Oquesignificaserumceptico Libre
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S.F. Bizarro
O que significa ser um cptico?, Intelectu, n. 1, 1999
Resumo
Neste artigo defende-se que David Hume no deve ser considerado nem como um
cptico radical, nem como um irracionalista. O cpticismo radical uma posio que
se auto-refuta, que no pode ser nem formulada, nem justificada com coerencia. O
cpticismo de David Hume apresentado neste artigo como sendo apenas um
cpticismo epistemolgico, ou um cpticismo mitigado. O dito irracionalismo de
David Hume tem por base um mal entendido sobre a concepao de razo de David
Hume. A concepo de razo que no tem lugar no conhecimento sobre questes de
facto uma concepo puramente dedutiva e demostratativa, mas isso no implica
que David Hume seja um irracionalista, Hume defende uma forma de racionalidade
moderada por um cpticismo mitigado e com respeito pela evidencia emprica
existente.
Abstract
In this paper argues that David Hume should not be understood as a radical skeptic
and irrationalist philosopher. Radical skepticism is a position that is self-defeating, it
cannot be coherently defended nor justified. David Humes skepticism os better
understood as epistemological skepticism or moderate skepticism. Humes
irracionalism is based on a misunderstanding about Humes understanding of the
concept of reason. Hume uses reason to refer exculively to purely deductive
knowledge of the kind used by mathematics and argues that the use the methods of
this kind of reasoning when we are considering empirical facts. David Hume is said
not to be an irracionalist, but to instead defend a moderate skepticism that respects the
available empirical evidence.
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"O Cptico outro inimigo da religio, que naturalmente provoca a
indignao de todos os telogos e filsofos mais meditabundos, embora seja
certo que ningum encontrou alguma vez uma tal absurda criatura, ou
conversou com um homem que no tivesse nenhuma opinio ou princpio
relativo a qualquer assunto, quer de aco, quer de especulao. Isto gera uma
questo muito natural: o que significa ser um cptico? E at que ponto
possvel instigar os princpios filosficos da dvida e da incerteza?"
Enquiry, seco XXII, Parte I, 166
David Hume tradicionalmente classificado como um filsofo cptico e at mesmo
irracionalista1. Mas, o que significa ser um cptico? Neste ensaio vou tentar clarificar
em que sentido que Hume pode ser considerado um cptico e que tipo de cepticismo
lhe pode ser coerentemente atribudo.
O ensaio est dividido em trs partes. Na primeira parte comearei por caracterizar
dois tipos de cepticismo: o cepticismo radical e o cepticismo epistemolgico. O
cepticismo radical, que a verso tradicional do cepticismo, sendo auto-refutante e
abstracto, no o cepticismo defendido por David Hume. O cepticismo
epistemolgico, diferente do cepticismo radical, uma vertente do falibilismo. Neste
artigo defenderei que Hume partidrio de um cepticismo epistemolgico moderado
e que esse tipo de cepticismo tem argumentos a seu favor que so coerentes e deve ser
assumido como parte de qualquer investigao filosfica ou cientfica.
Na segunda parte deste artigo tentarei caracterizar aquilo que se costuma chamar "o
lado construtivo da filosofia de Hume". Perante o dilema (ou pseudo-dilema) cptico,
ou seja, perante a no fundamentao dedutiva do nosso conhecimento comum, Hume
prope o hbito como sendo simultaneamente a origem e a explicao das crenas
humanas bsicas. Esta soluo, tambm chamada de "soluo cptica", pode ser
utilizada por quem queira defender a interpretao irracionalista da filosofia de Hume.
No entanto, esta defesa s poder ser considerada se o hbito for tomado como um
propenso subjectiva mais ou menos irregular, o que no o caso na filosofia de
Hume. Para sublinhar o carcter no subjectivo e universal do hbito apresentarei a
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definio que Hume d do hbito como instinto e introduzirei a ideia de "sabedoria da
natureza" como estando na origem dessa propenso universal.
Na terceira parte, tentarei mostrar como a ideia de um Hume cptico incompatvel
com a ideia de um Hume anti-metafsico (m metafsica); como o temperamento
cientfico de Hume d indicao de que ele no um cptico no sentido forte; e como
o cepticismo no um resultado da filosofia de Hume mas apenas um instrumento ao
servio tanto da vida comum como da investigao cientfica e acadmica.
I
O cepticismo radical uma posio filosfica impossvel de ser sustentada por duas
razes: primeiro, no pode ser coerentemente formulado, segundo, mesmo que
pudesse ser formulado, no pode ser justificado, isto porque o cepticismo radical pe
em causa a validade de qualquer tipo de raciocnio ou justificao que por sua vez tm
de ser utilizados na sua formulao. O cepticismo radical auto-refutante ento em
primeiro lugar porque qualquer verso dele que tentemos formular utiliza
necessariamente processos racionais, processos esses que esto a ser postos em causa
pelo prprio argumento. Este argumento contra o cepticismo radical pode ser
encontrado no Enquiry quando Hume diz:
"Pode parecer uma tentativa muito estranha dos cpticos destruir a razo por
meio dos argumentos e do raciocnio: no entanto este o grande escopo de
todas as suas inquiries e disputas" (E, XII, II, 124).2
Mesmo que o cepticismo radical pudesse ser formulado, no poderia de facto ser
adoptado por ningum, pois, perante qualquer proposta cptica radical, somos ainda
obrigados a continuar a pensar. Por outras palavras, a nica maneira de convencer as
pessoas da validade de uma proposta deste tipo dizer-lhes que pensem nela e, ao
pensarem nela, esto inevitavelmente a nega-la. David Hume usa tambm um
argumento deste gnero contra o cepticismo radical. Por exemplo, Hume ao comparar
as propostas de um copernicano ou de um ptolemaico s propostas de um cptico diz
o seguinte:
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"Um copernicano ou um ptolemaico, cada qual apoiando o seu diferente
sistema de astronomia, podem esperar suscitar uma convico, que
permanecer constante e duradoura, no seu auditrio. () Mas um pirrnico
no pode esperar que a sua filosofia venha a ter uma influncia constante e
duradoira, no seu auditrio" (E, XII, II, 128).
Hume vai ainda mais longe e defende que as propostas do cptico, se fossem levadas
a srio, teriam como consequncia inevitvel o desaparecimento de toda a
humanidade:
" toda a vida humana teria de perecer, se os seus princpios prevalecessem
de maneira universal e permanente. Cessaria imediatamente todo o discurso e
toda a aco; os homens ficariam numa total letargia, at que as necessidades
da natureza, insatisfeitas, ponham fim sua miservel existncia" (E, XII, II,
128).
A posio de David Hume parece assim ser que o cepticismo radical totalmente
impossvel: o cepticismo radical no pode ser formulado, nem avaliado, nem
defendido, nem aceite por ningum mesmo que fosse numa profisso de f, pois se o
fosse, isso levaria extino da espcie humana.
Tendo em conta esta argumentao de Hume, temos de concluir que Hume no
defendia (nem podia defender) um cepticismo radical. No entanto, isto no significa
que Hume no defendesse nenhum tipo de cepticismo. Hume pode ser entendido
como defendendo um cepticismo epistemolgico semelhante ao que hoje se costuma
chamar de falibilismo. O cepticismo epistemolgico questiona a eficcia da nossa
capacidade para conhecer o mundo objectivamente, pe em causa a eficincia das
nossas faculdades. Este tipo de cepticismo, ao contrrio do cepticismo radical, pode
ser coerentemente apresentado e sustentado. Mas mesmo ao nvel do cepticismo
epistemolgico podem existir vrios graus. Numa verso mais forte, a falibilidade das
nossas faculdades vista como inerente condio humana e, como tal,
inultrapassvel. Numa verso mais fraca, a falibilidade vista como apenas uma
caracterstica secundria das nossas capacidades cognitivas, que pode ser limitada se
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utilizarmos mtodos adequados. No resto deste artigo vou defender que o falibilismo
de Hume parece seguir claramente a verso mais fraca de cepticismo epistemolgico.
II
Embora Hume no deva ser considerado um cptico no sentido radical, ele usa de
facto argumentos cpticos fortes na sua filosofia., para alm disso, a soluo proposta
por Hume para as suas dvidas cpticas parece ser, primeira vista, bastante
irracionalista. Analisemos ento os argumentos cpticos no Enquiry e as solues
propostas por Hume. Hume sublinha vrias vezes que as nossas crenas mais bvias e
comuns no tm uma justificao racional (no sentido que no podem ser
dedutivamente justificadas). O exemplo mais conhecido proposto por Hume sobre a
credibilidade das nossas crenas comuns o seguinte:
"Que o sol no se h-de levantar amanh, no uma proposio menos
inteligvel e no implica maior contradio do que a afirmao de que ele se
levantar. Por conseguinte, em vo tentaramos mostrar a sua falsidade. Se
fosse demonstrativamente falsa, implicaria contradio" (E, IV, I, 21).
Este exemplo pretende ilustrar como o nosso conhecimento acerca das questes de
facto (o sol a nascer uma questo de facto) se baseia exclusivamente na experincia.
Assim sendo, no possvel refutar uma afirmao acerca de uma questo de facto
recorrendo apenas razo (o que significa aqui, por demonstrao ou mostrado que o
oposto de um facto emprico implicaria contradio). O conhecimento acerca do
mundo emprico tem de se basear na experincia e nesse sentido que ele no se
fundamenta "no raciocnio ou em qualquer processo do entendimento" (E, IV, II,
28). A tese de Hume assim a de que as nossas crenas acerca do mundo emprico
no so justificveis atravs da razo (no so demonstrveis).
O ponto de partida de Hume ento que as nossas crenas acerca do mundo emprico
no so fundamentadas na razo (no podem ser demonstradas nem provadas por
raciocnios demostrativos). No entanto, o facto interessante sublinhado por Hume o
de que ns temos de facto crenas acerca do mundo emprico. A pergunta que se
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segue ento: se essas crenas no tm origem na razo (no podem ser
demonstradas), em que que se baseiam? ao tentar responder a esta pergunta que
surge o dito "lado construtivo" da filosofia de David Hume. -nos ento sugerido que
essas crenas comuns no tm origem na razo (faculdade pura que constri
demonstraes), mas sim na imaginao (faculdade que usa informao emprica nas
suas construes). Este o primeiro passo da "soluo cptica" de David Hume.
A faculdade da imaginao pode ter duas funes essencialmente diferentes, por um
lado, ela pode dar origem a actividades fortuitas, este o caso da construo das
crenas no bsicas que do origem a princpios mutveis e irregulares; por outro
lado, a imaginao pode dar origem a crenas bsicas e universais. Neste caso, a
imaginao, atravs do hbito ou costume est na origem destas crenas e cria
propenses que no so subjectivas e particulares, mas sim objectivas e universais
(neste sentido universais significa comuns espcie e essenciais sobrevivncia e
objectivas porque podem ser observadas por vrios agentes).
A soluo cptica consiste assim em apresentar a faculdade da imaginao, e no a da
razo, como estando na origem dessas crenas bsicas. A faculdade da imaginao
atravs do hbito, que tambm chamado de instinto, definida como uma certa
propenso para formar ideias e crenas. A imaginao produz dois tipos de princpios:
"princpios permanentemente irresistveis e universais" e princpios "mutveis, fracos
e irregulares, os primeiros regulam as crenas comuns bsicas e ao reconhecer isto
que encontramos a soluo cptica3. Assim, podemos concluir, sem hesitao, que os
argumentos negativos de Hume no so apresentados ao servio de uma concluso
puramente cptica, mas antes como preliminares necessrios a uma explicao quase
cientfica da origem da crena4.
Nos pargrafos 44-45 (E, V, II) Hume apresenta o hbito como um instinto
implantado em ns pela "sabedoria da natureza", instinto esse que em parte
responsvel pela sobrevivncia dos homens. Segundo esta ideia, seria a prpria
natureza que nos possibilita a previso das suas prprias regularidades. Nesta medida
existiria uma espcie de "harmonia pr-estabelecida entre o curso da natureza e a
sucesso das nossas ideias" (E, XII, II, 44) permitindo que o homem aja
eficazmente, mesmo desconhecendo o porqu da eficcia das suas aces:
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"Assim como a natureza nos ensinou o uso dos membros, sem nos dar o
conhecimento dos msculos e dos nervos, pelos quais eles so actuados, do
mesmo modo implantou em ns um instinto (instint), que impele o
pensamento numa marcha correspondente que ela estabeleceu entre os
objectos externos, embora ignoremos os poderes e as foras de que dependem
totalmente o curso e a sucesso regulares dos objectos." (E, V, II, 45)
Neste contexto, pode ser feita uma analogia entre as ideias de Hume e as ideias de
Darwin5, ao apresentar o hbito como um instinto essencial sobrevivncia da
espcie humana, a explicao de Hume pode ser considerada compatvel com a ideia
de seleco natural6. A comparao entre Hume e Darwin deve ser limitada pelo facto
de em Hume no haver nenhuma ideia de evoluo7, mas podemos ainda assim
defender que o tipo de explicao proposta por Hume pode de carto modo partilhar do
estatuto cientfico que normalmente atribudo s ideias de Darwin, podendo assim a
proposta de Hume ser considerada como uma teoria quasi-cientfica, ainda que uma
teoria cientfica rudimentar.
Podemos ento concluir que a introduo da ideia de hbito ou costume na explicao
das nossas crenas bsicas no implica nenhum tipo de cepticismo ou irracionalismo.
Isto s aconteceria se o hbito estivesse na origem das nossas crenas bsicas e,
mesmo assim, elas fossem arbitrrias, o que, como j vimos, no o caso. O hbito
fundamenta crenas bsicas, universais, essenciais para a sobrevivncia da espcie. A
hiptese do hbito pode alm disso candidatar-se ao estatuto de hiptese quasi-
cientfica (explicativa), quanto mais no seja pela analogia entre ela e a ideia de
seleco natural darwiniana.
III
A ideia de que Hume seria um cptico num sentido forte est em contradio com
outras atitudes fundamentais da sua filosofia. De facto, o "temperamento cientfico"
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de Hume mostra como a sua filosofia no pode ser considerada como irracionalista ou
relativista (no sentido dado hoje a estes termos). No ensaio The Sceptic8, Hume
discute a diferena entre moral e cincia e caracteriza assim as teorias cientficas
utilizando de novo o exemplo da disputa entre copernicanos e ptolomaicos:
"Se eu examinar os sistemas COPERNICANO e PTOLOMAICO, pretendo,
com as minhas investigaes, conhecer a situao real dos planetas; ou seja,
por outras palavras, pretendo dar-lhes, na minha concepo, as mesmas
relaes que eles tm entre eles no cu. Para esta operao da mente parece
muitas vezes existir um standard real na natureza das coisas, embora ele seja
frequentemente desconhecido; nem a verdade ou a falsidade so variveis
pelas vrias apreenses da humanidade. Embora seja possvel que toda a
humanidade conclua que o sol se move e a terra permanece em repouso,
mesmo assim, o sol no se move nem um milmetro, sejam quais forem os
raciocnios dos homens e tais concluses so para sempre falsas e erradas"
(The Skeptic, p. 164)
Neste texto est absolutamente claro que Hume, embora admita que a verdadeira
natureza das coisas seja frequentemente desconhecida, no v nenhuma
impossibilidade de princpio em que possamos chegar ao verdadeiro conhecimento
dessa mesma natureza. Para alm disso, a verdade ou falsidade das teorias cientficas
vista como completamente independente das opinies dos homens. Assim, a
concepo de um Hume como irracionalista ou mesmo relativista no sentido
contemporneo parece ser incompatvel com a ideia de o Hume de "temperamento
cientfico" que se manifesta nesta passagem.
Para alm da confiana nas novas cincias da natureza e do facto de Hume propor ele
prprio hipteses explicativas do comportamento quasi-cientificas, existe ainda uma
outra caracterstica da filosofia de Hume incompatvel com a ideia de que Hume era
essencialmente um cptico. Essa caracterstica da filosofia de David Hume a sua
posio essencialmente anti-metafsica. A estratgia anti-metafsica de Hume exclui
de uma forma definitiva qualquer possibilidade de defesa de um cepticismo forte pois
este tipo de cepticismo sempre apresentado atravs de argumentos abstractos ou
metafsicos que, como j vimos, so inadequados no tratamento das questes de facto.
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Assim, tanto o "temperamento cientfico" de Hume como a sua posio "anti-
metafsica" indicam que a sua filosofia no deve ser considerada como uma filosofia
cptica no sentido forte. Mas isto no significa que David Hume seja completamente
alheio ao cepticismo. Existe ainda a possibilidade de defesa de um cepticismo
epistemolgico fraco, um falibilismo fraco, um cepticismo regrado ou mitigado. Este
tipo de cepticismo adoptado por Hume como uma estratgia metodolgica que pode
ser til a vrios nveis. O cepticismo mitigado parece exercer para Hume pelo menos
duas funes, uma ao nvel filosfico e outra ao nvel da "vida comum". Ao nvel da
vida comum, das opinies comuns dos homens, o cepticismo mitigado parece poder
ter um papel importante na medida em que os homens so naturalmente dogmticos,
fixistas e precipitados nas suas opinies, e esta a causa dos muitos erros que
cometem:
"Os homens, na sua maioria, so naturalmente inclinados a ser afirmativos e
dogmticos nas suas opinies; ao verem os objectos apenas de um lado e sem
terem nenhuma ideia de qualquer argumento que sirva de contrapeso, atiram-
se precipitadamente aos princpios para que se sentem inclinados, e so sem
indulgncia para com os que alimentam sentimentos contrrios" (E, XII,
III,129).
Assim, ao nvel da vida comum o cepticismo mitigado tem um papel muito
importante, principalmente do ponto de vista social (enquanto que o cepticismo
radical no pode ter nenhuma influncia benfica para a sociedade E, XII, II, 128).
Ao nvel filosfico o cepticismo mitigado tem um papel fundamental na luta contra o
dogma e a metafsica irregrada (m metafsica, ou metafsica no disciplinada). O
dogmatismo e a arrogncia esto sempre na origem da m metafsica, roubando uma
metfora do prprio David Hume: "O Cavaleiro andante, que ia aventura para
limpar o mundo dos drages e gigantes, nunca alimentou a menor dvida em relao
existncia desses monstros" (XII, I, 116). O cepticismo pode regrar os impulsos
metafsicos: "limitando as nossas inquiries a objectos tais que se ajustem
optimamente estreita capacidade do entendimento humano" (XII, III, 130). Ou
seja, o cepticismo epistemolgico acerca do entendimento humano deve ser usado
como forma de melhorar a nossa metodologia na construo do nosso conhecimento.
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O cepticismo mitigado parece assim ter a uma funo principalmente pedaggica:
"Em geral, h um grau de dvida, de prudncia e de modstia que, em todos os
gneros de escrutnio e de deciso, deve para sempre acompanhar um exacto
argumentador" (XII, III, 129). O dito cepticismo mitigado tem a sua funo
pedaggica tambm na vida comum, obrigando os homens a ponderar as suas
posies e a regrar as suas inclinaes dogmticas.
A ideia de que Hume era um cptico no sentido forte deve assim ser decididamente
descartada. No entanto, ainda necessrio dizer algo mais sobre a concepo de
Hume como sendo um irracionalista. Para compreender em que sentido que Hume
pode ser classificado como irracionalista necessrio analisar o que Hume entende
por "razo" no contexto dos argumentos ditos cpticos.
A razo que Hume rejeita aqui a razo dos raciocnios abstractos que congemina
dedues com concluses inaceitveis para o senso comum (sendo o cepticismo s
uma dessas concluses). Um dos exemplos propostos por Hume o da doutrina da
infinita divisibilidade da extenso. Hume diz a este respeito: "Mas, o que torna a
questo mais extraordinria que estas opinies aparentemente absurdas so apoiadas
por uma clarssima e muito natural cadeia de raciocnio e no nos possvel aceitar as
premissas sem admitir as consequncias" (E, XII, II, 124). Este , para Hume, mais
um caso em que a razo esquece os seus limites e se lana em dedues abstractas
com resultados contra-intuitivos. Outro caso o do cepticismo forte. A ideia de Hume
ento a de que chegamos ao cepticismo utilizando processos de raciocnio abstractos
que so erradamente importados da "cincia da quantidade e do nmero" e que s
fazem sentido nesse domnio: "Parece-me que os nicos objectos da cincia abstracta
ou da demonstrao so a quantidade e o nmero, e que todas as tentativas para
estender esta espcie mais perfeita do conhecimento alm de tais limites so simples
sofisma e iluso" (E, XII, III, 131). Assim, as concluses cpticas so atingidas
atravs da utilizao de mtodos dedutivos que no so adequados para falar acerca
de questes de facto, questes acerca daquilo que conhecemos e no conhecemos,
questes acerca do limite do conhecimento.
Mas esta concepo de "razo" enquanto capacidade abstracta na construo de
demonstraes formais completamente diferente da implicada no termo
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"irracionalismo". A acusao de irracionalista s poderia ser correctamente atribuda
filosofia de Hume se ela dissesse algo do tipo "Hume irracionalista porque pensa
que as teses das cincias no so passveis de demonstrao dedutiva semelhante aos
usados em matemtica" ou ainda "Hume irracionalista porque pensa que os
raciocnios acerca das questes de facto e de conhecimento no podem ser provados
atravs de raciocnios abstractos". s neste sentido que a acusao de irracionalista
pode ser compreendida. De facto, Hume defende que os raciocnios abstractos no so
utilizveis na nossa anlise das questes de facto. No entanto o tipo de razo que
Hume pensa no poder ser usada na anlise das questes de facto um tipo de razo
muito especfico. Na anlise das questes de facto no podemos usar raciocnios
abstractos demonstrativos: "Todas as restantes inquiries dizem respeito apenas
questo de facto e existncia; e estas so evidentemente incapazes de demonstrao.
Tudo o que pode no ser. Nenhuma negao de um facto pode implicar
contradio" (E, XII, III, 132).
Concluindo, do facto de as novas cincias da natureza no serem capazes de produzir
"demonstraes" no se segue que qualquer tarefa emprica esteja dotada ao
fracasso. As cincias no ficam numa situao pior depois de se darem conta do seu
estatuto, antes resguardam-se contra os excessos metafsicos e procuram na
experincia um guia mais adequado aos seus intuitos: "S a experincia que nos
ensina a natureza e os limites da causa e do efeito e nos capacita para inferirmos a
existncia de um objecto a partir do outro" (XII, III, 132).
No fim da seco XII do Enquiry, Hume faz uma classificao dos dois tipos de
raciocnios. A esses raciocnios ele chama de "raciocnios morais" (E, XII, III, 132)
por oposio aos "raciocnios demonstrativos" que j vimos no terem um papel
credvel nas cincias no demonstrativas. Hume divide ento os raciocnios morais
em raciocnios que dizem respeito a factos particulares e raciocnios que dizem
respeito a factos gerais. Na rea dos raciocnios morais que dizem respeito a factos
particulares encontramos, para alm de todas as deliberaes que dizem respeito
vida comum, tambm a histria, a cronologia, a geografia e a astronomia. Na rea dos
raciocnios morais que dizem respeito a factos gerais encontramos a filosofia natural,
a fsica, a qumica, "onde se investigam as qualidades, causas e efeitos de uma espcie
inteira de objectos" (XII, III, 132). A cincia e o pensamento sobre as questes de
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facto fazem ento parte dos raciocnios morais quando estes se aplicam a factos
gerais. A argumentao abstracta no deve ser usada em nenhum destes raciocnios. A
razo abstracta s deve ser usada nos raciocnios acerca de quantidade e de nmero.
Em suma, podemos reinterpretar o paragrafo final do Enquiry incluindo o cepticismo
forte na categoria de "sofisma e iluso":
"Ao passarmos os olhos pelas bibliotecas, persuadidos destes princpios, que
devastao devemos fazer? Se pegarmos num volume de teologia ou de
metafsica escolstica, por exemplo, perguntemos: Contm ele algum
raciocnio acerca da quantidade ou do nmero? No. Contm ele algum
raciocnio experimental relativo questo de facto e existncia? No.
Lanai-o s chamas, porque s pode conter sofisma e iluso." (E, XII,
III,132)
Bibliografia:
BIRO, John, "Hume's new science of the mind", The Cambridge Companion to
Hume, ed. David Fate Norton, Cambridge University Press, 1993, pp. 33-63
DANFORD, John W. David Hume and the Problem of Reason, Yale University
FOGELIN, Robert J., "Hume's Scepticism" in The Cambridge Companion to
Hume, ed. David Fate Norton, Cambridge University Press, 1993, pp. 90-116
HUME, David, Enquiry Concerning Human Understanding, L. A. Selby-Bigge,
Third Edition, Clarendon Press, Oxford, 1975; traduo portuguesa:
Investigao sobre o Entendimento Humano, trad. De Artur Moro, Edices
70, 1989
HUME, David, "The Sceptic" in David Hume Essays, Moral, Political and
Literary, ed. Eugene F. Miller, Liberty Classics, Indianapolis, 1985, pp. 159-
180
HUME, David, A Treatise of Human Nature, L.A. Selby-Bigge, Second Edition,
Clarendon Press, Oxford, 1978
HUME, David, Dialogues Concerning Natural Religion, ed. By Richard H. Popkin,
Hackett Publishing Company, Indianapolis, Cambridge, 1980
MONTEIRO, Joo Paulo, Hume e a Epistemologia, Imprensa Nacional Casa da
-
13
Moeda, Lisboa, 1984
RUSSELL, Bertrand, A History of Western Philosophy, Simon &
Schuster/Touchstone, 1967
1BertrandRussell,AHistoryofWesternPhilosophy,BookThree,PartI,Chapter
17.
2NasrefernciasaoEnquiryConcerningHumanUnderstandingreferirmeeicom
umEaolivro,seguindoseonmerodaseco,onmerodapartedasecoeo
respectivopargrafo.
3VerBiro,John,"Hume'snewscienceofthemind"inTheCambridgeCompanion
toHume,ed.DavidFateNorton,CambridgeUniversityPress,1993,p.42
4idem, p. 38 5Estaideiaencontrasedefendidanocap.4"InduoeSelecoNatural"dolivro
HumeeaEpistemologiaProf.JooPauloMonteiro.
6Mais evidencia a favor desta tese pode ser encontrada nos Dilogos sobre a Religio Natural. 7Ver Joo Paulo Monteiro, Idem, pag. 125
8"The Sceptic" in David Hume Essays, Moral, Political and Literary, ed. Eugene F. Miller.