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O PRINCÍPIO DA BOA-FÉ E OS NEGÓCIOS JÚRIDICOS IMOBILIÁRIOS Paulo Ricardo Silva de Moraes Advogado, Contador e Analista da Comissão de Valores Mobiliários; Pós-graduado “lato sensu” em Finanças e Gestão Corporativa pela Universidade Candido Mendes e Bacharel em Ciências Contábeis, Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. RESUMO Analisa-se os reflexos do Princípio da Boa-Fé nos negócios jurídicos imobiliários. Para tanto, estuda-se, na primeira parte deste trabalho, a relação obrigacional como um processo complexo, considerando-se seus aspectos estático e dinâmico que, em conjunto, tornam possível a compreensão dos diversos “deveres” que compõem a relação tomada como uma totalidade concreta. Na segunda parte, estuda-se a boa-fé objetiva, distinguindo-a, inicialmente, da boa-fé subjetiva, para se adentrar, logo após, na análise de suas funções e dos reflexos destas no direito obrigacional e, particularmente, na responsabilidade pré-contratual. Na terceira, e última parte, estuda-se, por fim, a incidência do regramento da boa-fé nos negócios imobiliários desvelados nas suas diversas fases. Palavras-Chave: Princípio da Boa-Fé, Relação Obrigacional, Boa-Fé Subjetiva, Boa-Fé Objetiva, Responsabilidade Pré-Contratual, Negócios Jurídicos, Negócios Imobiliários. SUMÁRIO: 1. Introdução – 2. A Relação obrigacional como um processo complexo – 3. A boa-fé objetiva e a transfiguração do direito obrigacional – 3.1 A distinção entre boa-fé subjetiva e boa-fé objetiva – 3.2 As funções da boa-fé objetiva e seus reflexos no direito obrigacional – 3.3 A boa-fé objetiva e a responsabilidade pré-negocial ou pré-contratual – 4. A incidência da boa-fé nos negócios jurídicos imobiliários – 4.1 Breves considerações sobre o negócio imobiliário – 4.2 A regra da boa-fé nos negócios imobiliários – 5. Conclusão – Referências Bibliográficas. 1 INTRODUÇÃO Ao tratar do princípio da boa-fé e da probidade, Carlos Roberto Gonçalves, ao se reportar ao art. 422 do Código Civil, dispõe que: O princípio da boa-fé exige que as partes se comportem de forma correta não só durante as tratativas, como também durante a formação e o cumprimento do contrato. Guarda relação com o princípio de direito segundo o qual ninguém pode beneficiar-se da própria torpeza. Recomenda ao juiz que presuma a boa-fé, devendo a má-fé, ao contrário, ser provada por quem a alega. Deve este, ao julgar demanda na qual se discuta a relação contratual, dar por pressuposta a boa-fé objetiva, que impõe ao contratante um padrão de conduta, de agir com retidão, ou seja, com probidade, honestidade e lealdade, nos moldes do homem comum, atendidas as peculiaridades dos usos e costumes do lugar 1 . Neste sentido, a regra da boa-fé se apresenta como uma cláusula geral para a aplicação do direito obrigacional, permitindo que se dê soluções aos casos concretos, levando-se em

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O PRINCÍPIO DA BOA-FÉ E OS NEGÓCIOS JÚRIDICOS IMOBILIÁRIOS

Paulo Ricardo Silva de Moraes

Advogado, Contador e Analista da Comissão de Valores Mobiliários; Pós-graduado “lato sensu” em Finanças e Gestão Corporativa pela Universidade Candido Mendes e Bacharel em Ciências Contábeis, Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. RESUMO Analisa-se os reflexos do Princípio da Boa-Fé nos negócios jurídicos imobiliários. Para tanto, estuda-se, na primeira parte deste trabalho, a relação obrigacional como um processo complexo, considerando-se seus aspectos estático e dinâmico que, em conjunto, tornam possível a compreensão dos diversos “deveres” que compõem a relação tomada como uma totalidade concreta. Na segunda parte, estuda-se a boa-fé objetiva, distinguindo-a, inicialmente, da boa-fé subjetiva, para se adentrar, logo após, na análise de suas funções e dos reflexos destas no direito obrigacional e, particularmente, na responsabilidade pré-contratual. Na terceira, e última parte, estuda-se, por fim, a incidência do regramento da boa-fé nos negócios imobiliários desvelados nas suas diversas fases. Palavras-Chave: Princípio da Boa-Fé, Relação Obrigacional, Boa-Fé Subjetiva, Boa-Fé Objetiva, Responsabilidade Pré-Contratual, Negócios Jurídicos, Negócios Imobiliários.

SUMÁRIO: 1. Introdução – 2. A Relação obrigacional como um processo complexo – 3. A

boa-fé objetiva e a transfiguração do direito obrigacional – 3.1 A distinção entre boa-fé

subjetiva e boa-fé objetiva – 3.2 As funções da boa-fé objetiva e seus reflexos no direito

obrigacional – 3.3 A boa-fé objetiva e a responsabilidade pré-negocial ou pré-contratual – 4.

A incidência da boa-fé nos negócios jurídicos imobiliários – 4.1 Breves considerações sobre o

negócio imobiliário – 4.2 A regra da boa-fé nos negócios imobiliários – 5. Conclusão –

Referências Bibliográficas.

1 INTRODUÇÃO

Ao tratar do princípio da boa-fé e da probidade, Carlos Roberto Gonçalves, ao se

reportar ao art. 422 do Código Civil, dispõe que:

O princípio da boa-fé exige que as partes se comportem de forma correta não só durante as tratativas, como também durante a formação e o cumprimento do contrato. Guarda relação com o princípio de direito segundo o qual ninguém pode beneficiar-se da própria torpeza. Recomenda ao juiz que presuma a boa-fé, devendo a má-fé, ao contrário, ser provada por quem a alega. Deve este, ao julgar demanda na qual se discuta a relação contratual, dar por pressuposta a boa-fé objetiva, que impõe ao contratante um padrão de conduta, de agir com retidão, ou seja, com probidade, honestidade e lealdade, nos moldes do homem comum, atendidas as peculiaridades dos usos e costumes do lugar1.

Neste sentido, a regra da boa-fé se apresenta como uma cláusula geral para a aplicação

do direito obrigacional, permitindo que se dê soluções aos casos concretos, levando-se em

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consideração fatores metajurídicos e princípios jurídicos gerais. Assim, a reformulação

operada sobre o novo código civil, com base nos princípios da socialidade, eticidade e

operabilidade, impôs uma releitura dos princípios que incidem sobre os contratos, tais como,

o estado de perigo, a lesão, a onerosidade excessiva, a função social dos contratos como

preceito de ordem pública e, notadamente, a boa-fé e a probidade, conduzindo o operador do

direito ao abandono da diretriz individualista do antigo ordenamento.

Esclarece o mencionado Autor, ademais, que a probidade, preceituada no art. 422 do

Código Civil de 2002, nada mais é do que um dos aspectos objetivos do princípio da boa-fé,

denotando “a honestidade de proceder ou a maneira criteriosa de cumprir todos os deveres

que são atribuídos ou cometidos à pessoa”2.

Daí se conclui, sem maiores problemas, que o exame da probidade se materializa de

forma subjacente ao próprio estudo da boa-fé, mas evidencia-se, por essencial ao tema, que o

princípio da boa-fé, doutrinariamente, se subdivide em duas vertentes, o da boa-fé subjetiva e

o da boa-fé objetiva, cada qual com diferentes conseqüências sobre os negócios jurídicos em

geral e, em especial, sobre os imobiliários.

Nada obstante, tem-se que a boa-fé que revolucionou o Código Civil de 2002,

provocando profundas transformações no denominado direito obrigacional clássico, é a

objetiva, constituindo-se em uma norma jurídica fundada em um princípio geral do direito,

que se transmutou, modernamente, numa cláusula geral, segundo a qual todos têm o dever de

agir com honestidade, lealdade e probidade em suas relações recíprocas, exsurgindo, pois,

como regra de conduta a todos imposta3.

E é justamente esta segunda acepção que interessa especialmente ao presente estudo,

na medida em que é ela, a boa-fé objetiva, que impõe que as partes contratantes devem se

orientar, em suas relações jurídicas, em concordância com a linha mestra traçada pela

honestidade, pela retidão, pela lealdade e pela consideração mútua, com vistas ao perfeito

processamento dos negócios jurídicos imobiliários, escopo que são desta pesquisa.

Desta forma, buscar-se-á estabelecer, nos próximos tópicos, os fundamentos

doutrinários que, supostamente, autorizariam e, mais do que isso, conduziriam a ampla e

irrestrita aplicação do princípio da boa-fé nos negócios imobiliários, enfrentando, para isso,

desde a relação obrigacional (sua origem e múltiplos aspectos), passando pela investigação da

regra da boa-fé (distinção entre boa-fé subjetiva e boa-fé objetiva; peculiaridades, funções e

incidência, da boa-fé objetiva, nas fases pré e pós-contratual), e culminando, por fim, na

análise dos negócios imobiliários e seu processamento sob o enfoque da boa-fé objetiva. Sem

se olvidar, da análise da aplicação do princípio da boa-fé pela jurisprudência pátria.

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2 A RELAÇÃO OBRIGACIONAL COMO UM PROCESSO COMPLEXO

De acordo com os ensinamentos de Judith Martins-Costa, na concepção estática da

relação obrigacional que a apresenta basicamente como um vínculo, revela-se, tão somente, o

seu aspecto externo, conformado por seus elementos, quais sejam: os sujeitos, o objeto e o

vínculo de sujeição que liga o devedor ao credor, o crédito e a dívida.4

Esta análise externa, segundo a Autora, nada diz sobre a estrutura dos múltiplos

deveres, estados, situações e poderes que decorrem do vínculo, aspectos estes que, em seu

conjunto, convencionou-se denominar de aspecto interno, e que além de examinar estes

pontos, volta-se ao exame da conduta concreta das partes no dinâmico processo de

desenvolvimento da relação obrigacional.5

Convém salientar que a perspectiva estática da relação obrigacional é atomística e

advém da primeira grande concepção de obrigação gerada no direito romano, sendo, portanto,

oposta à concepção de totalidade. Ela consagra a idéia de que a obrigação é um vínculo

jurídico que constringe uma parte a fazer algo em favor de outra consoante definida nas

Institutas de Justiniano.6

Já a partir de uma “nova” concepção, a relação obrigacional pode ser tida como um

todo que vai além do que prescreve a lei, sendo mais do que uma relação de prestação isolada,

mas, de outro modo, uma relação jurídica total, fundamentada por um fato determinado,

contrato concreto de compra e venda, por exemplo, e que se configura como uma relação

jurídica especial entre as partes7.

Nessa linha, ainda que, indubitavelmente, o vínculo obrigacional seja bipolar, ele não

pode ser visto de uma perspectiva puramente atomística e estática. E isto se afirma porque o

conceito de obrigação engloba, constante e progressivamente, os elementos de todas as

relações obrigacionais concretas que se apresentam na prática jurídico-social. Por esta forma,

diz-se que pode a relação obrigacional, no transcorrer de sua existência, gerar outros direitos e

deveres que não apenas aqueles expressos na hipótese legal ou no título. A relação

obrigacional pode assim importar na criação de outros ônus jurídicos e deveres laterais ou

anexos e secundários ao dever principal, aos quais corresponderão, por sua vez, outros

direitos subjetivos não previstos nem na lei e nem no título8.

Neste sentido, como decorrência da apreensão da totalidade concreta da relação

obrigacional, tem-se que a mesma passa a ser percebida como um vínculo dinâmico,

exatamente pelo fato de englobar, em seu curso, todas as vicissitudes, casos e problemas que

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podem a ela ser reconduzidas. Sendo ademais um vínculo que se movimenta processualmente,

uma vez que é criada e desenvolvida com uma finalidade específica, concretizando-se em

fases distintas, passando pelo seu nascimento, pelo seu desenvolvimento e culminando em seu

adimplemento9.

Nesta acepção, assevera Judith Martins-Costa que:

A concepção da obrigação como um processo e como uma totalidade concreta põe em causa o paradigma tradicional do direito das obrigações, fundado na valorização jurídica da vontade humana, e inaugura um novo paradigma para o direito obrigacional, não mais baseado exclusivamente no dogma da vontade (individual, privada ou legislativa), mas na boa-fé objetiva10.

Destarte, o vínculo obrigacional considerado em sua totalidade congrega um complexo

de direitos, deveres, sujeições, pretensões, obrigações, exceções, ônus jurídicos, legítimas

expectativas, dentre outros aspectos, que não derivam, necessariamente, da declaração

negocial ou de uma regra legal específica, mas que são atinentes à concreção de princípios e

standards de cunho social e constitucional. Tais aspectos devem, pois, a sua existência às

exigências do tráfico jurídico-social viabilizadas pelo princípio da boa-fé objetiva que,

notadamente, quando inserido em cláusula geral, pode materializar o efetivo conteúdo destes

“deveres laterais”11.

Por outro lado, apreender-se a relação obrigacional como um vínculo que se

movimenta processualmente ou, utilizando-se de outra expressão, assimilar-se a obrigação

como processo, objetiva relevar o caráter dinâmico da obrigação, as várias fases que surgem

no desenvolvimento da relação obrigacional e que entre si se ligam com interdependência, o

complexo de atividades necessárias para a satisfação do interesse do credor, o conjunto de

atos interligados que se dirigem ao adimplemento, finalidade precípua da própria existência

do vínculo12.

Outro aspecto, não menos significativo, diz respeito aos questionamentos endereçados

às possíveis origens da relação obrigacional. Relativamente a estes, o atual declínio do

voluntarismo abre diversas possibilidades de respostas, desde as já tradicionalmente presentes

na doutrina, tais como, as que defendem que a relação obrigacional ou nasce da vontade (do

contrato) ou da lei (do delito) ou as que admitem que a obrigação pode florescer de atos

existenciais, sendo nestes, especificamente, descabida a pesquisa do elemento volitivo em

função da objetivação produzida pela incidência de fatores sociais típicos da sociedade

contemporânea13.

Evidencia-se, no caso dos atos existenciais, que não se trata do reconhecimento de

uma relação de fato, mas de se estabelecer se é possível qualificar, como oferta ou como

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aceitação, o comportamento típico de um sujeito em certas situações próprias das sociedades

de massas14.

Neste ponto, a doutrina mais conservadora vê, nos comportamentos socialmente

típicos, a conformação dos elementos próprios da declaração de vontade; enquanto que a

doutrina mais inovadora sustenta que a lei, o princípio da boa-fé ou mesmo o costume,

determinam, de modo autônomo, os efeitos do comportamento sem vinculá-los à vontade das

partes, sendo, nestas hipóteses, irrelevante a perquirição do elemento volitivo, na medida em

que, hodiernamente, a utilização de bens e serviços massificados ocasiona algumas vezes

comportamentos que, pelo seu significado social típico, produzem as conseqüências jurídicas

de uma negociação, mas que dela se distinguem15.

Segundo esta última corrente, mais progressista, a natureza jurídica dos atos

existenciais seria de ato-fato, e não de negócio, mas que gerariam, entretanto, efeitos

negociais típicos. Propõem os doutrinadores que a ela convergem, de forma marcante, Clóvis

do Couto e Silva, que a origem da relação obrigacional, em qualquer de suas espécies, situe-se

na categoria do contato social, por considerá-lo fattispecie de maior grau de abrangência a

englobar as obrigações advindas dos contratos, dos delitos e dos atos existenciais. Para Couto

e Silva é perfeitamente factível a classificação que tem o contato social como fonte imediata

de todos os deveres obrigacionais; e como fontes mediatas, a lei, o delito, a vontade e os

princípios da boa-fé objetiva e a da função social do contrato.16

A importância desta nova vertente doutrinária esta em nela se encontrar uma resposta

à crise do clássico paradigma da autonomia privada como fonte exclusiva de criação de

relações obrigacionais, na medida em que esta se mostrou insuficiente para explicar a

existência dos diversos “deveres” que compõem a relação obrigacional como uma totalidade

concreta, e que não encontram a sua fonte nem na declaração negocial e nem na autonomia da

vontade, mas que a encontram, diferentemente, na função social dos contratos e na boa-fé

objetiva, sobre o qual se desenvolverá o próximo tópico de estudo17.

3 A BOA-FÉ OBJETIVA E A TRANSFIGURAÇÃO DO DIREITO OBRIGACIONAL

Antes, porém, de se ater à análise da força transformadora da boa-fé objetiva tendo-se

por pano de fundo o direito obrigacional clássico, importa salientar, ainda que com brevidade,

as linhas gerais que distinguem a boa-fé subjetiva da boa-fé objetiva, conforme se verá a

seguir.

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3.1 A distinção entre boa-fé subjetiva e boa-fé objetiva

Como preleciona, Carlos Roberto Gonçalves, “o princípio da boa-fé se biparte em boa-

fé subjetiva, também chamada de concepção psicológica da boa-fé, e boa-fé objetiva, também

denominada concepção ética da boa-fé”18.

Ampliando, contudo, a reflexão, dispõe Judith Martins-Costa que:

A expressão ‘boa-fé subjetiva’ denota ‘estado de consciência’, ou convencimento individual de obrar [a parte] em conformidade ao direito [sendo] aplicável, em regra, ao campo dos direitos reais, especialmente em matéria possessória. Diz-se ‘subjetiva’ justamente porque, para a sua aplicação, deve o intérprete considerar a intenção do sujeito da relação jurídica, o seu estado psicológico ou íntima convicção. Antitética à boa-fé subjetiva está a má-fé, também vista subjetivamente como a intenção de lesar a outrem. Já por ‘boa-fé objetiva’ se quer significar – segundo a conotação que adveio da interpretação conferida ao § 242 do Código Civil Alemão, de larga força expansionista em outros ordenamentos, e, bem assim, daquela que lhe é atribuída nos países da common law – modelo de conduta social, arquétipo ou standard jurídico, segundo o qual ‘cada pessoa deve ajustar a própria conduta a esse arquétipo, obrando como obraria um homem reto: com honestidade, lealdade, probidade’. Por este modelo objetivo de conduta levam-se em consideração os fatores concretos do caso, tais como o status pessoal e cultural dos envolvidos, não se admitindo uma aplicação mecânica do standard, de tipo meramente subsuntivo19.

Elucida-se, pois, que a boa-fé subjetiva tem o sentido de uma condição psicológica

que normalmente se concretiza no convencimento do próprio direito ou na ignorância de se

estar lesando direito alheio ou na adstrição à literalidade do pactuado, enquanto que ao

conceito de boa-fé objetiva estão subjacentes as idéias e ideais que animaram a boa-fé

germânica, quais sejam, a de boa-fé como regra de conduta fundada na honestidade, na

retidão, na lealdade e, principalmente, na consideração para com os interesses do “alter”,

visto como um membro do conjunto social que é juridicamente tutelado20.

Parafraseando, para uma melhor compreensão da expressão, Judith Martins-Costa:

A boa-fé subjetiva denota, portanto, primariamente, a idéia de ignorância, de crença errônea, ainda que escusável, acerca da existência de uma situação regular, crença (e ignorância escusável) que repousam seja no próprio estado (subjetivo) da ignorância (as hipóteses do casamento putativo, da aquisição da propriedade alheia mediante a usucapião), seja numa errônea aparência de certo ato (mandato aparente, herdeiro aparente etc.). Pode denotar, ainda, secundariamente, a idéia de vinculação ao pactuado, no campo específico do direito contratual (...)21.

E mesmo que se trate de um princípio cujo conteúdo não possa ser rigidamente fixado,

uma vez que a sua aplicação dependerá sempre da análise do caso concreto, tem-se que a boa-

fé objetiva, incontestavelmente, traz em seu bojo regra de caráter marcadamente técnico-

jurídico, na medida em que viabiliza a solução de casos particulares no quadro dos demais

modelos jurídicos postos em cada ordenamento22.

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De todo o exposto, pode-se apreender, sem qualquer dificuldade, que a boa-fé pode ser

tanto forma de conduta (subjetiva ou psicológica) como norma de comportamento (objetiva),

distinção que, apesar de aparentemente simples, importa particularmente à identificação e

composição das regras fundamentais (e, portanto inafastáveis pela tão só vontade das partes)

que devem nortear o processamento de todo e qualquer negócio jurídico, principalmente

quando se tem em mira a conduta das partes.

Ponto de relevo, também, é o fato de que enquanto fonte normativa, a boa-fé objetiva

desempenha funções técnicas específicas que se evidenciam em cada relação contratual

concretamente considerada. Neste sentido, são, tradicionalmente, imputadas à boa-fé objetiva

três funções distintas, quais sejam: a de cânone hermenêutico-integrativo do contrato, a de

norma de criação de deveres jurídicos e a de norma de limitação ao exercício de direitos

subjetivos, funções estas que serão objeto de investigação no tópico seguinte23.

3.2 As funções da boa-fé objetiva e seus reflexos no direito obrigacional

Como já se salientou, anteriormente, o princípio da boa-fé objetiva possui 3 (três)

funções técnicas que lhe são tradicionalmente imputadas, quais sejam a de cânone

hermenêutico-integrativo do contrato, a de norma de criação de deveres jurídicos e a de norma

de limitação ao exercício de direitos subjetivos, conforme se explicitará a seguir.

Em sua função hermenêutico-integrativa, concebe-se a boa-fé como kanon hábil ao

preenchimento de lacunas, uma vez que as relações contratuais são compostas de eventos e

situações, fenomênicos e jurídicos, nem sempre previstas ou previsíveis pelos contratantes24.

Assim sendo, tem-se que a boa-fé, como cânone hermenêutico-integrativo, atua frente à

necessidade de se qualificar os comportamentos não previstos das partes contratantes, mas

que são essenciais à própria salvaguarda da fattispecie contratual e à plena produção dos

efeitos objetivamente pactuados25.

Já em sua função de norma de criação de deveres jurídicos, ensina, inicialmente, a

doutrina que compõem as relações contratuais certos deveres de prestação, os quais se

subdividem nos denominados deveres principais ou deveres primários de prestação (que em

conjunto se constituem no núcleo da relação obrigacional e definem o tipo contratual),

deveres secundários e deveres laterais, anexos ou instrumentais26. Nada obstante, são os

deveres instrumentais ou laterais ou deveres acessórios de conduta, deveres de conduta,

deveres de proteção ou deveres de tutela que, segundo Mario Julio de Almeida Costa,

derivam ou de cláusula contratual ou de dispositivo de lei ou da incidência da boa-fé

objetiva27. Importando salientar, aqui, que os deveres instrumentais se constituem em deveres

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que incumbem tanto ao devedor quanto ao credor, não estando orientados diretamente ao

cumprimento da prestação ou dos deveres principais, como ocorre com os deveres

secundários, mas, antes, atinentes ao exato processamento da relação obrigacional, ou seja, à

satisfação dos interesses globais envolvidos, em atenção a uma identidade finalística28.

Caracterizam-se, por conseguinte, os deveres instrumentais, por uma função auxiliar

da realização positiva do fim contratual e de proteção à pessoa e aos bens da outra parte

contra os riscos de danos concomitantes29. Tratam-se, por assim dizer, de “deveres de adoção

de determinados comportamentos, impostos pela boa-fé em vista do fim do contrato (...) dada

a relação de confiança que o contrato fundamenta, comportamentos variáveis com as

circunstâncias concretas da situação”30.

E arremata Judith Martins-Costa, explicando que “ao ensejar a criação desses deveres,

a boa-fé atua como fonte de integração do conteúdo contratual, determinando a sua

otimização, independentemente da regulação voluntaristicamente estabelecida”31.

Retornando, então, ao ponto de partida deste estudo, enfatiza-se que a concretização

desses ditos deveres instrumentais põe em relevo a concepção da relação obrigacional como

totalidade e como um processo, porquanto, normalmente, eles se conformam no transcorrer da

relação obrigacional ou, em especial, no desenvolvimento da vida do contrato32.

Por fim, pode-se dizer que a boa-fé em sua função limitadora ao exercício de direitos

subjetivos, encontra seu fundamento no fato de que o contrato, diversamente do que ocorria

no passado (tomado, hodiernamente, como instrumento por excelência da relação

obrigacional e como veículo jurídico de operações econômicas de circulação de riqueza), não

é mais apreendido desde uma perspectiva dogmática na qual prevalece a autonomia da

vontade, mas, de outra forma, como uma relação de cooperação entre as partes,

processualmente polarizada por sua finalidade. Neste contexto, o contrato, seja de direito

público ou privado, informa-se pela função social que lhe é atribuída pelo ordenamento

jurídico, revelando, por isto mesmo, a boa-fé como norma que não admite condutas que

contrariem o mandamento de agir com lealdade e correção, pois só assim se atingirá a função

social que lhe é atribuída33.

Apenas a título de ilustração, no campo do direito de resolução, a boa-fé como norma

de inadmissibilidade do exercício de direitos que a ela se contraponham, revela-se, por

exemplo, nos casos de adimplemento substancial do contrato e nos que admitem a exceção de

contrato não cumprido (exceptio non adimpleti contractus), mas, particularmente, neste

último caso, quando amparada na chamada Teoria dos Atos Próprios (que se desdobra em

duas vertentes doutrinárias, quais sejam, na regra do tu quoque34 e na que é expressa pela

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máxima que proíbe o venire contra factum proprium35), “segundo a qual se entende que a

ninguém é lícito fazer valer um direito em contradição com a sua anterior conduta

interpretada objetivamente segundo a lei, segundo os bons costumes e a boa-fé, ou quando o

exercício posterior se choque com a lei, os bons costumes e a boa-fé”36.

Voltar-se-á o próximo item à análise da incidência da boa-fé objetiva na chamada fase

pré-contratual, onde se desenha nova revolução no campo obrigacional.

3.3 A boa-fé objetiva e a responsabilidade pré-negocial ou pré-contratual

Com base nas lições de Judith Martins-Costa, adverte-se, desde já, que o campo de

operação da responsabilidade pré-negocial ou pré-contratual não se confunde com os dos

denominados pré-contratos ou contratos preliminares, uma vez que o inadimplemento de pré-

contrato resulta em responsabilidade contratual, e isto porque ínsito a ele existe uma

obrigação de fazer (qual seja, a de celebrar o contrato definitivo), sendo esta a obrigação

descumprida, ao passo que a responsabilidade pré-negocial permeia o espaço do “ainda-não-

contrato” ou, melhor dizendo, o espaço do “trato”37.

A importância da discussão está no fato de que neste último caso não existe

vinculação contratual, podendo haver, contudo, sob certas condições, vinculação

obrigacional, desde que presentes, in concreto, as categorias jurídicas da proposta (ou oferta)

e da aceitação, negócios jurídicos unilaterais receptícios que se aperfeiçoam na formação do

vínculo contratual38.

Como se pode perceber, por conseguinte, outra fase de crucial importância é a que

antecede a da proposta e da aceitação, e que a doutrina convencionou denominar de fase

formativa do contrato, consubstanciando com aquela, contratual propriamente dita, 2 (dois)

momentos bem delimitados: o da formação progressiva do acordo e o da fusão das

declarações negociais (que integra e constitui o contrato, através do elemento “recepção”). E

o interesse nessa fase formativa está justamente porque é nela que estão situados os elementos

catalisadores da responsabilidade pré-negocial, e que podem ensejar, no caso concreto, a

responsabilidade derivada da ruptura das negociações, com fundamento na ruptura

injustificada e na conseqüente fraude à confiança legítima39.

Neste ponto, surge questão de relevo a ser considerada, de que é evidente que nem

todos os atos praticados na fase pré-negocial geram a responsabilidade civil, uma vez que se

faz imprescindível a configuração do dano e do nexo de causalidade que o conjugará ao ato

ou omissão imputável a um dos sujeitos da relação. Ademais, exige-se que este ato tenha tido

a força de gerar, na parte lesada, a confiança legítima na conclusão do contrato ou na sua

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validade e/ou eficácia. Tudo dependerá da análise do caso concreto, que poderá desvelar a

existência de dano decorrente da quebra de confiança, por terem sido infringidos deveres

jurídicos que a tutelam, e a materialização da conduta injustificada, quando da ruptura das

negociações, ambas a consubstanciarem a responsabilidade pré-negocial40.

Tem-se aí, a base da doutrina da culpa in contrahendo, formulada por Jhering,

segundo a qual há responsabilidade pré-negocial sempre que:

O comportamento de uma das partes na fase das tratativas, induzindo a confiança da outra de que tal procedimento seria adotado, ou omitindo informações de importância capital para que a outra parte possa decidir em relação ao negócio jurídico a ser realizado, ou ainda deixando de mencionar circunstâncias que acabariam forçosamente por produzir a invalidade do contrato”, gerando, assim, “o dever de indenizar”41.

E aperfeiçoa Judith Martins-Costa, ensinando que os deveres que se violam na

responsabilidade pré-negocial, não são os deveres (obrigações) principais decorrentes do

contrato, mas, de outro modo, aqueles deveres ditos instrumentais, que em algumas hipóteses

preexistem à formação do vínculo negocial, tais como, os deveres de cooperação, de não-

contradição, de lealdade, de sigilo, de correção, de informação e esclarecimento, todos, em

resumo, deveres derivados da boa-fé objetiva como mandamento de respeito à legítima

confiança despertada no futuro contratante e de tutela aos seus interesses42.

Fruto da construção operada por Jhering, ademais, é a definitiva inserção no direito

obrigacional da idéia da conformação de um específico dever de diligência na fase

antecedente à da formação do contrato. E isto se concluiu, em razão da proximidade existente,

na escala do contato social, entre os negociadores de um contrato, a autorizar o entendimento

de que este “dever” pauta-se na confiança que deve orientar o tráfego jurídico para que as

relações econômico-sociais possam se desenvolver com normalidade. Hodiernamente,

contudo, apreende-se um campo de incidência bem mais vasto para o instituto da culpa in

contrahendo, estendendo-se a responsabilidade para as hipóteses de danos decorrentes do

processo formativo, por infringência aos deveres instrumentais de comunicação ou

informação, de custódia, de segredo e de conservação do negócio, e para aquelas situações de

ruptura injustificada da fase negociatória ou decisória, desde que, neste último caso, tenha-se

criado na contraparte, como já se firmou antes, a fundada expectativa de que o negócio seria

realizado43.

Após o enfrentamento da questão da boa-fé objetiva, analisar-se-á, no próximo item,

as implicações nos negócios imobiliários da incidência deste princípio.

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4 A INCIDÊNCIA DA BOA-FÉ NOS NEGÓCIOS JURÍDICOS IMOBILIÁRIOS

Neste tópico, analisar-se-á a aplicação do princípio da boa-fé aos negócios jurídicos

imobiliários, mas não, sem antes, delimitar-se o próprio raio de ação do que se convencionou

denominar negócio imobiliário.

4.1 Breves considerações sobre o negócio imobiliário

Preliminarmente, Pedro Elias Avvad, reportando-se à doutrina do civilista Roberto

Ruggiero, expõe que “negócio jurídico é uma declaração de vontade do indivíduo tendente a

um fim protegido na lei”. Contudo, destaca, o Autor, a importante distinção que há entre

negócio jurídico e ato jurídico, chamando, ainda, a atenção para o fato de que o primeiro

inclui-se na classificação deste último44.

No âmbito do ato jurídico, compreender-se-iam os atos jurídicos não negociais ou

atos jurídicos strictu sensu que abrangem aqueles atos cujos efeitos jurídicos ocorrem sem

que, no entanto, o agente tenha a intenção de produzi-los. Os atos jurídicos em sentido estrito,

como espécies de manifestações de vontade obedientes à lei, geram, por conseguinte, efeitos

que nascem da própria lei. Enquanto que o negócio jurídico é a declaração de vontade em que

o agente persegue um determinado efeito jurídico (contrato de compra e venda, por

exemplo)45.

Por esta forma, os negócios imobiliários, como especializações dos negócios jurídicos

em sentido amplo, abarcariam os negócios jurídicos que têm por objeto imóveis e que, por

isto mesmo, estão intimamente vinculados à idéia de contrato46.

Conceitua Avvad, com base no exposto, os negócios imobiliários como aqueles

negócios jurídicos que têm, direta ou indiretamente, por objeto um bem imóvel, ou direitos a

ele relativos47.

Nesta direção, pode-se afirmar que os negócios imobiliários não se restringem àqueles

que tem por objeto os direitos reais sobre imóveis, mas que, diversamente, incluem, em seu

bojo, direitos de natureza pessoal que se refiram à propriedade ou a alguns de seus atributos

ou que visem, ainda, à futura realização de contratos imobiliários48.

Enquadram-se no âmbito dos negócios imobiliários, portanto, a corretagem na venda

ou na locação de imóveis, o contrato de incorporação imobiliária, a alienação fiduciária em

garantia, a constituição de condomínio especial e o seu funcionamento, dentre outros49.

No próximo item, analisar-se-á a aplicação, e conseqüentes reflexos, da regra da boa-

fé objetiva no processamento dos negócios imobiliários.

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4.2 A regra da boa-fé nos negócios imobiliários

Neste ponto do estudo, torna-se fácil perceber que os negócios imobiliários, não se

afastando das linhas gerais do Código Civil de 2002, mas que, pelo contrário, materializando-

se, simplesmente, como contratos especiais pelo objeto, orientados, portanto, pelas mesmas

inovações que são imanentes ao novo diploma civil (mormente por aquelas que inspiram a

ampliação ou a releitura dos princípios aplicáveis à operabilidade dos negócios jurídicos, em

geral, e dos imobiliários, aqui tomados em particular), não lhes seria possível, por sua própria

natureza, contradizerem ou afastarem-se, em seus processamentos, da boa-fé considerada em

quaisquer de seus possíveis ângulos, como antes analisados.

Neste ínterim, aplica-se a boa-fé, nos negócios imobiliários, em todos os seus aspectos

e fases, abrangendo desde as tratativas pré-negociais, a formação do contrato e, culminando,

com a execução ou adimplemento contratual. Em todos estes estágios, devem os negociadores

e, ulteriormente, os contratantes pautar-se, em tudo quanto diga respeito às relações

recíprocas, pela honestidade, lealdade e probidade, atributos estes que devem orientar, em

qualquer tempo, o tráfego de todos os negócios jurídicos e, porque não dizer, de todas as

relações humanas, com vistas à construção de uma sociedade livre, justa e solidária, através,

dentre outras ações, da promoção do bem comum, que se fará sempre com fundamento na

dignidade da pessoa humana e nos valores sociais do trabalho e da livre iniciativa (arts. 1º e

3º, da CRFB/1988).

No mesmo caminho, ensina Luiz Roldão de Freitas Gomes, baseado nas idéias de Karl

Larenz que:

O princípio da boa-fé significa que todos devem guardar fidelidade à palavra dada e não frustrar ou abusar da confiança que constitui a base imprescindível das relações humanas, sendo, pois, mister que procedam tal como deve esperar-se que o faça qualquer pessoa que participe honesta e corretamente ao tráfico jurídico, no quadro de uma vinculação jurídica especial50.

Traduz-se a boa-fé, como se apercebe, no dever de cada parte agir de forma a não lesar

ou frustar a confiança do outro. E é por isso que se afirma, que a tutela da confiança que

fundamenta a boa-fé está ligada àquele aspecto do processamento da relação obrigacional, e

dos negócios imobiliários, em especial, que não comporta exaurimento na verba legis ou na

contratual, que não podem, por suas próprias limitações, tudo prever e regular, “pondo em

xeque”, definitivamente, a falácia do pensamento positivista que proclamava a prevalência da

autonomia da vontade sobre outros aspectos inerentes, e não menos importantes, à formação

dos negócios jurídicos, pretendendo, como se possível fosse, nela esgotar as múltiplas facetas

da realidade social51.

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Essa releitura dos princípios que impulsionam as relações obrigacionais, e, sobretudo,

os negócios imobiliários, dinâmicos por excelência, põe-se, ademais, em perfeita sintonia com

a nova realidade social das ditas sociedades pós-modernas, tipicamente de massas, que

permeadas por infindável número de relações econômico-sociais, incluindo-se dentre elas as

denominadas relações de consumo, necessitam, para a sua própria segurança e para a

manutenção do equilíbrio social, do pleno respeito, como mandamento superior, aos aludidos

deveres anexos, como instrumentos viabilizadores do bem-estar social.

Neste entremeio, exsurge, como sobredito, o atual Código Civil que se constituindo

num sistema aberto, instituiu cláusulas gerais aplicáveis à interpretação dos negócios

jurídicos, com especial destaque à sua aplicação nos contratos imobiliários por sua

importância econômico-social e sua imprescindibilidade para a concretização da dignidade da

pessoa humana (como se apresenta na hipótese do direito fundamental à moradia, por

exemplo). Outrossim, tais cláusulas remetem o intérprete para um padrão de conduta que é

geralmente aceito em determinado tempo e lugar, comportando um padrão de conduta

comum, atinente ao homem médio, cuja análise não desconsidera o caso concreto e nem os

aspectos sociais envolvidos.

De modo mais perceptível, sobreleva-se, neste contexto, a boa-fé objetiva por

representar exatamente esta regra de conduta, este deve de agir de acordo com determinados

padrões sociais estabelecidos e reconhecidos52.

Este sistema preordenado de tipificações abertas ou descrições legais de conduta

assume posição de proeminência na aplicação do direito ao reequilíbrio social, o que não

significa opção pelo desprezo à boa-fé subjetiva, mas, sim, que se concede especial atenção às

condicionantes positivas do trato social dirigidas especificamente à conformação das relações

jurídicas que se amoldam ao rótulo de negócios jurídicos, com foco, aqui, nos imobiliários53.

Sendo assim, seja nas tratativas, na execução, assim como na fase pós-obrigacional ou

pós-contratual, a boa-fé objetiva é e sempre será fator basilar de interpretação dos negócios

jurídicos imobiliários, impondo-se à jurisprudência a difícil tarefa de delimitar o alcance das

regras abertas do novo diploma civil, o que se avaliará nos exemplos abaixo54:

SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA AgRg no AgRg no AGRAVO DE INSTRUMENTO Nº 610.607 - MG (2004/0074476-0) EMENTA AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO DE INSTRUMENTO. CIVIL. LOCAÇÃO. IMÓVEL LOCADO PELO NU-PROPRIETÁRIO. BOA-FÉ OBJETIVA. LEGITIMIDADE DO LOCADOR PARA EXECUTAR OS ALUGUÉIS EM ATRASO. AGRAVO REGIMENTAL IMPROVIDO. 1. Na espécie, não se aplicam os Enunciados 5 e 7 da Súmula do Superior Tribunal de Justiça, porquanto a decisão agravada, ao decidir a matéria, não interpretou

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cláusula contratual nem reexaminou o quadro fático dos autos, pois cingiu-se a analisar a legitimidade do nu-proprietário para executar débitos relativos a contrato de locação de imóvel objeto de usufruto. 2. Uma das funções da boa-fé objetiva é impedir que o contratante adote comportamento que contrarie o conteúdo de manifestação anterior, cuja seriedade o outro pactuante confiou. 3. Celebrado contrato de locação de imóvel objeto de usufruto, fere a boa-fé objetiva a atitude da locatária que, após exercer a posse direta do imóvel por mais de dois anos, alega que o locador, por ser o nú-proprietário do bem, não detém legitimidade para promover a execução dos aluguéis não adimplidos. 4. Agravo regimental improvido. SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA RECURSO ESPECIAL Nº 960.748 - RJ (2006/0262945-4) EMENTA CIVIL. PROCESSUAL CIVIL. ART. 535 DO CPC. OFENSA. INEXISTENTE. INCORPORAÇÃO IMOBILIÁRIA. RESCISÃO CONTRATUAL. RESTITUIÇÃO PARCELAS PAGAS. LEI 4.591/64, Art. 40, § 2º. RESTITUIÇÃO DEVIDA, LIMITADA AO VALOR AGREGADO A OBRA. PRECEDENTE. - O Art. 535 do CPC não é maltratado, quando o acórdão recorrido decide com clareza, precisão e fundamentadamente as questões pertinentes. - Se o ex-titular não causou a rescisão, tem direito de receber o que pagou na construção de seu imóvel. Nos termos do Art. 40, § 2º da Lei 4.591/64, não são todos os valores pagos, mas apenas os utilizados na construção, descontados, os itens não relacionados com a obra a serem apurados em execução de sentença.

A controvérsia acima se apresentou, em resumo, da seguinte forma: o Sr. HBA Filho

exerceu ação ordinária contra Carvalho Hosken S/A Engenharia e Construções e Encol S/A,

visando desconstituir promessa de compra e venda de unidade habitacional, pedindo o

ressarcimento do valor total pago. Em seus fundamentos, o Autor alegou que, com a “quebra”

da Encol, recebeu correspondência noticiando que a obra não seria concluída no prazo.

Por seu turno, a Carvalho Hosken era proprietária do terreno e prometeu vendê-lo à

Encol, tendo ficado acordado que o preço seria pago em apartamentos a serem construídos no

local. Em decorrência dos “problemas” com a Encol, o negócio foi desfeito com a reversão do

terreno à alienante proprietária (Carvalho Hosken) com as acessões até então ali plantadas.

Entretanto, a Carvalho Hosken assumiu o trabalho de concluir a obra, enquanto que,

de sua parte, o Autor (HBA Filho) já havia amortizado parte do preço da unidade habitacional

compromissada, tendo, por isso mesmo, contribuído para a construção a ser continuada pela

Carvalho Hosken.

Assim, o Tribunal a quo (TJ-RJ / 2006/0262945-4) determinou que a Carvalho

Hosken restituísse integralmente o valor que o Autor desembolsara no contrato de compra e

venda firmado com a Encol e que foi rescindido com fulcro no art. 40 e seu § 2º da Lei nº

4.591/1964.

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Em seu voto, o Ministro Humberto Gomes de Barros, Relator do Recurso Especial nº

960.748 – RJ, asseverou que a rescisão das promessas leva as partes à situação anterior ao

contrato e, assim sendo, a cessão de promessa desaparece com o contrato principal, uma vez

que o derivado não subsiste sem o principal.

Afirmou, também, que o § 2º da Lei nº 4.591/1964, refere-se à circunstância de a

construção já estar desenvolvida, fazendo incidir, ao caso concreto, o preceito a que os

civilistas chamam boa-fé objetiva, e que determina que o dono do terreno pague ao adquirente

da unidade o valor da parcela de construção que haja adicionado à unidade. Não sendo

razoável, segundo o Relator, supor-se que essa parcela da construção só poderia ser

adicionada ao terreno com o investimento de todo o dinheiro que a promitente compradora do

terreno tenha recebido do Autor, comprador da unidade. Inexistindo, por estes motivos, base

legal para que se determine a devolução separada do valor que foi pago pela fração ideal, na

medida em que a lei não faz qualquer ressalva quanto ao pagamento separado desse valor.

Nestes termos, não se conheceu do recurso especial.

SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA RECURSO ESPECIAL Nº 1.096.639 - DF (2008/0218651-2) EMENTA DIREITO CIVIL. VIZINHANÇA. CONDOMÍNIO COMERCIAL QUE ADMITE UTILIZAÇÃO MISTA DE SUAS UNIDADES AUTÔNOMAS. INSTALAÇÃO DE EQUIPAMENTO POR CONDÔMINO QUE CAUSA RUÍDO. INDENIZAÇÃO DEVIDA. DANO MORAL FIXADO EM QUANTUM RAZOÁVEL. - O exercício de posições jurídicas encontra-se limitado pela boa-fé objetiva. Assim, o condômino não pode exercer suas pretensões de forma anormal ou exagerada com a finalidade de prejudicar seu vizinho. Mais especificamente não se pode impor ao vizinho uma convenção condominial que jamais foi observada na prática e que se encontra completamente desconexa da realidade vivenciada no condomínio. - A 'suppressio', regra que se desdobra do princípio da boa-fé objetiva, reconhece a perda da eficácia de um direito quando este longamente não é exercido ou observado. - Não age no exercício regular de direito a sociedade empresária que se estabelece em edifício cuja destinação mista é aceita, de fato, pela coletividade dos condôminos e pelo próprio Condomínio, pretendendo justificar o excesso de ruído por si causado com a imposição de regra constante da convenção condominial, que impõe o uso exclusivamente comercial, mas que é letra morta desde sua origem. - A modificação do quantum fixado a título de compensação por danos morais só deve ser feita em recurso especial quando aquele seja irrisório ou exagerado. Recurso especial não conhecido.

Há ainda outros exemplos de aplicação do regramento da boa-fé na solução de

conflitos estabelecidos em negócios imobiliários, e que foram veiculados em informativos do

Superior Tribunal de Justiça. Veja-se, então:

Informativo nº 0376

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Período: 10 a 14 de novembro de 2008. Segunda Turma CONTRATO. SFH. EFICÁCIA. TERCEIROS. Firmou-se contrato de mútuo habitacional (SFH) com o agente financeiro vinculado ao extinto BNH. Sucede que houve a cessão da posição contratual (devedor) por força de escritura de compra e venda na qual se ressalvava a existência de caução hipotecária dada ao BNH pelo agente financeiro, mediante endosso em cédula hipotecária. Então, os cessionários quitaram antecipadamente o saldo devedor, quitação essa passada pelo agente financeiro, autorizando-os a levantar o gravame hipotecário. Remanesceu, contudo, o direito real de caução sobre o crédito hipotecário. Porém, a CEF firmou contrato de novação com o agente financeiro (em liquidação extrajudicial) e adquiriu, entre outros, os direitos sobre a caução hipotecária constituída sobre o imóvel dos cessionários. Foi o inadimplemento do agente financeiro que gerou a pretensão de a CEF opor-se ao levantamento do gravame da caução, o que levou os cessionários a ingressar com ação ordinária contra a CEF, com o fito de liberá-los desse ônus real. Quanto a isso, veja-se que o princípio da relatividade dos efeitos dos contratos (res inter alios acta) tem sofrido mitigações mediante a admissão de que os negócios entre as partes, eventualmente, podem interferir (positiva ou negativamente) na esfera jurídica de terceiros. Essas mitigações dão-se pela doutrina do terceiro cúmplice, a proteção do terceiro diante dos contratos que lhe são prejudiciais ou mesmo pela tutela externa do crédito. Porém, em todos os casos, sobressaem a boa-fé objetiva e a função social do contrato. No caso, a cessão dos direitos de crédito à CEF deu-se após o adimplemento da obrigação pelos cessionários, negócio que se operou inter partes (devedor e credor). Assim, o posterior negócio entre a CEF e o agente financeiro não tem força para dilatar sua eficácia e atingir os devedores adimplentes. Aflora da interpretação dos arts. 792 e 794 do CC/1916 a necessidade de que os cessionários sejam notificados da cessão do título caucionado, com o desiderato de não pagarem em duplicidade, assertiva compartilhada pelas instâncias ordinárias. No entanto, não há, nos autos, prova de que a CEF tenha promovido a notificação. Por último, vê-se que a Súm. n. 308-STJ tem aplicação analógica ao caso e que os princípios da boa-fé objetiva, função social e os relativos à proteção das relações jurídicas também impedem a responsabilização dos cessionários. Com esse entendimento, a Turma, conheceu em parte do recurso da CEF e, nessa parte, negou-lhe provimento. REsp 468.062-CE, Rel. Min. Humberto Martins, julgado em 11/11/2008. Informativo nº 0375 Período: 3 a 7 de novembro de 2008. Segunda Turma SÚM. N. 84-STJ. EMBARGOS DE TERCEIRO. ADQUIRENTE. BOA-FÉ. É cediço que a jurisprudência deste Superior Tribunal tem protegido a promessa de compra e venda, ainda que não registrada em cartório (art. 530, I, do CC/ 1916), preservando-se o direito dos terceiros adquirentes de boa-fé (Súm. nº 84-STJ). Ressalta a Min. Relatora que, em se tratando de execução fiscal com penhora sobre imóvel, o marco a ser considerado é o registro da constrição no cartório competente (art. 659, § 4º, do CPC), uma vez que não se pode impor ao terceiro adquirente a obrigação quanto à ciência da execução tão-somente pela existência da citação do devedor. Assim, ausente o registro da penhora efetuada sobre o imóvel, não se pode concluir que houve fraude. Ademais, na hipótese dos autos, ficou comprovado que a venda do imóvel, ainda que sem registro, foi realizada antes do ajuizamento da execução fiscal, motivo pelo qual deve ser preservado o direito do terceiro de boa-fé. Com essas considerações, a Turma negou provimento ao recurso da Fazenda. Precedentes citados: REsp 739.388-MG, DJ 10/4/2006, e REsp 120.756-MG, DJ 15/12/1997. REsp 892.117-RS, Rel. Min. Eliana Calmon, julgado em 4/11/2008. Informativo nº 0210 Período: 24 a 28 de maio de 2004.

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Segunda Seção HIPOTECA. SFH. CONSTRUÇÃO. IMÓVEIS. ADQUIRENTE. UNIDADE AUTÔNOMA. Trata-se, na espécie, de um desses casos em que a construtora não honra seus compromissos perante o banco financiador do empreendimento, o que resulta na penhora da unidade habitacional. No dizer do Min. Relator, quanto ao caso de a hipoteca ter sido instituída pela empresa construtora ao agente financeiro em data posterior à celebração do contrato de compra e venda, a jurisprudência é pacífica no sentido de sua nulidade; na hipótese de financiamento por meio do Sistema Financeiro da Habitação - SFH (que é o caso dos autos), a Seção tem decidido pela ineficácia da hipoteca perante o adquirente da unidade habitacional, prevalecendo o direito de propriedade do imóvel por parte do comprador. Pois a mesma construtora que vendeu e recebeu o preço, ou ainda está recebendo as prestações, dá o empreendimento ou suas unidades autônomas em hipoteca à instituição bancária. Essa instituição sabe que os imóveis são destinados à venda, mas a operação de empréstimo ocorre como se os adquirentes não existissem, e repassa freqüentemente os recursos do SFH sem verificar a viabilidade econômica do empreendimento ou a solvência das empresas incorporadoras. Assim sendo, não se permite que o financiador assuma a cômoda posição de, sem cuidados na aplicação dos recursos, executar os adquirentes de boa-fé. Evocou-se, ainda, voto do Min. Ruy Rosado que esclarece: a hipoteca que o financiador da construtora instituir sobre o imóvel garante a dívida dela enquanto o bem permanecer na propriedade da devedora; havendo transferência, por escritura pública de compra e venda, ou promessa de compra e venda, o crédito da sociedade de crédito imobiliário passa a incidir sobre os direitos decorrentes dos contratos de alienação das unidades habitacionais integrantes do projeto financiado (art. 22 da Lei n. 4.846/1965), sendo ineficaz em relação ao terceiro adquirente a garantia hipotecária instituída pela construtora em favor do agente imobiliário que financiou o projeto. Além de que o princípio da boa-fé objetiva impõe a responsabilidade aos terceiros adquirentes restrita ao pagamento do seu débito, devendo o financiador acautelar-se para receber o seu crédito da sua devedora (construtora inadimplente) ou sobre os pagamentos a ela efetuados pelos terceiros adquirentes. Outrossim, o fato de constar do registro a hipoteca da unidade edificada em favor do agente financiador da construtora não pode ter o efeito que se lhe procura atribuir nos imóveis financiados pelo SFH. Com esses esclarecimentos, a Seção rejeitou os EREsp da instituição bancária por terem os acórdãos confrontados bases fáticas diversas e superou divergências até então existentes no âmbito da Seção. Precedentes citados: REsp 146.659-MG, DJ 5/6/2000; REsp 498.862-GO, DJ 1º/3/2004; REsp 187.940-SP, DJ 21/6/1999; REsp 431.440-SP, DJ 17/2/2003, e REsp 547.763-GO, DJ 11/11/2003. EREsp 415.667-SP, Rel. Min. Castro Filho, julgados em 26/5/2004. Informativo nº 0194 Período: 1º a 5 de dezembro de 2003. Terceira Turma AÇÃO COLETIVA. IMÓVEIS. HIPOTECA. LEGITIMIDADE ATIVA. A orientação dominante neste Superior Tribunal é no sentido de ser nula a garantia hipotecária dada pela construtora à instituição financeira após já ter negociado o imóvel com promissário comprador. Assentou-se também que os arts. 677 e 755 do CC/1916 aplicam-se à hipoteca constituída validamente e não à que padece de vício de existência que a macula de nulidade desde o nascedouro, precisamente a celebração anterior de um compromisso de compra e venda e o pagamento integral do preço do imóvel. E o banco, ao celebrar o contrato de financiamento, pode inteirar-se das condições dos imóveis: destinados à venda, já oferecidos ao público, com preço total ou parcialmente pago pelos terceiros de boa-fé. Em diversos julgados já se firmou o entendimento que o magistrado, diante do relevante interesse social, como é o caso dos autos, pode dispensar a exigência da constituição da associação autora há mais de um ano. Precedentes citados: AgRg no Ag 468.719-RS, DJ 23/06/2003; REsp 239.557-SC, DJ 07/08/2000, e REsp 329.968-DF, DJ

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04/02/2002. REsp 399.859-ES, Rel. Min. Carlos Alberto Menezes Direito, julgado em 2/12/2003. Informativo nº 0149 Período: 30 de setembro a 4 de outubro de 2002. Terceira Turma PENHORA. ALIENAÇÃO. REGISTRO. O imóvel em questão foi alienado pela construtora aos recorrentes mediante instrumento particular de compromisso de compra e venda não levado a registro. Sucede que, no momento da alienação, havia ação pendente entre os recorridos e a construtora alienante, que resultou, posteriormente, na penhora registrada daquele bem. Note-se que grande parte do preço foi paga quando já registrada a constrição. Isso posto, a Turma entendeu que os recorrentes provavelmente agiram de boa-fé, porém tiveram uma conduta temerária, ou mesmo negligente, contratando a promessa e pagando o preço quando sequer a incorporação imobiliária havia sido registrada. Nessas condições, seria exigir demais dos recorridos a prova da insolvência da construtora, essa, ônus dos recorrentes, autores dos embargos de terceiro. REsp 442.778-SP, Rel. Min. Ari Pargendler, julgado em 1º/10/2002. Informativo nº 0307 Período: 4 a 8 de dezembro de 2006. Quinta Turma LOCAÇÃO. ACESSÕES. RETENÇÃO. IMÓVEL. O entendimento deste Superior Tribunal é no sentido de ser possível a retenção de imóvel pelo possuidor de boa-fé até que seja indenizado pelas acessões nele realizadas. No caso, de ação de despejo, as obras realizadas no terreno locado foram reconhecidas como acessões industriais, cujas despesas de construção foram suportadas pela locatária, sem que lhe fossem ressarcidas. Daí correta a retenção. Precedentes citados: REsp 430.810-MS, DJ 8/11/2002, e REsp 28.489-SP, DJ 22/11/1993. REsp 805.522-RS, Rel. Min. Arnaldo Esteves Lima, julgado em 7/12/2006. Informativo nº 0288 Período: 12 a 16 de junho 2006. Terceira Seção EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA. ART. 8º, LEI N. 8.245/1991. ART. 546, PARÁGRAFO ÚNICO, CPC. ARTS. 255 E 266 RISTJ. Trata-se de embargos opostos contra acórdão da Quinta Turma deste Superior Tribunal que rejeitou embargos de declaração opostos contra acórdão que, por maioria de votos, não conheceu do REsp. No voto condutor do acórdão, o recurso não foi conhecido pelos fundamentos das Súms. ns. 5 e 7-STJ de aferição da existência de suposto obstáculo intransponível a impedir que o recorrente efetuasse a averbação do contrato de locação no prazo legal, a qual somente teria sido realizada após a arrematação do imóvel; e o termo “adquirente” contido no art. 8º da Lei n. 8.245/1991 não coincidiria com aquele extraído do art. 530, I, do CC/1916, de sorte que a denunciação da locação poderia ser realizada mesmo se não transcrito o título de aquisição no Registro de Imóveis, sendo até prescindível a aquisição plena do imóvel. O Min. Relator entendeu faltar fundamento bastante para superar a fase de conhecimento destes embargos, ante a não-implementação dos requisitos que lhes são específicos em conformidade com o art. 546, parágrafo único, do CPC, c/c os arts. 255 e 266 do RISTJ. O Min. Nilson Naves, em análise detida sobre o termo “adquirente”, empregado pelo art. 8º da Lei n. 8.245/1991, acrescentava que tal expressão não coincide com o conceito de adquirente extraído do art. 530, I, do CC/1916, o qual dispõe que a propriedade de imóvel se adquire com a transcrição. Se a Lei de Locações quisesse que a expressão “adquirente” equivalesse a proprietário, tê-lo-ia dito expressamente, de modo que, a prevalecer a tese sustentada pelo recorrente, tornar-se-ia sem utilidade prática a expressão contida no citado art.

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8º. Não se buscou aqui a aquisição do imóvel e, sim, a continuidade do contrato de locação contra o novo proprietário e locador. Por isso mesmo, é que o paradigma cuidou da matéria disposta no art. 33 da citada lei, enquanto o acórdão embargado cuidou do tema relativo ao art. 8º da mesma lei. Assim, também votou em sentido contrário ao conhecimento dos embargos, mas registrou que a arrematante agiu com boa-fé subjetiva, confiada na venda judicial e no registro de imóveis e atendeu às exigências da boa-fé objetiva. Com esses esclarecimentos, a Seção, ao prosseguir o julgamento, não conheceu dos embargos. EREsp 511.637-SP, Rel. Min. Hélio Quaglia Barbosa, julgados em 14/6/2006.

Em todas estas demandas o Princípio da Boa-Fé operou o reequilíbrio social, seja

tutelando a parte ou o terceiro de boa-fé, seja apenando as condutas que a ela se opuseram e

que, portanto, desrespeitaram o preceito de confiança que deve nortear os negócios

imobiliários, cerne deste trabalho, em quaisquer de suas possíveis modalidades.

5 CONCLUSÃO

No hodierno cenário social, descortinado pela releitura de velhos princípios e pelo

“surgimento” de outros tantos, que se efetivou com o advento da Carta Política de 1988 e pela

promulgação do Novo Diploma Civil, abriram-se novos horizontes para a interpretação das

relações sociais e, especialmente, para a “tradução” das relações jurídicas, principalmente,

quando atinentes aos negócios jurídicos imobiliários, particularmente analisados neste estudo.

Neste rumo, o novo sistema civil implantado no país com o Código Civil de 2002,

com suas cláusulas gerais, que, diferentemente do antigo ordenamento que privilegiava os

princípios da autonomia da vontade e da obrigatoriedade dos contratos (de matriz

individualista, liberal, portanto), sofreu e impôs significativa transformação que se realizou

com base nos princípios da socialidade, eticidade e operabilidade, e que emprestou nova

feição aos princípios que dinamizam as relações jurídicas e, dentre estas, os contratos55.

Neste ambiente, queda-se insuficiente a prevalência que se emprestava à verba

contratual na regulação de todas as relações recíprocas, mas, antes, sobressai-se a certeza de

que os negócios imobiliários (vínculos jurídicos dinâmicos, por excelência), só se podem

aperfeiçoar, em todas as suas fases e dirigidos processualmente a sua finalidade, amparada

pela boa-fé que surge como mandamento inquebrantável, a apontar uma postura psicológica e

ética, um padrão de conduta, de agir com retidão ou, em outras palavras, com probidade,

honestidade e lealdade, nos moldes do homem comum, atendidas, é claro, as peculiaridades

dos usos e costumes do lugar, com vistas à proteção do interesse do “alter”, membro do

conjunto social que é juridicamente tutelado, conforme professorado por Judith Martins-

Costa.

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Salienta-se, por fim, que também é este o posicionamento que tem sido acolhido pela

jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AVVAD, Pedro Elias. Direito imobiliário. 2ª ed. revista e atualizada – Rio de Janeiro:

Renovar, 2009.

GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro, volume III: contratos e atos

unilaterais. 5. ed. rev. e atual. – São Paulo: Saraiva, 2008.

MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado: sistema e tópica no processo

obrigacional. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1999.

OLIVEIRA GOUVÊA, Eduardo de. Artigo: O Princípio da Boa-Fé e sua repercussão nos

contratos – algumas reflexões. Revista de Direito da PGMRJ – Ano III – Nº 3, 2002.

VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito civil: teoria geral das obrigações e teoria geral dos

contratos. 5 ed. – São Paulo: Atlas, 2005. – (Coleção direito civil; v.2)

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1 GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro, volume III: contratos e atos unilaterais. 5. ed. rev. e atual. – São Paulo: Saraiva, p. 33, 2008. Código Civil Brasileiro – 2002 - art. 422: “Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé”. 2 GONÇALVES, Carlos Roberto. Op. cit. p. 34. 3 Ibid., p. 34 e 35. 4 MARTINS-COSTA, Judith. A boa fé no direito privado: sistema e tópica no processo obrigacional. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, p. 384, 1999. 5 Loc. cit. 6 MARTINS-COSTA, Judith. Op. cit. p. 385. 7 Ibid., p. 392. 8 Ibid., p. 393 e 394. 9 Ibid., p. 394. 10 Loc. cit. 11 Ibid., p. 394 e 395. 12 Ibid., p. 396. 13 Ibid., p. 397. 14 Ibid., p. 398 e 399. 15 Loc. cit. 16 Ibid., p. 399, 400, 401, 403 e 404. 17 Ibid., 407 e 408. 18 GONÇALVES, Carlos Roberto. Op. cit. p. 34, 2008. 19 MARTINS-COSTA, Judith. Op. cit. 411. No direito tedesco, o BGB (Bügerliches Gesetzbuch), em vigor a partir de 1900, consagra o novel princípio, ao dispor em seu § 242: “O devedor é obrigado a cumprir sua obrigação de boa-fé, atendendo às exigências dos usos do tráfico jurídico”. (OLIVEIRA GOUVÊA, Eduardo de. Artigo: O Princípio da Boa-Fé e sua repercussão nos contratos – algumas reflexões. Revista de Direito da PGMRJ – Ano III – Nº 3, p. 49, 2002). Código Civil Português – 1966 – art. 227/1: “Quem negocia com outrem para conclusão de um contrato deve, tanto nos preliminares como na formação dele, proceder segundo as regras da boa-fé, sob pena de responder pelos danos que culposamente causar à outra parte”. Art. 762/2: “No cumprimento da obrigação, assim como no exercício do direito correspondente, devem as partes proceder de boa-fé”. Código Civil Argentino, modificado pela Lei nº 17.711, de 22-4-1968 – art. 1198: “Los contratos deben celebrarse, interpretarse y ejecutarse de buena fé y de acuerdo com lo que verosímilmente las partes entendieron o pudieron entender, obrando com cuidado y previsión”. (OLIVEIRA GOUVÊA, Eduardo de. Artigo: O Princípio da Boa-Fé e sua repercussão nos contratos – algumas reflexões. Revista de Direito da PGMRJ – Ano III – Nº 3, p. 50, 2002). 20 Ibid., p. 412. Existem duas concepções de boa-fé no sentido jurídico. A primeira, é a boa-fé subjetiva, que os alemães definem como Guter Glauben (boa crença), e a segunda, a boa-fé referida por Treu und Glauben (lealdade e crença). A boa-fé subjetiva, ou boa-fé crença, diz respeito a dados internos, de jaez psicológico, atinentes ao sujeito. É o estado de ignorância acerca das características da situação jurídica que se apresenta suscetível de conduzir à lesão de direitos de outrem. Na situação de boa-fé subjetiva, uma pessoa acredita ser titular de um direito, malgrado incorra na irrealidade empírica, porque só existente na aparência. A situação de aparência gera um estado de confiança subjetiva, relativa à confiabilidade da situação jurídica, que permite ao titular alimentar expectativas que vislumbra, com ensanchas no mosaico fático, serem fidedignas. Discute-se na doutrina os elementos que dão azo ao surgimento da boa-fé subjetiva: se a simples ignorância do interessado acerca da situação jurídica que caracteriza a boa-fé psicológica, ou se seria exigível um estado de ignorância desculpável no chamado entendimento ético da boa-fé. A primeira concepção remonta ao vetusto Código de Napoleão, que apenas exige o simples desconhecimento do fato para a configuração da boa-fé. Nessa concepção volitiva, a boa-fé contrapõe-se à má-fé, ou seja, a pessoa ignora os fatos, desde que sem incorrer em erro crasso, e está de boa-fé, ou não ignora, e está de má-fé. Na concepção idônea de boa-fé subjetiva exige-se uma ignorância que seja desculpável da situação de lesão do direito alheio. A ignorância seria indesculpável quando a pessoa houvesse desrespeitado deveres de cautela; ela estaria de má-fé mesmo quando se pudesse atribuir-lhe um desconhecimento meramente culposo. [Já] A boa-fé objetiva, ou boa-fé lealdade, é um dever – dever de agir de acordo com determinados padrões, socialmente recomendados, de correção, lisura e honestidade, para não frustrar a confiança da outra parte. (OLIVEIRA GOUVÊA, Eduardo de. Artigo: O Princípio da Boa-Fé e sua repercussão nos contratos – algumas reflexões. Revista de Direito da PGMRJ – Ano III – Nº 3, p. 52 e 53, 2002). 21 Ibid., p. 411 e 412.

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22 Ibid., p. 412 e 413. 23 Ibid., p. 427 e 428. 24 Ibid., p. 428. 25 Ibid., p. 429. Sob o título de “Deveres Contratuais Indiretos – Desdobramentos do Princípio da Boa-Fé”, Eduardo de Oliveira Gouvêa, expõe que se entende “Por função integrativa da boa-fé [...] a idéia de que os deveres das partes não são, para cada uma, apenas o de realizar a prestação estipulada no contrato ou no negócio jurídico unilateral, mas que impõe também outros deveres corolários, oriundos da convenção, a partir da análise da obrigação de uma perspectiva que quase pode-se denominar sistemática. O princípio da boa-fé regula não apenas o pacto contratual adrede invocado, mas ainda o reconhecimento desses deveres secundários (não diretamente pactuados) derivados mediatamente do princípio, independentemente da vontade manifestada pelas partes, a serem observados durante a fase de formação e de cumprimento da obrigação. São deveres que excedem o dever de prestação. Assim, são os de esclarecimento (informações sobre o uso do bem alienado, capacitações e limites), de proteção (evitar situações de perigo), de conservação (coisa recebida para experiência), de lealdade (não exigir o cumprimento de contrato com insuportável perda de equivalência entre as prestações), de cooperação (prática dos atos necessários à realização dos fins plenos visados pela outra parte), dentre outros”. (OLIVEIRA GOUVÊA, Eduardo de. Artigo: O Princípio da Boa-Fé e sua repercussão nos contratos – algumas reflexões. Revista de Direito da PGMRJ – Ano III – Nº 3, p. 58, 2002). 26 Ibid., p. 437 e 438. 27 Ibid., p. 438. 28 Ibid., p. 440. 29 Loc. cit. 30 MARTINS-COSTA, Judith. A boa fé no direito privado: sistema e tópica no processo obrigacional. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, p. 440, 1999. apud MOTTA PINTO, Carlos Alberto da. Cessão de Contrato. São Paulo: Saraiva, p. 281, 1985. 31 Ibid., p. 440. 32 Ibid., p. 443. 33 Ibid., p. 456 e 457. A função de controle da boa-fé é limitativa: ela estabelece que o credor, no exercício do seu direito, não pode exceder os limites impostos pela citada cláusula, sob pena de proceder antijuridicamente. O exemplo mais significativo é da possibilidade do exercício de resolver o contrato por inadimplemento, ou de suscitar a exceção do contrato não cumprido, quando o cumprimento é insignificante em relação ao pacto em voga. Essa idéia do abuso de direito desdobrou-se, doutrinariamente, em duas concepções: a primeira, subjetiva, define que só há abuso de direito quando a pessoa age com a intenção de prejudicar outrem. A segunda, objetiva, estabelece que para que o ato seja abusivo basta que ele tenha o propósito de realizar objetivos diversos daqueles para os quais o direito subjetivo em questão foi preordenado, contrariando o fim do instituto, seu espírito ou finalidade. Quatro são as modalidades principais que assume o abuso de direito dentro de uma perspectiva objetivista da boa-fé: as situações de venire contra factum proprium, supressio, surrectio, tu quoque. A teoria dos atos próprios, ou a proibição de venire contra factum proprium, protege a parte contra aquela que pretenda exercer um status jurídico em contradição com o comportamento assumido anteriormente. Depois de criar uma certa expectativa, em razão de conduta seguramente indicativa de determinado comportamento futuro, há quebra dos princípios de lealdade e de confiança se vier a ser praticado ato contrário ao previsto, com surpresa e prejuízo à contraparte. O credor que concordou, durante a execução do contrato de prestações periódicas, com o pagamento em tempo e lugar diverso do convencionado, não pode surpreender o devedor com a exigência literal do contrato. Para o reconhecimento da proibição, é preciso que haja univocidade de comportamento do credor e real consciência do devedor quanto à conduta esperada. Nesse prisma, exsurge fulgurante a proibição da cláusula venire contra factum proprium, ou, como denomina a doutrina especializada, teoria dos atos próprios, assim enunciada:

A teoria dos atos próprios parte do princípio de que, se uma das partes agiu de determinada forma durante qualquer das fases do contrato, não é admissível que em momento posterior aja em total contradição com a sua própria conduta anterior. Sob o aspecto negativo, trata-se de proibir atitudes contraditórias da parte integrante de determinada relação jurídica. Sob o aspecto positivo, trata-se de exigência de atuação com coerência, uma vertente do imperativo de observar a palavra dada, contida na cláusula geral da boa-fé. (In: PEREIRA, Régis Fichtner. Op. cit. p. 84.)

Na supressio, um direito não exercido durante um determinado lapso de tempo não poderá mais sê-lo, por contrariar a boa-fé. O contrato de prestação duradoura, que tenha passado sem cumprimento durante longo tempo, por falta de iniciativa do credor, não pode ser exigido se o devedor teve motivo para pensar extinta a

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obrigação e programou sua vida nessa perspectiva. Enquanto a prescrição encobre a pretensão pela só fluência do tempo, a supressio exige, para ser reconhecida, a demonstração de que o comportamento da parte era inadmissível segundo o princípio da boa-fé. A surrectio consiste no nascimento de um direito conseqüente à pratica continuada de certos atos. A duradoura distribuição de lucros de sociedade comercial, em desacordo com o estatuto, pode gerar o direito de recebê-los do mesmo modo, para o futuro. Por fim, aquele que descumpriu norma legal ou contratual, atingindo com isso determinada posição jurídica, não pode exigir do outro o cumprimento do preceito que ele próprio já descumprira (tu quoque). O condômino que viola a regra do condomínio e deposita móveis em área comum, ou a destina para uso próprio, não pode exigir do outro comportamento obediente ao preceito. Quem já está em mora, ao tempo em que sobrevêm circunstâncias modificadoras da base do negócio, não pode pretender a revisão ou a resolução judicial. (OLIVEIRA GOUVÊA, Eduardo de. Artigo: O Princípio da Boa-Fé e sua repercussão nos contratos – algumas reflexões. Revista de Direito da PGMRJ – Ano III – Nº 3, p. 59 a 61, 2002). 34 De acordo com os ensinamentos de Judith Martins-Costa, “A materialização da regra do tu quoque decorre do fato de que “fere as sensibilidades primárias, ética e jurídica, que uma pessoa possa desrespeitar um comando e, depois, vir a exigir a outrem o seu acatamento”. Considerando esta fórmula uma especificação da boa-fé objetiva, assinala Menezes Cordeiro a circunstância de nenhuma das codificações existentes ter compreendido a sua consagração expressa e com alcance geral, o que não tem impedido a sua aplicação nos diversos sistemas jurídicos, nos quais é revelada a partir da integração sistemática do contrato e do princípio da boa-fé objetiva. No direito alemão, como aponta G. Teubner, exprime a regra pela qual “perante violações de normas, as possibilidades de sanção são limitadas para aquele que perpetrou, ele próprio, violações de normas, tendo como importante variante a doutrina da Verwirkung, de elaboração jurisprudencial. (...) No direito brasileiro, embora não sistematizada, a regra segundo a qual é inadmissível ao prevaricador que violou deveres contratuais aproveitar-se da própria violação tem larga aplicação nos tribunais, seja pela invocação do adágio turpitudinem suam allegans non auditur, seja por sua variante da teoria da confiança e da aparência ou pela aplicação do princípio que coíbe venire contra factum proprium, (...)”. (MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado: sistema e tópica no processo obrigacional. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, p. 461 e 464, 1999.) 35 Segundo Wieacker, (...), a máxima venire contra factum proprium expressa de forma tão imediata a essência da obrigação de comportar-se de acordo com a boa-fé que “a partir de ella se alumbra la totalidad del principio”. Relaciona-se o venire com a boa-fé objetiva porque não pressupõe necessariamente a má-fé ou a negligência culpável como elementos da expectativa criada na contraparte. “A exigência de confiança não constitui obrigação de veracidade subjetiva, mas – como na moderna teoria da declaração de vontade – o não separar-se do valor de significação, que à própria conduta pode ser atribuído, pode ser atribuído pela outra parte”, resultando que o princípio consubstancia “uma aplicação do princípio de confiança no tráfico jurídico, e não uma específica proibição de má-fé e da mentira”. A doutrina define o venire contra factum proprium como a tradução do “exercício de uma posição jurídica em contradição com o comportamento exercido anteriormente pelo exercente”. O princípio postula, pois, “dois comportamentos da mesma pessoa, lícitos em si e diferidos no tempo. O primeiro – o factum proprium – é, porém, contrariado pelo segundo”. (MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado: sistema e tópica no processo obrigacional. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, p. 469 e 470, 1999.) 36 Ibid., p. 457, 459, 460 e 461. 37 Ibid., p. 480 e 481. 38Ibid., p. 481. 39 Ibid., p. 482 e 483. Segundo Judith Martins-Costa “entende-se por ruptura injustificada aquela que é destituída de causa legítima, a que é arbitrária, a que compõe o quadro do comportamento desleal de um ponto de vista objetivamente averiguável: “O problema da legitimidade da ruptura não se reconduz, com efeito, à indagação sobre se o seu motivo determinante é ou não justificado do ponto de vista da parte que a efectuou, mas, antes, importa averiguar se, independentemente dessa valoração pessoal, ele pode assumir uma relevância objectiva e de per si prevalente sobre a parte contrária”, afirma Mario Julio de Almeida Costa. (MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado: sistema e tópica no processo obrigacional. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, p. 483 e 484, 1999 apud ALMEIDA COSTA, Mario Julio de. Responsabilidade Civil pela ruptura das negociações preparatórias de um contrato. Coimbra: Coimbra Ed., p. 62, 1984.) Já por confiança legítima se quer expressar a expectativa de que a negociação seja conduzida segundo os parâmetros da probidade, da seriedade de propósitos. Para que se produza a confiança, é evidentemente necessário que as negociações existam, que esteja em desenvolvimento uma atividade comum das partes, destinada à concretização do negócio. “É manifesto que nenhuma obrigação de indemnização surge se uma

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pessoa toma a iniciativa de proceder sozinha a estudos e despesas na elaboração de um projeto de contrato com a finalidade de submetê-a a outra que se recusa in limine, ainda que sem motivo, a entrar em negociações. A confiança, para poder ser qualificada como legítima, deve, pois, fundar-se em dados concretos, inequívocos, avaliáveis segundo critérios objetivos e racionais. (MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado: sistema e tópica no processo obrigacional. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, p. 483 e 484, 1999 apud ALMEIDA COSTA, Mario Julio de. Responsabilidade Civil pela ruptura das negociações preparatórias de um contrato. Coimbra: Coimbra Ed., p. 56, 1984.) 40 Ibid., 485. 41 MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado: sistema e tópica no processo obrigacional. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, p. 486, 1999 apud COUTO E SILVA, Almiro do. Responsabilidade do Estado e problemas jurídicos decorrentes do planejamento. Revista de Direito Público, v. 65, São Paulo, p. 29. 42 Ibid., p. 487. 43 Ibid., p. 492 e 493. 44 AVVAD, Pedro Elias. Direito imobiliário. 2ª ed. revista e atualizada – Rio de Janeiro: Renovar, p. 316, 2009. 45 Ibid., p. 319. 46 Ibid., p. 320. 47 Ibid., p. 315. 48 Loc. cit. 49 Loc. cit. 50 OLIVEIRA GOUVÊA, Eduardo de. Artigo: O Princípio da Boa-Fé e sua repercussão nos contratos – algumas reflexões. Revista de Direito da PGMRJ – Ano III – Nº 3, p. 56, 2002 apud FREITAS GOMES, Luiz Roldão de. Curso de direito civil: Contratos. 1ª ed., Rio de Janeiro: Renovar, p. 49, 2000. 51 OLIVEIRA GOUVÊA, Eduardo de. Artigo: O Princípio da Boa-Fé e sua repercussão nos contratos – algumas reflexões. Revista de Direito da PGMRJ – Ano III – Nº 3, p. 55, 2002. 52 VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito civil: teoria geral das obrigações e teoria geral dos contratos. 5 ed. – São Paulo: Atlas, p. 409, 2005. 53 Ibid., p. 410. 54 Loc. cit. 55 GONÇALVES, Carlos Roberto. Op. cit. p. 33.