Oquesignificaserumceptico Libre

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  " S.F. Bizarro ÒO que significa ser um cŽptico?Ó, Intelectu, n. 1, 1999 Resumo  Neste artigo defende-se que David Hume n‹o deve ser considerado nem como um cŽptico radical, nem como um irracionalista. O cŽpticismo radical Ž uma posi•‹o que se auto-refuta, que n‹o pode ser nem formulada, nem justificada com coerencia. O cŽpticismo de David Hume Ž apresentado neste artigo como sendo apenas um cŽpticismo epistemol—gico, ou um cŽpticismo mitigado. O dito irracionalismo de David Hume tem por base um mal entendido sobre a concep•ao de raz‹o de David Hume. A concep•‹o de raz‹o que n‹o tem lugar no conhecimento sobre quest›es de  facto Ž uma concep•‹o puramente dedutiva e demostratativa, mas isso n‹o implica que David Hume seja um irracionalista, Hume defende uma forma de racionalidade moderada por um cŽpticismo mitigado e com respeito pela evidencia emp’rica existente. Abstract In this paper argues that David Hume should not be understood as a radical skeptic and irrationalist philosopher. Radical skepticism is a position that is self-defeating, it cannot be coherently defended nor justified. David HumeÕs skepticism os better understood as epistemological skepticism or moderate skepticism. HumeÕs irracionalism is based on a misunderstanding about HumeÕs understanding of the concept of ÒreasonÓ. Hume uses ÒreasonÓ to refer exculively to purely deductive knowledge of the kind used by mathematics and argues that the use the methods of this kind of reasoning when we are considering empirical facts. David Hume is said not to be an irracionalist, but to instead defend a moderate skepticism that respects the available empirical evidence.

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Transcript of Oquesignificaserumceptico Libre

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    S.F. Bizarro

    O que significa ser um cptico?, Intelectu, n. 1, 1999

    Resumo

    Neste artigo defende-se que David Hume no deve ser considerado nem como um

    cptico radical, nem como um irracionalista. O cpticismo radical uma posio que

    se auto-refuta, que no pode ser nem formulada, nem justificada com coerencia. O

    cpticismo de David Hume apresentado neste artigo como sendo apenas um

    cpticismo epistemolgico, ou um cpticismo mitigado. O dito irracionalismo de

    David Hume tem por base um mal entendido sobre a concepao de razo de David

    Hume. A concepo de razo que no tem lugar no conhecimento sobre questes de

    facto uma concepo puramente dedutiva e demostratativa, mas isso no implica

    que David Hume seja um irracionalista, Hume defende uma forma de racionalidade

    moderada por um cpticismo mitigado e com respeito pela evidencia emprica

    existente.

    Abstract

    In this paper argues that David Hume should not be understood as a radical skeptic

    and irrationalist philosopher. Radical skepticism is a position that is self-defeating, it

    cannot be coherently defended nor justified. David Humes skepticism os better

    understood as epistemological skepticism or moderate skepticism. Humes

    irracionalism is based on a misunderstanding about Humes understanding of the

    concept of reason. Hume uses reason to refer exculively to purely deductive

    knowledge of the kind used by mathematics and argues that the use the methods of

    this kind of reasoning when we are considering empirical facts. David Hume is said

    not to be an irracionalist, but to instead defend a moderate skepticism that respects the

    available empirical evidence.

  • 2

    "O Cptico outro inimigo da religio, que naturalmente provoca a

    indignao de todos os telogos e filsofos mais meditabundos, embora seja

    certo que ningum encontrou alguma vez uma tal absurda criatura, ou

    conversou com um homem que no tivesse nenhuma opinio ou princpio

    relativo a qualquer assunto, quer de aco, quer de especulao. Isto gera uma

    questo muito natural: o que significa ser um cptico? E at que ponto

    possvel instigar os princpios filosficos da dvida e da incerteza?"

    Enquiry, seco XXII, Parte I, 166

    David Hume tradicionalmente classificado como um filsofo cptico e at mesmo

    irracionalista1. Mas, o que significa ser um cptico? Neste ensaio vou tentar clarificar

    em que sentido que Hume pode ser considerado um cptico e que tipo de cepticismo

    lhe pode ser coerentemente atribudo.

    O ensaio est dividido em trs partes. Na primeira parte comearei por caracterizar

    dois tipos de cepticismo: o cepticismo radical e o cepticismo epistemolgico. O

    cepticismo radical, que a verso tradicional do cepticismo, sendo auto-refutante e

    abstracto, no o cepticismo defendido por David Hume. O cepticismo

    epistemolgico, diferente do cepticismo radical, uma vertente do falibilismo. Neste

    artigo defenderei que Hume partidrio de um cepticismo epistemolgico moderado

    e que esse tipo de cepticismo tem argumentos a seu favor que so coerentes e deve ser

    assumido como parte de qualquer investigao filosfica ou cientfica.

    Na segunda parte deste artigo tentarei caracterizar aquilo que se costuma chamar "o

    lado construtivo da filosofia de Hume". Perante o dilema (ou pseudo-dilema) cptico,

    ou seja, perante a no fundamentao dedutiva do nosso conhecimento comum, Hume

    prope o hbito como sendo simultaneamente a origem e a explicao das crenas

    humanas bsicas. Esta soluo, tambm chamada de "soluo cptica", pode ser

    utilizada por quem queira defender a interpretao irracionalista da filosofia de Hume.

    No entanto, esta defesa s poder ser considerada se o hbito for tomado como um

    propenso subjectiva mais ou menos irregular, o que no o caso na filosofia de

    Hume. Para sublinhar o carcter no subjectivo e universal do hbito apresentarei a

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    definio que Hume d do hbito como instinto e introduzirei a ideia de "sabedoria da

    natureza" como estando na origem dessa propenso universal.

    Na terceira parte, tentarei mostrar como a ideia de um Hume cptico incompatvel

    com a ideia de um Hume anti-metafsico (m metafsica); como o temperamento

    cientfico de Hume d indicao de que ele no um cptico no sentido forte; e como

    o cepticismo no um resultado da filosofia de Hume mas apenas um instrumento ao

    servio tanto da vida comum como da investigao cientfica e acadmica.

    I

    O cepticismo radical uma posio filosfica impossvel de ser sustentada por duas

    razes: primeiro, no pode ser coerentemente formulado, segundo, mesmo que

    pudesse ser formulado, no pode ser justificado, isto porque o cepticismo radical pe

    em causa a validade de qualquer tipo de raciocnio ou justificao que por sua vez tm

    de ser utilizados na sua formulao. O cepticismo radical auto-refutante ento em

    primeiro lugar porque qualquer verso dele que tentemos formular utiliza

    necessariamente processos racionais, processos esses que esto a ser postos em causa

    pelo prprio argumento. Este argumento contra o cepticismo radical pode ser

    encontrado no Enquiry quando Hume diz:

    "Pode parecer uma tentativa muito estranha dos cpticos destruir a razo por

    meio dos argumentos e do raciocnio: no entanto este o grande escopo de

    todas as suas inquiries e disputas" (E, XII, II, 124).2

    Mesmo que o cepticismo radical pudesse ser formulado, no poderia de facto ser

    adoptado por ningum, pois, perante qualquer proposta cptica radical, somos ainda

    obrigados a continuar a pensar. Por outras palavras, a nica maneira de convencer as

    pessoas da validade de uma proposta deste tipo dizer-lhes que pensem nela e, ao

    pensarem nela, esto inevitavelmente a nega-la. David Hume usa tambm um

    argumento deste gnero contra o cepticismo radical. Por exemplo, Hume ao comparar

    as propostas de um copernicano ou de um ptolemaico s propostas de um cptico diz

    o seguinte:

  • 4

    "Um copernicano ou um ptolemaico, cada qual apoiando o seu diferente

    sistema de astronomia, podem esperar suscitar uma convico, que

    permanecer constante e duradoura, no seu auditrio. () Mas um pirrnico

    no pode esperar que a sua filosofia venha a ter uma influncia constante e

    duradoira, no seu auditrio" (E, XII, II, 128).

    Hume vai ainda mais longe e defende que as propostas do cptico, se fossem levadas

    a srio, teriam como consequncia inevitvel o desaparecimento de toda a

    humanidade:

    " toda a vida humana teria de perecer, se os seus princpios prevalecessem

    de maneira universal e permanente. Cessaria imediatamente todo o discurso e

    toda a aco; os homens ficariam numa total letargia, at que as necessidades

    da natureza, insatisfeitas, ponham fim sua miservel existncia" (E, XII, II,

    128).

    A posio de David Hume parece assim ser que o cepticismo radical totalmente

    impossvel: o cepticismo radical no pode ser formulado, nem avaliado, nem

    defendido, nem aceite por ningum mesmo que fosse numa profisso de f, pois se o

    fosse, isso levaria extino da espcie humana.

    Tendo em conta esta argumentao de Hume, temos de concluir que Hume no

    defendia (nem podia defender) um cepticismo radical. No entanto, isto no significa

    que Hume no defendesse nenhum tipo de cepticismo. Hume pode ser entendido

    como defendendo um cepticismo epistemolgico semelhante ao que hoje se costuma

    chamar de falibilismo. O cepticismo epistemolgico questiona a eficcia da nossa

    capacidade para conhecer o mundo objectivamente, pe em causa a eficincia das

    nossas faculdades. Este tipo de cepticismo, ao contrrio do cepticismo radical, pode

    ser coerentemente apresentado e sustentado. Mas mesmo ao nvel do cepticismo

    epistemolgico podem existir vrios graus. Numa verso mais forte, a falibilidade das

    nossas faculdades vista como inerente condio humana e, como tal,

    inultrapassvel. Numa verso mais fraca, a falibilidade vista como apenas uma

    caracterstica secundria das nossas capacidades cognitivas, que pode ser limitada se

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    utilizarmos mtodos adequados. No resto deste artigo vou defender que o falibilismo

    de Hume parece seguir claramente a verso mais fraca de cepticismo epistemolgico.

    II

    Embora Hume no deva ser considerado um cptico no sentido radical, ele usa de

    facto argumentos cpticos fortes na sua filosofia., para alm disso, a soluo proposta

    por Hume para as suas dvidas cpticas parece ser, primeira vista, bastante

    irracionalista. Analisemos ento os argumentos cpticos no Enquiry e as solues

    propostas por Hume. Hume sublinha vrias vezes que as nossas crenas mais bvias e

    comuns no tm uma justificao racional (no sentido que no podem ser

    dedutivamente justificadas). O exemplo mais conhecido proposto por Hume sobre a

    credibilidade das nossas crenas comuns o seguinte:

    "Que o sol no se h-de levantar amanh, no uma proposio menos

    inteligvel e no implica maior contradio do que a afirmao de que ele se

    levantar. Por conseguinte, em vo tentaramos mostrar a sua falsidade. Se

    fosse demonstrativamente falsa, implicaria contradio" (E, IV, I, 21).

    Este exemplo pretende ilustrar como o nosso conhecimento acerca das questes de

    facto (o sol a nascer uma questo de facto) se baseia exclusivamente na experincia.

    Assim sendo, no possvel refutar uma afirmao acerca de uma questo de facto

    recorrendo apenas razo (o que significa aqui, por demonstrao ou mostrado que o

    oposto de um facto emprico implicaria contradio). O conhecimento acerca do

    mundo emprico tem de se basear na experincia e nesse sentido que ele no se

    fundamenta "no raciocnio ou em qualquer processo do entendimento" (E, IV, II,

    28). A tese de Hume assim a de que as nossas crenas acerca do mundo emprico

    no so justificveis atravs da razo (no so demonstrveis).

    O ponto de partida de Hume ento que as nossas crenas acerca do mundo emprico

    no so fundamentadas na razo (no podem ser demonstradas nem provadas por

    raciocnios demostrativos). No entanto, o facto interessante sublinhado por Hume o

    de que ns temos de facto crenas acerca do mundo emprico. A pergunta que se

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    segue ento: se essas crenas no tm origem na razo (no podem ser

    demonstradas), em que que se baseiam? ao tentar responder a esta pergunta que

    surge o dito "lado construtivo" da filosofia de David Hume. -nos ento sugerido que

    essas crenas comuns no tm origem na razo (faculdade pura que constri

    demonstraes), mas sim na imaginao (faculdade que usa informao emprica nas

    suas construes). Este o primeiro passo da "soluo cptica" de David Hume.

    A faculdade da imaginao pode ter duas funes essencialmente diferentes, por um

    lado, ela pode dar origem a actividades fortuitas, este o caso da construo das

    crenas no bsicas que do origem a princpios mutveis e irregulares; por outro

    lado, a imaginao pode dar origem a crenas bsicas e universais. Neste caso, a

    imaginao, atravs do hbito ou costume est na origem destas crenas e cria

    propenses que no so subjectivas e particulares, mas sim objectivas e universais

    (neste sentido universais significa comuns espcie e essenciais sobrevivncia e

    objectivas porque podem ser observadas por vrios agentes).

    A soluo cptica consiste assim em apresentar a faculdade da imaginao, e no a da

    razo, como estando na origem dessas crenas bsicas. A faculdade da imaginao

    atravs do hbito, que tambm chamado de instinto, definida como uma certa

    propenso para formar ideias e crenas. A imaginao produz dois tipos de princpios:

    "princpios permanentemente irresistveis e universais" e princpios "mutveis, fracos

    e irregulares, os primeiros regulam as crenas comuns bsicas e ao reconhecer isto

    que encontramos a soluo cptica3. Assim, podemos concluir, sem hesitao, que os

    argumentos negativos de Hume no so apresentados ao servio de uma concluso

    puramente cptica, mas antes como preliminares necessrios a uma explicao quase

    cientfica da origem da crena4.

    Nos pargrafos 44-45 (E, V, II) Hume apresenta o hbito como um instinto

    implantado em ns pela "sabedoria da natureza", instinto esse que em parte

    responsvel pela sobrevivncia dos homens. Segundo esta ideia, seria a prpria

    natureza que nos possibilita a previso das suas prprias regularidades. Nesta medida

    existiria uma espcie de "harmonia pr-estabelecida entre o curso da natureza e a

    sucesso das nossas ideias" (E, XII, II, 44) permitindo que o homem aja

    eficazmente, mesmo desconhecendo o porqu da eficcia das suas aces:

  • 7

    "Assim como a natureza nos ensinou o uso dos membros, sem nos dar o

    conhecimento dos msculos e dos nervos, pelos quais eles so actuados, do

    mesmo modo implantou em ns um instinto (instint), que impele o

    pensamento numa marcha correspondente que ela estabeleceu entre os

    objectos externos, embora ignoremos os poderes e as foras de que dependem

    totalmente o curso e a sucesso regulares dos objectos." (E, V, II, 45)

    Neste contexto, pode ser feita uma analogia entre as ideias de Hume e as ideias de

    Darwin5, ao apresentar o hbito como um instinto essencial sobrevivncia da

    espcie humana, a explicao de Hume pode ser considerada compatvel com a ideia

    de seleco natural6. A comparao entre Hume e Darwin deve ser limitada pelo facto

    de em Hume no haver nenhuma ideia de evoluo7, mas podemos ainda assim

    defender que o tipo de explicao proposta por Hume pode de carto modo partilhar do

    estatuto cientfico que normalmente atribudo s ideias de Darwin, podendo assim a

    proposta de Hume ser considerada como uma teoria quasi-cientfica, ainda que uma

    teoria cientfica rudimentar.

    Podemos ento concluir que a introduo da ideia de hbito ou costume na explicao

    das nossas crenas bsicas no implica nenhum tipo de cepticismo ou irracionalismo.

    Isto s aconteceria se o hbito estivesse na origem das nossas crenas bsicas e,

    mesmo assim, elas fossem arbitrrias, o que, como j vimos, no o caso. O hbito

    fundamenta crenas bsicas, universais, essenciais para a sobrevivncia da espcie. A

    hiptese do hbito pode alm disso candidatar-se ao estatuto de hiptese quasi-

    cientfica (explicativa), quanto mais no seja pela analogia entre ela e a ideia de

    seleco natural darwiniana.

    III

    A ideia de que Hume seria um cptico num sentido forte est em contradio com

    outras atitudes fundamentais da sua filosofia. De facto, o "temperamento cientfico"

  • 8

    de Hume mostra como a sua filosofia no pode ser considerada como irracionalista ou

    relativista (no sentido dado hoje a estes termos). No ensaio The Sceptic8, Hume

    discute a diferena entre moral e cincia e caracteriza assim as teorias cientficas

    utilizando de novo o exemplo da disputa entre copernicanos e ptolomaicos:

    "Se eu examinar os sistemas COPERNICANO e PTOLOMAICO, pretendo,

    com as minhas investigaes, conhecer a situao real dos planetas; ou seja,

    por outras palavras, pretendo dar-lhes, na minha concepo, as mesmas

    relaes que eles tm entre eles no cu. Para esta operao da mente parece

    muitas vezes existir um standard real na natureza das coisas, embora ele seja

    frequentemente desconhecido; nem a verdade ou a falsidade so variveis

    pelas vrias apreenses da humanidade. Embora seja possvel que toda a

    humanidade conclua que o sol se move e a terra permanece em repouso,

    mesmo assim, o sol no se move nem um milmetro, sejam quais forem os

    raciocnios dos homens e tais concluses so para sempre falsas e erradas"

    (The Skeptic, p. 164)

    Neste texto est absolutamente claro que Hume, embora admita que a verdadeira

    natureza das coisas seja frequentemente desconhecida, no v nenhuma

    impossibilidade de princpio em que possamos chegar ao verdadeiro conhecimento

    dessa mesma natureza. Para alm disso, a verdade ou falsidade das teorias cientficas

    vista como completamente independente das opinies dos homens. Assim, a

    concepo de um Hume como irracionalista ou mesmo relativista no sentido

    contemporneo parece ser incompatvel com a ideia de o Hume de "temperamento

    cientfico" que se manifesta nesta passagem.

    Para alm da confiana nas novas cincias da natureza e do facto de Hume propor ele

    prprio hipteses explicativas do comportamento quasi-cientificas, existe ainda uma

    outra caracterstica da filosofia de Hume incompatvel com a ideia de que Hume era

    essencialmente um cptico. Essa caracterstica da filosofia de David Hume a sua

    posio essencialmente anti-metafsica. A estratgia anti-metafsica de Hume exclui

    de uma forma definitiva qualquer possibilidade de defesa de um cepticismo forte pois

    este tipo de cepticismo sempre apresentado atravs de argumentos abstractos ou

    metafsicos que, como j vimos, so inadequados no tratamento das questes de facto.

  • 9

    Assim, tanto o "temperamento cientfico" de Hume como a sua posio "anti-

    metafsica" indicam que a sua filosofia no deve ser considerada como uma filosofia

    cptica no sentido forte. Mas isto no significa que David Hume seja completamente

    alheio ao cepticismo. Existe ainda a possibilidade de defesa de um cepticismo

    epistemolgico fraco, um falibilismo fraco, um cepticismo regrado ou mitigado. Este

    tipo de cepticismo adoptado por Hume como uma estratgia metodolgica que pode

    ser til a vrios nveis. O cepticismo mitigado parece exercer para Hume pelo menos

    duas funes, uma ao nvel filosfico e outra ao nvel da "vida comum". Ao nvel da

    vida comum, das opinies comuns dos homens, o cepticismo mitigado parece poder

    ter um papel importante na medida em que os homens so naturalmente dogmticos,

    fixistas e precipitados nas suas opinies, e esta a causa dos muitos erros que

    cometem:

    "Os homens, na sua maioria, so naturalmente inclinados a ser afirmativos e

    dogmticos nas suas opinies; ao verem os objectos apenas de um lado e sem

    terem nenhuma ideia de qualquer argumento que sirva de contrapeso, atiram-

    se precipitadamente aos princpios para que se sentem inclinados, e so sem

    indulgncia para com os que alimentam sentimentos contrrios" (E, XII,

    III,129).

    Assim, ao nvel da vida comum o cepticismo mitigado tem um papel muito

    importante, principalmente do ponto de vista social (enquanto que o cepticismo

    radical no pode ter nenhuma influncia benfica para a sociedade E, XII, II, 128).

    Ao nvel filosfico o cepticismo mitigado tem um papel fundamental na luta contra o

    dogma e a metafsica irregrada (m metafsica, ou metafsica no disciplinada). O

    dogmatismo e a arrogncia esto sempre na origem da m metafsica, roubando uma

    metfora do prprio David Hume: "O Cavaleiro andante, que ia aventura para

    limpar o mundo dos drages e gigantes, nunca alimentou a menor dvida em relao

    existncia desses monstros" (XII, I, 116). O cepticismo pode regrar os impulsos

    metafsicos: "limitando as nossas inquiries a objectos tais que se ajustem

    optimamente estreita capacidade do entendimento humano" (XII, III, 130). Ou

    seja, o cepticismo epistemolgico acerca do entendimento humano deve ser usado

    como forma de melhorar a nossa metodologia na construo do nosso conhecimento.

  • 10

    O cepticismo mitigado parece assim ter a uma funo principalmente pedaggica:

    "Em geral, h um grau de dvida, de prudncia e de modstia que, em todos os

    gneros de escrutnio e de deciso, deve para sempre acompanhar um exacto

    argumentador" (XII, III, 129). O dito cepticismo mitigado tem a sua funo

    pedaggica tambm na vida comum, obrigando os homens a ponderar as suas

    posies e a regrar as suas inclinaes dogmticas.

    A ideia de que Hume era um cptico no sentido forte deve assim ser decididamente

    descartada. No entanto, ainda necessrio dizer algo mais sobre a concepo de

    Hume como sendo um irracionalista. Para compreender em que sentido que Hume

    pode ser classificado como irracionalista necessrio analisar o que Hume entende

    por "razo" no contexto dos argumentos ditos cpticos.

    A razo que Hume rejeita aqui a razo dos raciocnios abstractos que congemina

    dedues com concluses inaceitveis para o senso comum (sendo o cepticismo s

    uma dessas concluses). Um dos exemplos propostos por Hume o da doutrina da

    infinita divisibilidade da extenso. Hume diz a este respeito: "Mas, o que torna a

    questo mais extraordinria que estas opinies aparentemente absurdas so apoiadas

    por uma clarssima e muito natural cadeia de raciocnio e no nos possvel aceitar as

    premissas sem admitir as consequncias" (E, XII, II, 124). Este , para Hume, mais

    um caso em que a razo esquece os seus limites e se lana em dedues abstractas

    com resultados contra-intuitivos. Outro caso o do cepticismo forte. A ideia de Hume

    ento a de que chegamos ao cepticismo utilizando processos de raciocnio abstractos

    que so erradamente importados da "cincia da quantidade e do nmero" e que s

    fazem sentido nesse domnio: "Parece-me que os nicos objectos da cincia abstracta

    ou da demonstrao so a quantidade e o nmero, e que todas as tentativas para

    estender esta espcie mais perfeita do conhecimento alm de tais limites so simples

    sofisma e iluso" (E, XII, III, 131). Assim, as concluses cpticas so atingidas

    atravs da utilizao de mtodos dedutivos que no so adequados para falar acerca

    de questes de facto, questes acerca daquilo que conhecemos e no conhecemos,

    questes acerca do limite do conhecimento.

    Mas esta concepo de "razo" enquanto capacidade abstracta na construo de

    demonstraes formais completamente diferente da implicada no termo

  • 11

    "irracionalismo". A acusao de irracionalista s poderia ser correctamente atribuda

    filosofia de Hume se ela dissesse algo do tipo "Hume irracionalista porque pensa

    que as teses das cincias no so passveis de demonstrao dedutiva semelhante aos

    usados em matemtica" ou ainda "Hume irracionalista porque pensa que os

    raciocnios acerca das questes de facto e de conhecimento no podem ser provados

    atravs de raciocnios abstractos". s neste sentido que a acusao de irracionalista

    pode ser compreendida. De facto, Hume defende que os raciocnios abstractos no so

    utilizveis na nossa anlise das questes de facto. No entanto o tipo de razo que

    Hume pensa no poder ser usada na anlise das questes de facto um tipo de razo

    muito especfico. Na anlise das questes de facto no podemos usar raciocnios

    abstractos demonstrativos: "Todas as restantes inquiries dizem respeito apenas

    questo de facto e existncia; e estas so evidentemente incapazes de demonstrao.

    Tudo o que pode no ser. Nenhuma negao de um facto pode implicar

    contradio" (E, XII, III, 132).

    Concluindo, do facto de as novas cincias da natureza no serem capazes de produzir

    "demonstraes" no se segue que qualquer tarefa emprica esteja dotada ao

    fracasso. As cincias no ficam numa situao pior depois de se darem conta do seu

    estatuto, antes resguardam-se contra os excessos metafsicos e procuram na

    experincia um guia mais adequado aos seus intuitos: "S a experincia que nos

    ensina a natureza e os limites da causa e do efeito e nos capacita para inferirmos a

    existncia de um objecto a partir do outro" (XII, III, 132).

    No fim da seco XII do Enquiry, Hume faz uma classificao dos dois tipos de

    raciocnios. A esses raciocnios ele chama de "raciocnios morais" (E, XII, III, 132)

    por oposio aos "raciocnios demonstrativos" que j vimos no terem um papel

    credvel nas cincias no demonstrativas. Hume divide ento os raciocnios morais

    em raciocnios que dizem respeito a factos particulares e raciocnios que dizem

    respeito a factos gerais. Na rea dos raciocnios morais que dizem respeito a factos

    particulares encontramos, para alm de todas as deliberaes que dizem respeito

    vida comum, tambm a histria, a cronologia, a geografia e a astronomia. Na rea dos

    raciocnios morais que dizem respeito a factos gerais encontramos a filosofia natural,

    a fsica, a qumica, "onde se investigam as qualidades, causas e efeitos de uma espcie

    inteira de objectos" (XII, III, 132). A cincia e o pensamento sobre as questes de

  • 12

    facto fazem ento parte dos raciocnios morais quando estes se aplicam a factos

    gerais. A argumentao abstracta no deve ser usada em nenhum destes raciocnios. A

    razo abstracta s deve ser usada nos raciocnios acerca de quantidade e de nmero.

    Em suma, podemos reinterpretar o paragrafo final do Enquiry incluindo o cepticismo

    forte na categoria de "sofisma e iluso":

    "Ao passarmos os olhos pelas bibliotecas, persuadidos destes princpios, que

    devastao devemos fazer? Se pegarmos num volume de teologia ou de

    metafsica escolstica, por exemplo, perguntemos: Contm ele algum

    raciocnio acerca da quantidade ou do nmero? No. Contm ele algum

    raciocnio experimental relativo questo de facto e existncia? No.

    Lanai-o s chamas, porque s pode conter sofisma e iluso." (E, XII,

    III,132)

    Bibliografia:

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    Hume, ed. David Fate Norton, Cambridge University Press, 1993, pp. 33-63

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    Hume, ed. David Fate Norton, Cambridge University Press, 1993, pp. 90-116

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    HUME, David, "The Sceptic" in David Hume Essays, Moral, Political and

    Literary, ed. Eugene F. Miller, Liberty Classics, Indianapolis, 1985, pp. 159-

    180

    HUME, David, A Treatise of Human Nature, L.A. Selby-Bigge, Second Edition,

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    HUME, David, Dialogues Concerning Natural Religion, ed. By Richard H. Popkin,

    Hackett Publishing Company, Indianapolis, Cambridge, 1980

    MONTEIRO, Joo Paulo, Hume e a Epistemologia, Imprensa Nacional Casa da

  • 13

    Moeda, Lisboa, 1984

    RUSSELL, Bertrand, A History of Western Philosophy, Simon &

    Schuster/Touchstone, 1967

    1BertrandRussell,AHistoryofWesternPhilosophy,BookThree,PartI,Chapter

    17.

    2NasrefernciasaoEnquiryConcerningHumanUnderstandingreferirmeeicom

    umEaolivro,seguindoseonmerodaseco,onmerodapartedasecoeo

    respectivopargrafo.

    3VerBiro,John,"Hume'snewscienceofthemind"inTheCambridgeCompanion

    toHume,ed.DavidFateNorton,CambridgeUniversityPress,1993,p.42

    4idem, p. 38 5Estaideiaencontrasedefendidanocap.4"InduoeSelecoNatural"dolivro

    HumeeaEpistemologiaProf.JooPauloMonteiro.

    6Mais evidencia a favor desta tese pode ser encontrada nos Dilogos sobre a Religio Natural. 7Ver Joo Paulo Monteiro, Idem, pag. 125

    8"The Sceptic" in David Hume Essays, Moral, Political and Literary, ed. Eugene F. Miller.