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1 ORA, LABORA E LUCRA: AS RELAÇÕES JURÍDICO- COMERCIAIS URBANAS NA BAIXA IDADE MÉDIA doi: 10.4025/XIIjeam2013.custodio12 CUSTÓDIO, José de Arimathéia Cordeiro 1 Introdução Se a Alta Idade Média (séculos V a XI) foi o período da ruralização da sociedade europeia ocidental; a partir do século XI, com as condições de relativa estabilidade demográfica, econômica e sanitária, veio um tempo de crescimento gradativo das cidades, de desenvolvimento do comércio e, na esteira destas novidades, mudanças nas relações sociais, incluindo as relações de trabalho e da prática comercial. Como afirmou Pirenne (2009, p. 103-4), “em nenhuma civilização a vida urbana se desenvolveu independentemente do comércio e da indústria. (...) O comércio e a indústria fizeram delas o que elas foram”. Blockmans e Hoppenbrowers (2012, p. 343) definem “cidades” como: concentração espacial de uma população que não produz seus alimentos; portanto, não vive basicamente da agricultura, da criação de animais domésticos ou da pesca. Além disso, mesmo pequena, preenche a função de um lugar central de serviços onde se localizam o mercado, o governo, as instituições religiosas e alguns serviços especializados. Os habitantes das cidades - os citadinos - não se atrelavam mais ao modo de produção rural e às obrigações de vassalagem. O uso de moedas exclusivas de um feudo ou reino teve que mudar, diante da expansão do comércio no continente. E até as ordens religiosas, que na Alta Idade Média se constituíam em forças produtivas rurais, às vezes fortificadas como castelos feudais, viram surgir novos movimentos espirituais, urbanos e com a cara dos pobres das cidades – mendicantes. 1 UEL-PR

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ORA, LABORA E LUCRA: AS RELAÇÕES JURÍDICO-

COMERCIAIS URBANAS NA BAIXA IDADE MÉDIA doi: 10.4025/XIIjeam2013.custodio12

CUSTÓDIO, José de Arimathéia Cordeiro1

Introdução

Se a Alta Idade Média (séculos V a XI) foi o período da ruralização da sociedade

europeia ocidental; a partir do século XI, com as condições de relativa estabilidade

demográfica, econômica e sanitária, veio um tempo de crescimento gradativo das cidades,

de desenvolvimento do comércio e, na esteira destas novidades, mudanças nas relações

sociais, incluindo as relações de trabalho e da prática comercial. Como afirmou Pirenne

(2009, p. 103-4), “em nenhuma civilização a vida urbana se desenvolveu

independentemente do comércio e da indústria. (...) O comércio e a indústria fizeram delas

o que elas foram”.

Blockmans e Hoppenbrowers (2012, p. 343) definem “cidades” como:

concentração espacial de uma população que não produz seus alimentos; portanto, não vive basicamente da agricultura, da criação de animais domésticos ou da pesca. Além disso, mesmo pequena, preenche a função de um lugar central de serviços onde se localizam o mercado, o governo, as instituições religiosas e alguns serviços especializados.

Os habitantes das cidades - os citadinos - não se atrelavam mais ao modo de

produção rural e às obrigações de vassalagem. O uso de moedas exclusivas de um feudo ou

reino teve que mudar, diante da expansão do comércio no continente. E até as ordens

religiosas, que na Alta Idade Média se constituíam em forças produtivas rurais, às vezes

fortificadas como castelos feudais, viram surgir novos movimentos espirituais, urbanos e

com a cara dos pobres das cidades – mendicantes.

1 UEL-PR

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Duby (1993) marca a mudança que fortaleceu as cidades, ponderando que, a partir

do século XII, a economia rural ficou em segundo plano, passando a se submeter às

pressões da economia urbana. E afirma: “Por volta de 1180, iniciava-se por toda a Europa

a era dos homens de negócios. Após 1180, a motivação do lucro começou a minar o

espírito de liberalidade. A nostalgia desta virtude ainda se manteve, mas passou a ser

apenas o atributo de heróis míticos” (Duby, 1993, p. 288).

Por outro lado, atividades inéditas surgiam, em decorrência do avanço tecnológico.

Novas técnicas metalúrgicas, e de arquitetura e engenharia, por exemplo, foram nascendo a

partir dos novos conhecimentos de Matemática, Física e Química. Com isso, a Arte

também avançou. Vieram as universidades, com seus professores e doutores. Bancos

apareceram, com suas operações financeiras. Para um morador da cidade do século XIII,

quantas diferenças havia, em relação aos tempos de seus avós. É claro que o próprio

cotidiano foi se modificando.

LE GOFF (2013, p. 122-3) descreve o cenário:

Porém, entre os séculos XI e XIII esse contexto muda. Produz-se no Ocidente cristão uma revolução econômica e social, da qual o progresso urbano é o sintoma mais estridente, e a divisão do trabalho o aspecto mais importante. Novos ofícios nascem ou se desenvolvem, novas categorias profissionais aparecem ou são extintas, novos grupos socioprofissionais, fortes por seu número, por seu papel, reclamam e conquistam uma estima, ou seja, um prestígio apropriado à sua força. Eles querem ser considerados e nisso são bem-sucedidos.

Também é evidente que não houve rupturas drásticas, mas um processo histórico de

mudanças que atravessou os séculos. Cortazar (1996, p. 130-1), em seu estudo da História

rural medieval, anota que, sob uma perspectiva sociojurídica, a formação de núcleos

populacionais (aldeias) na Alta Idade Média hispânica propiciou o estabelecimento de

relações de Direito entre famílias, entre proprietários e arrendatários de terras. Mas já ali o

autor destaca que algumas atividades produtivas, como as do ferreiro ou oleiro, começaram

a se diferenciar. Blockmans e Hoppenbrowers (2012, p. 349) confirma, salientando que os

primeiros habitantes das cidades eram comerciantes e artesãos, instalados perto de um

núcleo de poder.

Duby (1993), igualmente, demonstra que já no século XI apareciam os primeiros

sinais de uma tendência ao capitalismo. O autor relata que as novas comunidades

monásticas floresciam, formadas por pessoas de todos os estratos sociais, defendendo o

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ascetismo e condenando a riqueza material. Foi uma reação a uma realidade econômica

que se apresentava à sociedade, marcada por uma expansão. Sentencia Duby: “por outras

palavras, a descoberta dos primeiros acessos da doença do lucro” (idem, p. 195).

Este trabalho detém um olhar sobre as modificações no plano das relações

trabalhistas e comerciais destas novas atividades produtivas. Expõe um cenário em que o

Direito e o Comércio começaram a mudar para se adequar às relações sociais urbanas.

Tradições e costumes receberam novos vernizes. O Direito Canônico, assim como as

balizas da Igreja, tiveram que ceder espaço a outros parâmetros jurídicos, alguns retomados

do antigo Direito Romano.

Como pesquisa bibliográfica, este estudo se apoia quase que totalmente em

medievalistas europeus como Jacques Le Goff, Henri Pirenne e George Duby. Outros

autores, inclusive das Ciências Jurídicas, subsidiam esta reflexão teórica.

Enfim, foi lá, naquele momento crucial, que surgiram alguns institutos do Direito

do Trabalho e Comercial que alcançaram a contemporaneidade, bem como foi naquele

período – a Baixa Idade Média – que iniciou a formação de um imaginário a respeito das

relações citadinas que sobrevive até hoje.

As cidades crescem, os burgueses aparecem

Blockmans e Hoppenbrowers (2012, p. 343) são categóricos: “Nenhum

acontecimento na história europeia antes da industrialização teve uma influência tão

profunda como o processo de crescimento das cidades que começou durante o século X”.

LE GOFF & SCHMITT (2006, p. 223) descrevem a cidade medieval:

A cidade medieval é, antes de mais nada, uma sociedade da abundância, concentrada num pequeno espaço em meio a vastas regiões pouco povoadas. Em seguida, é um lugar de produção e de trocas, onde se articulam o artesanato e o comércio, sustentados por uma economia monetária. É também o centro de um sistema de valores particular, do qual emerge a prática laboriosa e criativa do trabalho, o gosto pelo negócio e pelo dinheiro, a inclinação para o luxo, o senso de beleza. É ainda um sistema de organização de um espaço fechado com muralhas, onde se penetra por portas e se caminha por ruas e praças, e que é guarnecido com torres. Mas também é um organismo social e político baseado na vizinhança, no qual os ricos não formam uma hierarquia e sim um grupo de iguais – sentados lado a lado – que governa uma massa unânime e solidária.

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Pistori (2007) fornece o contexto no qual se verifica a preparação para as mudanças

nas relações sociais, sobretudo trabalhistas e comerciais, na Europa ocidental medieval. Ele

informa que o fim das invasões e os acordos de paz, além de um longo período de

condições climáticas favoráveis, propiciaram um aumento demográfico, que por sua vez

impulsionou a construção de mais habitações, mais igrejas, mais infraestrutura, o que

redundou na criação de novas cidades. Tudo paralelo a um crescimento do próprio

conhecimento. E afirma:

Uma população maior exigia, em um ambiente profundamente clerical e religioso, igrejas maiores e mais igrejas. Essa produção exigia a obtenção de matérias-primas como pedra, madeira e ferro; foram surgindo, assim, novas técnicas de construção, aperfeiçoamento de transporte, novos canteiros construtivos, novas pontes, celeiros, mercados, novas casas com material melhor para os mais ricos, tudo isso formando uma espiral de crescimento econômico e formando novas situações a serem pensadas, conflitos a serem resolvidos, interesses afetados e assim por diante. Esse fenômeno repercutiu nas instituições de poder, alterando os horizontes políticos e sociais, criando-se, a partir daí, universidades e recuperando-se o Direito de sua herança romana. (PISTORI, 2007, p. 26).

Em outras palavras, o autor define toda esta movimentação econômico-social do

século XI como a “renascença medieval”, um “momento em que se dá uma maior

importância e atenção ao trabalho humano” (idem).

Benevolo (2011, p. 256) pontua o final do século X como marco do renascimento

econômico europeu. Entre as causas, ele lista a estabilização dos povos invasores, as

inovações técnicas na agricultura e a influência das cidades portuárias mediterrâneas, como

Veneza e Gênova, como centros comerciais. Pirenne (1982, p. 47) concorda, quanto à

época: “O ressurgimento do comércio não demorou em alterar profundamente o seu caráter

[dos burgos]. Observam-se os primeiros sintomas de sua ação durante a segunda metade do

século X”.

LE GOFF & SCHMITT (2006) observam que as cidades criaram, no imaginário

medieval, diversas concepções. Elas eram vistas como lugar de pecado e decadência por

alguns clérigos. Eram antros de cobiça para outros. Ora, eram idealizadas. Às vezes,

maravilhosas. “O louvor às cidades torna-se um gênero literário e as cidades adquirem

origens míticas. Aos santos padroeiros, acrescentam-se heróis fundadores, a partir do

modelo de Rômulo e Remo...” (idem, p. 226).

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Claro que as mudanças não ocorreram de maneira uniforme e nem ao mesmo tempo

em toda a Europa. Pistori observa que, no século XII, regiões como Flandres e Itália

possuíam características pré-capitalistas mais fortes do que, por exemplo, na França, “por

seu passado de maior influência clerical, associações de comércio e indústria mais

influenciadas por elementos religiosos, o que obstaculizava o desenvolvimento de um

capitalismo mais individual” (2007, p. 40). De fato, o autor lembra que este processo não

foi homogêneo nem pacífico, e cita relatos de revoltas na Inglaterra, França, Itália e

Espanha. Pirenne (2009, p. 68) aponta que o “renascimento” do século XI teve início em

dois pontos da Europa – Veneza no sul, e Flandres no norte.

Para Pirenne (2009, p. 63-4):

Pode, portanto, concluir-se, sem receio de nos enganarmos, que o período que se abre com a época carolíngia não conheceu cidades, nem no sentido social, nem no sentido econômico ou jurídico desta palavra. As cidades antigas e os burgos não foram senão praças fortes e sedes de administração. (...) As cidades antigas e os burgos desempenharam, pois, na história das cidades, um papel essencial. Foram, por assim dizer, pedras de espera. Será à volta das suas muralhas que se formarão as novas cidades, logo que se manifeste o renascimento econômico de que surpreendemos os primeiros sintomas no decurso do século X.

É com as novas cidades, pois, que surge um novo tipo social: o burguês. Citando

Pernaud (1995), Pistori (2007, p. 42) diz que:

a primeira vez que o termo burguês aparece em um documento histórico como tal ocorre para designar os habitantes de uma nova cidade, no início do século XI (1007), através de uma carta de franquia em que o Conde de Anjou garante as isenções de imposto para esses habitantes. A palavra burguês aparece na forma latina: burgensis.

Conforme o autor, o burguês não era nobre, nem servo, nem clérigo. Inicialmente,

era sinônimo de “negociante”, ou seja, alguém que comercializava bens que não

necessariamente produzia, e cuja condição vinha da família ou de uma cerimônia de

entronização na cidade, mediante o pagamento de uma taxa e o cumprimento de outras

obrigações. Já de acordo com Pirenne (2009, p. 102), “o mercador aparece assim não só

como um homem livre, mas ainda como um privilegiado. Como o clérigo e o nobre, goza

de um direito de excepção. Escapa, como eles, ao poder privado e ao poder senhorial que

continuam a sobrecarregar os camponeses”.

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Pirenne (idem, p. 119) também lembra, sobre a designação de burguês, que o termo

não foi inicialmente de uso corrente, coexistindo com cives, conforme a tradição antiga. Já

LE GOFF & SCHMITT (2006, p. 231) dedicam-se a falar do citadino, como um dos

principais tipos do homem medieval. No caso, é descrito como alguém acostumado à

diversidade e à mudança, que vivia no meio de vizinhos e amigos, membro de alguma

confraria, a participante de ações coletivas, como as festas.

Mas como na História não costuma haver rupturas drásticas instantâneas, a tradição

se misturava com novidades. Assim, este novo tipo social urbano, o burguês, tinha suas

relações jurídicas regidas pelo Direito Romano, ao mesmo tempo em que era obrigado a

participar das Festas de Natal, Páscoa, e do santo padroeiro da cidade. Contudo, com o

passar do tempo, organizou-se como classe, a fim de defender seus interesses como tal.

Pistori (2007, p. 43) acrescenta que “a partir do século XIII, surgiu a figura da

chamada ‘burguesia do rei’, ou burguesia forasteira, originária de cidade subordinada ao

rei, e que passou a se instalar em terras de outro senhorio sem perder os direitos adquiridos

na cidade de origem”. Este detalhe é relevante porque, após a Questão das Investiduras, os

poderes do Papa e dos monarcas foram separados e limitados, não sem uma constante

tensão. Mas foi neste contexto que reis passaram a adotar o Direito Romano em detrimento

ao Canônico. Exemplo de como esta tensão foi duradoura foi a “querela bonifaciana”,

citada por Pistori (idem, p. 55), um conflito de natureza tributária entre Bonifácio VIII e o

rei francês Felipe, o Belo, entre 1295 e 1303.

Pirenne (2009, p. 81-2) também destaca o crescimento da economia no território

europeu, ao afirmar que, no século XII, o comércio e a indústria “não se limitam a tomar

uma posição ao lado da agricultura, mas agem sobre ela. Os seus produtos não servem só

para o consumo dos proprietários e trabalhadores do solo: são arrastados na circulação

geral, como objetos de permuta ou matérias-primas”.

O autor também aborda esta relação dos burgueses com a realeza, informando que a

burguesia se distinguiu na organização da sociedade: “De simples grupo social, entregue

ao exercício do comércio e da indústria, transforma-se num grupo jurídico reconhecido

como tal pelo poder dos príncipes. E desta condição jurídica privativa vai necessariamente

derivar a concessão de uma organização judiciária dependente” (Pirenne, 2009, p. 146).

Adiante, o autor acrescenta: “toda uma nova legislação é criada nas cidades em via de

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formação e a jurisprudência dos seus tribunais cria, cada vez mais abundante e preciso, um

direito civil” (idem, p. 152).

Estatutos jurídicos

Blockmans e Hoppenbrowers (2012, p. 369) afirmam que:

A questão de como a sociedade urbana estruturava-se pode ser examinada em um enfoque legal e socioeconômico. Do ponto de vista legal, existiam diversas categorias de pessoas nas cidades, sujeitas a leis estatutárias próprias. Muitas não tinham as condições financeiras necessárias para obter a cidadania, mas continuavam na cidade para realizar um trabalho mal remunerado. Esse grupo formava um conjunto de pessoas com grande mobilidade, que podia reagir rapidamente às flutuações da economia e mudar para outra cidade onde as oportunidades fossem melhores.

“O costume era a fonte de direito principal durante a alta Idade Média, vez que o

Direito Romano fora alijado diante das invasões bárbaras”, inicia Pistori (2007, p. 59),

acrescentando que foi a partir do desaparecimento do império carolíngio que a autoridade

jurídica se desmembrou em pequenas senhorias, com seus respectivos costumes locais,

fortemente marcados por regras morais e religiosas. Este modelo de direito senhorial

predominou nos séculos X e XI, até que neste último se verificou “uma cristalização dos

costumes nos centros mais importantes, como na Normandia” (idem, p. 60), que se irradiou

pelas regiões circunvizinhas. Finalmente, no século XIII, houve uma fixação dos costumes

por escrito (coutumiers), como a chamada Les Etablissements de Saint-Louis, de 1270.

LE GOFF & SCHMITT (2006, p. 338) citam Isidoro de Sevilha, que afirmou que

“todo direito está na lei e nos costumes”, e que a diferença entre eles é que a primeira está

escrita, ao passo que estes, não escritos, são aprovados pela sua “ancianidade”. Para os

autores, foi uma combinação de grande sucesso por séculos, a ponto de eles falarem de

“império do costume”. Eles informam ainda que a palavra “costumes” (consuetudines)

aparece com cada vez mais frequência em documentos dos séculos X e XI – na época,

ainda, como um rol de obrigações dos vassalos.

De qualquer forma, a Idade Média era o tempo em que, como mencionam os

autores, “um bom acordo vale mais que a lei, e os laços de amizade valem mais que as

decisões da justiça” (idem, p. 340). O costume remonta “a práticas anteriores dos pais, dos

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ancestrais, dos predecessores, no mesmo lugar da comunidade, e não aos ordenamentos de

uma lei estabelecida em qualquer outra parte” (idem, p. 341).

Blockmans e Hoppenbrowers (2012, p. 354-5) falam dos privilégios das cidades,

continuamente revisados, conforme a sociedade mudava e o poder também. E dizem que:

... os costumes e as leis consuetudinárias de uma cidade consistiam em uma mistura estranha de privilégios concedidos por escrito por autoridades ao longo de séculos, e suas interpretações e extensões na prática cotidiana. Em uma forma tangível, esses privilégios poderiam ser vistos como um baú pesado cheio de documentos selados e de documentos comprobatórios de diversas autoridades – de papas, imperadores, reis e senhores feudais locais. Todos podiam opinar em assuntos específicos e, às vezes, o governante concedia amplos direitos no tocante à justiça criminal e aos direitos econômicos.

Os autores observam que tais estatutos, por não serem sistematizados, e por abrirem

a possibilidade de interpretação e até alteração pelos magistrados, acabaram seguindo o

ritmo das leis escritas e se tornando uma espécie de jurisprudência. Naturalmente, desta

circunstância derivaram disputas frequentes entre instâncias de poder. Só mais tarde, já no

século XIV, o estabelecimento de uma hierarquia judiciária resolveu tais conflitos.

Já o “renascimento” do Direito Romano é atribuído por Pistori ao mestre Irnério

(ou Guarnério, ou ainda Warnério), docente da Universidade de Bolonha, no século XI.

Logo depois, Provence, Ravena e Lombardia resgatavam o Direito Romano, considerado

mais adequado ao comércio em expansão da época. LE GOFF & SCHMITT (2006, p. 343)

também mencionam Irnerius, ao falar do surgimento das escolas de Direito, no século XII,

“sustentadas pelo crescimento urbano”. E afirmam:

O que eles [alunos] aprendem no redescoberto direito romano e na racionalização escolástica do direito canônico, sob pressão dos acontecimentos, das transformações econômicas, sociais, políticas e na luta ativa contra a heresia, é uma extraordinária tecnologia de construções institucionais, soluções casuísticas, possibilidades processuais sobre as quais eles não tinham até aí nenhuma ideia.

Quanto ao Direito Canônico, ele firmou posição com a Reforma Gregoriana, em

1079, que estabeleceu que a Igreja tinha o direito de legislar e aplicar o poder a si

atribuído. À Igreja, e sobretudo ao Papa, cabia interpretar o Direito e aplicar a Justiça,

segundo seus parâmetros, e apoiada na tradição, nas Escrituras e no Ius Naturalis.

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Porém, o Direito Canônico tem raízes mais antigas. Até o século XII, prevaleceram

as bases assentadas por Santo Agostinho, a quem se atribui uma contribuição para uma

positivação do Direito, a partir dele e dos comentários patrísticos. Logo, houve toda uma

Alta Idade Média monástica e agostiniana. O tomismo aristotélico só ganhou força nas

universidades urbanas da Baixa Idade Média.

Embora criticado – por exemplo, por sua condenação ao ágio e à usura – o Direito

Canônico legou vários institutos jurídicos, substantivos e processuais, assimilados por

códigos posteriores. Um deles foi o princípio da soberania das corporações, pelo qual não

caberia recurso, sendo a corporação soberana em suas decisões. O que inicialmente valia

para os concílios eclesiásticos foi depois adotado por corporações de ofício. Também

podem ser mencionados os avanços nos processos civis: “o processo canônico fez

introduzir o texto escrito e a função notarial; (...) Também foram organizadas as fases para

o andamento do processo” (Pistori, 2007, p. 67).

O fato é que o século XII conheceu uma “explosão” produtiva de glosas jurídicas.

LE GOFF & SCHMITT (2006, p. 344) falam em “sete mil manuscritos de direito romano e

oito mil do direito canônico que as principais bibliotecas da Europa ainda conservam em

nossos dias”.

É por isso que LE GOFF & SCHMITT (2006) afirmam que o fortalecimento da lei

como fonte do Direito foi, no início, graças à Igreja. Partindo da Reforma Gregoriana, os

autores defendem que “a instituição eclesiástica concorreu poderosamente para reconduzir

a lei ao centro de todos os sistemas normativos. É um momento capital” (idem, p. 342).

Adiante, complementam: “O direito em geral, e o direito canônico em particular,

confrontado com o direito romano oportunamente reencontrado, interpretado, tratado

escolasticamente, é o principal instrumento dessa transformação e que se torna, então,

objeto de todas as atenções” (idem, p. 343).

Porém, é mais relevante salientar a visão que o próprio homem medieval tinha do

Direito. Pistori (idem, p. 71) recorre a uma citação de Huizinga, traduzida por Giordani: “O

homem daquele tempo está convencido de que o Direito é absolutamente fixo e certo. A

justiça devia perseguir o culpado em toda a parte e até o fim. A reparação e a retribuição

tinham de ser completas e assumir um caráter de vingança”.

Pirenne (2009, p. 101), por sua vez, relata que os mercadores livres, que praticavam

a mercancia em várias regiões da Europa, lutaram pelo reconhecimento de seus direitos e

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proteção jurídica: “A novidade da sua profissão exige ainda que o direito, feito para uma

civilização baseada na agricultura, se amolde e se preste às primordiais necessidades desta

nova profissão”. O processo judicial da época, com seu formalismo consuetudinário, suas

ordálias, suas resoluções por duelos, era um entrave. Os mercadores “têm necessidade de

um direito mais simples, mais expedito e mais equitativo. Nas feiras e nos mercados

organiza-se entre eles um direito mercantil (jus mercantorum), de que podemos

surpreender os primeiros traços no decurso do século X” (idem, p. 101-2).

A burguesia emergente exigia, antes de mais nada, liberdade. Para Pirenne (1982, p.

57), “a liberdade transforma-se em condição jurídica da burguesia, em tal grau que não é

somente um privilégio pessoal, mas um privilégio territorial inerente ao solo urbano, da

mesma forma que a servidão é inerente ao solo senhorial”. Um provérbio alemão ilustrava

a ideia: “Die Stadluft macht frei”, isto é, “o ar da cidade dá a liberdade”.

Pirenne (idem) lembra que:

o direito tradicional, com o seu processo estritamente formalista, com seus ordálios, os seus duelos judiciais, seus juízes recrutados na população rural e que conheciam unicamente o direito consuetudinário que se elaborara, pouco a pouco, para regulamentar as relações dos homens que viviam do trabalho ou da propriedade da terra, não basta a uma população, cuja existência depende do comércio e do exercício de uma profissão.

De acordo com Blockmans e Hoppenbrowers (2012, p. 355), “a administração e o

sistema judiciário de uma cidade eram sempre controlados pela comunidade de cidadãos.

Os comerciantes mais ricos, os homens de negócios e proprietários de terra

monopolizavam o poder”. Os autores argumentam que as liberalidades conquistadas pelas

cidades, inicialmente como direitos, transformaram-se num sistema de privilégios,

socialmente excludente em relação aos não-cidadãos e à população rural. É como afirma

Pirenne (1982, p. 171): “A cidade medieval é, portanto, essencialmente uma criação da

burguesia. Existe só para os burgueses e graças a eles. Em seu interesse próprio e exclusivo

criaram as instituições e organizaram a economia”.

Batista Neto (1989, p. 109) aborda as transformações da sociedade medieval com o

crescimento do comércio e das cidades. Entre elas, destaca o surgimento de uma nova

categoria social: o proletariado urbano:

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Este grupo era formado por trabalhadores não-qualificados, que às vezes eram absorvidos pelas manufaturas, às vezes não. Pobres, mal pagos e sem direitos políticos, foram vítimas de uma exploração brutal e estavam sempre inseguros quanto ao futuro, porque a atividade na qual se haviam engajado vivia uma existência precária, sofrendo com a flutuação dos preços, as consequências das guerras e as diversas outras calamidades do tempo.

Esta categoria é bem conhecida até hoje.

As instituições corporativas

Pistori (2007, p. 86) afirma que foi após o século XII que mais efetivamente se

estruturaram as chamadas corporações de ofício. E prossegue:

Com o aumento dos negócios, os comerciantes tiveram de criar formas de ajuda mútua diante dos inúmeros problemas com vários tipos de autoridades (senhoriais e de principados), além dos usuais problemas de prejuízos pela insegurança dos negócios. Já havia formatos de organização de cunho religioso (caridade) desde 1050 aproximadamente, sendo certo que essas associações de comerciantes denominadas guildas (ghildes), estruturadas sob influência do procedimento religioso (que era ínsito àquela sociedade),... (PISTORI, 2007, p. 87).

De acordo com o autor, tais organizações se formaram “tendo em conta

necessidades específicas, como, por exemplo, a ordem jurídica, pois era necessário sair da

influência dos tribunais senhoriais, cuja estrutura era por demais inflexível e inaplicável

pelo desconhecimento factual das realidades comerciais e da vida mercantil” (idem).

Segundo Blockmans e Hoppenbrowers (2012, p. 372), “a organização fundamentada na

vizinhança e nas funções religiosas e de caridade formou o cerne do sistema de guildas de

artesãos na Europa”.

Com a indústria artesanal (ofícios, ou métiers) aconteceu de forma semelhante. O

termo métier (ou corp de métier) designava o grupo de artesãos. A partir do século XII,

representava grupos de trabalhadores livres moradores de cidades, que afinal se

organizaram numa entidade.

Quem eram eles? Pistori (2007, p. 90) elenca:

havia o moleiro, o padeiro, o confeiteiro, o açougueiro, o cozinheiro, o quitandeiro, o bodegueiro, etc.; no âmbito da construção e mobiliário,

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havia o pedreiro, o carpinteiro, o telheiro, o marceneiro, o vidreiro, o carreteiro, o toneleiro, o oleiro, o cesteiro, o fabricante de portas, torneiros, fabricante de panelas, fabricante de objetos de chifre, etc.; no âmbito do vestuário, havia o alfaiate, o comerciante de roupas usadas, o tecelão rudimentar, o tintureiro de lã, etc.; no âmbito da metalurgia, havia o ferreiro, o polidor, o cuteleiro, o ferramenteiro (fabricante de morsas, etc.), o ourives;

Com relação à complexidade da organização, o autor observa que os ofícios se

consolidaram em três fases. A primeira, a do costume oral. A segunda, de regulamentação

livre organizada pelos interesses dos artesãos integradamente. E a terceira, uma

regulamentação sistematizada e aprovada comunitariamente. Para Pistori (2007, p. 91), o

processo de organização foi concomitante à “revolução industrial” medieval – nome dado

ao progresso verificado sobretudo no século XII, que incluiu a criação de moinhos,

bússola, navios à vela sem remos, barragem de rios, tear horizontal para dois operários, uso

industrial do carvão, entre outras.

O autor assinala, aliás, que foi a forma romana (colegiada) que influenciou a

formação da corporação da Europa medieval. Na Espanha, surgiu com o nome de gremio,

e em Portugal, como corporação de ofício. Porém, salienta que “houve um tipo especial de

corporação, que possuía um ofício não artesanal, mas intelectual, que merece uma atenção

pela importância que representou e representa até hoje, qual seja, a universidade” (Pistori,

2007, p. 93).

Afirma o autor que uma de suas características era “a autonomia universitária,

nascida de movimento corporativo de auto-defesa dos professores e alunos; possuíam

frequência de milhares de alunos e centenas de professores; consistiam centros de

cosmopolitismo cultural, com direção própria, mas apoio de reis, bispos, imperadores ou

papas” (idem). Havia privilégios, como a dispensa do serviço militar. Recebiam

remuneração dos setores que a apoiavam, o que às vezes gerava conflitos.

Os professores eram contratados tendo em vista sua competência e especialidade,

além da afinidade com a política da instituição. O trabalho docente incluía muitas horas de

estudo e aulas, bem como serviços religiosos e atenção aos alunos sob vários aspectos, não

só acadêmico, mas também material, moral e espiritual. Desde o século XII, informa

Pistori (idem, p. 96), ser professor universitário era uma carreira.

LE GOFF (2013, p. 126) explica que estes professores universitários, ao contrário

dos monges das escolas monásticas, eram pagos “por sua docência, sob a forma de salários

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das autoridades públicas, de prebendas eclesiásticas especiais, ou, mais frequentemente

ainda, de somas pagas pelos estudantes”. Durante certo período, este “assalariamento

intelectual” fazia dos docentes uma espécie de “mercenário”, que atentava contra a “venda

da ciência” como dom divino. Porém, a remuneração era pelo seu trabalho, não pelo seu

saber.

Podia ocorrer a transferência de mestres entre universidades, conforme suas

necessidades e proposta de remuneração. Quanto aos estudos, variavam conforme as

matérias e as localidades. Em Orléans, um doutorado demorava dez anos, e os exames

finais eram realizados através de um debate com uma banca. Se aprovados, ganhavam o

direito de lecionar, ou a licencia docendi.

As corporações cuidaram de regulamentar seus ofícios. O trabalho e a produção

foram normatizados, ainda que com origem nos costumes. Começaram a ser positivados no

século XIII, como balizamento para litígios judiciais. Pistori (2007, p. 103) traz parte do

estatuto dos ourives de Paris, de 1261, como ilustração:

1. É para os ourives de Paris que querem fazer parte do conjunto de nosso trabalho: 2. Nós ourives só podemos trabalhar ouro em Paris ou em seus arredores (...); 3. Nós ourives só podemos trabalhar em Paris com a prata que seja boa como a moeda de prata (esterlins); 4. Nós ourives só podemos ter um aprendiz estrangeiro (...); quando forem de linhagem estrangeira por parte de mãe, será possível tê-los sem limites...; 5. Nós ourives não podemos ter aprendiz particular ou estrangeiro com menos de dez anos (...); 6. Nós ourives não podemos abrir de noite, a não ser para trabalho do rei, da rainha, de seus filhos, seus irmãos ou do bispo; ...

Havia obrigações de cunho religioso, estabelecidas de forma bem complexa, como

estas dos companheiros curtidores de Paris: “Que eles não partam para o trabalho desde a

Páscoa até ao dia de S. Remígio senão ao sol-nascente e regressem ao sol-poente; e do dia

de S. Remígio até a Páscoa, a uma tal hora, quer de manhã quer à tarde, que se possa

distinguir um tornes de um parisis...” (Pistori, 2007, p. 106).

Muitas corporações, portanto, vedavam o trabalho em dias santos, fossem os de

veneração local (como o padroeiro da cidade) ou de toda a Cristandade, como o Natal e a

Sexta-Feira da Paixão. A Quaresma também era regida por uma jornada especial.

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O trabalho noturno era normalmente proibido por razões práticas de segurança:

velas poderiam causar um incêndio. Isso foi resolvido no século XIX: Thomas Alva Edison

inventou a lâmpada incandescente e o turno da noite. No século XIV, a invenção do

relógio mecânico destronou os sinos como marcadores de tempo.

Finalmente, cabe assinalar que as corporações de ofício também tiveram seu tempo

e desapareceram. Foram sendo abolidas na Inglaterra a partir de meados do século XVI, e

definitivamente na virada do século XVIII para XIX. Na França, também foram extintas

até o final do século XVIII. Mas outras vieram, atualizadas: os sindicatos. Conforme

Blockmans e Hoppenbrowers (2012, p. 376), o sistema de guildas, ou corporativismo,

existiu na França até 1792, e em outros lugares até o século XIX.

Considerações finais

É possível vislumbrar o embrião de relações trabalhistas e comerciais da

contemporaneidade no estudo destas mesmas relações nas cidades da Baixa Idade Média.

Este é sempre nosso intuito: revelar as origens medievais do modo de vida moderno, e

reconhecer a nós mesmos como herdeiros diretos das tradições medievais.

Mesmo após o modo de produção feudal ter dado lugar ao modo capitalista – este

modelo ciumento que não admite concorrência – ainda podem ser encontrados traços fortes

da tradição medieval, especialmente nas comunidades interioranas do Brasil, nas quais a

visão de mundo ainda tem matiz arcaico.

Pistori (2007, p. 10) diz que, entre os séculos XIII e XIV:

a economia não era o dado essencial de preocupação da sociedade medieval: o pensamento e as atitudes tinham como princípio o mínimo necessário para a vida social, e não o aumento do nível de vida; o exercício de uma profissão não existia para ganhar dinheiro, mas para atender uma vocação dada por Deus; o trabalho era uma responsabilidade cristã, e não necessariamente o ganha-pão. Na vida social o auxílio mútuo dominava a conduta, excluindo-se a concorrência comercial...

Por isso, ainda hoje, muitos ofícios são comparados a sacerdócios, a resultado de

vocações. A realização profissional de milhares de modernos ainda passa mais pelo

exercício pleno de um ofício do que pela remuneração simplesmente.

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Claro que a expansão econômica fez surgirem conflitos, e mais: Pistori (2007, p.

116) observa que as crises econômicas “conduziram a um aprofundamento do contraste

entre ricos e pobres, com os ricos cada vez mais ricos diante do início de um capitalismo

comercial, e com os pobres em situação pior do que aquela vivida durante o período

medieval até o século XIV”. Pior: Blockmans e Hoppenbrowers (2012, p. 451) são

categóricos: “a crescente organização e a regulamentação do trabalho e da produção nas

guildas, assim como o comércio de varejo e os serviços, fortaleceram a tendência à

exclusão social” – situação que atravessou os séculos e atingiu seu auge depois do fim da

Idade Média.

Um fenômeno observado na Idade Média tardia acabou se repetindo

posteriormente, particularmente no Brasil da metade do século XX: o êxodo rural. As

consequências foram as mesmas lá do medievo: trabalhadores vindos do campo se

separavam da família, ficando sem o apoio comunitário que antes possuíam. Assim,

passaram a formar uma plebe urbana,

distinta do povo da cidade; não possuíam direitos locais, não participavam de associações religiosas ou confrarias, não tinham o convívio urbano corriqueiro dos que ali habitavam normalmente e tampouco participavam de festejos ou competições. Sequer tinham o sobrenome que era dado àqueles que tinham uma profissão, mas eram conhecidos apenas pelo nome de batismo e por sua procedência – a localidade de onde vinham. (...) Eles moravam na periferia dessas cidades, além e em volta dos muros de limite e proteção urbana. (PISTORI, 2007, p. 113).

Batista Neto (1989, p. 110), citando Norman Cohn, descreve as consequências

deste processo neste contingente, que são assustadoramente atuais:

... essa população era constituída geralmente de antigos camponeses que, na cidade, tinham perdido a proteção familiar e senhorial, embora esta fosse também frequentemente opressiva. Abandonados muitas vezes à própria sorte, tornavam-se presa de fortes perturbações psíquicas e integravam-se a seitas e correntes salvacionistas. Aderiam a profetas que viam nas alterações climáticas, nas pestes e nas guerras sinais inequívocos da proximidade do fim do mundo e engrossavam as fileiras dos milenaristas, dos heréticos e dos cruzados populares.

Ainda somos medievais.

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REFERÊNCIAS:

BATISTA NETO, Jônatas. História da Baixa Idade Média (1066-1453). São Paulo: Ática, 1989.

BENEVOLO, Leonardo. História da cidade. São Paulo: Perspectiva, 2011.

BLOCKMANS, Wim e HOPPENBROUWERS, Peter. Introdução à Europa medieval: 300-1550. Rio de Janeiro: Forense, 2012.

CORTAZAR, Garcia de. História rural medieval. Lisboa: Editorial Estampa, 1996.

DUBY, George. Guerreiros e camponeses: os primórdios do crescimento econômico europeu – séc. VII-XII. Lisboa: Editorial Estampa, 1993.

LE GOFF, Jacques. Para uma outra Idade Média: tempo, trabalho e cultura no Ocidente. Petrópolis: Vozes, 2013.

LE GOFF, Jacques & SCHMITT, Jean-Claude. Dicionário temático do ocidente medieval. Bauru: EDUSC, 2006. Volume 1.

PIRENNE, Henri. As cidades da Idade Média. Mem Martins: Publicações Europa-América, 2009.

_______ . História econômica e social da Idade Média. São Paulo: Mestre Jou, 1982.

PISTORI, Gerson Lacerda. História do Direito do Trabalho: um breve olhar sobre a Idade Média. São Paulo: LTr, 2007.