refere-se a uma região habitada

e disputada por diferentes povos. Esta característica torna esse conteúdo complexo para o aluno

de 5ª série.

Porém, as autoras conseguem resolver bem essa dificuldade no corpo do texto. Elas

colocam os momentos em que diferentes povos, já vivendo em uma estrutura urbana complexa,

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ocuparam partes dessa região ao mesmo tempo e explicam as sucessivas invasões sofridas por

eles. Todavia, demonstram que ali eles conviviam também com outros grupos, que iriam se tornar

importantes, mas que, naquele mesmo período, ainda estavam se estabelecendo como núcleos

urbanos. Não é um texto simples. Ele exige o conhecimento do professor para intermediar a sua

compreensão, talvez montando um esquema no quadro de giz que acompanhe a leitura e a

explicação, ou intervindo de outra forma. No entanto, é um texto correto e que contextualiza

questões complexas de forma satisfatória.

Outra referência citada como critério de seleção de temas é a ênfase na noção de processo

histórico, considerada essencial para o ensino de História. Entretanto, não há a justificativa da sua

importância. Ao longo do texto ela reaparece, com o sentido de que, sendo os temas da coleção

apresentados “de forma a consolidar a noção de processo histórico e de articular a realidade local

do aluno a um conhecimento histórico que lhe sirva de referencial”, esse tipo de abordagem

amplie a capacidade do aluno de interpretar a realidade (VAZ; PANAZZO, 2002, p.6). É

interessante apontar que, ao contrário da ênfase dada ao estudo do mundo ocidental, faz parte da

noção do processo histórico – citadas em diferentes momentos do texto – o conhecimento de

outros povos, como o indígena e o africano, de forma a construir o referencial das distintas

culturas que compõem a História, auxiliando a ampliar a visão do aluno sobre a nossa formação.

Esse fato acentua a impressão de que as coisas caminham melhor no trabalho com o

conteúdo do livro do que na parte teórica desenvolvida pelas autoras. Acreditamos que isso se

deva a necessidade de se justificar o trabalho através do respaldo de posições acadêmicas. Apenas

as referências das professoras, da sua experiência em sala de aula, das suas observações de outros

materiais com os quais tenham trabalhado, ou qualquer outro argumento que partisse da sua

vivência, não teriam a mesma relevância. O que é uma pena, pois ao ler o texto para o professor

após ter lido os livros, ficamos com a impressão de que ele não seria necessário, ou que não

acrescenta nada de substancioso ao trabalho realizado no livro.

Provavelmente, um texto mais simples e coerente, que apresentasse o que as professoras

se propuseram ao realizar o trabalho, quais as dificuldades com as quais se depararam, quais as

soluções por elas encontradas e que pesquisas realizaram para compor o livro – e aqui sim,

caberiam algumas citações – acompanhado das sugestões de trabalho com o material, fosse bem

mais interessante e proveitoso para o leitor. Contudo, fica perceptível o esvaziamento da função

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do professor como aquele que conhece o seu ofício. Entre os muitos motivos para isso, nem

sempre há na ciência de referência uma postura de respeito pela área de conhecimento que é o

Ensino de História. Dessa forma, os próprios realizadores do trabalho não se sentem aptos a

validar o seu conhecimento e experiência pelo valor que eles têm em si mesmos.

Concluindo a apreciação dessa parte do livro, observamos que, ao longo do texto, existem

várias menções ao que se objetiva em relação ao aluno através do ensino de História. São

referências à construção do conhecimento pelo aluno, à formação do seu espírito crítico e de

cidadania, ao desenvolvimento da sua capacidade reflexiva, comparativa e relacional. O material,

na sua metodologia, não cogita a idéia de um aluno passivo no processo de aprendizagem,

propondo para isso que o aluno participe da sua aquisição de conhecimentos através de um

envolvimento ativo, proporcionado por uma aprendizagem significativa, que se dá a partir dos

seus conhecimentos prévios, prontamente verificados pelo professor antes do início dos trabalhos

anuais.

Sem desqualificar esses princípios, todos tão almejados pelos profissionais ligados a área

da Educação, não há nada mais distante do dia-a-dia da sala de aula, pelo menos da que

observamos, do que essas considerações. Além disso, esse tipo de discurso, quando situado no

difícil cotidiano das escolas públicas atuais é tão quimérico que produz como efeito em muitos

professores o desencanto com tudo o que deveria (ou poderia) ser e, na realidade, não é. Essa é

uma posição muito nítida da Professora, que observamos em alguns momentos na aula e que ela

expressou em conversas que mantivemos. Porém, é apenas no cotidiano escolar que se pode

perceber o alcance das propostas e intenções que fundamentam um currículo e mesmo quais são

as intersecções, as rupturas, as continuidades que formam a rede da sua aplicação em sala de aula

e as novas composições curriculares daí advindas.

Seguindo essa idéia, nos dirigiremos para o uso que a Professora e os alunos fazem desse

dispositivo curricular na sala de aula. Empregamos algumas perguntas que vêm sendo feitas nas

pesquisas com essa fonte, arroladas por Choppin, como referência para essa etapa do trabalho,

procurando respondê-las ao longo da análise (CHOPPIN, 2004). Consideramos importante

explicitá-las, como segue:

- A Professora segue o livro passo a passo ou toma algumas liberdades em relação à sua

organização? Como aplica suas próprias diretrizes?

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- Como a Professora orienta a leitura pelos alunos?

- Qual a real influência exercida pelos livros didáticos na formação intelectual do aluno,

em especial na formação do espírito crítico e na construção do conhecimento histórico? (Chopin,

2004).

Nas observações de aula foi possível avaliar que o trabalho com o livro didático pela

Professora tem seu aspecto mais marcante na leitura do texto do livro em voz alta pelos alunos,

utilizada com mais freqüência na 7ª série. Ela explica a matéria ao fim de cada parágrafo lido.

São selecionados para a leitura trechos do corpo dos capítulos, mas não são lidos os conteúdos

dos boxes nem as legendas das ilustrações. O que é externo ao corpo do texto é pouco utilizado

no consumo em sala de aula. Fica evidente o fato de o livro didático analisado ter um fôlego que

não é aproveitado pelo professor, que dessa maneira impede seu aproveitamento pelo aluno. O

rico material iconográfico só foi mencionado pela Professora em duas ocasiões: nas aulas da 5ª

série, em que eles leram o texto do Egito e ela explicou o que era a Pedra da Roseta e o que era

uma múmia, utilizando as fotos da página 79 (Anexo 9), e ao pedir que observassem um mapa da

Grécia Antiga, da página 115 (Anexo 7).

Os textos dos boxes não foram aproveitados uma única vez. Como a leitura do livro

didático é realizada pelos alunos e seu texto explicado pela Professora exclusivamente em sala de

aula, todo o material que foge às concepções tradicionais fica fora do repertório do aluno. Essa

dificuldade em se trabalhar com as informações novas, no sentido de aportarem ao livro didático

as recentes tendências da historiografia e propostas pedagógicas renovadas parece estar

relacionada com a formação dos professores. Devemos nos lembrar que a maioria dos cursos de

História mantém ainda uma grade curricular que sustenta uma visão conservadora.

Assim, apesar das questões situadas nas partes da seção Atividades Aprofundando o

Conhecimento e Extrapolando o Aprendizado trazerem propostas que possibilitem avançar em

direção aos objetivos ambicionados em relação ao ensino de História, na prática das aulas

observadas esse tipo de exercício raramente é utilizado. No caderno de Apoio Pedagógico essas

atividades são apresentadas como “propostas de pesquisas, leituras extras, entrevistas e atividades

interdisciplinares” e “debates, seminários, sugestões de filmografia e de leituras sobre questões à

cidadania, trabalho, ética, pluralidade cultural e meio ambiente”, respectivamente (VAZ;

PANAZZO, 2002, p.10). Eles complementam as relações sugeridas no texto explicativo, ou

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mesmo possibilitam um melhor entendimento da História de forma integrada, como vimos

anteriormente.

Na prática, das questões propostas no livro, a Professora utiliza basicamente as que estão

nos textos complementares e na parte Sistematizando o Conhecimento, que, segundo as autoras,

procuram desenvolver as capacidades de observação e identificação, fazer relações e

comparações, assim como explicar e justificar determinados temas. Como no conteúdo de

Hebreus, os alunos fizeram todas as questões do Texto Complementar da página 68 em uma outra

atividade de interpretação de texto que ela costuma recolher ao final da aula. Nas aulas da 7ª série

também existe essa forma de atividade. Há o trabalho com o questionário do exercício

Sistematizando o Conhecimento (p. 92 – Anexo 10 – do livro e fotos 1.17 e 2.16). Outros

exemplos da realização desse mesmo tipo de exercício estão nas fotos 1.26 e 2.30, da página 114

(Anexo 11) do capítulo sobre Revolução Industrial e nas fotos 1.30 e 2.35, que corresponde à

página 126 (Anexo 12), sobre a Revolução Francesa.

Nos comentários que a Professora fez sobre a sua metodologia, ela disse que considera o

nível da coleção muito alto para os alunos. Então ela prefere criar questionários com perguntas

mais diretas. Em alguns, ela faz as perguntas e indica a página do livro onde é para pesquisar,

como o da foto 2.13, cujas páginas correspondentes do livro são a 34 até a 37 (Anexo 13), que

tratam da origem da Terra. No conteúdo de Grécia há o questionário da foto 2.26, para pesquisar

na página 118 (Anexo 14). Na 7ª série a metodologia é a mesma, como aparece no questionário

sobre Iluminismo, que os alunos respondem com o texto do capítulo do livro das páginas 94 a

105 (Anexo 15), como está nos cadernos, nas fotos 2.22-2.24.

Existem também atividades em que a Professora elabora o questionário para ser

respondido com os textos complementares do livro. Isto acontece, por exemplo, no Texto

Complementar da página 91 (Anexo 16), da 7ª série, que tem questões para a sua interpretação no

próprio livro (fotos 1.16 e 2.15), que são respondidas mais tarde. Inicialmente o trabalho é feito a

partir das questões propostas por ela. Em outra interpretação de texto, que foi copiada nas

observações de aula, há um questionário sobre os Manuscritos do Mar Morto, que tem a

indicação de que deve ser respondido utilizando-se o Texto Complementar das páginas 92 e 93

(Anexo 17).

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Em relação aos exercícios mais complexos, a sua opção é adaptar uma ou outra pergunta

nos questionários que ela mesma produz. Mesmo assim, utiliza esse método apenas na 7ª série.

Nas fotos 1.38-139 e 2.42-2.44 dos cadernos, há um questionário que adapta questões da seção

Sistematizando o Conhecimento, da página 137 (Anexo 14). Na última questão, a de número 5,

existe uma adaptação do que foi solicitado na atividade Extrapolando o Aprendizado, da mesma

página.

No caso do conteúdo de Mesopotâmia, há uma atividade de interpretação de texto, que é

feita em aula e entregue para a Professora como parte da avaliação bimestral. Nela há uma

questão que foi aproveitada da página 69 do exercício Aprofundando o Conhecimento (Anexo

18)10. Foi a primeira aula da 5ª série que acompanhamos e foi possível verificar que alguns

alunos tiveram dificuldades para compreender a questão e a Professora teve que explicar para a

sala. Depois da sua explicação não houve mais questionamentos e eles concluíram a atividade.

As respostas da 7ª série não deixaram a desejar em termos de posicionamento pessoal. Os

alunos da 5ª série também compreenderam a questão, pois continuaram o trabalho com

tranqüilidade após a explicação da Professora. Estes fatos levam a uma reflexão sobre as reais

possibilidades desses alunos e quais seriam as suas demandas, se fossem convidados a manifestá-

las. No entanto, para que essas possibilidades fossem aproveitadas, as aulas teriam que ter uma

preparação e um encaminhamento voltado para isso.

No livro existe, em vários momentos, a sugestão de se realizar trabalhos em grupo a partir

das propostas das atividades, mas a Professora pede que eles façam em duplas, na sala de aula.

Assim acontece também com as atividades de interpretação de texto, que são muitas na 5ª série.

Porém, trabalhos em grupo não são propostos para a sala de aula, assim como não são realizados

seminários ou debates em torno de algum tema ou texto proposto no livro.

Ela também coloca textos no quadro de giz, complementando alguma informação que

falta no livro, como o que está no caderno da 5ª série (foto 1.37 e 2.21) sobre a Diáspora dos

hebreus, conteúdo que não está no livro, só indiretamente no Texto Complementar da página 93

10 A questão era a de número 6 do questionário que, como tarefa de aula, que não era realizada no caderno e não foi fotografada. Porém, copiamos a questão, como segue:“6) As construções deixadas pelos povos da Mesopotâmia revelam que havia diferenças entre as camadas sociais. Comprove esta afirmação utilizando exemplos do texto”. A pergunta está igual à letra B do exercício citado.

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(Anexo 19), ou nos resumos da matéria, próximo dos dias de provas ou ao fim de conteúdos.

Porém, também há cópias de textos do livro, às vezes um pouco resumidos, como é o caso da

Grécia Antiga (fotos 1.37 até 1.40). Para os alunos da 7ª série o volume desses textos é bem

maior, como, por exemplo, o que traz as características da Idade Moderna (foto 1.4 e 2.2) e

aqueles sobre o Absolutismo na França e na Inglaterra (fotos 1.7-1.9 e 2.3-2.6), todos com

conteúdos que não constam do livro de 7ª série, mas que estão no planejamento da Professora

(Anexo 3).

Um outro fator que observamos é que não há interação do livro com outras opções

didáticas como filmes e textos jornalísticos, por exemplo, sugeridos pelo próprio material. A

Professora usa textos e questionários de outros materiais didáticos, por considerá-los mais

adequados ao tipo de aluno das suas aulas. Contudo, alguns tipos de exercícios simples, como o

Ampliando o Vocabulário, não são aproveitados nas atividades da aula. Aqueles que procuram

aprofundar o conhecimento também são pouco empregados. Não estamos considerando que o

livro deveria ser utilizado na sua totalidade, como único referencial das práticas da sala de aula.

O que se discute aqui é que a Professora exerce a sua autonomia na escolha de como trabalhar o

livro didático, mas não procura inovar, nem utilizando as possibilidades da própria coleção, nem

trazendo opções diferenciadas. A partir do momento que o livro se caracteriza como manual das

aulas, este poderia ser explorado de forma mais proveitosa.

A gama de recursos que a Professora emprega são aquelas atividades já consagradas nas

suas aulas e a atitude dos alunos é de não questionar, como se para eles esse ritmo de aula esteja

de acordo, senão ao que desejam, pelo menos ao que estão acostumados. Não existe desafio ou

alteração da rotina que os desacomode e introduza no processo de uma reflexão ativa. Nesse

sentido, qualquer projeção mais entusiasmada de autores, editores, ilustradores, ou qualquer

profissional ligado à confecção desse material, assim como de avaliadores do PNLD, fica

esvaziada no cotidiano escolar. A impressão final é que, na prática, essa coleção ou outra

qualquer que fosse adotada não alteraria muito os procedimentos de aula ou a programação

curricular da disciplina.

Isso acontece porque, apesar do livro didático ter se tornado “uma das mais importantes

formas de currículo semi-elaborado, que nasce a partir de distintas visões e recortes acerca da

cultura”, ele não determina por si só o currículo da sala de aula (MIRANDA E LUCA, 2004, p.

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134). São muitos os currículos presentes no livro didático, como o dos textos de conteúdos, o das

atividades menos elaboradas, o das atividades mais elaboradas, o dos textos complementares e

boxes, o das intenções teóricas das autoras. Alguns exercícios realizam as funções mais

sofisticadas colocadas como critério de avaliação pelo PNLD. Outros atendem as necessidades

cotidianas da prática da Professora. Alguns textos auxiliam o aluno a estudar o conteúdo. Outros

são meramente ilustrativos de algum tema mais valorizado pela Professora. Parece-nos, inclusive,

recordando a análise de Valls (2006), que essa oferta de possibilidades curriculares é a opção

mercadológica das editoras.

Desses tantos currículos a Professora selecionou aquele que ela definiu como sendo o que

lhe fornece condições de trabalhar dentro da sua realidade. Se fosse outro material,

provavelmente o seu uso não destoaria muito daquele que ela faz com essa coleção. Dessa forma,

o livro didático assume diferentes configurações, conforme o emprego que se faz dele. Pode se

apresentar como um material tradicional, ou inovador, dependendo de qual dos seus currículos foi

selecionado para o trabalho. E as vendas do produto ficam asseguradas, independentemente

dessas escolhas.

Para atender a todas essas demandas e também à avaliação realizada pelo PNLD, os

recortes utilizados para selecionar o conteúdo dos livros são realizados a partir de inúmeras

influências. Além disso, seus autores, ainda estão influenciados pela “crença iluminista do poder

do impresso e em sua capacidade de educar o povo em prol de um projeto político” e a fé no

valor formativo da História (GALVÃO; BATISTA, 2003, p. 166). Embora esse aspecto não se

revele com muita clareza na seleção dos conteúdos, na definição teórico-metodológica do livro

ele aparece reiteradas vezes.

No que pese a boa intenção dos que a professam, constatamos que são muitas as

necessidades atendidas na produção e consumo do livro didático. Menos as do aluno, que

continua recebendo o que há de mais redutor e aligeirado de uma disciplina cujo potencial tão

propagado, e que realmente existe, não chega nem perto de se realizar.

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4 DISCURSOS DA SALA DE AULA

No processo de escolarização, vai distante o tempo em que o professor sabia exatamente o

que deveria lecionar e para quem estava lecionando. Era o tempo da formação da elite nacional.

Era um tempo de certezas, de salário digno, de reconhecimento social da profissão. Era o saudoso

tempo, para alguns, anterior a educação de massas.

Por sua vez, a escolarização de massas foi introduzida com a perspectiva das novas

gerações alcançarem um futuro melhor através da educação e proporcionarem um maior

desenvolvimento à nação através do fornecimento de mão-de-obra qualificada. Na década de 80

no Brasil, os caminhos apontavam para a participação no processo da redemocratização, para a

construção da cidadania e da justiça social através da educação. Os discursos que fundamentaram

a educação em todos esses períodos encontraram na disciplina de História um dos seus principais

veículos de transmissão. E não seria diferente com a perspectiva de educar o cidadão crítico e

transformador da sociedade democrática através do conhecimento histórico.

Dos anos 90 para cá, o fenômeno mundial do neoliberalismo trouxe novos ventos de

transformação. Segundo Thomas Popkewitz, nos discursos relacionados ao ensino na atualidade

“o professor é inserido numa narrativa de salvação que envolve democracia, nação e

globalização. As narrativas de salvação destinam-se a produzir a sensibilidade moral, a auto-

responsabilidade e a automotivação, que permitem à criança agir como cidadão do futuro”

(POPKEWITZ, 2001, p. 60). A temática do cidadão crítico e transformador vem sendo

substituída, então, pela educação para o mundo do trabalho, da produtividade e da competição. O

aluno deve ser capaz, flexível e motivado, para tornar-se um empreendedor que questione pouco

os fins últimos da sua atuação no mercado. Esse é o modelo de cidadão do futuro que se deseja

formar hoje (ABUD, 2001).

E os professores, principalmente aqueles mais antigos, que iniciaram a carreira na época

em que o papel social da escola estava vinculado a formar alunos com uma visão crítica e

participativa da sociedade, se encontram atualmente submersos em rotinas burocráticas

esvaziadas, sem saber exatamente a quem educam e, principalmente, sob quais princípios.

Nesse sentido, e dentro do contexto atual dos processos aos quais a escolarização

está sujeita, a análise que propomos nessa etapa da pesquisa é a de perceber os diferentes

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discursos que se cruzam na sala de aula. E como esses discursos atuam na produção do currículo

de História em aula, diante das diferentes determinações a que a prática escolar está sujeita,

entendida esta como:

‘un ordenamiento institucional y una cambiante tradición escolar, rara vez

tenidos en cuenta en el planeamiento, y que reciben y reinterpretan las

expresiones curriculares normativas, para reproducir la experiencia concreta que

constituye lo realmente formativo, (...) el curriculum oficial (y también la

propuesta editorial)’. Ambas no tienen otra manera ‘... de existir, de

materializarse, que como parte integral de la compleja realidad cotidiana de la

escuela (ROCKWELL, E. 1982, Apud LANZA; FINOCCHIO, 1993, p. 101)

Na realidade escolar encontramos várias determinações que definem essas práticas, como

as expectativas do tipo de cidadão que se deseja formar e o conhecimento que deve ser veiculado

para educá-lo. No padrão atual, para que se modele o cidadão empreendedor do futuro, existe

uma transferência do sentido da educação. Esta passou da função de difusora de um

conhecimento que permita realizar uma avaliação crítica da sociedade, para uma função

burocrática e de controle, tanto de alunos, quanto dos professores.

É nesse enquadramento que se situa a análise dos diferentes discursos presentes na sala de

aula que acompanhamos. E ele permite que se compreendam algumas das inversões que foram

produzidas pelas reformas educacionais dos anos 90, baseadas no ideário neoliberal e

conservador. Alguns desses discursos aparecem na forma como a Professora se coloca em sala de

aula, assim como na concepção que ela tem do seu papel perante os alunos.

Nesse sentido, uma das primeiras colocações feitas pela Professora quando iniciamos a

observação foi que ela era muito afetiva com os alunos. Na observação do dia 20/0611, com a 7ª

série, pudemos comprovar que eles também são afetivos com ela. No início da aula, a Professora

tentava explicar a matéria com bastante dificuldade diante da agitação e desinteresse dos alunos.

O conteúdo era o Iluminismo e ela estava tentando corrigir um questionário explicando as

questões oralmente e colocando a resposta formal na lousa. Até ser chamada ao telefone e ter de

se ausentar da aula. A atitude dos alunos foi muito respeitosa tanto em relação a nossa presença

na sala (optamos por continuar a atividade, terminando de colocar as questões no quadro), quanto

11 Todas as citações das observações de aula encontram-se no Anexo 20.

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em relação à Professora, que na volta explicou a eles a situação que a levou a se ausentar. Diante

do sinal para o intervalo da manhã, os alunos, que estavam muito agitados no início da aula,

aguardaram com toda a calma que a Professora terminasse as suas explicações pessoais. Todo

professor sabe o quanto é significativa essa atitude por parte dos alunos. Porém, existem alguns

problemas na vinculação do afeto como parte expressiva da atividade letiva.

Não desvalorizamos a atitude da Professora e muito menos o respeito que os alunos

demonstraram por ela. Em qualquer situação essa é uma atitude louvável e a boa relação com os

alunos é uma construção importante realizada por ela. Também não estamos afirmando que um

bom relacionamento com os alunos seja dispensável em qualquer etapa do ensino. Ao contrário,

os alunos de toda faixa etária necessitam estabelecer algum tipo de vínculo que situe a

aprendizagem em um espaço de parceria.

O que se questiona é a forma como o professor é sobrecarregado com atribuições que

estão deslocadas daquelas principais do seu ofício, favorecendo ainda mais o esvaziamento da

sua posição em sala de aula. E, principalmente, o fato da conquista da afetividade e respeito por

parte dos alunos não ter relação também com a conquista do conhecimento. Os alunos estavam

muito agitados, sem prestar atenção à explicação, e teriam continuado assim, sem conexão com o

conteúdo da aula, se não fosse o acontecimento pessoal ocorrido com a Professora.

Essa questão da afetividade vem sendo um dos parâmetros de avaliação do bom professor,

instituído nas escolas a partir da interpretação de algumas concepções psicologizantes da

educação, cujas prescrições estabelecem que o professor seja, além de afetivo, também criativo e

carismático. Além disso, incorporou-se a visão de que o professor passou a ser o

mediador/facilitador do processo de aprendizagem. A utilização dessa nomenclatura baseada nos

processos de qualidade total do mundo empresarial favorece ainda mais uma compreensão

distorcida do papel desse profissional. Entre a postura antiga do professor que ilustra os alunos

estáticos a partir do seu profundo conhecimento da matéria e a do facilitador da aprendizagem

espontânea dos alunos da atualidade, existe um longo caminho, no qual as funções do professor

em sala de aula parecem ter ficado numa suspensão em que ele próprio já não encontra mais a sua

identidade profissional.

Essa inversão do sentido do que se faz em sala de aula é indicativa das novas obrigações

assumidas pelo professorado nos últimos anos e do esvaziamento da sua função como aquele que

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conhece o seu ofício. A ênfase atual nos aspectos da personalidade do professor vem substituindo

o que deveria ser a preocupação com a sua ocupação primeira, a consistência no ensino da

disciplina que ministra. É um discurso que fortalece a concepção do professor/funcionário, que

cumpre as tarefas burocráticas.

Advém daí algumas situações, como o comentário feito pelos alunos no último dia da

observação da 5ª série, quando perguntei se eles gostavam da Professora. Um grupo disse que

gostava e entendia as explicações dela, comparando com as do professor substituto, que era mais

duro, gritava muito e não os “deixava fazer nada, nem levantar para pegar coisas com outros

colegas”. Outro grupo disse que gostava dela, mas não entendiam o conteúdo e nem gostavam da

matéria. Os discursos que formam a imagem do professor/funcionário soam, então, como

redentores de tudo o que não funciona na sala de aula. Os professores não conseguem ensinar a

sua disciplina, mas os livros de chamada estão preenchidos, o planejamento entregue para a

coordenação e eles são afetivos com os alunos.

Sob esse signo, as aulas se dão, em geral, a partir de uma rotina bem estabelecida através

da realização da chamada (no início do ano pelo número do aluno, depois pelo seu nome), assim

como da explicação da Professora sobre o que será realizado na aula. Os alunos, então, se

aprontam para o trabalho, com maior ou menor alarde, conforme o horário (quanto mais cedo,

mais calmos eles estão) e o andamento da atividade. Se eles já a iniciaram, se organizam com

relativa calma. Se a Professora tem que explicar pela primeira vez o que é para ser feito, já há

mais agitação. Nada fora do padrão da maioria das salas de aula. Fica a impressão de que a rotina

estabelecida é tranqüilizadora para os alunos. Eles não são desafiados intelectualmente em

nenhum momento, mas também não se tornam muito desafiadores em termos disciplinares.

No primeiro dia em que acompanhamos a aula, na 7ª série, a Professora explicou que o

seu método consiste em fazer a leitura comentada do texto do livro didático, dando ponto positivo

e negativo para os que leram e os que não leram, respectivamente. Quem não leu foi porque não

trouxe o livro e por isso é descontada a nota. Ela anota no quadro o número do aluno, com o

positivo ou negativo ao lado, depois passa para o seu caderno de anotações e transforma em

ponto no final do semestre. O que observamos é que esse método apresenta pouca eficácia, na

maior parte do tempo. Alguns alunos lêem muito baixo e a maioria não presta atenção. Apenas

alguns conteúdos e explicações da Professora chamam a atenção, geralmente em casos como o

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uso da guilhotina e o fato dos franceses comerem até ratos às vésperas da Revolução Francesa

(aulas do dia 18/10 e 06/10, respectivamente), ou em explicações mais detalhadas, como veremos

adiante.

Nos planos de ensino da Professora há um outro discurso sobre a sua metodologia. Neles

a leitura comentada não aparece como uma das “estratégias” utilizadas em aula. Contudo, estão

presentes a “leitura e interpretação de textos e documentos históricos” em ambas as séries. Assim

como os trabalhos de pesquisa, como o realizado sobre as Olimpíadas na Grécia, para a 5ª série, e

sobre as eleições na 7ª série. Outras atividades que compõe os planos não foram sequer aventadas

na sala de aula, como a realização de “pesquisas em jornais e revistas”, ou a “utilização de

vídeos”. Quanto à realização de “reflexão e debates em sala”, são reduzidos a um mínimo de

comentários dos alunos e a explicação da Professora sobre os conteúdos do livro, com um

pequeno acréscimo de informações.

Entretanto, há um método de trabalho interessante que não consta do planejamento, mas

que poderia ser utilizado de forma bastante produtiva. A Professora nos explicou que a avaliação

consta, além das provas, de duas interpretações de texto que ela recolhe ao final das aulas e

devolve no início da outra, se a atividade não foi concluída, até a entrega final, quando ficam com

ela para a avaliação. No dia 24/08, eles estavam trabalhando com o texto de um livro paradidático

sobre o cotidiano dos egípcios12. A Professora recolheu as atividades dos alunos, olhou as

respostas e indicou como melhorá-las, devolvendo a eles para que fossem refeitas.

Em uma avaliação preocupada com a construção do conhecimento, esse método é muito

interessante, pois permite ao aluno revisar as suas respostas, retomando o conteúdo e

compreendendo o caminho para chegar ao que é solicitado. Como é uma metodologia que foge

ao padrão rotineiro estabelecido, a Professora inclusive se justifica, explicando-nos que “sempre

faz assim, senão não funciona”. Porém funciona, e poderia ser desenvolvido de maneira mais

elaborada se ela partisse de um outro principio de avaliação, onde não interessasse apenas o

resultado final, mas também a trajetória percorrida.

Em relação à reflexão e aos debates em classe, estes são muito limitados. A participação

dos alunos acontece, na maior parte das vezes, quando eles lêem o conteúdo do livro e fazem

12 MILLARD, Anne. Os Egípcios. São Paulo: Melhoramentos, s/d, p. 26. (Coleção “A vida cotidiana dos antigos egípcios”). Atividade realizada através da cópia do texto feita pela Professora.

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comentários a partir da explicação da Professora. É muito interessante observar como ela

consegue chamar a atenção dos alunos para o tema da aula quando faz pontes com a atualidade.

Na aula do dia 14/06, com a 7a série, ela comenta sobre os ideais do Iluminismo e alunos

defendem que os iluministas deveriam voltar, pois defendiam a liberdade e a igualdade, numa

alusão a falta desses requisitos na sociedade atual.

Esse é um exemplo de momentos esporádicos da sala de aula que poderiam ser explorados

com atividades que permitissem que essa relação se fizesse de forma mais sistemática e

aprofundada. No entanto, ela não pergunta o motivo pelo qual eles pensam dessa forma, sem

oferecer a possibilidade de uma discussão a respeito de questões ainda hoje não resolvidas e que

estão presentes no nosso cotidiano.

No livro didático utilizado nas aulas existem exercícios com a proposição de pensar a

atualidade a partir do conteúdo histórico que possibilitariam um bom encaminhamento da

proposta em diferentes conteúdos. Na 5ª série, no dia 08/06, a Professora utiliza uma dessas

atividades, o questionário da página 68 do Texto Complementar do capítulo 6 – Povos da

Mesopotâmia (Anexo 6). A resolução das alternativas da pergunta três, sobre o que é vandalismo

para a nossa sociedade, permitiu aos alunos que se posicionassem, alguns inclusive colocando

“que o vandalismo acaba prejudicando nós mesmos”. Em que pese o mau uso do português,

anotamos que as respostas são claras e muito boas para a série. O que demonstra que existe a

possibilidade de se trabalhar de maneira diferenciada com essas classes.

O que se contrapõe aos discursos que circulam atualmente nas escolas públicas, como o

da falta de capacidade e do desinteresse crônico dos alunos. Nos momentos em que ficamos na

sala dos professores, esse discurso foi recorrente, assim como o da indisciplina – que realmente é

um ponto difícil na maior parte das escolas públicas ou particulares. Contudo, o pensamento

formatado sobre a falta de capacidade dos alunos parece acompanhar o professor ao longo da sua

prática, engessando outras possibilidades que poderiam ser construídas a partir das próprias

questões levantadas por eles.

Nessa escola, em particular, o que observamos foi que os alunos são muito bem

alfabetizados e possuem uma boa capacidade de organização a partir do aprendizado das regras

para isso, como observamos nos cadernos. Existe um potencial a ser trabalhado e desenvolvido

pelos professores, no sentido de aproveitar algum tema do conteúdo da aula para aprofundar

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pontos que sejam do interesse dos alunos, o que poderia auxiliar, inclusive, nas questões

disciplinares, através de um envolvimento maior com a disciplina. No caso da História, cuja

importância para a formação do espírito crítico dos alunos é tão propagada, teríamos a partir

desse tipo de abordagem – sem deixar de aprofundar o conteúdo histórico – um caminho para se

realizar essas construções.

No entanto, algumas questões ficam em aberto no trato com o conteúdo. Para analisar esse

ponto empregaremos algumas categorias já utilizadas no capítulo sobre o livro didático. No caso,

o conteúdo é tratado de maneira factual e com caráter informativo, em uma seqüência de tempo

cronológica baseada na História quadripartida. Isso é explicitado na aula do dia 07/08, quando em

uma explicação sobre a catapulta, ela comenta que este artefato será utilizado “também na

próxima época, na Idade Média”.

É interessante ressaltar que em várias pesquisas acadêmicas realizadas a partir da

observação da atividade dos professores se constata que a maioria, em respostas dadas sobre as

suas posições em relação à disciplina, se posiciona abertamente contra o ensino baseado na

corrente dita positivista, onde o conteúdo é organizado de forma seqüencial e cronológica, e se dá

uma importância destacada aos fatos políticos e aos grandes nomes da História. Porém, na prática

do ensino de História o que se observa é exatamente o contrário, como é diagnosticado por

autores como Abud (2003), Lanza e Finocchio (1993) e Merchán Iglesias (2002, 2005). Também

é interessante que os autores citados desenvolvem seus trabalhos na realidade de diferentes países

– Brasil, Argentina e Espanha, respectivamente – mas as constatações são muito parecidas, de

uma forma geral.

Esse tratamento do conteúdo por parte dos professores, segundo Merchán Iglesias,

acontece porque diante da complexidade das relações que se desenvolvem no cotidiano escolar:

los professores prefieran que el contenido de la enseñanza verse sobre asuntos

que ellos dominan y no sobre cuestiones en las que están menos preparados,

pues de esta forma no añaden inseguridad a una situación que, como digo, es de

por si suficientemente difícil (IGLESIAS, 2005, p. 37)

Outro aspecto destacado pelo autor é que, ao vincular o seu conhecimento a uma

abordagem acadêmica, os professores mantém o seu status de especialistas e de possuidores de

um saber que lhes confere poder sobre os alunos. Daí que a aproximação com assuntos mais

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ligados ao cotidiano, ou com um trabalho sobre o qual não tenham domínio, como uma História

por temas, por exemplo, não seja uma idéia bem vinda. Esse aspecto é confirmado também na

análise realizada por Goodson, para quem há uma relação entre a profissionalização de áreas do

conhecimento, como a Educação e a História, e a necessidade dos professores de “definir o seu

conhecimento curricular em termos abstratos, formais e eruditos em troca de status, recursos,

territorialidade e credenciais” (GOODSON, 2005, p.118), em uma vinculação com o

conhecimento universitário. Essa necessidade levou os professores a aceitarem a validade de

determinado tipo de conhecimento acadêmico, até por uma questão de status profissional e

desenvolvimento da carreira.

Esse processo distanciou o saber cotidiano e utilitário mais interessante e próximo ao

aluno, e associou o conhecimento a questões burocráticas e institucionais. Para ele, é nesse ponto

que se forma a “disciplina”, como um conjunto de conhecimentos rigoroso e universalizado, que

pode ser mensurado e avaliado, e que da sua importância depende o status, a carreira e até o

sustento do professor.

Essa análise nos ajuda a compreender porque algumas explicações acabam se tornando

tão complexas que não permitem ao aluno compreender o assunto tratado através delas. Podemos

somar a nossa presença na aula aos fatores relacionados por Merchán Iglesias e Goodson, pois

registramos que, em diferentes momentos, as explicações pareciam mais dirigidas a nós do que a

classe propriamente dita (dia 16/08, na 7ª série).

É o caso da aula da 5ª série, no dia 21/08, quando a Professora explica que hieróglifos são

pinturas pictográficas. Depois segue a explicação com a Pedra da Roseta, que tem hieróglifos

inscritos, cujo significado foi decifrado pelo cientista Champollion, depois que Napoleão invadiu

o Egito e levou a pedra para a França. Se o aluno não entendeu o que são os hieróglifos e que a

compreensão desse sistema de escrita se perdeu depois da conquista do Egito pelos romanos, todo

o resto da explicação fica sem sentido. E a figura de Napoleão dificilmente é um conhecimento

prévio do aluno da 5ª série. Outras situações desse tipo acontecem quando ela usa termos como

“incandescente” para explicar o funcionamento das catapultas, ou “contabilidade” para explicar o

surgimento da escrita como registro das oferendas dos templos sumérios, no dia 07/08.

Na 7ª série são vários os termos utilizados que nos deixaram em dúvida se os alunos os

compreendiam, como produtividade e linha de produção, no conteúdo de Revolução Industrial do

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dia 16/08. Porém, percebemos que quando a Professora coloca as questões com mais detalhes, de

forma mais simples e fornecendo exemplos, os alunos compreendem e acompanham a aula com

mais interesse, como é o caso quando ela fala sobre o processo de tecelagem artesanal e sobre a

roca de fiar. Os alunos inclusive lembram da história da Bela Adormecida, identificando o

instrumento ao qual a Professora se referia. Ou no dia 06/09, em que há poucos alunos na aula, e

ela está explicando as causas da Revolução Francesa. Embora interrompa várias vezes pedindo

silêncio e as explicações apenas tenham complementado o que estava no livro, no contexto geral

eles se mantiveram interessados e a explicação foi completada com vários exemplos e uma

linguagem adequada.

Outra hipótese sobre a diferença entre o discurso dos professores e a prática tradicional da

sala de aula é levantada por Abud, colocando que o afastamento destes dos âmbitos de discussão

e tomadas de decisão a respeito da sua disciplina e a “intensificação do trabalho docente, (...)

provocariam um abandono das atividades intelectuais e culturais do professor”, e a conseqüente

proletarização da categoria (ABUD, 2003, p. 172). Isso traria o desinteresse e a produção de um

trabalho em aula desvinculado dos seus ideais primeiros.

Essa hipótese é corroborada por Lanza e Finocchio que acrescentam que a proletarização

dos professores também impede a continuidade da sua formação em cursos posteriores à

graduação dificultando, muitas vezes, o acesso desses profissionais às pesquisas mais atuais

desenvolvidas na área de referência. Assim o discurso acadêmico que realizam em aula é o da

época da sua formação, como vimos nos cadernos em relação à concepção histórico-crítica

acadêmica da década de 80/90 presente nos textos da Professora. E o trabalho, no geral, acaba

entrando em uma rotina no trato com os diferentes conteúdos, a partir das atividades que já se

estabeleceram como facilitadoras da administração do cotidiano da sala de aula.

Na aula do dia 07/08 com a 5ª série, há uma abordagem que suscita uma reflexão sobre a

mecanização a que o professor vai se sujeitando pela rotina estabelecida, partindo do princípio de

que a Professora possui uma boa formação inicial em História. Na correção das questões sobre o

Código de Hamurabi, da mesma página 68 referida já algumas vezes – a Professora assumiu a

mesma carga de preconceito que há no texto do livro, na explicação que deu em aula. As

informações que ela forneceu para as perguntas que os alunos fizeram não contextualizaram

culturalmente os hábitos de apedrejamento, ou de cortar a mão de ladrões, e ainda transmitiram a

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idéia de uma sociedade muçulmana machista, partindo de concepções do mundo ocidental para

analisar uma sociedade que possui outros parâmetros culturais.

Alguns alunos comentaram que ainda hoje as mãos deveriam ser cortadas para que não

houvesse mais roubos e, ao mesmo tempo, comentaram que no Iraque “eles são loucos”. Todos

esses comentários poderiam ser aproveitados para uma discussão em torno do tema da

pluralidade cultural, tão em voga atualmente e que faz parte dos eixos temáticos presentes nos

PCN. Porém, os alunos e a Professora continuaram cada um com a sua visão do assunto e uma

oportunidade rica de trabalho não foi aproveitada.

Outro ponto que interfere na formação curricular da sala de aula são os momentos em que

a realidade institucional se impõe, algumas vezes dificultando sobremaneira o trabalho do

professor. É o caso dos períodos de recuperação, que acontecem junto com as aulas normais,

caracterizando uma aberração pedagógica. Acompanhamos na 5ª série dois desses momentos. No

dia 11/08, enquanto os alunos fazem uma interpretação de texto, ela aplica prova com os que

estão em recuperação. A sala fica particularmente agitada pela situação e a Professora tem que

ameaçar os alunos que estão fazendo a interpretação, dizendo que ela vale nota. Depois no dia

28/09 a situação se repete. Anotamos que está um “caos total”, pois ela tem dificuldades para

“organizar os alunos que vão fazer a prova, para depois continuar a dar aula para os outros”. A

Professora comenta que a recuperação nesses moldes “não resolve nada”. Inclusive, fica bastante

chateada com aluno que entrega a prova e não foi bem porque não estudou, ou pela

impossibilidade de se recuperar qualquer conteúdo nesse sistema.

A intervenção institucional no desenvolvimento da estrutura curricular da disciplina

também aparece nas datas consideradas importantes para o calendário escolar e no período das

eleições, quando atingem particularmente a disciplina de História, não importando o conteúdo

que o professor esteja trabalhando com os alunos. No ano em que fizemos a observação

realizaram-se as Olimpíadas na Grécia e as eleições no Brasil. A Professora viu-se na

contingência de realizar um trabalho com a 5ª série sobre as Olimpíadas e com a 7ª série sobre as

eleições, para atender a demanda de realizar “projetos” com os temas atuais, muitas vezes a partir

de uma decisão tomada em reuniões pedagógicas. Os trabalhos são realizados em casa. Eles

foram feitos e entregues para a Professora, mas não observamos qualquer discussão a seu respeito

na aula.

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No caso da 5ª série, quando o trabalho foi marcado estávamos em aula. Perguntamos aos

alunos se haviam terminado o conteúdo de Egito. Uma aluna disse que sim, outro aluno disse que

achava que sim. Na seqüência da aula os alunos copiam mais um questionário sobre o Egito e

percebemos então que eles continuam no mesmo tema. Se para nós foi difícil entender o que

estava acontecendo, para os alunos da 5ª série essa descontextualização colabora na formação de

uma concepção de “tanto faz” em relação à disciplina. Se a opção é feita em torno de um

currículo que siga a cronologia, pelo menos esse eixo deveria servir como norteador dos temas

para uma melhor compreensão por parte de alunos que estão tendo os primeiros contatos com

esses conteúdos. Para os alunos da 7ª série – mais habituados com essa estrutura, pois já devem

ter feito vários desses trabalhos – a solicitação do tema das eleições no Brasil no meio da

Revolução Francesa (sem qualquer analogia entre ambos) não causa qualquer estranheza (dia

06/10).

No entanto, outras relações que não são institucionais acabam por tornar-se

institucionalizadas dentro da aula. No dia 16/08 a Professora está tentando marcar uma prova

com a 7ª série. Ela pensa em um dia, mas diz que “é a primeira aula, então não dá” e deixa para

marcar depois. Na 5ª série, no dia 21/08, ela marca a prova, mas avisa que nesse dia não é para

chegar atrasado na aula. Como essas, são muitas as questões que vimos se institucionalizarem na

escola em geral. Na sala de aula essa é uma delas: o atraso faz parte das relações da classe com a

Professora, com a perda de conteúdo, com a não realização de uma prova.

Contudo, na escola como um todo há a pior delas, que é a institucionalização da não

responsabilidade para com os alunos, como anotamos na Introdução. Em vários momentos os

adultos da escola – direção, professores, funcionários – não assumem a responsabilidade pelos

jovens que estão sob a sua tutela. Nos dias em que o portão da escola abriu após o horário, sem

que a direção tomasse qualquer providência; nas aulas de recuperação, quando alunos maiores

entraram na aula dos menores; nas recuperações durante o ano, realizadas na mesma sala e no

mesmo horário que a aula normal; na aula em que a Professora, talvez até por cansaço, não

impediu que um aluno ficasse atormentando outro por um bom tempo (dia 06/10, na 7ª série).

Esse descaso, ou desencanto se olharmos por outra perspectiva, aparece em vários

momentos também dentro da sala de aula. Quando solicitamos a Professora que ela respondesse

algumas questões na sua licença prêmio, ela diz que não tem tempo, então conversamos um

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pouco na sala mesmo. As questões seriam sobre o currículo de História e os PCN. O seu

comentário, após a entrada dos alunos e, aparentemente, para se desvincular da obrigação, é que

“é tudo faz-de-conta, pois nem o programa não se completa direito. Se a gente fosse fazer tudo

certinho, como deveria ser, não terminaria nunca” (dia 16/10).

No entanto, nesse mesmo dia ela comenta que os alunos não erraram uma questão da

prova que ela havia trabalhado anteriormente numa interpretação de texto difícil, que ela tinha

nos mostrado. Na época que ela realizou a interpretação, pediu a nossa opinião sobre o texto e

indicamos que seria interessante uma leitura junto com os alunos para trabalhar o vocabulário,

que era um pouco sofisticado. Mas colocamos que o texto, uma fonte primária, era bem

interessante, apresentando a visão do grego Heródoto sobre o processo de mumificação egípcia.

Não acompanhamos o desenvolvimento do trabalho, mas ela estava orgulhosa pela compreensão

que os alunos tiveram do assunto. Por isso, inclusive, estava explicando mais detalhadamente

uma questão da interpretação de texto sobre os Manuscritos do Mar Morto, na expectativa de ter

um bom resultado na próxima prova.

São várias as temáticas que poderíamos analisar a partir dessa situação observada. Uma

delas é que a Professora, apesar do seu desencanto e de ter como parte do seu ofício o “fazer de

conta”, não é desinteressada e procura realizar um bom trabalho, dentro das suas possibilidades

pessoais e profissionais. Outro aspecto a observar, e seguindo o proposto por Maurice Tardif,

seria analisar a atuação que observamos como parte dos saberes da Professora. Para esse autor,

não se pode realizar pesquisa em Educação sem se ter como premissa que “os professores de

profissão possuem saberes específicos que são mobilizados, utilizados e produzidos por eles no

âmbito de suas tarefas cotidianas” (TARDIF, 2001, p. 113). Por mais rotineiras que sejam essas

tarefas, elas atendem a alguma necessidade identificada em aula pelo professor. Contudo, não

correspondem necessariamente ao que é colocado pelos parâmetros curriculares, pelo livro

didático, ou mesmo pelo seu próprio plano de ensino.

Nele, são muitas as habilidades que a Professora pretende trabalhar com os alunos, como:

desenvolver a noção de historicidade, que ela entende como sendo uma noção temporal (presente,

passado e futuro); refletir sobre diferentes realidades do processo histórico; compreender que as

sociedades são resultantes da composição de várias culturas, ações políticas e etnias com

economias diversificadas; ou até mesmo a perceber, identificar e compreender diferentes aspectos

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da Idade Moderna, como o significado histórico da Revolução Industrial, ou os ideais iluministas

presentes na Revolução Francesa, na independência dos EUA e do Brasil, ou as diversas fases do

Brasil Império, conteúdo que não foi trabalhado.

Porém, o próprio comentário da Professora já traz o que é o limite das suas possibilidades.

O seu conhecimento, “os saberes de sua própria ação”, são aqueles de fazer funcionar o que é

possível para ela na sala de aula. Nesse sentido, a Professora dá a aula, portanto transmite o

conteúdo, interage com os alunos afetivamente, cumpre parte do programa, mantém a disciplina,

faz avaliações, preenche os espaços burocráticos. Ela não faz o que se espera dela pelas propostas

curriculares oficiais: construir o conhecimento em sala de aula, formando o aluno crítico, pronto

para o mercado de trabalho, que compreenda e aceite as diferenças, que seja ético, que preserve o

meio ambiente, etc.

Há ainda um terceiro ponto a analisar a respeito da afirmação “é tudo faz-de-conta” e a

sua vinculação com o conteúdo curricular expresso em sala de aula. Para Merchán Iglesias

existem dois fatores que interferem no cotidiano da sala de aula de História com muita força: um

é a prática examinadora escolar e outro é o controle da conduta dos alunos. Como o ensino se dá

em condições de tempo e espaço bem definidas, essas duas dimensões são as que regulam a

atividade com o conhecimento nas aulas. Citando Basil Bernstein, o autor define que seria “el

orden regulador sobre el orden instructivo” (IGLESIAS, 2002, p. 51).

Assim, a metodologia baseada no estabelecimento de uma rotina diária com as atividades

bem determinadas, sem alterações e sem desafios, favorece a ordem reguladora da sala de aula e

se constitui em um saber construído por ela a partir do conhecimento de como funciona a prática

das suas aulas.

Fazendo parte desses saberes encontra-se também a seleção dos conteúdos que compõe o

currículo praticado pela Professora. Além de ter como eixo o aspecto informativo e cronológico,

numa constituição curricular que ela domina, o conteúdo é definido e selecionado pelo caráter de

possibilitar a sua avaliação. Nesse caso, os temas com os quais ela trabalha são aqueles que

podem ser dimensionados dentro de parâmetros avaliativos, pois são informações facilmente

localizáveis, cujas respostas às perguntas de tipo o quê, como, quando, estão disponíveis ao aluno

para que ele as acesse ou memorize.

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Nesse caso, quando ela devolve as interpretações aos alunos para que eles revisem a

resposta, é meramente para que melhorem a sua avaliação final através da resposta correta de

acordo com o que está no texto do livro ou no caderno, e não para que percorram um caminho

intelectual dentro do conhecimento histórico. Além disso, a avaliação também acaba por se tornar

a arma de controle de conduta na sala de aula, através da velha ameaça de que uma atividade

desinteressante deve ser realizada porque vale nota, ou do desconto de pontos de quem não

trouxe o livro.

Assim, percebe-se que, realmente, a ordem reguladora atua sobre a ordem instrutiva, pois

a seleção de conteúdos, a metodologia de trabalho e a prática de sala de aula estão sob a

ingerência direta dessas forças. Merchán Iglesias vai além, ao dizer que nas aulas “se trataria, en

última instancia, de decir a los alumnos lo que tienen que decir en el examen, procurando, al

mismo tiempo, controlar la conducta de los estudiantes” (IGLESIAS, 2002, p. 51). O grifo é do

autor, para marcar aquilo que a Professora já sabe: o faz-de-conta provocado por todas essas

circunstâncias que produzem uma boa parte do caráter aligeirado e empobrecido no currículo que

é praticado em sala de aula.

Ainda pensando em torno da afirmação da Professora, em nenhum momento da nossa

convivência com ela escutamos qualquer referência ao conteúdo da disciplina ter como finalidade

a formação de cidadãos críticos e transformadores da sociedade. Embora ela tenha colocado essas

questões no texto de introdução da disciplina, como vimos na análise dos cadernos, na sua fala

essa questão não aparece. O que nos leva a supor que o texto introdutório é mais um faz-de-conta.

E também que há uma consciência por parte da Professora de que o caráter formador da

disciplina não é uma possibilidade que se cogite dentro do que foi estabelecido como rotina da

sala de aula e como currículo a ser desenvolvido. Na trivialidade de algumas explicações, no

empobrecimento dos conteúdos, não existe a possibilidade de qualquer formação mais articulada

dos alunos.

Essa é outra característica comum entre as pesquisas citadas que trabalham com a

realidade da sala de aula de História. Tanto Merchán Iglesias, quanto Abud e Lanza e Finocchio

identificaram o discurso formador da disciplina entre os professores, mas na prática ficou

constatado que é uma colocação que está longe da sua efetivação. Lanza e Finocchio colocam

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que “ningún docente menciono la vinculación del passado con el presente entre los criterios que

utiliza para seleccionar los textos escolares” (LANZA; FINOCCHIO, 1993, p. 132).

Já Abud, em uma pesquisa realizada a partir dos relatórios dos alunos que estão fazendo

estágios em escolas públicas (dentro das atividades da disciplina de Metodologia do Ensino de

História da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo/FEUSP), relata que “a maioria

dos professores segue em direções diferentes das que valorizam, desenvolvendo seu trabalho

pedagógico com poucas inovações no que se refere à organização dos conteúdos e aos métodos

de ensino” (ABUD, 2003, p. 176). Merchán Iglesias levanta as mesmas questões para a realidade

espanhola, afirmando ainda que os maiores problemas nas aulas acontecem em torno da

administração de questões alheias ao trabalho com o conhecimento dificultando, ou mesmo

impossibilitando, a realização das expectativas dos professores para atingir um ensino que traga

aos alunos as benesses que o conhecimento histórico carrega em si mesmo (IGLESIAS, 2005).

Dessa forma, observamos que há a permanência da abordagem tradicional dos conteúdos

Históricos na aula da Professora observada, independente do que se esteja discutindo ou

propondo como currículo em qualquer outro âmbito, seja acadêmico ou institucional, ou mesmo

do livro didático que ela utiliza. Porém, essa perspectiva sobre o limite das possibilidades da

disciplina representa mais um aspecto do esvaziamento das funções do professor e da dificuldade

em redefinir a sua identidade profissional, pois se trocou o ensino tradicional e conteudista por

praticamente ensino nenhum. Merchán Iglesias afirma o

hecho de que los profesores no gobiernam de manera absoluta la vida en el aula

sino que la materialización de sus objetivos y la concreción de lo que pretenden

que en ella ocurra se encuentra con no pocas dificultades, hasta el punto de

forzarles en muchos casos a reconducir sus deseos y a actuar de outra manera.

(IGLESIAS, 2005, p. 41).

Nesse sentido, entre todas as redefinições do seu papel, restou ao professor apenas o

discurso legitimador da sua disciplina. Porém, mesmo o discurso legitimador não fornece a não

ser mais frustração, pois se revela como um grande faz-de-conta.

Acrescentamos nessa questão da perda da identidade docente as recentes funções que

estão sendo repassadas para os professores de alguns anos para cá, como colocamos inicialmente.

Os discursos do professor/administrador da conduta e psicologia dos alunos e do

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professor/funcionário esvaziaram o seu papel de conhecedor do seu ofício, deslocando-o da sua

atuação, das suas reais e possíveis responsabilidades, da sua competência. Seguindo o

pensamento de Popkewitz “a participação e a ‘voz’ do professor são ordenadas por noções

oriundas das ciências do ensino e do gerenciamento local das escolas” (POPKEWITZ, 2001, p.

70).

Outro fator levantado por Abud é que as novas competências que marcam a identidade

docente se referem “às expectativas que o sistema mantém em relação à aceitação das reformas

educacionais” (ABUD, 2003, p. 173). No caso brasileiro, é esperado que o professor incorpore na

sua aula os temas transversais dos PCN, assim como as inovações historiográficas presentes no

livro didático por exigência da seleção realizada pelo PNLD. Além disso, que tenha a intenção

(pelo menos expressa na burocracia) de desenvolver as habilidades cognitivas de refletir,

compreender, desenvolver e identificar, como objetivos a se alcançar com o conteúdo. Termos

que retiramos do que está declarado nos planos de ensino da Professora. Para Popkewitz, esse

conjunto de exigências torna “o conhecimento do professor (...) enquanto sistemas de razão, (...)

prática substantiva relacionada a questões de regulamentação, governo e normalização”

(POPKEWITZ, 2001, p. 75).

Lanza e Finocchio lançam a hipótese de que a inovação da realidade escolar não depende

só da abertura da proposta curricular, chamada por elas de interstícios da proposta oficial, mas

“de las condiciones sociales, políticas e institucionales que facilitan o dificultan la

implementación de transformaciones” (LANZA; FINOCCHIO, 1993, p. 104). Hipóteses que

podemos confirmar a partir de nossa pesquisa, inclusive porque os PCN são constituídos como

parâmetros e isso, por si só, lhe tira o caráter de norma a ser cumprida. O professor pode escolher

dentro da sua proposta aquilo que é interessante para o desenvolvimento da sua aula. A inovação

tampouco depende apenas da formação dos professores, coisa que seria resolvida com os

inúmeros cursos de formação continuada aos quais os professores vêm, muitas vezes, sendo

submetidos.

O fato de pesquisas realizadas em países diferentes, cada qual com uma realidade

específica em relação ao ensino, mas que apresentam constatações semelhantes é revelador do

alcance da reestruturação da educação que acontece a partir das reformas neoliberais. São

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prescrições de normas, aferições de resultados, análises quantitativas do alcance da educação de

massas, realizadas para marcar os resultados numéricos do faz-de-conta.

Diante disso, a atitude da Professora perante a sua área de referência, as exigências

institucionais e a sua realidade em aula, nos remete a uma análise realizada por Héctor Hernán

Bruit (1991) que buscou definir a postura dos índios durante a conquista da América pelos

espanhóis. Ironicamente, é um texto que representa a abordagem da visão dos vencidos da década

de 80/90, cujo título é “Derrota e simulação. Os índios e a conquista da América”. Sua análise

parte da visão européia do frei Bartolomé de Las Casas, cronista do período colonial e defensor

dos indígenas. Nela, Bruit procura mostrar que a percepção do indígena como pacífico e

obediente não corresponde à realidade, pois se para a conquista houve a necessidade de uma

guerra, é sinal de que alguma resistência foi imposta ao conquistador.

Entre os fatores da resistência indígena, o autor coloca também a ruptura da comunicação

verbal, que passou despercebida pela avaliação de Las Casas e outros cronistas. Além de definir

os índios como ladrões, mentirosos, dissimulados, covardes, bêbados, características pelas quais

eram brutalmente castigados, o silêncio que estes impunham sobre o discurso dominador europeu

era interpretado como irracionalidade. O silêncio, junto a outra característica incompreensível

para o europeu, a simulação, foram os grandes trunfos dos indígenas como resistência ao

massacre físico e cultural de que foram vítimas. Ora aceitavam a submissão, vestindo-se de

europeus e aceitando a nova religião, ora realizavam os cultos cristãos com artefatos da sua

tradição, assim como opunham uma fala cheia de duplo sentido e de metáforas quando obrigados

a se manifestar.

Por exemplo, um índio foi perguntado se era cristão, ele respondeu: ‘si senhor,

eu já sou um pouquinho cristão, porque eu sé um pouquinho mentir; amanhã eu

saber muito mentir e serei muito cristão’ (BRUIT, 1991, p. 13).

Usando da ignorância dos europeus sobre a sua cultura, os índios aproveitaram para

mantê-la viva, mas oculta sobre uma aparência européia. Bruit coloca que essa atitude não foi

intencional ou programada de forma consciente, mas fluía do próprio trauma da conquista, de

forma difusa pela sua própria obviedade. Para os europeus foi vista como simulação, para Bruit

como “a forma e intenção da ação social dos índios (...), a resistência difusa (...), se traduziu na

renúncia voluntária de viver a história do outro, mas simulando vivê-la”.

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Em que pese todas as diferenças de tempo e lugar, o faz-de-conta da Professora nos

parece uma atitude com matizes parecidos a atitude de resistência aparentemente passiva dos

índios. Insinua uma atividade que na realidade não acontece. Passam as reformas curriculares,

troca-se o livro didático, mas como ela sabe que os problemas e as condições reais do trabalho

em sala de aula não serão modificados, segue com o seu método e a sua seleção curricular,

deixando os ventos das mudanças aparentes passarem sobre a sua cabeça.

O problema é que, enquanto isso, gerações são formadas dentro de uma indigência

cultural. Que certamente agrada àqueles a quem não interessa que haja modificações mais

substanciosas na sociedade, desde que apareça no quantitativo das estatísticas a pujança do

sistema de ensino brasileiro.

Voltando ao texto de Héctor Bruit, sobre as conseqüências da conquista, um cronista

mestiço da época declara que deixou “o mundo às avessas”. Construiu uma sociedade “melada”,

para Bruit, “pela atitude da esmagadora maioria, militarmente vencida, mas não conquistada

espiritualmente. A simulação, o silêncio, a desconfiança, (...) foram as ferramentas usadas pelos

vencidos para resistir, contribuindo, talvez sem sabê-lo, para a deformação da nova sociedade”

(BRUIT, 1991, p. 17-18).

Será esse o estigma das constantes reformas curriculares, das trocas de 8 para 9 anos de

escolaridade, do afastamento dos professores das discussões, os maiores interessados em

mudanças reais na educação, com o conseqüente esvaziamento das práticas em sala de aula?

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5 A TEORIA E OS PROGRAMAS CURRICULARES

5.1 Histórico da disciplina de História e da noção moderna de currículo

Dentro do que nos propomos nesse estudo, é importante fazermos um histórico do termo

currículo e de seu significado, seguindo o princípio de desnaturalizar os sentidos que estão

colocados na escolarização. Assim, refletir sobre as diferentes concepções de currículo e das

disciplinas escolares e a sua emergência como uma construção ocorrida em determinado contexto

histórico e social, nos fornece elementos que permitem uma abrangência maior de análise.

Partindo dessa consideração, podemos pensar que o que temos hoje como o sistema

educacional dividido em classes de aprendizado (que são separadas por idade e níveis de

conhecimento), com os conteúdos estruturados em disciplinas, assim como a própria organização

curricular, pertence ao mundo ocidental moderno, mas que teve sua gestação a partir de uma lenta

transformação iniciada no século XVI, segundo David Hamilton (HAMILTON, 1992). Essas

transformações ocorreram imbricadas nas modificações socioeconômicas, políticas e culturais de

diferentes épocas. Exemplos disso estão no processo de secularização da educação no período da

Renascença, ou na necessidade que se estabeleceu a partir da formação dos Estados nacionais de

se apropriar de um maior controle sobre as pessoas através do ensino, na época moderna.

Em relação à utilização da palavra disciplina no seu sentido atual de matéria escolar, um

estudo de referência é o de André Chervel (CHERVEL, 1990) que busca a origem desse termo

como o entendemos hoje. Porém, especificamente em relação à disciplina de História,

encontramos em Dominique Julia uma reconstituição dos seus primórdios. Este autor faz uma

análise que aponta o risco do anacronismo de se imputar ao ensino jesuítico características da

História atual, identificando ali o início de um desenvolvimento linear até a atualidade (JULIA,

2002).

Julia credita a possibilidade do início da disciplina – nos moldes mais próximos ao que

temos hoje – ao estudo mais informal dos nobres internos nos colégios franceses do século XVII.

Ali eles aprendiam sobre “o estado presente dos principais principados da Europa, assim como a

história nacional, inclusive a mais recente” (JULIA, 2002, p. 46). Como se tratava da educação

daqueles que ocupariam os cargos mais importantes na administração, no exército e nas

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embaixadas, foi nessas escolas de nobres “e nas escolas militares do século XVIII” que surgiram

as disciplinas de História e Geografia (JULIA, 2002, p. 46).

O autor nos alerta ainda para outro risco de análise, que é o de imaginar uma linearidade

nas disciplinas que apresentam o mesmo nome por um tempo longo, como as humanidades

clássicas, ignorando as transformações de métodos, conteúdos e até de finalidade que estão

latentes em sua história.

Já a gênese da noção de currículo, com o sentido que possui atualmente, é mais difícil de

ser rastreada no tempo histórico. Voltando a David Hamilton, ele indica a possibilidade do

surgimento do termo curriculum na educação entre os séculos XVI e XVII, denotando um curso

de estudos mais longo e completo seguido pelos estudantes. Além disso, resgata as noções de

disciplina – “um sentido de coerência estrutural” – e ordo – “um sentido de coerência interna” –

como estruturadores de um curso longo, que deveria ser completado pelo aluno e que apresenta

como características “tanto globalidade estrutural quanto completude seqüencial” (HAMILTON,

1992, p. 43).

Essa noção de ordem e estrutura interessava ao calvinismo e às novas necessidades de

controle e eficiência, tanto da escola quanto da sociedade, que estão implicadas nessa doutrina.

Para contextualizar melhor essa associação – calvinismo e educação – Hamilton analisa a

profunda transformação que a vinculação da noção de dialética e método trouxe para a forma de

pensamento da época, com as mudanças na noção de curriculum e sua incorporação e difusão

pelo calvinismo. A dialética – “o ramo da filosofia usado para analisar a estrutura da linguagem”

– foi modificada no final da Renascença, tornando-se mais simples e de uso mais geral, visando à

facilidade de comunicação (HAMILTON, 1992, p. 43). Esta buscava extrair a verdade dos textos

dos pensadores e comunicá-las de forma mais fácil.

O filósofo e professor Peter Ramus uniu a retórica e suas normas de comunicação a essa

forma mais simplificada da dialética formando o método ramista, que era mais linear, organizado

e acessível. As idéias de Ramus se propagaram pela Alemanha, principalmente nas áreas

calvinistas. Hamilton sugere que essa ligação se deva, mais uma vez, a percepção de ordem e

disciplina que já havia na prática social do calvinismo, que poderiam ser associadas com as

práticas pedagógicas mais globais e ordenadas desse novo pensamento. Embora não esteja muito

clara a vinculação desse processo com o surgimento de curriculum no sentido de curso, e não no

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seu sentido original latino de “corrida” ou “pista de corrida”, tudo indica que foi na emergência

dessas construções que se deu a sua constituição.

O curriculum representou “o refinamento do conteúdo e dos métodos pedagógicos” que

vieram da dialética e do método e se incorporaram ao pensamento calvinista (HAMILTON, 1992,

p. 47). Essas novas tecnologias remodelaram a forma medieval de ensino, ao incorporar também

a crença protestante de evangelização através da escola. Com isso, mais crianças passaram a ter

acesso à escola e ao ensino que, por sua vez, tornaram-se mais sujeitos ao controle e ao exame

externos.

Esse quadro resumido nos mostra algumas das modificações ocorridas no pensamento e

na estrutura educacional desde a Renascença, que foram alicerçadas na Reforma, novamente

reestruturadas pelo Iluminismo e assumidas como projeto social pela Revolução Francesa. E é na

passagem do século XIX para o século XX que os desdobramentos desse processo ficam mais

claros. Com a visão de mundo iluminista se consolidando, novas perspectivas foram postas ao

pensamento da época, que influenciaram também a área pedagógica. A perspectiva do progresso

social e científico, o uso da racionalidade e o surgimento da figura do especialista profissional

trouxeram modificações nas questões do ensino, junto com a necessidade de profissionalização e

educação das massas. Os padrões reguladores da pedagogia e do currículo foram, então,

associados às necessidades do Estado de bem-estar social que estava se formando. Para Thomas

Popkewitz:

Podemos compreender a escolarização pública do final do século XIX e início

do século XX como uma continuação do projeto de disciplinação e regulação da

Reforma, mas também como uma ruptura nos sistemas de conhecimento pelos

quais os indivíduos deviam se tornar membros produtivos da sociedade

(POPKEWITZ, 2002, p. 187).

Essa ruptura se dá pelos novos padrões que foram estabelecidos para as pessoas na

sociedade moderna, que era o de se tornarem cidadãos inseridos na forma racional e científica de

ver o mundo. E a escola esteve no centro desse ajuste, ao produzir as concepções de

enquadramento que determinam a forma correta de aprender, as atitudes corretas para se

socializar, as respostas corretas para ser bem avaliado. Através da criação de padrões e categorias

educacionais, a escola moderna também passou a produzir o aluno competente, com prontidão

para o trabalho, responsável, assim como o aluno atrasado e/ou com deficiência.

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5.1.1 Mas quando se começou a pensar sobre o currículo?

A partir do final do século XIX, seguindo a análise de Popkewitz, a educação teve o papel

de administrar as profundas transformações trazidas pela urbanização, pela industrialização e pela

imigração. O desenrolar desse processo será a formação da escolarização das massas, que trouxe

a preocupação com a administração da escola em todos os seus aspectos: pedagógicos,

curriculares, espaciais, técnicos13 (POPKEWITZ, 1997). E o pensamento sobre currículo tornou-

se uma formulação importante nas novas tecnologias educacionais pensadas para lidar com todas

as transformações desse período.

Podemos dizer que nas primeiras décadas do século XX tem início o pensamento

sistematizado sobre currículo, quando as teorias baseadas nos princípios da administração

taylorista tomaram como dado o conhecimento em torno dos quais se estabelecia o status quo, e

concentraram-se na dimensão tecnocrática do currículo. A educação deveria ser eficiente, como

qualquer outra empresa, e seus princípios deveriam ser padronizados, servindo como uma

preparação para o mundo do trabalho. E as preocupações com a grade curricular se resumiam a

como torná-la mais organizada para que atingisse seus objetivos com maior eficiência.

Não havia questionamentos em relação ao conhecimento, pois se partia de uma visão

teórica da modernidade que se pretendia neutra, rigorosamente científica e desinteressada, cujas

análises estavam centradas em estruturas curriculares lineares e em discussões técnicas sobre o “o

quê?” e o “como?” ensinar. Esse modelo vigorou praticamente sem questionamentos até as

décadas de 60/70 quando, no meio das agitações sociais e políticas da época em boa parte do

mundo ocidental, foram colocados em discussão os princípios do sistema educacional pelas

chamadas Teorias Críticas do currículo.

As Teorias Críticas se preocuparam com o desenvolvimento de conceitos que permitissem

compreender o modo pelo qual dinâmicas sociais de dominação são implementadas através dos

processos educacionais e curriculares. A partir de uma base marxista, a questão da desigualdade –

tomada como fenômeno vinculado à injustiça – se estabeleceu nesse campo de discussão. A

preocupação em compreender, na perspectiva de transformar, os contextos através dos quais a

13 Esse processo teve início nos Estados Unidos, mas a sua análise pode ser ampliada para diferentes tempos e espaços, uma vez que o currículo está no centro de qualquer pensamento sobre os objetivos que devem ser atingidos pela educação. Formar o cidadão humanista ou técnico-profissional? Ensinar o conhecimento acadêmico e científico, ou o prático e cotidiano?

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escola atuava de forma discriminatória em relação às classes trabalhadoras. Essas análises

mobilizaram a produção de autores como Michael Apple, Henry Giroux (em sua primeira fase),

nos Estados Unidos, Paulo Freire, no Brasil, e de correntes de pensamento como a Nova

Sociologia da Educação (NSE), na Inglaterra.

Os questionamentos críticos da NSE tiveram início na sociologia, a partir da publicação

do livro Knowledge and control, organizado por Michael Young com ensaios de vários autores.

Entre as proposições teóricas da NSE nesse novo cenário de questões está a afirmação do

currículo como um artefato histórico. Uma abordagem histórica que enfatiza o caráter de

construção social do currículo critica a forma pela qual as categorias curriculares, pedagógicas e

avaliativas foram naturalizadas pela teoria educacional e pelos educadores. Aponta ainda para o

fato de que sua desnaturalização deveria seguir um caminho reflexivo que promovesse a

compreensão dos interesses e valores sociais que fazem parte do processo seletivo característico

das construções curriculares, dos “conflitos e disputas em torno de quais conhecimentos deviam

fazer parte do currículo” (SILVA, 2004 p. 67).

A análise proposta pela NSE incorpora ainda a questão do poder vinculado ao currículo,

presente na distribuição de recursos sociais e econômicos assim como na seleção e organização

do conhecimento. Nesse sentido, questiona o destaque dado para áreas do conhecimento como as

ciências, por exemplo, em detrimento de outras como as artes. Na mesma direção, discute a

construção de um currículo onde apareçam as “tradições culturais e epistemológicas dos grupos

subordinados e não apenas dos grupos dominantes” (SILVA, 2004 p. 69).

A partir da década de 80, as questões levantadas pela NSE acabaram se dissolvendo em

outras linhas de pesquisa, como os próprios Estudos Culturais, cuja origem está vinculada ao

Centro de Estudos Culturais da Universidade de Birmingham, na Inglaterra, e aos estudos pós-

estruturalistas. Outros teóricos assimilaram os discursos neoliberais, partindo para uma postura

mais burocrática e técnica, características do conservadorismo da era Reagan-Tatcher. De

qualquer forma, sua importante contribuição através da idéia de currículo como construção social

continua a informar vários estudos e análises sobre o tema.

A partir dessas concepções, as chamadas Teorias Pós-críticas, ligadas ao pensamento pós-

moderno e pós-estruturalista, incorporaram muitas das reflexões críticas e as aprofundaram,

assim como levantaram outras tantas questões ligadas às transformações e deslocamentos nas

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formulações do significado de ciência, conhecimento e educação que vêm ocorrendo nas últimas

décadas. A atenção à questão da desigualdade/dominação foi preservada no conjunto das Teorias

Pós-críticas, influenciando vigorosamente as referências de análise de vertentes teóricas, tais

como a pedagogia feminista, a pós-colonialista e o multiculturalismo.

Essas teorias preocupam-se com as relações entre o poder e o conhecimento, sendo a

noção de poder, na visão pós-crítica, ampliada em relação àquela ligada exclusivamente à política

e às questões de Estado. Após os estudos de gênero, sexualidade, etnia e raça, assim como os

estudos genealógicos realizados por Michel Foucault, perdeu-se a inocência de localizar esse

poder para longe, para um local externo às relações cotidianas.

A partir de então se entende que o conhecimento e a ciência não apenas não são neutros,

como são social e historicamente construídos e representam um espaço de luta pelo

estabelecimento de suas normas e verdades. O poder das teorias pós-críticas está descentrado,

todavia, presente em todas as relações humanas. O relevante nessa concepção são as conexões

entre poder, saber e identidade (SILVA, 2004). Ainda dentro dessa perspectiva, as análises

influenciadas pelo pós-estruturalismo enfatizam as indeterminações e incertezas nas questões do

conhecimento, não importando mais a busca pela verdade e sim, o motivo que levou algo a ser

tomado como verdade. E essa também é uma perspectiva dos Estudos Culturais em Educação.

Os elementos para análise que essa corrente propõe vão também na direção do currículo

como uma construção social e mais além, ao colocá-lo como sendo um artefato cultural. Os

Estudos Culturais assimilam e aprofundam a concepção de construção social das Teorias Críticas

ao utilizar algumas proposições de Foucault. Desta maneira, definem o currículo como um

artefato cultural porque ele é socialmente construído e imbricado por relações de poder e também

devido ao fato de sua existência ser uma invenção social como qualquer outro aspecto da cultura.

As conseqüências deste deslocamento são fundamentais, em diversos aspectos. Primeiro

porque os diversos campos do conhecimento passam a ser percebidos de forma igualitária,

aprofundando a idéia já tematizada pela NSE. Assim, as Ciências Naturais e Exatas têm o mesmo

valor das Ciências Sociais e das Artes, e o saber comum é tão valorizado quanto o científico.

Segundo porque o conhecimento deixa de ser algo pré-existente e definido, que deve apenas ser

desvendado e transmitido, sem questionamentos. Portanto, deve-se trabalhar no sentido de

desconstruí-lo, desnaturalizá-lo, mostrando as suas origens e os diferentes processos de

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estruturação que o levaram a tornar-se hegemônico.

Outra abordagem que amplia essa idéia é aquela que olha/investiga o currículo do ponto

de vista Pós-colonial. Para o pensamento pós-colonial a seleção curricular é uma construção

realizada predominantemente a partir do padrão europeu, branco, civilizado e heterossexual – e

que exclui o que não esteja relacionado a esse modelo. Junto com o feminismo e outros

movimentos sociais, esse conjunto de teorizações pós-críticas questiona esta seleção excludente

do que é válido como conhecimento e como cultura. Seguindo a apreciação de Tomaz Tadeu da

Silva a respeito do valor dos diferentes tipos de cultura e conhecimento tem-se

a idéia de que não se pode estabelecer uma hierarquia entre as culturas humanas

(...) Não é possível estabelecer nenhum critério transcendente pelo qual uma

determinada cultura possa ser julgada superior a outra (SILVA, 2004: p. 86).

A partir desses enfoques apreende-se que todo currículo expressa a luta pela hegemonia

de determinada visão do saber e, assim, qualquer transformação nessa área implica em uma

desestabilização dessas relações. Os caminhos para se chegar a qualquer transformação não estão

pré-definidos, mas são resultados das lutas e debates em torno do que deve prevalecer como

concepção de verdade. E para percebermos o que está por trás, o que não está aparente, devemos

pensar nas origens ou causas que estão embasando, ou alicerçando, determinada visão de

conhecimento.

5.1.2 Pesquisas sobre currículo no Brasil

Essas linhas teóricas têm chegado ao Brasil de diferentes modos e em diferentes

momentos, desde os anos 20, com as reformas educacionais da Escola Nova influenciadas por

autores americanos e europeus. Já na década de 50, aparecem como uma transferência

instrumental das teorias americanas, amplamente estudada por Antonio Flávio Moreira, entre

outros autores (MOREIRA, 1998). Essa transferência se dava por meio de acordos entre os dois

países como parte do programa de ajuda para a América Latina. Contudo, a partir da

redemocratização dos anos 80 são as teorias críticas que chegam ao Brasil, sob a influência da

NSE inglesa, assim como de diversos autores franceses e do marxismo europeu.

As Teorias Críticas chegam num momento em que já não há mais uma transferência de

cunho institucional, mas as idéias são incorporadas através das pesquisas brasileiras que se

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realizam em torno das idéias desses autores com as suas diferentes concepções teóricas (LOPES;

MACEDO, 2002). As relações entre conhecimento, currículo e poder passam então a ser

debatidas e, a partir da metade da década de 90, os enfoques pós-modernos e pós-estruturais

começam a aparecer nas teorizações sobre currículo, convivendo com as abordagens modernas

que estavam em vigor.

Alice Lopes e Elizabeth Macedo identificam três grandes linhas de pesquisa em

andamento hoje, em diferentes instituições do país: a perspectiva pós-estruturalista, desenvolvida

por pesquisadores da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), inicialmente

organizada por Tomaz Tadeu da Silva; o currículo e o conhecimento em rede, discussão realizada

na Universidade Federal Fluminense (UFF), coordenada por Regina Leite Garcia e na

Universidade do Estado do Rio de Janeiro por Nilda Alves (UERJ); o conhecimento escolar e o

currículo, trabalho desenvolvido pelo Núcleo de Estudos de Currículo (NEC) da Universidade

Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e coordenado por Antonio Flávio Moreira. Às diferentes

influências da literatura de outros países, soma-se uma farta gama de estudos realizados

localmente e debatidos em distintos fóruns. Também ocorrem discussões dentro das disciplinas

de referência e, de forma mais ampla, em momentos de reformulações curriculares como o

acontecido em relação aos PCN.

Esse panorama vem marcando o campo do currículo no Brasil como uma área de

hibridismo teórico, como foi salientado na Introdução deste trabalho. Esse hibridismo traz a

perspectiva de se tentar preservar certa utopia das teorias críticas, mesmo com os deslocamentos

provocados pelo pensamento pós-moderno, como propõe Moreira (MOREIRA, 2003). Seguindo

as propostas lançadas por Boaventura Santos, sua formulação persegue soluções para os

problemas sociais, ambientais, políticos e culturais tão prementes na atualidade com respostas

que atendam ou vislumbrem um horizonte do possível. Nesse sentido, resgata as quatro teses de

uma nova epistemologia proposta por Santos:

Todo conhecimento científico da natureza é conhecimento da sociedade e vice-

versa (...). Todo conhecimento é simultaneamente local e total (...) Todo

conhecimento é autoconhecimento (...) Todo conhecimento científico visa

constituir-se em senso comum. (MOREIRA, 2003, p. 22-23).

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Esse movimento indicado por Santos e valorizado por Moreira, mostra um caminho

presente em diferentes teorizações que resgatam a valorização das Ciências Humanas, do

conhecimento local e do senso comum, capazes de enriquecer análises que dêem conta de um

pensamento mais abrangente e menos exclusivo.

Procuram ainda marcar a diluição da distinção entre sujeito e objeto, tornando o

conhecimento do mundo também um conhecimento de si. Por quebrar a visão moderna da

validade única do pensamento científico, essa configuração acolhe diferentes formas de saber

“tantas quanto às práticas sociais que as geram e sustentam” e esse novo conhecimento “é

validado com base tanto na capacidade argumentativa das comunidades interpretativas, como em

um valor ético intercultural – o valor da dignidade humana” (MOREIRA, 2003, p. 23).

Independentemente de se chegar a alguma conclusão sobre a possibilidade de uma alquimia

moderno/pós-moderno, essa percepção tem conseqüências para o pensamento sobre o currículo,

pois informa outras possibilidades de se pensar sobre a validade do que está posto nas atuais

propostas curriculares.

Ainda seguindo a marca de hibridismo do pensamento curricular brasileiro, avançamos

para as teorias pós-criticas onde muitas vezes o híbrido pode aparecer como um alargamento

daquilo que se convencionou chamar de currículo. E também aproveitamos para pensar sobre a

definição do que é aceito como culturalmente válido e, portanto, poderia (ou deveria) fazer parte

do currículo. Essa idéia já foi alinhavada acima, mas pode ser aprofundada com o suporte do

horizonte teórico pós-crítico.

Para Veiga-Neto, algumas definições do que é possível entender por currículo na

atualidade encontram-se no cruzamento dos Estudos Culturais com os Estudos de Currículo.

Nesse sentido, o currículo pode ser informado pelo que se considera culturalmente relevante em

um determinado momento histórico e, por isso, passa a ser o “eixo em torno do qual gravita a

vida escolar e, por extensão, gravita até mesmo boa parte da vida social” (VEIGA-NETO, 2004,

p. 52). Ou pode ser estendido para outras esferas como as de currículo da mídia, currículo das

novelas ou currículo das revistas de moda, etc. De qualquer forma, e sem entrar na discussão da

validade dessa extensão, para Veiga-Neto

o currículo se situa na articulação entre a escola e a cultura. (...) E, na medida em

que a cultura é constitutiva radical das demais ‘dimensões’ sociais que se queira

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considerar – como a econômica, a religiosa, a política etc. – a escola tanto

produz quanto reproduz a própria sociedade em que se situa (VEIGA-NETO,

2004: p. 52).

É importante que se compreenda o que é relevante culturalmente na concepção dos

autores que trabalham com currículo, assim como dos que trabalham com a nossa disciplina de

referência, a História. Seguindo as discussões realizadas em diferentes áreas do conhecimento –

principalmente na imbricação da Antropologia e da História presentes nos aportes da Nova

História Cultural – Lynn Hunt demonstra a importância das questões culturais para os

historiadores na atualidade (HUNT, 2001). Estes situam a cultura como um nível determinante da

realidade histórica, tanto quanto a economia foi determinante no marxismo ou a História

econômica e social para as primeiras gerações da Escola dos Annales.

Para esses historiadores, as próprias relações econômicas e sociais “são campos de prática

cultural e produção cultural” (HUNT, 2001, p. 9). Mas de que cultura se está falando? Como já

apontado por Moreira em sua análise da obra de Santos, estamos falando mais de culturas, no

plural, indicando a multiplicidade do termo e sua desvinculação com a alta cultura, assim como

com qualquer traço de hierarquia ou elitização da palavra. Sem entrar em discussões mais

profundas sobre o termo14, hoje as concepções de vida, os rituais, as crenças, os valores, os

hábitos e os simbolismos expressos no cotidiano, são considerados aspectos constituintes da

cultura. Nesses espaços culturais os conflitos ocorrem “pela imposição de significados, valores e

modos de vida, como, também, se constituem subjetividades e se dão poderosos processos de

regulação social”, como sinaliza Veiga-Neto (VEIGA-NETO, 2004: p. 53). Ele aponta para as

dificuldades que essa orientação traz para os Estudos de Currículo quando se teoriza sobre quais

são os elementos culturais que devem estar presentes em uma seleção curricular ou sobre a

importância e o papel de estudos sobre o cotidiano nessa mesma seleção.

Segundo Marisa Vorraber Costa, os “embates entre culturas” (COSTA, 2002, p. 134) são

hoje a grande questão que se coloca na contemporaneidade e, nesse sentido, as análises que

privilegiam o seu estudo como um espaço de poder são as que permitem uma apropriação mais

ampla das questões políticas atuais, uma vez que

14 Essa discussões se encontram em diferentes autores, principalmente na área da História Cultural e dos Estudos Culturais, assim como na Sociologia e na Antropologia, como Lynn Hunt, Homi Bhabha, Stuart Hall, Peter Burke, Terry Eagleton, Norbert Elias, Pierre Bourdieu.

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os textos culturais são muito importantes, pois eles são um produto social, o

local onde o significado é negociado e fixado, em que a diferença e a identidade

são produzidas e fixadas, em que a desigualdade é gestada (COSTA, 2002, p.

138).

O currículo, como um texto cultural e produto do seu tempo, é um desses espaços onde as

questões de identidade são produzidas. Seguindo o pensamento de Stuart Hall, um dos

intelectuais fundadores dos Estudos Culturais, Costa destaca a amplitude que esses estudos vêm

atingindo, trazendo a possibilidade dessas idéias se incorporarem em diferentes políticas

culturais. Para ela, “a escola, o currículo e o livro didático são exemplos de arenas da política

cultural onde os embates identitários se dão segundo relações assimétricas de poder” (In: LOPES

e MACEDO, 2002: p. 139).

Para Tomaz Tadeu da Silva, os aspectos culturais também são relevantes nas concepções

curriculares, pois

Desde sua gênese como macrotexto de política curricular até sua transformação

em microtexto de sala de aula, [...] vão ficando registrados no currículo os traços

das disputas por predomínio cultural, das negociações em torno das

representações dos diferentes grupos e das diferentes tradições culturais, das

lutas entre, de um lado, saberes oficiais, dominantes e, de outro, saberes

subordinados, relegados, desprezados (SILVA, 2003, p. 22).

Assim, a desnaturalização do conhecimento e a valorização de todos os seus aspectos

como igualitários; as concepções do currículo como um espaço permeado por relações de poder,

social e culturalmente construído; a idéia de que todo currículo expressa a luta pela hegemonia de

determinada visão do saber – e, portanto, que qualquer transformação implica em uma

desestabilização dessas relações – a questão das diferentes identidades e sua presença desigual

nos discursos curriculares, são importantes contribuições da crítica pós-estruturalista para o

estudo dessa teorização que é a área da análise curricular.

5.2 A questão institucional: os PCN

Não pretendemos aqui realizar uma análise exaustiva desse programa curricular, mas

levantar alguns pontos relevantes para a proposta desse estudo. Nesse sentido, cabe aqui uma

primeira definição desses Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN), que são um conjunto de

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diretrizes que propõe a construção de “referências nacionais comuns ao processo educativo em

todas as regiões brasileiras” (BRASIL, 1998b, p. 9), como consta na Introdução escrita pelo então

ministro Paulo Renato de Souza. São caracterizados por um conjunto de documentos compostos

pela Introdução, pelos Temas Transversais e pelos programas para cada área de ensino. Ele foi

elaborado com a participação de professores do meio acadêmico e teve a participação também de

professores do Ensino Fundamental e Médio.

Esse programa não possui um caráter de obrigatoriedade na legislação brasileira,

caracterizando-se mais como uma proposta de referências curriculares do que um documento

legal. É dirigido às escolas e às pessoas que trabalham com educação em geral e surge no

momento em que vários países como Argentina, Uruguai e Paraguai, na América Latina, e

Portugal e Espanha, na Europa, estão também realizando reformas na área pedagógica. Alguns

autores como Antônio Flávio Moreira, Vera Maria Candau, Michael Apple e Tomaz T. da Silva,

em vários artigos publicados, situam essas reformas no contexto do neoliberalismo e do avanço

da “nova” direita. Portanto, é um programa que já surgiu levantando muitas discussões e

apresentando vários pontos de controvérsias no seu conjunto e nas suas particularidades.

A seleção curricular baseia-se nos aportes historiográficos da História Social, ou

sociocultural, como se deduz pelos próprios temas empregados nos eixos selecionados para o

trabalho com a disciplina, como: cultura, organização social, trabalho, relações de poder e

representações (BITTENCOURT, 2005).

Alguns pontos de reflexão são apresentados na proposta, mas no geral ela se caracteriza

por ser bastante prescritiva, encontrando-se ao longo da sua leitura várias indicações sobre como

o professor deve receber e interpretar as informações, explicitando-se qual é a postura esperada

mediante os temas e metodologias que são sugeridos. Nesse sentido, há uma expectativa em

relação à configuração da identidade dos professores, uma vez que prevê um perfil docente que

dê conta de um modelo curricular pretensamente mais flexível, embora estruturado a partir das

áreas disciplinares. Porém, de uma forma contraditória, na parte referente à avaliação, existem

prescrições como a de que “um importante instrumento do professor para avaliar a coerência do

seu trabalho (...) é a produção de relatórios escritos”, em uma indigesta sugestão de mais

atividades burocráticas a se atribuir aos professores (BRASIL, 1998b, p. 41).

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Já em relação aos objetivos gerais dos parâmetros, os quais devem ser atingidos pelos

alunos no Ensino Fundamental, são os de caráter formativo, como compreender a cidadania,

perceber-se como agente transformador do ambiente, conhecer e valorizar a pluralidade do

patrimônio sociocultural brasileiro. E há um objetivo interessante, referido anteriormente no

capítulo 3 desta pesquisa (embora com outro enfoque), que é “desenvolver o conhecimento

ajustado de si mesmo e o sentimento de confiança em suas capacidades afetiva, física, cognitiva,

ética, estética, de inter-relação pessoal e de inserção social” (BRASIL, 1998a, p. 10). Aspectos da

formação dos alunos atualmente bastante valorizados como sendo atribuições da escola e,

conseqüentemente do professor, desenvolvê-los.

No volume de História, alguns objetivos são voltados à cognição, ainda que eles não

sejam claros nas suas definições, como por exemplo, “situar acontecimentos históricos e localizá-

los em uma multiplicidade de tempos” e “reconhecer que o conhecimento histórico é parte de um

conhecimento interdisciplinar”. Outros apresentam um caráter formativo, como “conhecer e

respeitar o modo de vida de diferentes grupos”, ou “questionar sua realidade, identificando

problemas e possíveis soluções, conhecendo formas político-institucionais e organizações da

sociedade civil que possibilitem modos de atuação” (BRASIL, 1998b, p. 43).

Na sugestão de conteúdos, a proposta se caracteriza por ter a intenção de formar o aluno

intelectual e culturalmente, através de estudos temáticos que possibilitem também a

problematização do mundo em que o estudante está imerso, com destaque para os conteúdos de

História do Brasil e da América, sem graduação espacial e ordenação no tempo. Aqui aparece

uma definição de História integrada que difere daquela do PNLD ao caracterizá-la efetivamente

como um estudo que estabelece relações entre os conteúdos e não apenas encaixa-os em

seqüência. Sem indicar a fonte, uma nota de pé de página define essa integração como “uma

proposta de história total que articula a História do Brasil, da América e Geral em um único

processo, explicado por relações de causalidade, contigüidade e de simultaneidade no tempo”

(BRASIL, 1998b, p. 46).

Depois de uma série de prescrições procedimentais que o professor “deve” aplicar com os

alunos, define-se que os eixos temáticos serão desdobrados em subtemas, como uma sugestão de

trabalho, pois a opção é por privilegiar a autonomia do professor, novamente em um discurso

incoerente com o encaminhamento prescritivo que é dado ao longo de todo o programa.

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Os temas sugeridos são “História das relações sociais, da cultura e do trabalho” para o

terceiro ciclo, e “História das representações e das relações de poder” para o quarto ciclo. Em que

pese a validade dos temas sugeridos, o conceito de representação nos parece pouco adequado

para o trabalho em sala de aula sem uma conceituação teórica que o explique e defina, uma vez

que ele apresenta diferentes acepções ao ser desenvolvido por autores de vários campos do

conhecimento, como da Sociologia, da Psicologia Social e da História15. Entretanto, a questão das

representações não aparece nem em uma explicação teórica, nem como articuladora de

conteúdos, ficando apenas no título do tema.

No texto do documento fica bastante clara a heterogeneidade de idéias e concepções

teóricas que aparecem como as norteadoras das propostas de conteúdos e de metodologia. No seu

conjunto é um texto bastante eclético aonde se vê, por exemplo, uma concepção de cidadania

ligada ao acesso a bens de consumo – que apresenta um valor utilitarista ao adequar o sujeito aos

ditames do mercado – composta com valores mais progressistas, como o respeito à pluralidade

cultural. Inclusive, a própria proposição dos temas transversais onde essas questões devem ser

desenvolvidas é bastante polêmica.

Primeiramente porque eles não se articulam diretamente com os conteúdos em função do

próprio caráter disciplinar do currículo. No volume de História, há a indicação de que serão

trabalhados em conjunto com os conteúdos da disciplina, mas quando estes se desenvolvem só

permitem o encaixe desses temas em pequenos interstícios (BRASIL, 1998b, p. 48).

Segundo Elizabeth Macedo, esse programa “ao mesmo tempo em que é excessivamente

diretivo nos volumes dedicados às disciplinas clássicas, deixa inúmeras lacunas ao tratar dos

temas transversais” (MACEDO, 2005, p. 43). Entre essas lacunas, está a questão mesma da

justificativa da existência desses temas. Os PCN definem a necessidade de temas transversais

para tratar as “questões graves, que se apresentam como obstáculos para a concretização da

plenitude da cidadania, afrontando a dignidade das pessoas e deteriorando sua qualidade de vida”

(BRASIL, 1998a, p. 25). Nesse caso, a pergunta feita por Macedo é

se o saber socialmente acumulado não dá conta de entender a realidade e seus

problemas mais urgentes, porque ele é tão importante e central na escola? (...)

15 Sobre o histórico e as diferentes concepções do conceito de representação, ver: ALVES, Ronaldo Cardoso. As representações sociais e a construção da consciência histórica. São Paulo: USP, 2006. Dissertação de Mestrado.

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Ou ainda: que sentido fazem as disciplinas se os temas candentes da vida em

sociedade são tratados como temas transversais? (MACEDO, 2005, p. 44-45)

Estas perguntas, aparentemente simples, encontram eco na própria “Caracterização da

área de História” no volume dedicado à disciplina nos PCN. Na primeira frase desse item, temos

Nem sempre está claro para os educadores por que a História faz parte do

currículo escolar e qual a importância da sua aprendizagem na formação do

jovem. Mas essas questões são fundamentais quando se pretende refletir,

repensar ou posicionar-se em relação ao ensino de História praticado (BRASIL,

1998b, p. 19).

Para auxiliar o professor a pensar uma justificativa plausível para essa questão, vem a

seguir um longo histórico da disciplina no Brasil. Após, são apresentadas as características e a

importância social do conhecimento histórico, aonde se mesclam afirmações categóricas sobre a

interlocução da História ensinada com o conhecimento acadêmico, até discussões pertinentes

sobre as transformações no conceito de identidade, ou mesmo sobre as diferenças entre o tempo

histórico e o tempo cronológico. É um texto longo, pouco convidativo, até pela heterogeneidade

de abordagens que apresenta, algumas inclusive descontextualizadas, como a utilização da

categoria de saber histórico escolar como se fosse de domínio público, sem necessidade de uma

definição a seu respeito. Além disso, não esclarece o ponto para o qual ele foi construído. Afinal,

a História é importante no currículo escolar porque ela é uma disciplina que tem história?

Sem pretender esgotar uma reflexão a respeito desse programa curricular, mas procurando

encaminhar uma conclusão desses apontamentos, podemos dizer que os PCN se distinguem pelos

usos que dele se faz em diferentes instâncias. Os editores de material didático legitimam a

seleção dos conteúdos das suas coleções através da propaganda de que estes estão de acordo com

os PCN; os gestores educacionais de estados e municípios sustentam nele a plausibilidade das

reformas educacionais praticadas; os professores defendem a atualização teórica e metodológica

das suas práticas alegando que estão de acordo ao proposto nos PCN. Além disso, é um

dispositivo curricular de não autoria, uma vez que apresenta uma lista de colaboradores sem

definir quem atuou em qual parte, sem citações explicativas dos conceitos ou autores utilizados.

Acreditamos que muitos procedimentos ligados às práticas escolares encontram sua

justificativa no uso dos PCN justamente em função do seu ecletismo. A heterogeneidade das suas

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formulações abre a possibilidade para que muitos discursos sejam construídos nos seus

interstícios e que ele foi formulado para atender a essas diversas demandas.

5.3 Ensino e as teorias da História

Nessa etapa do trabalho, cabe perguntar não apenas o quê, mas como e para quê ensinar

História, a partir de alguns pontos. Primeiramente, existem algumas considerações a respeito da

incorporação no currículo das renovações historiográficas As pesquisas em História a partir de

perspectivas hoje consagradas, como a História dos Annales, a Nova História, a História Cultural

e o marxismo inglês, vêm introduzindo abordagens renovadas e uma ampliação das temáticas que

são de interesse dos historiadores. Situam-se aí os estudos sobre o cotidiano, a micro-história e a

história local, os estudos de gênero, dos simbolismos, das mentalidades, das práticas religiosas,

entre outros. Algumas dessas investigações são realizadas a partir de aproximações com outras

áreas do conhecimento, como acontece com a Sociologia, a Antropologia e, mais recentemente, a

Crítica Literária (HUNT, 2001; BURKE, 2005).

Esses temas mais amplos nas pesquisas históricas trazem possibilidades interessantes para

uma articulação com o ensino, uma vez que o público escolar hoje é bastante heterogêneo e não

se encontra representado no conhecimento histórico dito tradicional, que se caracteriza por

privilegiar apenas os aspectos políticos e econômicos das sociedades. A incorporação dos

aspectos cotidianos da cultura, de camadas sociais antes ignoradas, assim como a não

diferenciação entre cultura erudita e popular, produz enfoques que podem auxiliar na busca de

uma aproximação com os interesses dos alunos sem empobrecer o conteúdo histórico na sua

metodologia e nas suas análises.

Para António Nóvoa a imagem do aluno ideal do século XX, que existia pela

homogeneidade das turmas das camadas privilegiadas que formavam as classes das escolas

públicas, foi substituída pela heterogeneidade advinda da diversidade social e cultural dos alunos

que compõe a escola pública hoje, como se sabe. Muitos desses alunos estão na escola pelo seu

aspecto social, mas não querem aprender, pois não tem outros vínculos com o seu ensino (sendo

que esse acontecimento não é privilégio apenas da escola pública). Nesse caso, para lidar com a

realidade que se impõe, o movimento foi o de simplificar “de forma quase caricatural” os

conteúdos, focando a atenção nos problemas e na afetividade dos alunos, “perdendo a batalha do

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conhecimento, transformando a escola num lugar de vida, mas descurando a sua função de

preparação para uma vida futura” (NÓVOA, 2004, p. 20). Entendemos por vida futura o acesso

às possibilidades que o conhecimento oferece para o discernimento do mundo e que tem como

conseqüência desenvolver o sentimento de pertença e de comprometimento ético com ele.

Segundo as concepções que os historiadores têm a respeito das possibilidades formativas

da sua área de pesquisa estas se situam em proporcionar a inteligibilidade do presente, em

permitir historicizar atitudes e comportamentos humanos, assim como compreender a História

como o estudo do Outro, favorecendo a percepção da alteridade, tolerância e da conexão das

culturas (MATTOZZI, 1998). Porém, isso só acontece através da pesquisa, da investigação com

base em formulações teóricas e metodológicas. Chegamos então ao segundo ponto. A partir

dessas constatações, e não da concepção de incorporar novas teorias porque são melhores que as

existentes no momento, a questão é como levar a riqueza interpretativa da História para as

situações de ensino desta como disciplina escolar. Para Mattozzi, o ponto é como produzir uma

História ensinada que tenha realmente efeitos educativos e, acrescentaríamos, que atenda os

aspectos formadores das características valorais tão almejadas.

Não faltam no conhecimento histórico, segundo as próprias concepções dos historiadores

trazidas por este autor, características para formular uma proposta de História para educar em

valores – como a aceitação das diferenças, a formação do espírito crítico, a construção da

cidadania. Porém, a maneira para fazer da História um conhecimento que proporcione a

realização das aspirações de uma aprendizagem efetiva, tanto no seu aspecto de conteúdo quanto

no formativo, tem que ter início na “função cognitiva de formação das estruturas mentais dos

alunos”, colocando a formação em valores como função secundária e dependente dos temas que

serão selecionados, das suas interpretações, do trabalho com os conceitos da disciplina e da

didática empregada (MATTOZZI, 1998, p. 30). Só a partir dessa construção cognitiva é que a

História possibilita a formação de uma visão crítica e socialmente comprometida. Essa é uma

posição do autor com a qual concordamos, inclusive quando este afirma que a história ensinada

pertence “ao domínio do saber historiográfico”, sendo, portanto, passível de reformulações que

possibilitem o alcance de toda a sua potencialidade (MATTOZZI, 1998, p. 31).

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O problema é que a situação que está posta no ensino da disciplina atualmente explicita a

função formativa da História de maneira muito mais clara e acentuada que a sua função

cognitiva,

isto é, de formação de estruturas de pensamento e de competências para se pensar

o mundo em termos históricos. Só recentemente se reconheceu à História uma

potencialidade na formação das capacidades mentais. Mas esta potencialidade

ainda não foi posta no centro da construção dos currículos. (MATTOZZI, 1998,

p. 30).

Daí as características que observamos na forma como a estrutura curricular da disciplina

está colocada nessa sala de aula, por questões que estão além daquilo que a Professora se propõe

e consegue realizar. O tipo de conhecimento desenvolvido em sala de aula faz parte do que

Merchán Iglesias coloca como uma aculturação, para definir o conhecimento concebido ainda

para uma elite, que a partir da educação de massas se torna a “imposición de una cultura, uma

‘conduta de vida’ característica de um grupo social, a otra cultura, a otros grupos”, tarefa que

para ele resulta impossível de se realizar (IGLESIAS, 2005, p. 32). Assim, para Merchán Iglesias,

como os alunos não se identificam com os conteúdos da disciplina, esta acaba por perder o seu

valor humanístico propagado nos discursos da sua legitimação.

Como propostas de uma transformação possível, Merchán Iglesias coloca que o

rompimento das rotinas e das estruturas de horários rígidos, exames e divisão disciplinar seriam

os caminhos para desescolarizar o ensino, em uma estratégia de transformar a escola (IGLESIAS,

2005). Já Mattozzi propõe para o ensino de História a formação cognitiva como o fator de

coerência entre aquilo que se pretende com o seu ensino e as formas de se obter uma

aprendizagem efetiva, coerência esta que passa pelo “sistema de conhecimentos históricos, a

qualidade dos textos historiográficos escolares, a formação de estruturas cognitivas e as formas

de mediação didáctica e dos processos de aprendizagem”, citação que já utilizamos no capítulo 1

e nos permitimos reapresentá-la por se coadunar com as nossas observações (MATTOZZI, 1998,

p. 48). Porém, a complexidade de formular propostas é muito grande, uma vez que ainda teria

que se considerar a retomada do papel dos professores nas decisões relativas ao ensino da sua

disciplina e a sua formação, seja inicial ou a continuação dela.

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6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

De acordo com a perspectiva teórica proposta para orientar esse estudo, a consideração

que deve resultar dessas observações é a de como o currículo de História funciona na sala de aula

e através de que mecanismos, quais são as relações que ele instaura, como ele funciona nos

diferentes níveis em que se estabelece, que silêncios e que discursos são produzidos através dele.

As nossas hipóteses iniciais se situavam em torno da impermeabilidade do currículo

praticado na disciplina de História, apesar das pesquisas acadêmicas tanto da área de Currículo

quanto da área de História trazerem aportes que seriam interessantes como novas referências para

a História ensinada. Ao se confirmar essa hipótese, a disciplina permaneceria com o seu aspecto

de “mestra da vida” e formadora de padrões éticos e morais. Dessa forma, buscamos

compreender como funciona o currículo de História e que tipo de conhecimento e de relações ele

realmente produz.

No conjunto das análises realizadas, foi possível perceber a heterogeneidade das

formulações curriculares e dos usos feitos nas diferentes instâncias avaliadas. Há os currículos

pensados na academia, tanto na área de Currículo quanto na de História. Em termos de legislação,

existe um currículo proposto nos PCN em torno dos temas transversais e outro que está no

programa das disciplinas, com a proposição de ensino temático. Ainda na legislação, existem as

diretrizes de currículo colocadas nas normas do PNLD, que geram direções nas quais os livros

didáticos terminam por se encaixar. Nos livros didáticos são muitas as possibilidades

curriculares. Há o currículo dos textos de conteúdo, que não foge muito do tradicional. Nos textos

complementares e nos seus exercícios, o currículo oferecido é aquele que introduz outras

abordagens relacionadas aos temas do conteúdo fazendo ligações com questões da atualidade nos

exercícios correspondentes. Na seção Atividades aparecem dois currículos: o dos exercícios mais

simples e aquele dos exercícios mais sofisticados, que exigem habilidades relacionadas a um

maior nível de abstração.

Nas aulas da Professora, o currículo é selecionado de acordo com inúmeras situações

ligadas ao aspecto do gerenciamento imediato das demandas trazidas pelas novas acepções

profissionais do professor/funcionário burocrático e do professor/administrador da conduta e dos

problemas cognitivos/afetivos dos alunos. Assim, as aulas situam-se em torno da explicação dos

fatos, com a inclusão de exemplos explicativos da atualidade com abordagens às vezes

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superficiais. Nos cadernos, existe o currículo fruto das escolhas e seleções possíveis realizadas

pela Professora, com a abordagem de alguns temas mais teóricos desenvolvidos na década de

80/90, enquanto os conteúdos formais são desenvolvidos em torno do aspecto político e sócio-

econômico, seguindo a cronologia.

Em todos esses currículos o único discurso que é recorrente é aquele ligado ao caráter

formativo da disciplina, trazido pela necessidade de legitimar a presença desta nos currículos

escolares. A História forma tanto os aspectos humanísticos do caráter dos alunos, quanto os

instrumentais para o desenvolvimento do seu raciocínio lógico. É um discurso que aparece nos

textos da área de História dos PCN, na seção de Apoio Pedagógico escrito pelas autoras do livro

didático, nos textos do caderno passados pela Professora, numa tal quantidade de vezes que leva a

pensar se a repetição é para o convencimento de todos. O consenso é que a disciplina desenvolve

o espírito de cidadania, através da construção do conhecimento histórico, estuda o passado para

compreender o presente e desenvolver o raciocínio crítico e preventivo de erros futuros,

desenvolve a capacidade reflexiva, comparativa e relacional. Como um tema tão propagado, seria

de se esperar que o currículo da disciplina fosse construído em cima desses aportes, o que não

acontece na prática, como observamos.

Esses discursos realizados em espaços formais são incompatíveis com o que se houve e se

vê no dia a dia escolar, onde o corrente é aquele do aluno desinteressado e sem capacidade ou

vontade de aprender. Entre uma fala e outra, observamos que existe tanto a capacidade quanto a

vontade de vários alunos em se envolver com a escola e com o que ela tem a oferecer. Eles fazem

perguntas nas aulas, se interessam pelos temas desenvolvidos quando estes se vinculam a eles de

alguma forma, e apresentam as suas opiniões eventualmente. O problema maior, consideramos, é

o que a escola tem a oferecer. E aí são muitos os trabalhos realizados que procuram dar conta

desse assunto sem, entretanto, lograr que a prática se modifique. Ainda estamos falando dos

discursos que não se encontram.

Na prática, ao contrário dos valores apregoados sobre a capacidade da escola em

desenvolver a autonomia, a independência e a responsabilidade, os alunos são formados nas

regras de adaptação e funcionamento das normas, como acontece com os cadernos. Mais

importante que o conhecimento ali estabelecido, é o aprendizado das normas de como lidar com

aquele material, produzindo um sujeito particular dentro de uma média aceitável, num processo

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de homogeneização tão acentuado que nos permite estudar poucos cadernos como indicativo do

que acontece com a maioria deles. Essas normas são produções culturais que visam estabelecer

um lugar social para esse aluno, remetendo-o a uma estrutura moral. Ele deve se encaixar no

padrão exigido, senão passa a ser o aluno problema, desorganizado, desinteressado, que não tem

capacidade.

Quanto aos professores, esses foram completamente deslocados do seu protagonismo da

década de 80/90, período de retomada das funções democráticas no Brasil. Esse protagonismo foi

interessante no momento em que era necessário acreditar que a participação traria as mudanças

sociais tão almejadas e esperadas por um longo tempo. Contudo, os novos ventos da ordem

econômica já não precisam mais desse tipo de atitude com a democracia consolidada, pois hoje a

grande inovação é a produtividade e as mudanças sociais se dão pela capacidade que o cidadão

tem, em sendo produtivo, de alcançar o consumo daquilo que não necessita.

Os professores foram, então, afastados das discussões sobre o seu campo de trabalho, a

ponto de não validarem mais o seu próprio conhecimento, como vimos no texto de abertura da

seção de Apoio Pedagógico do livro didático. E é assim neste espaço porque nas normas do

PNLD existem inúmeras instruções de como este texto deve ser composto, onde apresentar a

experiência do professor-autor não está prevista. As verdades sobre o seu ofício estão em outros

lugares: no MEC, na academia, nas inúmeras tarefas burocráticas de relatórios a preencher e

planos a entregar, na psicologia para lidar com os problemas dos inúmeros alunos-problemas, na

exigência da afetividade como padrão profissional. Os professores estão desautorizados como

sabedores do seu ofício em todas as instâncias. Assim, algumas possibilidades de desenvolver um

trabalho mais pessoal e efetivo, que entrevimos nos momentos em que as aulas chamam a

atenção dos alunos ou no exercício que pode ser refeito, não são sequer cogitadas pela Professora

como recursos que ela poderia empregar em sala para alcançar um trabalho mais efetivo com o

conhecimento. A Professora não consegue validar aquilo que sabe e se engessa atrás de práticas

rotineiras e esvaziadas, nada desafiadoras para ela muito menos para os alunos.

Vemos as conseqüências de todos esses fatores no aligeiramento dos conteúdos, pois estes

acabam fazendo parte dos discursos dispersos da sala de aula. Há um encadeamento de assuntos

tratados de forma mecânica em alguns momentos, sem considerar o potencial tanto da disciplina

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quanto dos alunos. Além disso, há ainda os problemas de disciplina e da estrutura da escola

sobrepondo-se muitas vezes àquilo que poderia ser efetivado na aula de História.

Assim sendo, as escolhas curriculares que a Professora realizou no uso que fez do livro

didático, nos textos que passou para os alunos na lousa e nas suas aulas expositivas, determinam

um novo plano de análise que desloca as previsões a respeito da sua adesão às diferentes

propostas curriculares, oficiais ou pedagógicas. O currículo de História se apresenta, então,

bastante poroso e aberto nos PCN, permitindo todo o tipo de uso do seu conteúdo heterogêneo,

mas impermeável a modificações na sala de aula. Daí nossa consternação ao observar as aulas

buscando encontrar um caminho entre o que havíamos lido e proposto em um projeto de pesquisa

e aquele panorama tão distinto que nos era apresentado, o da complexidade da sala de aula.

Estávamos tão imbuídas da teoria que até da nossa própria prática e das suas dificuldades

acabamos esquecendo. E aquele panorama nos pareceu novo, ainda que em muitas circunstâncias

seja um velho conhecido.

Voltamos então a algumas das perguntas iniciais: o currículo de História passa por uma

rede de dispositivos curriculares que mudam constantemente de aparência, mas são

estrategicamente articulados para, no fundo, não mudar a sua estrutura? Será que essa é a sua

estratégia de funcionamento? Se for assim, nos parece que é uma estratégia que funciona muito

bem.

Acreditamos que esses dispositivos curriculares estabelecem uma relação de poder difusa,

capilarizada através da sua naturalização, porém articulada de forma eficiente. A existência de

vários currículos tem muitas utilidades: serve como um fator de pulverização do papel dos

professores dentro de uma estratégia de resolver o protagonismo do professorado alcançado nas

décadas de 80/90; atende as demandas reformistas que buscam, através de diferentes discursos,

incluir o novo historiográfico e o novo metodológico (objetivos, habilidades, estratégias) na velha

concepção da História para a formação do cidadão crítico e consciente (outro discurso

completamente esvaziado); atende a necessidade de se produzir informação para ser quantificada,

sistematizada e acumulada. Em suma, os currículos estabelecidos nas propostas governamentais e

nos livros didáticos oferecem uma capa de modificação e reestruturação que se apresenta como a

solução para os problemas do ensino de História. Afinal, forjam conhecimentos passíveis de ser

quantificados nos exames governamentais e mobilizam discursos nos meios acadêmicos, nos

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meios institucionais, na mídia, dando ocupação discursiva e empregatícia para uma infinidade de

pessoas.

Porém, só a Professora sabe que é tudo faz-de-conta.

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