Olivier Clement - A Revolta do Espirito

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OLIVIER CLÉMENT A REVOLTA DO ESPÍRITO

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Olivier Clement - A Revolta do Espirito

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OLIVIER

CLÉMENT

A REVOLTA DO

ESPÍRITO

A REVOLTA DO ESPÍRITO

A RACIONALIDADE COMO QUESTÃO

A máquina e o indivíduo são considerados como dados adquiridos

pela sociedade ocidental: é a revelação bíblica que permitiu que isso

acontecesse1. A Bíblia rejeita as magias cósmicas porque Deus criou tudo: a

criatura existe somente pela vontade divina que lhe dá consistência e

transparência. O mundo não é uma ilusão, um túmulo: é uma realidade boa,

uma linguagem entre Deus e o homem. O homem percebe a essência

espiritual das coisas, percebe nelas uma palavra divina e essa palavra ela a

retribui a Deus depois de ter feito ela sua, marcando-a com o próprio gênio. A

meditação da Igreja antiga – que sintetiza a regra de fé elaborada pelos sete

grandes concílios ecumênicos – tornou possível o desenvolvimento da ciência

e da técnica “ocidentais”. Os mártires destruíram a sacralização opaca do

poder, a divinização do estado. Os monges destruíram a sacralização opaca do

eros, da terra e dos astros. A historia e o cosmos foram arrancados aos deuses

e entregues ao homem, na medida em que o homem se reconhece criatura,

onde sua técnica permanece ao serviço da celebração. Os tempos da

cristandade elaboraram os sinais de um divino-humanismo.

Ao mesmo tempo, os concílios ecumênicos elaboraram para uma

melhor aproximação, primeiro do mistério divino e, depois, em Cristo, do

mistério aparentado do homem, a noção de pessoa da qual não temos quase

mais idéia hoje porque a confundimos com a de indivíduo. Em Deus, a pessoa

é um “modo de subsistência” única da insondável “supra-essência” divina: isso

quer dizer que a pessoa existe somente na relação. No Corpo “crístico”, pelas

chamas do Espírito, o homem recebe a possibilidade de participar dessa

existência trinitária: enquanto pessoa chamada por Deus e suscitada por essa

chamada, ele ultrapassa radicalmente o mundo, não é um fragmento da

humanidade e do universo mas as carrega dentro de si para comunicar-lhes a

vida verdadeira. Revelação imensa que supera ao mesmo tempo a solidão

ocidental, a do indivíduo, e a fusão oriental, a do divino impessoal, de um

1 CLÉMENT, Olivier, La révolte de l’Esprit, Paris, Stock/Monde Ouvert, 1979 cap. 1

cosmos sagrado. Os temas inseparáveis da pessoa e da comunhão tornaram-

se o motor segredo da história.

A separação do Ocidente e do Oriente cristãos, durante a segunda

metade da Idade Média, modificou profundamente o contexto espiritual onde se

desenvolveu a civilização da técnica e da pessoal. Bizâncio elaborava, no

século XII, uma teologia das energias divinas que, do Ressuscitado, penetram

o corpo do homem, a terra e as obras da cultura. Bizâncio foi atingida pelo

duplo ataque do Ocidente latino e do Oriente muçulmano: quer dizer, numa

esquematização extrema, de um mundo onde o humano ia tornar-se

maciçamente, inacessível ao divino e de um mundo onde o divino

permaneceria maciçamente inacessível ao humano. Significativamente

transmitido pelo Islã, quer dizer um universo espiritual que ignora a

encarnação, o substancialismo de Aristóteles, que fecha os homens e as

coisas na sua substância própria, quase proibiu pensar a comunhão dos

homens com Deus e entre eles em termos de participação real. A relação do

criado para o não criado não foi mais de possível transparência mas

unicamente de causalidade.

A partir daí, o cristianismo tende na direção de um pietismo em

relação ao mundo, seja a uma ética implicando dominação sobre um mundo

aparentemente “neutro”. A experiência mística, dissociada da especulação

teológica, não fecundou mais o pensamento cristão e achou-se marginalizada.

Simultaneamente, desapareceu a noção de uma “consubstancialidade” real de

todos os homens, membros uns dos outros. Apesar do esforço de Tomas de

Aquino para desengajar o ser existencial da substancia, a escolástica retomou

a definição filosófica da pessoa como indivíduo – substancia individualizada –

de uma natureza razoável2. A comunhão das pessoas tornou-se então um

acordo puramente moral, uma similitude e não mais uma identidade no ser. A

pessoa não é mais esse absoluto que engloba o “todo” da humanidade e do

universo e lhe dá seu rosto; é uma parte da humanidade, um indivíduo

caracterizado pela mais altas faculdades de sua natureza, o conhecimento e a

vontade (ainda que todo esse conhecimento é inteiramente tirado do sensível).

Somente as noções de “alma” e de “coração”, na mística, salvaguardaram a

2 Ver a esse respeito a análise DE LIMA VAZ, Henrique C., Raízes da modernidade, escritos de

filosofia VII, São Paulo, Edições Loyola, 2002

concepção original de “imagem de Deus”. Assim passamos da pessoa

espiritual, que engloba o mundo, para o individuo que o mundo engloba e

explica. A comunhão se expressa na antinomia do ser e das pessoas, da

unidade e da diversidade. Os dois pólos da antinomia começaram a ser

dissociados no Ocidente quando a ruptura com o Oriente tornaram fatais a

Reforma e a Contra-Reforma.

O quinto concilio ecumênico, celebrado em Calcedônia em 451,

lembrou que o próprio Deus “sofreu a morte na carne”. É o Verbo encarnado,

“Um da Santa Trindade”, que, na cruz, conhece humanamente a angústia da

solidão e do abandono. Tal é a “loucura de amor”, segundo os padres gregos,

que é o único meio de convencer, sem constranger, portanto, sem anular,

nossa liberdade. A criação implica como se fosse uma retirada de Deus cuja

onipotência se expressa na fraqueza voluntária do amor. A teologia ocidental

teve dificuldade em expressar a limitação voluntária da onipotência divina e lhe

deu uma desumana supra-humanidade. Desse Deus pensado contra o homem

nasceu a afirmação do homem contra Deus. Saberes e técnicas constituem-se,

na política, na medicina ou na psicologia, para lutar contra a angústia

fundamental, reduzir as conseqüências destruidoras do acaso e da

necessidade. O concilio de Calcedônia pode ser, talvez, considerado como o

maior dos concílios ecumênicos porque celebrou no Cristo a união do humano

e do divino sem separação nem confusão.

A NEUROSE ESPIRITUAL DO OCIDENTE

O cristianismo ensina que a pessoa, segunda a medida de sua fé, é

apanhada num grande movimento de ressurreição3. No coração eucarístico da

Igreja como no “coração” espiritual de cada homem, o Cristo não cessa de

vencer a morte. A humanidade e o universo são engajados numa imensa

metamorfose que a santidade antecipa e cujo desfecho ela apressa. O ocidente

aprendeu do cristianismo que a pessoa é única, mas a ressurreição foi

esquecida. Desde o fim da Idade Média, o cristianismo ocidental colocou frisou

o “julgamento particular”, como se tudo fosse jogado na morte do indivíduo.

Tornou-se a religião da “alma”, no seu sentido dualista oposto ao corpo, e não

3 CLÉMENT, ibid. cap.2

da pessoa na sua inteira encarnação. Estamos longe da concepção dinâmica e

de comunhão da Igreja indivisa que orava (como o faz ainda a Igreja ortodoxa

nas vésperas do Pentecostes) para todos os mortos, incluindo os que estão

“nos infernos”, concepção segundo a qual os santos e o Cristo esperam e

preparam a vitória definitiva e universal sobre a morte. No Ocidente, somente a

oração para as almas do purgatório conservou um pouco dessa visão original,

mas mesclando ela com considerações jurídicas e exigências financeiras que

levaram à sua rejeição pela Reforma.

No fim da Idade Média,e em certas correntes da Contra-Reforma,

uma predicação centrada na ameaça do inferno, a multiplicação na arte das

“danças macabras” e uma teologia que parece ignorar a descida do Cristo nos

infernos, tudo contribuiu a fazer do cristianismo a religião da tragédia e da

imortalidade da alma muito mais do que da jubilosa ressurreição dos corpos.

Enquanto os corpos ressuscitam assim mesmo nas estatuas antigas exumadas

pelos humanistas, o cristianismo se justapõe à cultura sem vivificá-la. Os

movimentos de pauperismo evangélico encontram no Apocalipse a promessa

de um reino de mil anos, na terra, para os justos ressuscitados. Contudo esse

reino não suscita uma santidade criadora e se anuncia no ferro e no fogo de

revoluções sangrentas e cegamente reprimidas. O humanismo das utopias com

horizonte puramente terrestre levam hoje à vontade de esquecer a morte.

Do cristianismo, o Ocidente guardou a certeza do caráter único da

pessoa ou, mais exatamente, do indivíduo, mas não a mensagem da

ressurreição. As respostas arcaicas ao enigma da morte tornaram-se

impossíveis para quem sabe que é único. Não se consegue mais fundir-se na

imensidão (fusão testemunhada pela culturas de cremação dos cadáveres),

como se o indivíduo fosse simplesmente um agregado de elementos

emprestados do grande jogo cósmico. Não se pode mais acreditar na

transmigração de um dublado, transmigração onde, para os espirituais da Índia,

ninguém transmigra em definitivo, a não ser o absoluto, o Si mesmo único de

todas as existências. Por isso, a morte nunca esteve tão nua, uma morte no

seu estado bruto, poderíamos dizer, e, portanto, impensável. Essa morte

impensável e bruta, é a angústia pura, é o inferno. A angústia envenena tudo,

provoca uma verdadeira neurose espiritual. O desejo do homem acaba

investido e invertido no consumo neurótico. Pode-se também enganar a

angústia pela espera, lírica ou violenta, de uma sociedade perfeita. O erotismo,

as drogas propriamente ditas, um certo uso da música ou da velocidade,

técnicas de êxtase desenraizadas em relação ao seu lugar de origem, os

grandes medos e os grandes ódios abstratos da política: quer se dar para a

vida uma tal intensidade que não teria mais sombra nem morte. Contudo a

morte tem sempre a última palavra. Sobra a possibilidade do suicídio. Quantos

jovens se matam hoje porque nada mais tem sentido? Quantas depressões

nervosas não se explicam por essa ausência de sentido? O crescimento do

niilismo torna possível um suicídio da espécie.

Hoje o silencio foi rompido. O tema da morte reaparece com força no

pensamento filosófico, histórico e médico. Denuncia-se o escândalo de tantas

mortes solitárias e inconscientes, de tantos velhos abandonados. Assim está se

preparando uma metamorfose do ateísmo. Parece que vem o tempo de uma

ternura atenta e triste, sem esperança descrita assim por Dostoievski:

“Após as maldições, os lançamentos de lama e os apitos, chegou a calma e os homens ficaram sós, como eles queriam: a grande idéia de outrora os deixou; a grande fonte de energia que até aqui os alimentou e aqueceu se retirou, como o sol majestoso e sedutor do quadro de Claude Lorrain, mas agora era o último dia da humanidade. E de repente os homens compreenderam que tinham ficado completamente sós, sentindo bruscamente um grande abandono de órfãos. Meu caro menino, eu jamais pude ver os homens como ingratos e abobalhados. Os homens tornados órfãos se apertariam subitamente uns contra os outros, mais estreita e afetuosamente; eles se tomariam as mãos, compreendendo que dali em diante eles seriam todos uns pelos outros. Então desapareceria a grande idéia da imortalidade e seria preciso substituí-la; todo esse grande excesso de amor por aquele que era a imortalidade se voltaria para a natureza, o mundo, os homens, cada folhinha de relva. Eles se apaixonariam pela terra e pela vida irresistivelmente e à medida que fossem tomando consciência de sua condição passageira e finita, de um amor particular, que não seria mais o de antigamente. Eles notariam e descobririam na natureza fenômenos e mistérios até então insuspeitados, pois eles a olhariam com novos olhos, com o mesmo olhar de um apaixonado para sua bem-amada. Eles acordariam e se apressariam a se beijar e a se amar uns aos outros, sabendo que seus dias efêmeros é tudo que lhes resta. Eles trabalhariam pelo outro, dando tudo a todos e com isso seriam felizes. Cada criança saberia e sentiria que todo homem sobre a terra era para ela um pai e uma mãe. “Que amanhã seja meu último dia, se diriam todos olhando o sol poente; eu morrerei, mas pouco importa: eles continuarão, todos, e depois deles, seus filhos” – e este pensamento de que permanecerão, continuando a se amar e a se preocupar com uns com os outros, substituirá a idéia do encontro no além-túmulo. Oh! Como eles buscariam se amar, para sufocar o grande desgosto em seus corações.

Eles seriam orgulhosos e arrojados para si mesmos, mas tímidos para os outros; cada um se empenharia pela vida e pela felicidade do outro. Eles se tornariam ternos para com os outros sem se envergonhar, como hoje, eles se acariciariam como se fossem crianças. Ao se encontrarem se olhariam com um olhar profundo e cheio de inteligência, e em, seus olhares haveria amor e tristeza.”4

Nessa perspectiva, pressentimos que a angústia ocidental que se

torna planetária constitui propriamente hoje o inferno onde desce o Cristo. É aí,

a partir daí e em nenhum outro lugar que o Ressuscitado nos ressuscita. A

Igreja nada mais é do que o “cálice eucarístico” onde sobre-abundam as

energias divinas para a vida do mundo.

A PESSOA E O MUNDO

Na tradição cristã, a pessoa e o absoluto coincidem como coincidem

o conhecimento e o amor5. O amor cristão, contrariamente ao bhakti hindu, não

é uma etapa em direção da “não dualidade” onde são abolidos Deus e o

homem. No Deus vivo, a plenitude de sua Unidade não engole a diferença

pessoal: acha-se em tensão com ela. Em Deus, cada pessoa só contem a

unidade pela sua relação com os outros. O abismo é inesgotável somente

porque ele se abre no “seio” de uma Pessoa, o Pai, “fonte” da divindade. O

abismo evoca um amor, uma iniciativa, uma intenção pessoal. O Verbo do Pai,

sua Sabedoria que carrega os mundos, tende para ele, é Um com ele, e,

contudo, um Outro, o arquétipo eterno do homem. E o Espírito, o Sopro do Pai,

enuncia o Verbo, repousa sobre Ele, atrai todos os seres em direção de sua

realização, no Verbo, “para o seio do Pai”. Ora o Verbo se fez carne, e revelou

que o homem é também, na imagem de Deus, uma pessoa espiritual.

Ninguém é desse mundo, diz a revolta do Espírito. A pessoa

espiritual não é desse mundo. Mas ela faz existir nela, numa imensa circulação

eucarística, a natureza criada inteira, ela é essa natureza e portanto a

ultrapassa. Porque ela mesma não poderia ser pensada em termos de ser ( o

“ser pessoal” dos escolásticos é uma contradição nos termos). Não mais do

que Deus, ela não poderia simplesmente ser pensada. A pessoa é um segredo,

uma distancia, ela se revela nas suas “energias”, sua presença, seu estilo, seu

4 DOSTOIEVSKI, Feodor, L’adolescent, Paris, Gallimard, Bibliothèque de la Plêiade, 1956, p.

511-512. O trecho foi traduzido do francês por Heloisa G. Bartoli 5 CLÉMENT, ibid. cap. 3

amor, sem cessar de permanecer escondida. É por isso que a relação da

pessoa com a pessoa, do homem com Deus, do homem com seu próximo, é

um “não conhecimento” dinâmico: mais somos um com o outro, mais ele nos

enche da sua presença, da sua revelação, da sua graça, e mais a distância se

afirma, mais ele aparece maravilhosamente além. Não tem passagem até o

limite, de coincidência, de absorção, de nirvana, mas a tensão sempre viva do

amor pessoal. O verdadeiro lugar da pessoa não é o sujeito filosófico, o eu

psicológico: é esse chamado para a comunhão e este movimento para a

comunhão. O símbolo chave da mística judeu-cristã não se acha na êxtase

erótica mas sim no amor paciente e fiel, não no instante descontínuo, mas na

duração que a verdadeira eternidade invade aos poucos. O Novo Testamento

designa a Igreja (quer dizer a humanidade, o cosmos e cada alma engajada

nos caminhos da deificação) as vezes como o “corpo” e as vezes como a

“esposa” do Verbo.

Seria uma longa e difícil história contar, nas teologias dominantes no

Ocidente, desde o fim do século XIII, o desbotamento, senão do mistério da

pessoa, pelo menos de suas expressões. Nas especulações escolásticas, as

Pessoas divinas não contêm a essência: elas se inscrevem nela por um jogo

de “oposição de relações”, de modo que se torna impossível, a menos de cair

no panteísmo, de afirmar que Deus torna-se realmente participável através de

sua distância. Aos poucos, a pessoa humana foi pensada como um indivíduo

cuja relação com os outros é puramente moral, intencional. Indivíduo do qual a

Reforma afirma de novo o caráter absoluto na decisão da fé, mas em poder

mais sugerir a transfiguração de sua natureza. Por isso, ela opõe ágape, amor

que vem de cima, ao eros brotando de baixo, e o irracionalismo à racionalidade

excessiva, ou mais exatamente em via de autonomia, da escolástica, sem

poder reencontrar a inteligência contemplativa do cristianismo original, do qual

São Tomás, comentador do Areopagito, conservava ainda muitas coisas.

Instaurou-se assim entre Deus e o homem, e principalmente entre o Cristo e o

cristão, uma relação de indivíduo para indivíduo. A imitação do Cristo não se

cumpriu mais numa integração, o encontro indispensável com Jesus não se

tornou mais “vida em Cristo”. O Corpo do Cristo não foi mais ressentido como

um corpo cósmico onde superabundam as energias do Espírito, o poder da

Ressurreição.

Hoje cresce em reação o desejo de Deus desconhecido, segredo,

inocente, de um Deus que seja o “Sopro do homem”. Crescem, na implosão do

aristotelismo, a atenção ao mistério dos seres e das coisas, o gosto pelo

silêncio e a interioridade e a espera de um sagrado inseparável da terra. Daí,

por um lado, a voga das espiritualidades orientais, que guardam o sentido

arcaico do mundo como teofania, que se apresentam ao Ocidente das técnicas

não como uma fé, com sua ruptura e seu risco, mas como outras técnicas,

orientadas para o “espaço de dentro”. Por isso, o discernimento espiritual do

fim do século deverá considerar o significado cristão dessas experiências. Não

oporá mais o cristianismo e as espiritualidades orientais na sua inocência

original, ao mesmo tempo crepuscular porque o paraíso se vela cada vez mais.

Oporá certamente o cristianismo e a utilização, mais exatamente a inversão

dessas experiências pelo niilismo. A “morte do homem” significará a superação

do eu em direção da comunhão, ou a regressão aquém do eu em direção de

um funcionamento impessoal, fluxos e cortes de fluxos, das “máquinas que

desejam”, segundo a expressão de Deleuze e Guattari no Anti-Édipo? As

espiritualidades orientais conseguirão sua realização no cumprimento da união

crística do divino e do humano, sem separação nem confusão, ou servirão a

vontade de poder dos novos gnósticos? Permitirão, no salto da fé, ultrapassar

este mundo e suas técnicas, ou virão alargar no pseudo-infinito as técnicas

ocidentais do psiquismo para absolutizar esse mundo numa plenitude

indiferenciada, por isso mesmo indiferente às escolhas éticas?

DA TERRA DESFIGURADA AO AMOR SEM ROSTO

Existe a necessidade de uma reflexão espiritual sobre a “natureza da

natureza” e sobre a relação que a humanidade estabelece com ela. A técnica

não representa um destino inelutável: um certo uso da técnica pode significa

vontade de poder, de lucro, de posse carregadora de morte. Na sua Filosofia

da economia, Serge Boulgakov afirmava que a humanidade, na sua relação

com a natureza, devia escolher entre um processo de vampirismo, finalmente

destruidora, e uma atitude de respeito, de transfiguração inspirada pela

eucaristia6. O pensamento ecológico extremista, que denuncia ao mesmo

tempo a técnica e a racionalidade, gostaria de voltar para uma Terra-mãe na

qual desapareceria. Nostalgia que alcança a moda das espiritualidades

orientais onde o homem se funde na imensidão, no impessoal, pela mediação

do cosmos sagrado.

Entre a civilização do consumo e o pensamento ecológico

irresponsável, a concepção cristã das relações do homem com a terra poderia

constituir uma inspiração. Segundo essa concepção, o homem é uma pessoa

que não é desse mundo e a terra lhe é entregue para que ela se torne oferenda

e partilha, linguagem de amizade e de beleza entre Deus e o homem e entre os

próprios homens. As sociedades tradicionais ignoram o caráter absoluto da

pessoa. Não é abolindo o indivíduo, afogando ele na matriz térrea que se

assume a herança das sociedades tradicionais, a herança do mito, mas numa

poética da comunhão das pessoas e da santificação das coisas. Nesse sentido,

é preciso sublinhar a positividade da ciência e da técnica que libertaram o

homem das fusões sociais e cósmicas, quase sempre seladas pelo assassinato

ritual. O drama é que a civilização técnica aconteceu num momento em que o

cristianismo, machucado pela separação do Oriente e do Ocidente, perdia sua

capacidade de transfiguração e esquecia o chamado a santificar a terra. Cabe

a nos superar esse grande cisma para mostrar que a indispensável

dessacralização do cosmos realizada pelo judeu-cristianismo é somente uma

etapa: se o homem em Cristo é ao mesmo tempo a imagem de Deus e a

síntese do universo, ele achará a força para introduzir na civilização técnica o

fermento sacramental, e transformá-la num ponto de vivificação da terra.

CRISE DO CRISTIANISMO OCIDENTAL

O que impressiona na cristandade indivisa do primeiro milênio,

nesse período patrístico, fechado muito rapidamente no Ocidente pelas

grandes invasões mas que durou no Oriente até o século VIII, ou talvez até o

século XIV, é o poder de síntese e de fidelidade criadora que manifestam o

pensamento e a cultura cristã. O Espírito de vida circula livremente, vinculando

sempre uma leitura litúrgica e monástica que extraem o sentido profundo das

6 BOULGAKOV, Serge, Philosophie de l’économie, Lausanne, Éditions l’Age d’Homme S. A.,

1987

Escrituras, a celebração dos “mistérios”, uma mística onde se concentra uma

experiência comum, uma teologia contemplativa que faz da linguagem um

instrumento da adoração, uma sociologia inspirada por uma visão “trinitária” da

humanidade, uma criação de beleza propriamente divino-humana unindo numa

vasta liturgia ao redor da liturgia as artes do espaço e do tempo. De concílio em

concílio, afirma-se e afina-se um pensamento cristão original, uma ontologia do

mistério e da pessoa, transcrição intelectual, sem complacência com a

especulação, da experiência eclesial, “vida em Cristo” e “comunhão no

Espírito”. O homem eclesial encontra na graça que o chama e lhe dá seu ser a

“consubstancialidade” com todos os homens. Une seu sopro ao Sopro

vivificante enunciando com Ele o Nome de Jesus. Reconstitui, nas energias

divinas, a unidade de sua inteligência e do seu coração, reconstitui o “coração-

espírito” transparente na luz da transfiguração, da ressurreição, já da segunda

vinda do Senhor. A última Bizâncio aprofunde essas perspectivas com as obras

de Gregório Palamas e Nicolas Cabasilas.

A partir do século XIII, o Ocidente, envolvido no renascimento do

Aristotelismo, tentou constituir a teologia como ciência, colocando a razão

supostamente natural ao serviço da revelação. O tomismo no seu inicio em

continuidade com a patrística, conserva um belo equilíbrio entre uma reflexão

que se pode chamar de filosófica, uma leitura quase litúrgica da Escritura e

uma “sensibilidade” contemplativa que frisa a transformação da alma pela

forma caritatis. Contudo, São Tomás demitologiza o tema da deificação que ele

considera como uma metáfora, a expressão de uma comunhão moral,

intencional sem a participação real do homem inteiro (incluindo seu corpo) a

Deus inteiro. A baixa escolástica não consegue mais dar conta da grande

antinomia do Abismo e da Cruz, do Inacessível que se torna participável sem

cessar de ser inacessível, porque ela fecha o Deus vivo numa essência

intelectual. Ela se compromete sem volta com uma filosofia demasiadamente

humana, uma ontologia que não designa mais o inesgotável da pessoa e o

conteúdo da comunhão, e ela pretende constituir-se em ciência racional das

coisas. Assim, a natureza, supostamente “neutra”, foi entregue a uma

racionalidade e, portanto, a uma técnica que a graça não iluminava mais.

Assim a unidade da Escritura, do sacramento, da teologia e da espiritualidade

estava perdida.

No fim da Idade Média, no jogo fatal dos desequilíbrios

desencadeado pelo cisma com o Oriente, tudo estava pronto para que, à

racionalização do mistério, fosse oposta uma “irracionalidade” pelo

nominalismo e a Reforma. Esquematizando, o Ocidente cristão acaba entrando

numa dialética sem saída entre duas concepções da Igreja, que predominam,

uma no catolicismo romano e a outra nas comunidades oriundas da Reforma,

mas se cruzam em cada uma das correntes. Uma dessas concepções preserva

o realismo dos sacramentos, mas não consegue bem dar conta da comunhão

das pessoas e de sua liberdade no Espírito. A outra que leva a termo a

“demitologização” tem dificuldade em levar a sério a encarnação da Palavra:

teria uma “co-carnação” mais do que uma “en-carnação”, porque o divino

permanece exterior ao humano, e que os meios da graça são entendidos mais

como uma confirmação da fé. Essa, na sua primeira aceitação, significa adesão

a um conteúdo intelectual; na segunda colocação, uma coloração existencial.

Não mais esse encontro eclesial de Pessoa para pessoa que metamorfoseia o

tudo do homem, inclusive seu pensamento. Mesmo a piedade eucarística

católica não teve a teologia que merecia: a “transubstanciação” permanece, no

mundo das substancias closes, um golpe de estado metafísico que não se

prolonga numa transparência do universo para as energias divinas.

Daí vem um certo desaparecimento da pessoa e do papel do

Espírito na teologia ocidental. O Espírito “procede do Pai”, diz Jesus no

Evangelho de João. Os Padres gregos, elaborando uma teologia ao mesmo

tempo bíblica e mística, notaram que o Espírito repousa de toda eternidade

sobre o Filho, manifesta-se por ele, mas também, assim como o Sopro para a

Palavra, o enuncia e o manifesta. Existe entre o Filho e o Espírito uma

misteriosa reciprocidade: juntos, segundo João Damasceno, eles vêm do Pai,

juntos eles voltam para Ele, levando a criação inteira em direção à sua

plenitude. Essa reciprocidade, esse serviço mútuo inscrevem-se na Igreja por

uma relação análoga entre a ação do Cristo e a do Espírito. A ação do Cristo, a

integração sacramental que acontece nele, a plenitude objetiva que funda a

Igreja, são atestadas pelo testemunho apostólico dos bispos e, por eles, dos

padres. A ação do Espírito confirma as liberdades pessoais em comunhão e

multiplica os carismas. O Espírito, segundo Gregório de Nissa, constitui a

unção eterna do Filho; ele constitui a unção messiânica do Filho encarnado,

Jesus, o “Cristo”, quer dizer o Ungido pelo Espírito; ele repousa, enfim, sobre o

corpo sacramental da Igreja, para fazer de todos os crentes “pneumatóforos”:

“carregadores” do Espírito que os torna, na livre unidade da fé e do amor, reis,

sacerdotes e profetas.

A especulação escolástica vai endurecer a formula “filioque” dando

ao Espírito uma espécie de passividade quase impessoal porque o Espírito,

enquanto Pessoa, não é somente o vínculo de amor: é também quem suscita o

amor. E o risco, na sensibilidade popular, foi reduzir a Trindade à dupla Pai e

Filho “em suspiro de amor”, do Pai e do Filho que, como “um único princípio”,

fazem existir o Espírito. Essas formulas estabeleceram principalmente uma

espécie de dependência unilateral do Espírito em relação ao Filho. Esta é

reencontrada na Igreja onde a ação do Espírito se encontrou submissa à

hierarquia, as vezes abafada por ela. O corpo do Cristo não foi mais percebido

como o lugar de um Pentecoste continuado, mas como uma sociedade

piramidal, cada vez mais centralizada, onde a última palavra pertence ao

“vigário de Cristo”.

Aqui se coloca a tragédia do papado. É impressionante que duas

das palavras que definem no Evangelho a vocação de Pedro sejam quase

imediatamente seguidas de terríveis advertências (Mt. 16, 23 e Lc. 22, 32. 34).

Se couber aos católicos aprofundar as promessas que fundam sem

contestação um ministério de unidade na Igreja universal, pertence aos

ortodoxos (e aos protestantes) de lembrar as advertências, não para rejeitar o

ministério de Pedro, mas para que Pedro “se converta” e se torne o pecador

perdoado (Jo. 21, 15-17). A primazia encontra-se desde o início na comunhão

do colégio apostólico: Pedro é o primeiro, mas, se ele é chamado a

“firmar”seus irmãos, não é ele que funda e justifica seu apostolado; este vem

diretamente do Cristo; isto é claramente manifestado pela vocação de Paulo,

reconhecida por Pedro, confirmada por ele mas não determinada por ele, assim

como o destino de João escapa dele (Jo., 21, 23). As três palavras do Cristo

que precisam o ministério de Pedro (Mt. 16, 16-18; Lc 22, 32; Jo. 21, 15-17)

estão todas situadas num contexto de ressurreição e eucarístico. Ora é a

celebração da eucaristia e não o vínculo com Roma que, para a Tradição

antiga, funda a ecclesialidade de uma comunidade local. Entre o povo, os

bispos e o papa, o vínculo não é de subordinação crescente mas de tensão

viva, de cooperação sinfônica: a igreja está no bispo e o bispo está na igreja, o

primeiro bispo faz parte do colégio apostólico de todos os bispos para o qual

cada um é chamado pelo Cristo, chamado confirmado pela eleição do seu povo

e pela consagração que realizam três bispos vizinhos. A última palavra, nessa

vasta sinfonia, pertence ao Espírito Santo.

De 1049 a 1073, produziu se a revolução onde o Oriente cristão ia

ver a traição da fé de Pedro pelo sucessor dele; os dictatus papae de Gregório

VII afirmam que “somente o pontífice romano merece ser chamado universal”,

“sozinho ele pode depor os bispos” e que “a igreja romana nunca errou e não

poderá jamais errar”. Essa plenitudo potestatis faz das igrejas locais as

províncias de uma espécie de Estado eclesiástico universal. Ela vem seguida

de uma semelhante reivindicação de poder sobre o conjunto da sociedade.

Uma forma jurídica, a pretensão de um poder absoluto, acha-se superposta à

realidade sacramental e espiritual da Igreja: a das comunidades eucarísticas e

dos seus bispos, a das consciências pessoais unidas pela fé e o amor.

A PESSOA E A LIBERDADE

A dimensão histórica caracteriza o mundo marcado pela revelação

bíblica, finalmente pelo cristianismo7. Agora existe conscientemente um único

gênero humano que procura junto seu caminho. As civilizações arcaicas, os

grandes impérios do Oriente e, de um certo modo, também a Grécia antiga

permaneciam alheios à história: viviam uma experiência de duração ao mesmo

tempo cíclica e nostálgica voltada para a suposta transparência das origens.

Sociedades impregnadas pelo sagrado – um sagrado impessoal – pela adesão

aos ritmos cósmicos, numa ordem onde divino, o universo e as coisas

humanas se confundiam. Ordem sacrifical selada pela morte do desviando

transformado em bode expiatório.

Somente o Deus da Bíblia é um Deus pessoal, ultimamente e

absolutamente pessoal, e esse Deus vivo coloca o homem, dizendo Tu para

ele, como uma pessoa espiritual além da natureza e da sociedade. Deus entra

realmente no diálogo, quer dizer no imprevisto. Ele intervém mas não pode

constranger a resposta. A história é inventada como um drama de amor onde

7 CLÉMENT, ibid. Deuxième partie, cap. 1

Deus se faz vulnerável até a cruz. A revelação do Deus pessoal explode a

unidade sacra do divino, do mundo e do homem. O apelo e a distância de Deus

abrem para o homem o espaço da fé e da liberdade. O homem deve

responder: ele é responsável. Responsável diante de Deus, responsável pelo

seu irmão e pela terra que o Gênesis tem o cuidado de dessacralizar. O sentido

da história, assim como o significado do humano, encontra-se além dos limites

do mundo mas um além que, pela Encarnação, tornou-se interiorizado pela

história e pelo humano. A morte e a ressurreição do Deus feito homem

constituem propriamente o Fim da história, que a julga nas suas pretensões

totalitárias, suas ilusões e suas hipnoses.

Somente a vocação de Abraão, o encontro do Deus vivo com

Moisés, a descida vitoriosa do Cristo nos porões do horror e a morte desse

mundo abrem para a duração um outro caminho: a da história onde a

esperança faz amadurecer o amor se alguns homens permanecem fiéis. O que

recebe um valor absoluto nessa perspectiva é a pessoa espiritual chamada

para a comunhão, é a aliança do Espírito e da liberdade. A contribuição

definitiva do cristianismo parece ser, de fato, a instauração de – e o convite a –

uma existência pessoal como superação de toda determinação natural e social,

como superação do “eu” para a união com Deus e a abertura para a unidade

humana. O cristianismo trouxe a revelação de que todos os homens em Cristo

são “membros uns dos outros”. O homem é imagem de Deus, chamado a uma

semelhança e participação. E, assim como existe um único Deus em três

Pessoas (Três simbolizando a diversidade absoluta na unidade absoluta),

assim existe em Cristo um Homem único numa multidão de pessoas. Ora essa

“consubstancialidade” humana que nos é dada em Cristo, é no Espírito que

devemos vivê-la, marcá-la com nossa diferença, descobri-la e inventá-la. A

história, desde a Encarnação e o Pentecoste, é o tempo do Espírito, do Sopro

que trabalha os homens para levá-los a uma consciência simultânea do

singular e do universal.

A LUTA COM O ANJO

Desde a cruz e Páscoa, desde a vinda plena do Espírito no

Pentecoste, a natureza do tempo mudou8. O tempo é penetrado pela

eternidade, não vai para a morte mas vai para a morte-ressurreição. A história

não pode ser considerada por um cristão simplesmente como uma realidade

puramente humana: é um drama divino-humano, uma luta com o anjo, onde de

vez em quando o homem colabora com Deus, torna-se plenamente sua

imagem e consegue colocar essa imagem, de um modo vivificante, sobre a

sociedade e a natureza. As vezes, ele se fecha para Deus, tenta deificar-se

pela suas próprias forças e coloca essa imagem negativa sobre a cultura e o

universo. A linha de demarcação entre Deus e a imagem da Besta passa pelo

coração de cada um. Por isso não existe uma explicação puramente racional

para a história: só vemos o lado reverso dela. O critério não pode ser a

eficácia, inclusive porque não conhecemos o critérios da verdadeira eficácia. O

mistério pascal mostra que a maior vitória pode nascer de um grande fracasso.

O critério é uma humilde e tenaz fidelidade: estamos engajados num combate

contra a violência e a mentira que, na história, nunca terá fim.

8 CLÉMENT, ibid. cap. 4