OMNES ET SINGULATIM por uma crítica da razão política

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membros da Escola de Frankfurt. Minha intenção não consiste em abrir uma discussãosobre suas obras - e elas são das mais importantes e das mais preciosas. Sugeriria, da minha parte, outra maneira de estudar as relações entre a racionalização e o poder:

1.  É sem dúvida prudente não tratar da racionalização da sociedade ou da culturacomo um todo, mas analisar este processo em diversos domínios - cada um delesenraizando-se numa experiência fundamental: loucura, doença, morte, crime,sexualidade, etc.

2. Considero perigoso o próprio termo racionalização. Quando alguns tentamracionalizar algo, o problema essencial não consiste em pesquisar se eles seconformam ou não aos princípios da racionalidade, mas de descobrir a que tipo deracionalidade eles recorrem. 

3. Mesmo que as Luzes tenham sido uma fase extremamente importante em nossahistória e no desenvolvimento da tecnologia política, creio que devemos referir-nosa processos bem mais recuados se quisermos compreender como nos deixamos cair 

na armadilha da nossa própria história. Tal foi minha "linha de conduta" no meu precedente trabalho: analisar as relações entreexperiências como a loucura, a morte, o crime ou a sexualidade, e diferentes tecnologias do poder. Meu trabalho daqui em frente conduz ao problema da individualidade - ou, deveriaeu dizer, da identidade em conexão com o problema do "poder individualizante".

*

Cada um sabe que, nas sociedades européias, o poder político evoluiu para formas cada vezmais centralizadas. Historiadores estudam esta organização do Estado, com suaadministração e sua burocracia, há vários decênios.

Gostaria de sugerir aqui a possibilidade de analisar outra espécie de transformação relativaa estas relações de poder. Tal transformação seja talvez menos conhecida. Mas creio que elanão é de menor importância, sobretudo para as sociedades modernas. Aparentemente talevolução é oposta à evolução na direção de um Estado centralizado. Penso, de fato, nodesenvolvimento das técnicas de poder voltadas para os indivíduos e destinadas a dirigi-losde modo contínuo e permanente. Se o Estado é a forma política de um poder centralizado ecentralizador, denominemos "pastorado" ( pastorat ) o poder individualizador.

Meu propósito consiste aqui em apresentar em grandes traços a origem desta modalidade pastoral do poder, ou pelo menos alguns aspectos de sua história antiga. Em uma segundaconferência, tentarei mostrar como este pastorado se encontrou associado ao seu contrário,

o Estado.*

A idéia de que a divindade, o rei ou o chefe é um pastor seguido de um rebanho de ovelhasnão era familiar aos gregos e aos romanos. Houve exceções, eu sei - inicialmente naliteratura homérica, depois em certos textos do Baixo Império. Voltarei a isso em seguida.Grosseiramente falando, podemos dizer que a metáfora do rebanho está ausente dosgrandes textos políticos gregos ou romanos.

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Este não é o caso nas sociedades orientais antigas, no Egito, na Assíria e na Judéia. O faraóegípcio era um pastor. No dia de sua coroação ele recebia ritualmente o cajado do pastor; eo monarca da Babilônia tinha direito, entre outros títulos, ao de "pastor dos homens". MasDeus era também um pastor conduzindo os homens à sua pastagem e alcançando seualimento. Um hino egípcio invocava Rê da sorte: "Oh Rê que vigia quando todos os

homens cochilam, Tu que buscas o que é bom para o teu gado...". A associação entre Deus eo rei aparece naturalmente, pois ambos desempenham o mesmo papel: o rebanho que elesvigiam é o mesmo; o pastor real tem a guarda das criaturas do grande pastor divino. "Ilustrecompanheiro de pastagem, Tu que cuidas da tua terra e a nutres, pastor de todaabundância...".

Como sabemos, porém, são os Hebreus que desenvolvem e ampliam o tema pastoral - comnada menos do que uma característica muito singular: Deus, e só Deus, é o pastor de seu povo. Só há uma exceção positiva: em sua qualidade de fundador da monarquia, David éinvocado sob o nome de pastor. Deus confiou-lhe a tarefa de reunir um rebanho.

Há, porém, também exceções negativas: os maus reis são uniformemente comparados amaus pastores; eles dispersam o rebanho, deixam-no morrer de fome, não o tosquiam a nãoser em proveito próprio. Javé é o único verdadeiro pastor. Ele guia seu povo pessoalmente,ajudado apenas por seus profetas. "Como um rebanho, tu guias teu povo pela mão deMoisés e de Aarão", diz o salmista. Eu não posso tratar, na verdade, nem dos problemashistóricos relativos à origem desta comparação nem de sua evolução no pensamento judeu.Desejo apenas abordar alguns temas típicos do poder pastoral. Gostaria de evidenciar ocontraste com o pensamento político grego, e mostrar a importância que adquiriram depoistais temas no pensamento cristão e nas instituições.

1.  O pastor exerce o poder sobre um rebanho mais do que sobre uma terra. É

 provavelmente bem mais complicado do que isso, mas, de modo geral, a relaçãoentre a divindade, a terra e os homens difere daquela dos gregos. Os deuses destes possuíam a terra, e esta posse original determinava as relações entre os homens e osdeuses. No outro caso, é, pelo contrário, a relação do Deus-pastor com seu rebanhoque é original e fundamental. Deus dá, ou promete, uma terra ao seu rebanho.

2. O pastor reúne, guia e conduz seu rebanho. A idéia de que cabe ao chefe políticoapaziguar as hostilidades na cidade e fazer prevalecer a unidade sobre o conflitoestá, sem nenhuma dúvida, presente no pensamento grego. Mas o que o pastor reúnesão indivíduos dispersos. Eles reúnem-se ao som de sua voz. "Eu assobiarei e elesse ajuntam". Inversamente, basta que o pastor desapareça para que o rebanho se

disperse. Dito doutra maneira, o rebanho existe pela presença imediata e pela açãodireta do pastor. Logo que o bom legislador grego, Sólon, regulamentou osconflitos, ele deixa atrás de si uma cidade dotada de leis que lhe permitem perdurar sem ele. 

3. O papel do pastor consiste em assegurar a salvação de seu rebanho. Os gregosdiziam também que a divindade salvava a cidade; e eles nunca deixaram decomparar o bom chefe a um timoneiro mantendo seu navio afastado dos recifes.

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Mas a maneira em que o pastor salva seu rebanho é muito diferente. Não se trataapenas de os salvar a todos, todos juntos, diante da aproximação do perigo. Tudo équestão de benevolência constante, individualizada e final. De benevolênciaconstante, pois o pastor provê ao sustento de seu rebanho; ele provê diariamente àsua sede e à sua fome. Ao deus grego era pedido uma terra fecunda e colheitas

abundantes. Não se pedia a ele estar com o rebanho no dia a dia. E de benevolênciaindividualizada, também, pois o pastor cuida para que todas estas ovelhas, semexceção , sejam saciadas e salvas. Depois, os textos hebraicos especialmenteressaltaram este poder individualmente benéfico: comentário rabínico sobre oÊxodo explica porque Javé faz de Moisés o pastor de seu povo: ele devia abandonar seu rebanho a fim de partir em busca de uma só ovelha perdida.  

 Last but not least , trata-se de uma benevolência final. O pastor tem um plano paraseu rebanho. É preciso tanto conduzi-lo a uma boa pastagem, quanto reuni-lo nocurral.

4. Há ainda outra diferença que tem a ver com a idéia de que o exercício do poder éum "dever". O chefe grego devia naturalmente tomar suas decisões no interesse detodos; se preferisse seu interesse pessoal seria um mau chefe. Mas seu dever era umdever glorioso: mesmo que ele devesse dar sua vida por ocasião de uma guerra, seusacrifício era compensado por um presente extremamente precioso: a imortalidade.Ele nunca perdia. A benevolência pastoral, por sua vez, é bem mais próxima do"devotamento". Tudo que o pastor faz, ele o faz pelo bem de seu rebanho. É sua preocupação constante. Quando ele dorme, ele vigia. 

O tema da vigília é importante. Vale destacar dois aspectos do devotamento do pastor. Em primeiro lugar, ele age, trabalha e desfaz-se em favor daqueles a quem nutre e que estão

adormecidos. Em segundo lugar, ele cuida deles. Presta atenção a todos, sem perder devista ninguém dentre os mesmos. Ele é levado a conhecer seu rebanho no conjunto e emdetalhe. Ele deve conhecer não apenas o lugar das boas pastagens, as leis das estações e aordem das coisas, mas também as necessidades de cada um em particular. Mais uma vez,um comentário rabínico sobre o Êxodo descreve, nos seguintes termos, as qualidades pastorais de Moisés: ele põe a andar cada ovelha por vez - primeiro as mais jovens, paralhes possibilitar comer a erva mais tenra; depois as de mais idade, e por fim as mais velhas,capazes de mastigar a erva mais dura. O poder pastoral supõe atenção individual a cadamembro do rebanho.

Eis aí temas que os textos hebraicos associam às metáforas do Deus-pastor e do seu povo-

rebanho. Não pretendo de modo algum que o poder político se exercia efetivamente assimna sociedade judaica antes da queda de Jerusalém. Nem mesmo quero que esta concepçãodo poder político seja, por pouco que fosse, coerente.

Trata-se apenas de temas. Paradoxais, e até contraditórios. O cristianismo lhes dariaimportância considerável, tanto na Idade Média, quanto nos Tempos modernos. De todas associedades da história, as nossas - quero dizer, aquelas que apareceram no final daAntigüidade no lado ocidental do continente europeu - são talvez as mais agressivas e as

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mais conquistadoras; elas foram capazes da violência mais estupefaciente, contra elasmesmas assim como contra as outras. Elas inventaram grande número de formas políticasdiferentes. Com freqüência, modificaram profundamente suas estruturas jurídicas. Énecessário sublinhar o espírito (com) que só elas desenvolveram uma estranha tecnologiado poder, tratando a imensa maioria dos homens em rebanho com um punhado de pastores.

Assim elas estabeleceram entre os homens uma série de relações complexas, contínuas e paradoxais.

É seguramente algo singular no curso da história. O desenvolvimento da "tecnologia pastoral" na direção dos homens transformou, com toda evidência, de alto abaixo, asestruturas da sociedade antiga.

 

*

Assim, a fim de explicar melhor a importância desta ruptura, gostaria agora de voltar  brevemente ao que disse dos gregos. Adivinho as objeções que se podem dirigir a mim.

Uma é que os poemas homéricos empregam a metáfora pastoral para designar os reis. NaIlíada e na Odisséia, a expressão poimên laôn aparece várias vezes. Designa os chefes esublinha a grandeza do seu poder. Acrescente-se a isso que se trata de título ritual, freqüenteaté na literatura indo-européia tardia. Em Beowulf , o rei é ainda considerado como pastor.Mas que se encontre o mesmo título nos poemas épicos arcaicos, assim como nos textosassírios, não é realmente surpreendente.

O problema põe-se sobretudo no que diz respeito ao pensamento grego; ha pelo menos umacategoria de textos que comporta referências aos modelos pastorais: trata-se dos textos

 pitagóricos. A metáfora do pastor ( pâtre) aparece nos Fragmentos de Arquitas, citados por Stobée. O termo nomos (a lei) está ligado ao termo nomeus (pastor): o pastor reparte, a leidesigna. E Zeus é denominado  Nomios e  Némeios porque provê ao sustento das suasovelhas. Enfim, o magistrado deve ser  philanthrôpos, a saber, desprovido de egoísmo. Eledeve mostrar-se cheio de ardor e de solicitude, tal como um pastor.

Gruppe, o editor alemão dos  Fragments de Arquitas, sustenta que isso sinaliza umainfluência hebraica única na literatura grega. Outros comentaristas, por exemplo Delatte,afirmam que a comparação entre os deuses, os magistrados e os pastores era freqüente naGrécia. Por isso, é inútil insistir nisso.

Ater-me-ei à literatura política. Os resultados da pesquisa são claros: a metáfora política do pastor nem em Isócrates, nem em Demóstenes, nem em Aristóteles. É bastantesurpreendente quando se pensa que, no seu  Areopagítico, Isócrates insiste nos deveres dosmagistrados: ele sublinha com força que eles devem mostrar-se devotados e se preocupar com os jovens. Não há, no caso, a mínima alusão pastoral.

Platão, por sua vez, fala muitas vezes do pastor-magistrado. Ele evoca a idéia no Crítias, na República, e em  As Leis, e discute-o a fundo em O Político. Na primeira obra, o tema do pastor é bastante secundária. Encontram-se às vezes, no Crítias, algumas evocações destes

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dias felizes em que a humanidade era diretamente governada pelos deuses e eraapascentada em abundantes pastagens. Outras vezes, Platão insiste na necessária virtude domagistrado - em oposição ao vício de Trasímaco ( República). Por fim, o problema é àsvezes o de definir o papel subalterno dos magistrados: na verdade, assim como os cães deguarda, eles não devem senão obedecer àqueles "que se encontram no alto da escala" ( As

 Leis).Mas, em O Político, o poder pastoral é o problema central e objeto de longosdesenvolvimentos. Pode-se definir o condutor da cidade, o comandante, como uma espéciede pastor?

A análise de Platão é bem conhecida. Para responder a esta pergunta, ele procede por divisão. Estabelece distinção entre o homem que transmite ordens às coisas inanimadas(por exemplo, o arquiteto) e o homem que dá ordens aos animais; entre o homem que dáordens aos animais isolados ( a uma junta de bois, por exemplo) e quem comanda rebanhos;e, por fim, entre quem comanda rebanhos de animais e quem comanda rebanhos humanos.E encontramos aqui o chefe político: um pastor de homens.

Mas esta primeira divisão continua pouco satisfatória. Convém ir mais adiante. Opor oshomens a todos os outros animais não é bom método. Também o diálogo parte de zero para propor de novo uma série de distinções: entre os animais selvagens e os animaisdomésticos; os que vivem nas águas e os quem vivem sobre a terra; os que têm chifres e osque não os têm; os que têm o chifre do pé rachado e os que o têm de uma só parte; os que podem reproduzir-se por cruzamento e os que não o podem. E o diálogo perde-se em suasintermináveis subdivisões.

Então, o que mostram o desenvolvimento inicial do diálogo e seu insucesso subseqüente?Que o método da divisão não pode ao final provar nada quando não é corretamente

aplicado. Isso mostra também que a idéia de analisar o poder político como a relação entreum pastor e seus animais era provavelmente bastante controversa na época. De fato, é a primeira hipótese quem vem à mente dos interlocutores quando eles buscam descobrir aessência do político. Era isso então um lugar comum? Ou Platão discutia antes um tema pitagórico? A ausência da metáfora pastoral nos outros textos políticos contemporâneos parece jogar a favor da segunda hipótese. Mas não podemos provavelmente deixar adiscussão aberta.

Minha pesquisa pessoal conduz ao modo como Platão trata este tema no resto do diálogo.Inicialmente ele o faz por meio de argumentos metodológicos, depois invocando o famosomito do mundo que gira em torno do seu eixo.

Os argumentos metodológicos são muito interessantes. Não é decidindo sobre quaisespécies podem formar um rebanho, mas analisando o que faz o pastor que se pode dizer seo rei é ou não uma espécie de pastor.

O que caracteriza sua tarefa? Primeiramente, o pastor está sozinho à cabeça do seu rebanho.Em segundo lugar, seu trabalho consiste em prover ao sustento de seus animais; de cuidar deles quando estão doentes; de lhes tocar a música para os reunir e os guiar; de organizar 

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sua reprodução com a preocupação de obter a melhor primogenitura. Assim reencontramosda melhor forma os temas típicos da metáfora pastoral presentes nos textos orientais.

E qual a tarefa do rei a respeito de tudo isso? Como o pastor, ele está só à testa da cidade.Mas, de resto, quem fornece à humanidade seu sustento? O rei? Não. O cultivador, o padeiro. Quem se ocupa dos homens quando estão enfermos? O rei? Não. A medicina. Equem os guia pela música? O mestre do ginásio, e não o rei. Assim, cidadãos poderiam commuita legitimidade pretender o título de "pastor dos homens". A política, assim como o pastor do rebanho humano, conta com numerosos rivais. Conseqüentemente, se quisermosdescobrir o que é real e fundamentalmente o político, devemos descartar dele "todosaqueles cuja onda o cerca", e, fazendo isso, demonstrar em que ele não é um pastor.

Platão recorre então ao mito do universo girando em torno do seu eixo em dois movimentossucessivos e de sentido contrário.

 Num primeiro tempo, cada espécie animal pertence a um rebanho conduzido por um gênio- pastor. O rebanho humano era conduzido pela divindade em pessoa. Ele podia dispor em

 profusão dos frutos da terra; não precisava de abrigo algum; e, após a morte, os homensvoltavam à vida. Segue-se uma frase capital: "Se a divindade fosse seu pastor, os homensnão teriam necessidade de constituição política".

 Num segundo tempo, o mundo voltou na direção oposta. Os deuses já não foram os pastores dos homens, que se reencontrarão desde então abandonados a si mesmos. Porqueeles tinham recebido o fogo. Qual seria então o papel do político? Iria ele tornar-se pastor no lugar da divindade? De modo algum. Seu papel seria já o de tecer um tecido sólido paraa cidade. Ser homem político não queria dizer alimentar, cuidar e educar sua primogenitura,mas urdir: urdir diferentes virtudes; urdir temperamentos contrários (fogosos oumoderados), servindo-se da "lançadeira" da opinião pública. A arte régia de governar 

consistia em reunir os vivos "numa comunidade que repousa sobre a concórdia e aamizade", e formando assim "o mais magnífico e o melhor dos tecidos". Todo o povo,"escravos e homens livres, retidos em sua trama".

O Político aparece, portanto, como a reflexão mais sistemática da Antigüidade clássicasobre o tema do pastorado, que era chamada a ter tanta importância no Ocidente cristão.Que o discutamos parece provar que um tema, de origem oriental talvez, erasuficientemente importante no tempo de Platão para merecer discussão; mas nãoesqueçamos que ele era contestado.

Mas não totalmente. Pois Platão reconhecia claramente no médico, no cultivador, noginasta e no pedagogo a qualidade de pastores. Por sua vez, rejeitava que se misturassemcom atividades políticas Ele o diz explicitamente: como poderia o político encontrar otempo para ir ver cada pessoa em particular, para lhe dar de comer, para lhe oferecer concertos, e para cuidar dele em caso de doença? Só um deus da idade de ouro poderia agir deste modo; ou ainda como um médico ou um pedagogo, ser responsável pela vida e pelodesenvolvimento de um pequeno número de indivíduos. Mas, situados entre os deuses - osdeuses e os pastores - os homens que detêm o poder político não são pastores. Sua tarefanão consiste em manter a vida de um grupo de indivíduos. Consiste, sim, em formar e

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garantir a unidade da cidade. Em breve, o problema político é o da relação entre o um e amultidão no quadro da cidade e dos seus cidadãos. O problema pastoral tem a ver com avida dos indivíduos.

Tudo isso parece, talvez, muito longínquo. Se insisto nestes textos antigos é porque nosmostram que este problema - ou antes esta série de problemas - foi posto muito cedo.Cobrem a história ocidental na sua totalidade, e são ainda da maior importância para asociedade contemporânea. Têm a ver com as relações entre o poder político em ato nointerior do Estado enquanto quadro jurídico da unidade e um poder que podemosdenominar "pastoral", cujo papel reside em vigiar permanentemente a vida de todos e decada um, em os ajudar, e melhorar a sua sorte.

O famoso "problema do Estado-providência" não põe apenas em evidência as necessidadesou as novas técnicas de governo do mundo atual. Deve ser reconhecido por aquilo que é:um dos muito numerosos reaparecimentos do delicado ajustamento entre o poder políticoexercido sobre os sujeitos civis e o poder pastoral que se exerce sobre indivíduos vivos.

 Não tenho naturalmente a menor intenção de traçar a evolução do poder pastoral através docristianismo. Os imensos problemas que isso poria deixam-se imaginar facilmente: problemas doutrinais, tais como o título de "bom pastor" dado a Cristo, problemasinstitucionais, tais como a organização paroquial, ou a divisão das responsabilidades pastorais entre padres e bispos.

Meu único propósito é o de pôr às claras dois ou três aspectos que considero maisimportantes na evolução do pastorado, isto é, na tecnologia do poder.

Para começar, examinemos a construção teórica do tema na literatura cristã dos primeirosséculos: Crisóstomo, Cipriano, Ambrósio, Jerônimo e, para a vida monástica, Cassiano ouBento. Os temas hebraicos encontram-se consideravelmente transformados pelo menos em

quatro planos.

1) Em primeiro lugar, no que diz respeito à responsabilidade. Vimos que o pastor deviaassumir a responsabilidade pelo destino do rebanho na sua totalidade e por toda ovelha em particular. Na concepção cristã, o pastor deve prestar contas - não só de cada uma dasovelhas, mas de todas as suas ações, de todo o bem ou o mal que são capazes de realizar, detudo o que lhes acontece.

Além disso, entre cada ovelha e seu pastor, o cristianismo vê um intercâmbio e umacirculação complexos de pecados e de méritos. O pecado da ovelha é também imputável ao pastor. Ele deverá responder por ele no dia do Juízo final. Inversamente, ajudando seu

rebanho a encontrar a salvação, o pastor encontrará também a sua. Mas, salvando suasovelhas, corre o risco de se perder; se quiser salvar a si mesmo, deve necessariamentecorrer o risco de estar perdido para os outros. Se ele se perder, é o rebanho que ficaráexposto aos maiores perigos. Deixemos, porém, tais paradoxos de lado. Meu objetivo eraunicamente o de sublinhar a força e a complexidade das vínculos morais associando o pastor a cada membro de seu rebanho. E sobretudo, gostaria de salientar fortemente queestes vínculos não dizem apenas respeito à vida dos indivíduos, mas também aos seus atosnos seus mais ínfimos detalhes.

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O pastorado cristão associou estreitamente estas duas práticas. A direção de consciênciaconstituía uma ligação permanente: a ovelha não se deixava conduzir apenas no caso decaso de enfrentar vitoriosamente algum passo perigoso; ela se deixava conduzir em cadainstante. Ser guiado era um estado, e estaria fatalmente perdido no caso de tentar escapar disso. Quem não aceita algum conselho murcharia como folha morta, diz o eterno refrão.

Quanto ao exame de consciência, seu objetivo não era o de cultivar a consciência de si, masde lhe permitir abrir-se inteiramente ao seu diretor - de lhe revelar as profundezas da alma.

Existem muitos textos ascéticos e monásticos do séc. I sobre o vínculo entre a direção e oexame de consciência, e os mesmos mostram a que ponto tais técnicas eram capitais para ocristianismo e qual era já então o seu grau de complexidade. O que gostaria de sublinhar éque as mesmas traduzem o aparecimento de um fenômeno muito estranho na civilizaçãogreco-romana, a saber, a organização de um vínculo entre a obediência total, oconhecimento de si e a confissão a alguém, por outro lado.

Há outra transformação - a mais importante, talvez. Todas estas técnicas cristãs de exame,de confissão, de direção de consciência e de obediência têm uma finalidade: levar osindivíduos a trabalhar na sua própria "mortificação" neste mundo. A mortificação não é amorte, certamente, mas renúncia a este mundo e a si mesmo: uma espécie de mortecotidiana. Morte que é considerada por dar a vida no outro mundo. Não é a primeira vezque encontramos o tema pastoral associado à morte, mas seu sentido difere daquele que sedá do poder político na idéia grega. Não se trata de sacrifício em favor da cidade; amortificação cristã é uma forma de relação para consigo mesmo. É elemento, parte daidentidade cristã.

Podemos dizer que o pastorado cristão introduziu um jogo que nem os gregos nem oshebreus haviam imaginado. Estranho jogo cujos elementos são a vida, a morte, a verdade, a

obediência, os indivíduos, a identidade; jogo que parece não ter relação alguma com o dacidade que sobrevive através do sacrifício dos seus cidadãos. Combinando estes dois jogos- o jogo da cidade e do cidadão e o jogo do pastor e do rebanho - no que denominamos osEstados modernos, nossas sociedades revelaram-se verdadeiramente demoníacas.

Conforme podem observar, não procurei aqui resolver um problema, mas sugerir umaabordagem deste problema. É da mesma ordem que aqueles sobre os quais trabalho apósmeu primeiro livro sobre a loucura e a doença mental. Conforme disse anteriormente, tem aver com as relações entre experiências (tais como a loucura, a doença, a transgressão dasleis, a sexualidade,a identidade), saberes (tais como a psiquiatria, a medicina, acriminologia, a sexologia e a psicologia), e o poder (como o poder que se exerce nas

instituições psiquiátricas e penais, assim como em todas as outras instituições que tratam docontrole individual).

 Nossa civilização desenvolveu o mais complexo sistema de saber, as mais sofisticadasestruturas de poder: o que fez de nós tal forma de conhecimento, tal tipo de poder? De quemaneira tais experiências fundamentais da loucura, do sofrimento, da morte, do crime, dodesejo e da individualidade estão relacionadas, mesmo que não tenhamos consciência disso,

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com o conhecimento e com o poder? Estou certo de jamais encontrar a resposta; mas issonão deve significar que devamos renunciar a pôr a questão.

 

II

Procurei mostrar como o cristianismo primitivo deu forma à idéia de uma influência pastoral exercendo-se continuamente sobre os indivíduos e através da demonstração de suaverdade particular. Procurei mostrar como tal idéia de poder pastoral era estranha ao pensamento grego, a despeito de certo número de elementos tais como o exame deconsciência prático e a direção de consciência.

Gostaria agora, ao preço de um salto de vários séculos, de descrever outro episódio que serevestiu de importância particular na história deste governo dos indivíduos por sua própriaverdade.

Este exemplo tem a ver com a formação do Estado no sentido moderno do termo. Seestabeleço tal aproximação histórica, não se trata, evidentemente, de dar a entender que oaspecto pastoral do poder desaparecido nos decurso dos dez grandes séculos da Europacristã, católica e romana, mas me parece que, ao contrário do que se espera, este períodonão foi o do pastorado triunfante. E isso por diversos motivos: alguns são de naturezaeconômica - o pastorado das almas é uma experiência tipicamente urbana, dificilmenteconciliável com a pobreza e a economia rural extensiva dos primórdios da Idade Média.Outros motivos são de natural cultural: o pastorado é uma técnica complicada, que requer certo nível de cultura - da parte do pastor assim como do seu rebanho. Outros motivosainda têm a ver com estrutura sócio-política. O feudalismo desenvolveu entre os indivíduos

um tecido de liames pessoais de uma espécie bastante diferente do pastorado. Não pretendo que a idéia de governo pastoral dos homens tenha desaparecido inteiramentena Igreja medieval. Ela, na verdade, continuou, e se pode inclusive dizer que deu mostrasde grande vitalidade. Duas séries de fatos tendem a prová-lo. Em primeiro lugar, asreformas que haviam sido realizadas no próprio interior da Igreja, em particular nas obrasmonásticas - as diferentes reformas acontecidas sucessivamente dentro dos mosteirosexistentes - tinham por finalidade restabelecer o rigor da ordem pastoral entre os monges.Quanto às ordens apenas criadas - dominicanos e franciscanos - elas propunham-se antes detudo efetuar um trabalho pastoral entre os fiéis. Durante suas crises sucessivas, a Igreja procurou incansavelmente reencontrar suas funções pastorais. Há mais, porém. Na própria

 população, assiste-se ao longo da Idade Média ao desenvolvimento de longa sucessão delutas cujo objeto era o poder pastoral. Os adversários da Igreja que falta a suas obrigaçõesrejeitam sua estrutura hierárquica e partem em busca de formas mais ou menos espontâneasde comunidade, na qual o rebanho poderia encontrar o pastor de que precisava. Esta buscade uma expressão pastoral reveste-se de numerosos aspectos: às vezes, como no caso dosValdenses (N.T.: membros da seita fundada em Lião por Pedro Valdo, por volta de 1170,inspirada na pobreza evangélica, e que repudiava a riqueza da Igreja Católica), proporciona lutas de extrema violência; noutras ocasiões, como na da comunidade dos

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Irmãos da vida, tal quadro manteve-se pacífico. Ora suscitou movimentos de grandealcance, tais como o do Hussitas ( N.T.: adeptos da doutrina de Jan Huss, tcheco, paraquem as boas obras não contavam para a salvação eterna), ora fermentou gruposlimitados, como naquela dos Amigos de Deus de Oberland. Trata-se ora de movimentos próximos da heresia (caso dos Begardos), ora de movimentos ortodoxos turbulentos fixados

no interior da própria Igreja (caso dos oratorianos italianos no séc. XV).Lembro tudo isso de modo bastante alusivo com o único objetivo de sublinhar que, se nãoera instituído como governo efetivo e prático dos homens, o pastorado foi na Idade Média ocuidado constante e o centro de lutas incessantes. Ao longo de todo este períodomanifestou-se um ardente desejo de estabelecer relações pastorais entre os homens, e talaspiração afetou tanto a corrente mística quanto os grandes sonhos milenaristas.

*

 Não pretendo tratar aqui do problema da formação dos Estados. Nem quero explorar osdiferentes processos econômicos, sociais e políticos de que procedem. Por fim, não é

intenção analisar os diferentes mecanismos e instituições de que os Estados se dotaram afim de garantir a sua sobrevivência. Gostaria simplesmente de dar algumas indicaçõesfragmentárias sobre algo que se encontra a meio caminho entre o Estado, como tipo deorganização política, e seus mecanismos, a saber, o tipo de racionalidade em ato noexercício do poder de Estado.

Evoquei-o na minha primeira conferência. Mais do que se perguntar se as aberrações do poder de Estado são devidas a excessos de racionalismo ou de irracionalismo, seria mais judicioso, penso eu, ater-se ao tipo específico de racionalidade política produzido peloEstado.

Antes de mais, pelo menos a este respeito, as práticas políticas assemelham-se às

científicas: não é a "razão em geral" que se aplica, mas sempre um tipo bem específico deracionalidade.

O que é surpreendente é que a racionalidade do poder de Estado estava refletida e perfeitamente consciente de sua singularidade. Não estava fechada em práticas espontânease cegas, e não é alguma análise retrospectiva que a pôs em evidência. Foi formulada, em particular, em dois corpos de doutrina: a razão de Estado e a teoria da polícia. Estas duasexpressões adquirem imediatamente sentidos estreitos e pejorativos, eu sei. Mas, durante oscerca de cento e cinqüenta ou duzentos anos que ocupa a formação dos Estados modernos,as mesmas conservam sentido mais amplo que hoje em dia.

A doutrina da razão de Estado tentou definir em que os princípios e os métodos de governoestatal diferem, por exemplo, da maneira em que Deus governava o mundo, o pai, suafamília, ou um superior, sua comunidade.

Quanto à doutrina da polícia, ela define a natureza dos objetos da atividade racional doEstado; define a natureza dos objetivos que persegue, a forma geral dos instrumentos queutiliza.

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É, portanto, deste sistema de racionalidade que gostaria de falar agora. Mas é precisocomeçar por duas afirmações preliminares: 1) tendo Meinecke publicado um livro dos maisimportantes sobre a razão de Estado, falarei principalmente da teoria da polícia. 2) AAlemanha e a Itália enfrentaram sérias dificuldades para se constituírem em Estados, eforam estes dois países que produziram o maior número de reflexões sobre a razão de

Estado e a polícia. Por isso, voltarei muitas vezes a textos italianos e alemães.*

Comecemos pela razão de Estado, de que dou aqui algumas definições:

Botero: "Um conhecimento perfeito dos meios através dos quais os Estados se formam, sereforçam, duram e crescem".

Palazzo ( Discurso sobre o governo e a verdadeira razão de Estado, 1606 ): "Um método ouuma arte permitindo descobrir como fazer reinar a ordem e a paz no seio da República".

Chemnitz ( De ratione status, 1647): " Alguma consideração política necessária para todosos negócios públicos, os conselhos e os projetos, cuja única finalidade é a preservação, aexpansão e a felicidade do Estado; com que finalidade se empregam os meios mais rápidose os mais cômodos".

Fixemo-nos em alguns traços comuns destas definições.

1) A razão de Estado é considerada como uma "arte", ou seja, uma técnica que seguedeterminadas regras. Tais regras não dizem respeito apenas aos costumes ou às tradições,mas também ao conhecimento - ao conhecimento racional. Em nossos dias, a expressãorazão de Estado evoca o "arbitrário" ou "a violência". Na época, porém, entendia-se por elauma racionalidade própria à arte de governar os Estados.

2) Donde esta arte de governar tira sua razão de ser? A resposta a tal pergunta provoca oescândalo do pensamento político nascente. No entanto, ela é bastante simples: a arte degovernar é racional se a reflexão a conduz a observar a natureza daquilo que é governado -no caso, o Estado.

Ora, proferir tal lugar comum significa romper com uma tradição ao mesmo tempo cristã e judiciária, tradição que pretendia que o governo era justo em sua raiz. Ele respeitava todoum sistema de leis: leis humanas, lei natural, lei divina.

Existe, a este propósito, um texto bastante revelador de Santo Tomás. Ele assinala que "aarte, no seu domínio, deve imitar o que a natureza cumpre no seu campo"; é razoável só sob

esta condição. No governo do seu reino, o rei deve imitar o governo da natureza por partede Deus; ou então, o governo do corpo pela alma. O rei deve fundar cidades exatamentecomo Deus criou o mundo ou como a alma dá forma ao corpo. O rei deve também conduzir os homens para a sua finalidade, assim como Deus o faz pelos seres naturais, ou como aalma o faz dirigindo o corpo. E qual a finalidade do homem? O que é bom para o corpo? Não. Só teria necessidade de um médico, não de um rei. A riqueza? Também não. Umadministrador bastaria. A verdade? Nem isso. Para tal, só um mestre realizaria a tarefa. O

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homem precisa de alguém que seja capaz de abrir o caminho para a felicidade celesteconformando-se , aqui embaixo, ao que é honestum.

Conforme podemos observar, a arte de governar toma por modelo a Deus, que impõe suasleis às suas criaturas. O modelo de governo racional apresentado por Santo Tomas não é político, ao passo que, sob o nome de "razão de Estado", os séculos XVI e XVII procurarão princípios capazes de guiar o governo prático.. Não se interessam pela natureza nem por suas leis em geral. Interessam-se pelo que é o Estado, pelo que são suas exigências.

Assim podemos compreender o escândalo religioso suscitado por este tipo de pesquisa. Issoexplica porque a razão de Estado foi confundida com o ateísmo. Na França, especialmente,tal expressão, presente em contexto político, foi comumente qualificada como "atéia".

3) A razão de Estado opõe-se também a outra tradição. Em O Príncipe, o problema deMaquiavel consiste em saber como se pode proteger, contra seus adversários internos eexternos, uma província ou território adquirido por herança ou conquista. Toda a análise deMaquiavel procura definir o que mantém ou reforça o vínculo entre o príncipe e o Estado,

ao passo que o problema posto pela razão de Estado é o da própria existência e da naturezado Estado. É por isso que os teóricos da razão de Estado se esforçam para ficar também omais longe possível de Maquiavel; este tinha má reputação, e eles não podiam reconhecer o problema daquele como o próprio. Inversamente, os adversários da razão de Estadotentarão comprometer esta nova arte de governar, denunciando no mesmo a herança deMaquiavel. A despeito de querelas confusas, que se desenvolverão um século depois daredação de O Príncipe, a razão de Estado marca, por sua vez, o aparecimento de um tipo deracionalidade muito diverso - embora só em parte - daquele de Maquiavel.

O objetivo de tal arte de governar é precisamente o de não reforçar o poder que um príncipe pode exercer sobre seu domínio. Sua finalidade é a de reforçar o próprio Estado. Este é um

dos traços mais característicos de todas as definições formuladas nos sécs. XVI e XVII. Ogoverno racional resume-se, por assim dizer, a isso: dada a natureza do Estado, ele podederrubar seus inimigos durante um período indeterminado. Não o pode fazer senãoaumentando sua própria potência. E seus inimigos também o fazem. O Estado cujo únicocuidado fosse o de durar acabaria certamente em catástrofe. Esta idéia é da maior importância e se costura com uma nova perspectiva histórica. De fato, supõe que os Estadossão realidades que devem obrigatoriamente resistir durante um período histórico de duraçãoindefinida no contexto de uma área geográfica contestada.

4) Por fim, podemos ver que a razão de Estado, no interior de um governo racional capazde aumentar a potência do Estado de acordo com ele mesmo, passa pela constituição prévia

de um determinado tipo de saber. O governo não é possível a não ser que a força do Estadoseja conhecida; só assim pode ser mantida. A capacidade do Estado e os meios para asaumentar devem também ser conhecidas, assim como a força e a capacidade dos outrosEstados. O Estado governado deve, portanto, resistir contra os outros. Assim, o governonão poderia limitar-se apenas à aplicação dos princípios gerais de razão, de sabedoria e de prudência. É necessário um saber: saber concreto, preciso e proporcional à potência doEstado. A arte de governar, característica da razão de Estado, está intimamente ligada ao

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desenvolvimento do que denominamos estatística ou aritmética política, ou seja, aoconhecimento das forças respectivas dos diferentes Estados. Tal conhecimento eraindispensável ao bom governo.

Em síntese, a razão de estado não é uma arte de governar seguindo as leis divinas, naturaisou humanas. Este governo não precisa respeitar a ordem geral do mundo. Trata-se de umgoverno de acordo com a potência do Estado. É um governo cuja finalidade consiste emaumentar tal potência num quadro extensivo e competitivo.

*

O que os autores dos sécs. XVII e XVIII entendem por "polícia" é bastante diferente do quenós compreendemos com este termo. Valeria a pena estudar porque a maioria destes autoressão italianos ou alemães, mas o que importa?! Por "polícia", eles entendem não umainstituição ou mecanismo que funciona no interior do Estado, mas uma técnica do governo própria do Estado: trata-se de domínios, técnicas, objetivos que pedem a intervenção doEstado.

Para ser claro e simples, ilustraria meu propósito por meio de um texto que contém aomesmo tempo a utopia e o projeto. Trata-se de uma das primeiras utopias-programas deEstado policiado. Turquet de Mayerne a compôs e apresentou em 1611 aos estados geraisda Holanda. Em Science and Rationalism in the Government of Louis XIV , J. King chama aatenção para a importância desta estranha obra cujo título,  Monarquia aristodemocrática, basta para mostrar o que conta aos olhos do autor: trata-se menos de escolher entrediferentes tipos de constituição, e mais de os combinar em vista de um fim vital: o Estado.Turquet denomina-a também Cidade, República, ou ainda Polícia.

Eis a organização que é proposta por Turquet. Quatro grandes dignitários secundam o rei.Um está encarregado da justiça; o segundo, do exército; o terceiro, do tabuleiro, a saber,

dos impostos e dos recursos do rei; e o quarto, da polícia. Parece que o papel deste grandeencarregado devesse ser essencialmente moral. Segundo Turquet, ele devia inculcar na população "a modéstia, a caridade, a fidelidade, a assiduidade, a cooperação amigável e ahonestidade". Reconhecemos aí uma idéia tradicional: a virtude do sujeito é o penhor da boa administração do reino. Mas, quando entramos nos detalhes, a perspectiva se torna um pouco diversa.

Turquet sugere a criação, em cada província, de conselhos encarregados de manter a ordem pública. Dois cuidarão das pessoas; dois outros, dos bens. O primeiro conselho, que seocupa das pessoas, devia cuidar dos aspectos positivos, ativos e produtivos da vida. Dito deoutra forma, ocupar-se-ia da educação, determinaria os gostos e as aptidões de cada um eescolheria as profissões - as profissões úteis: cada pessoa de mais de vinte e cinco anosdevia estar inscrito em registro que indicasse sua profissão. Aqueles que não estavamutilmente empregados eram considerados a ralé da sociedade.

O segundo conselho devia ocupar-se dos aspectos negativos da vida: dos pobres (viúvas,órfãos, velhos) necessitados; das pessoas sem emprego; daqueles cujas atividades exigiamajuda pecuniária (e dos quais não se cobrava juro algum); mas também da saúde pública -doenças, epidemias - e de acidentes, tais como os incêndios e as inundações.

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Um dos conselhos encarregados dos bens devia especializar-se em mercados e produtosmanufaturados. Devia indicar o que produzir e como fazê-lo, mas também controlar osmercados e o comércio. O quarto conselho cuidaria do "domínio", ou seja, do território e doespaço, controlando os bens privados, os legados, as doações e as vendas; reformando osdireitos senhoriais; ocupando-se das estradas, dos rios, dos edifícios públicos e das

florestas.Para muitos, este texto aparenta-se com as utopias políticas tão numerosas na época. Mas étambém contemporâneo das grandes discussões teóricas sobre a razão de Estado e aorganização administrativa das monarquias. É altamente representativo do que deviam ser,no espírito da época, as tarefas de um Estado governado segundo a tradição.

O que demonstra este texto?

1) A "polícia" aparece como administração dirigindo o Estado ao lado da justiça, doexército e do tabuleiro. Isso é verdade. No entanto, de fato ela abraça todo o resto.Conforme o explica Turquet, ela estende suas atividades a todas as situações, a tudo aquilo

que os homens fazem ou empreendem. Seu domínio compreende a justiça, as finanças e oexército.

2) A polícia engloba tudo. Mas de um ponto de vista bem particular. Homens e coisas sãovistas em suas relações: a coexistência dos homens no território; as suas relações de propriedade; o que eles produzem; o que se troca no mercado. Ela interessa-se também pelamaneira como vivem, pelas doenças e pelos acidentes aos quais estão expostos. É de umhomem vivo, ativo e produtivo que a polícia cuida. Turquet usa uma expressão notável: ohomem é o verdadeiro objeto da polícia, afirma ele substancialmente.

 

4) Uma intervenção deste tipo nas atividades dos homens poderia muito bem ser qualificada de totalitária. Quais são os objetivos visados? Eles dependem de duascategorias. Em primeiro lugar, a polícia tem a ver com tudo o que diz respeito àornamentação, à forma e ao esplendor da cidade. O esplendor não só se relaciona com a beleza de um Estado organizado com perfeição, mas também com sua potência, seu vigor.Assim, a polícia garante o vigor do Estado e o coloca em primeiro plano. Em segundolugar, o outro objetivo da polícia consiste em desenvolver as relações de trabalho e decomércio entre os homens, sob o pretexto de ajuda e de assistência mútua. A palavra queTurquet usa neste caso ainda é importante: a política deve assegurar a "comunicação" entreos homens, no sentido amplo do termo. Sem isso os homens não poderiam viver; ou suavida seria precária, miserável e estaria perpetuamente ameaçada.

Podemos reconhecer aqui, creio eu, uma idéia importante. Enquanto forma de intervençãoracional exercendo o poder político sobre os homens, o papel da polícia consiste em lhesdar um pequeno suplemento de vida; fazendo isso, em dar ao Estado um pouco mais deforça. Isso se faz pelo controle da "comunicação", isto é, das atividades comuns dosindivíduos (trabalho, produção, troca, comodidades).

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Alguém poderia objetar: trata-se aqui apenas de uma utopia de algum autor obscuro. Daínão se poderia deduzir a menor conseqüência significativa! De minha parte, pretendo quetal obra de Turquet seja vista apenas como um exemplo da imensa literatura que circulavana maioria dos países europeus da época. O fato de ser excessivamente simples e muito pormenorizada evidencia com a maior clareza possível características que se podem

reconhecer por todo lugar. Antes de tudo, diria que estas idéias não foram natimortas.Difundiram-se ao longo de todo o século XVII e do século XVIII, seja sob a forma de políticas concretas (tais como o cameralismo ou o mercantilismo), seja como matérias deensino (a  Polizeiwissenschaft  alemã; não esqueçamos que sob tal nome era ensinada naAlemanha a ciência da administração).

Há duas perspectivas que gostaria, não de estudar, mas, pelo menos, de sugerir. Começariareferindo-me a um compêndio administrativo francês, depois a um manual alemão.

 

1) Todo historiador conhece o compêndio de De Lamare. No início do século XVIII, este

administrador empreende a compilação dos regulamentos de polícia de todo o reino. É umafonte inesgotável de informações do maior interesse. Meu propósito é aqui o de mostrar aconcepção geral da polícia que tal quantidade de regras e regulamentos podia fazer nascer no caso de um administrador como De Lamare.

De Lamare explica que há onze coisas das quais a polícia deve cuidar dentro do Estado: 1)a religião; 2) a moralidade; 3) a saúde; 4) os mantimentos; 5) as estradas, as pontes ecalçadas, e os edifícios públicos; 6) a segurança pública; 7) as artes liberais (em geral, asartes e as ciências); 8) o comércio; 9) as fábricas; 10) os criados e os carregadores; 11) os pobres.

A mesma classificação caracteriza todos os tratados relativos à polícia. Como no programa

utópico de Turquet, com exceção do exército, da justiça propriamente dita e dascontribuições diretas, a política cuida aparentemente de tudo. Pode-se dizer o mesmo deforma diferente: o poder régio foi-se afirmando contra o feudalismo tanto graças ao apoiode uma força armada, quanto com o desenvolvimento de um sistema judiciário e com oestabelecimento de um sistema fiscal. É assim que se exercia tradicionalmente o poder régio. Ora, a "polícia" designa o conjunto do novo domínio no qual o poder político eadministrativo centralizado pode intervir.

Mas qual é então a lógica por detrás da intervenção nos ritos culturais, nas técnicas de produção em pequena escala, na vida intelectual e na malha estradal?

A resposta de De Lamare parece um tanto hesitante. A polícia - precisa elesubstancialmente - cuida de tudo que se relaciona com a felicidade dos homens, após o queele acrescenta: a polícia cuida de tudo que regulamenta a  sociedade (as relações sociais)que prevalece entre os homens. E por fim - garante - a polícia cuida da vida (vivant). Ésobre esta definição que gostaria de me deter. É a mais original, e esclarece as duas outras;é De Lamare mesmo que insiste nisso. Eis quais são suas observações sobre os onze objetosda polícia. A polícia ocupa-se da religião, não, bem entendido, do ponto de vista da verdadedogmática, mas daquele da qualidade moral da vida. Cuidando da saúde e dos mantimentos,

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 Na minha opinião, a obra de Justi é demonstração muito mais rebuscada da evolução do problema da polícia do que a introdução de De Lamare ao seu compêndio de regulamentos.Há quatro motivos para isso.

Primeiro, von Justi define em termos bem mais claros o paradoxo central da  polícia. A polícia - explica ele - é o que permite ao estado aumentar seu poder e exercer sua potênciaem todo o seu alcance. Além disso, a polícia deve atender as pessoas felizes - a felicidadecompreendida como a sobrevivência, a vida e uma vida melhor. Ele define perfeitamente oque considera a finalidade da arte moderna de governar, ou da racionalidade estatal:desenvolver os elementos constitutivos da vida dos indivíduos de tal maneira que seudesenvolvimento reforce também a potência do Estado.

Depois von Justi estabelece uma distinção entre esta tarefa, que, à semelhança de seuscontemporâneos, chama de Polizei, e a Politik , Die Politik . Die Politik é fundamentalmenteuma tarefa negativa. Ela consiste, para o Estado, em bater-se contra seus inimigos tanto dodentro quanto de fora. A  Polizei, pelo contrário, é uma tarefa positiva: consiste emfavorecer ao mesmo tempo a vida dos cidadãos e a força do Estado.

Tocamos aqui um ponto importante: von Justi insiste bem mais do que o faz De Lamaresobre uma noção que deveria adquirir importância crescente no curso do séc. XVIII - a população. A população era definida como grupo de indivíduos vivos. Suas característicaseram aquelas de todos os indivíduos pertencentes à mesma espécie, vivendo lado a lado.(Assim, caracterizavam-se pelas taxas de mortalidade e de fecundidade; eram sujeitos aepidemias e a fenômenos de superpopulação; apresentavam determinado tipo dedistribuição territorial.) Assim, De Lamare emprega o termo "vida" para definir o objeto da polícia, mas ele não insistia para além da medida. Ao longo de todo o séc. XVIII, esobretudo na Alemanha, é a população - ou seja, um grupo de indivíduos vivos em

determinada área - que é definida como o objeto da polícia.Finalmente, basta ler von Justi para dar-se conta de que não se trata apenas de uma utopia,como no caso de Turquet, nem de um compêndio de regulamentos sistematicamenteelencados. Von Justi procura elaborar uma  Polizeiwissenschaft . Seu livro não é mera listade prescrições. É também uma grade através da qual se pode observar o Estado, a saber, seuterritório, seus recursos, sua população, suas cidades, etc. Von Justi associa a "estatística" (adescrição dos Estados) e a arte de governar. A Polizeiwissenschaft é, ao mesmo tempo, umaarte de governar e método para analisar uma população vivendo sobre um território.

Tais considerações históricas devem parecer estar muito distantes; devem parecer inúteiscom relação às preocupações atuais. Não iria tão longe quanto Herman Hesse, que afirma

que só é fecunda a "referência constante à história, ao passado e à Antigüidade". Mas aexperiência me ensinou que a história das diferentes formas de racionalidade consegue àsvezes abalar melhor nossas certezas e nosso dogmatismo do que uma crítica abstrata.Durante séculos, a religião não pôde suportar que se contasse sua história. Hoje, nossasescolas de racionalidade não apreciam muito que se escreva a história das mesmas, o que ésem dúvida significativo.

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O que pretendi mostrar é uma direção de pesquisa. Aqui apresentei apenas rudimentos deestudo no qual trabalho há dois anos. Trata-se da análise histórica do que chamaríamos,usando expressão em desuso, a arte de governar.

Este estudo apoia-se em certo número de postulados de base, que resumiria da seguintemaneira:

1.  O poder não é uma substância. Não é também um misterioso atributo de que precisaríamos esquadrinhar as origens. O poder não é senão um tipo particular derelações entre os indivíduos. E tais relações são específicas: por outras palavras, elasnada têm a ver com a troca, a produção e a comunicação, mesmo que lhes estejamassociadas. O traço distintivo do poder é o de determinados homens poderemdeterminar, mais ou menos inteiramente, a conduta de outros homens - mas jamaisde modo exaustivo e coercitivo. Um homem acorrentado e pisado está submetido àforça que se exerce sobre ele. Mas não ao poder. Mas se for possível levá-lo a falar,quando seu último recurso teria podido ser o de manter sua língua, preferindo amorte, é porque se impeliu a comportar-se de um determinado modo. Sua liberdadefoi sujeitada ao poder. Ele foi submetido ao governo. Se um indivíduo podecontinuar livre, por mais limitada que possa ser sua liberdade, o poder pode sujeitá-lo ao governo. Não há poder sem rejeição ou revolta em potência.

2.  No que diz respeito às relações entre os homens, muitos fatores determinam o poder. No entanto, a racionalização não cessa de perseguir sua obra e se reveste deformas específicas. Difere da racionalização própria dos processos econômicos oudas técnicas de produção e de comunicação; difere também do discurso científico. Ogoverno dos homens por parte dos homens - tanto no caso de formarem gruposmodestos ou importantes, quanto no caso de se tratar do poder dos homens sobre as

mulheres, dos adultos sobre as crianças, de uma classe sobre a outra, ou de uma burocracia sobre uma população - pressupõe uma determinada forma deracionalidade, e não uma violência instrumental. 

3. Conseqüentemente, os que resistem ou se rebelam contra uma forma de poder nãoconseguiriam contentar-se com a denúncia da violência ou com a crítica a umainstituição. Não basta acusar a razão em geral. O que é necessário questionar é aforma de racionalidade presente. A crítica do poder exercido sobre os doentesmentais ou sobre os loucos não deveria limitar-se às instituições psiquiátricas; demodo similar, os que contestam o poder de punir não deveriam contentar-se com adenúncia das prisões como instituições totais. A questão é: como são racionalizadas

as relações de poder? Colocar tal questão constitui a única maneira de evitar queoutras instituições, com os mesmos objetivos e os mesmos efeitos, tomem seu lugar. 

4. Durante séculos, o Estado foi uma das mais importantes formas de governohumano, e também uma das mais temíveis. 

Que a crítica política tenha acusado o Estado de ser ao mesmo tempofator de individualização e princípio totalitário é bastante revelador.Basta observar a racionalidade do Estado nascente e ver qual foi seu

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 primeiro projeto de polícia para darmo-nos conta de que, desde o seuinício, o Estado foi, ao mesmo tempo, individualizante e totalitário.Contrapor-lhe o indivíduo e seus interesses é tão infeliz quantocontrapor-lhe a comunidade e suas exigências.

A racionalidade política desenvolveu-se e impôs-se ao fio da históriadas sociedades ocidentais. Enraizou-se inicialmente na idéia de poder  pastoral, depois naquela de razão de Estado. A individualização e atotalização são seus efeitos inevitáveis. A libertação disso só pode vir do ataque, não a um ou outro destes efeitos, mas às próprias raízes daracionalidade política.

 

Texto original:

FOUCAULT, Michel. "Omnes et singulatim": vers une critique de la raison politique. In:Dits et Écrits 1954-1988, Vol. IV (1980-1988). Édition établie sous la direction de Daniel

Defert et François Ewald, avec la collaboration de Jacques Lagrange. Paris, Gallimard,1994, pp. 134-161. O texto resulta de conferências feitas pelo Autor em 1979, e publicadascomo um artigo em 1981.

Este texto foi gentilmente cedido por  Marco Antonio Frangiotti, que organizou o site onde estetexto aparece inicialmente: "Textos de interesse filosófico"