Ora pois, uma língua bem brasileira

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    CAPA

    Estudo para Partida da mono , 1897, de Almeida Jnior (Acervo Pinacoteca do Estado de SP). Os bandeirantes saam de Porto Feliz rumo ao Centro-Oeste

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    Anlise de textos antigose de entrevistas expeas marcas prpriasdo idioma no pas, oalcance do R caipira e oslugares que preservammodos antigos de falar

    possibilidade de ser simples,dispensar elementos gramaticais teoricamenteessenciais e responder sim, comprei, quandalgum pergunta voc comprou o carro?, umdas caractersticas que conferem exibilidade identidade ao portugus brasileiro. A anlise d

    documentos antigos e de entrevistas de campao longo dos ltimos 30 anos est mostrandque o portugus brasileiro j pode ser considerado nico, diferente do portugus europeu, dmesmo modo que o ingls americano distintdo ingls britnico. O portugus brasileiro aindno , porm, uma lngua autnoma: talvez se na previso de especialistas, em cerca de 20anos quando acumular peculiaridades que noimpeam de entender inteiramente o que umnativo de Portugal diz.

    A expanso do portugus no Brasil, as varies regionais com suas possveis explicae

    Carlos Fioravanti

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    que fazem o urubu de So Paulo ser chamado decorvo no Sul do pas, e as razes das inovaes dalinguagem esto emergindo por meio do trabalhode cerca de 200 linguistas. De acordo com estu-dos da Universidade de So Paulo (USP), umainovao do portugus brasileiro, por enquantosem equivalente em Portugal, o R caipira, svezes to intenso que parece valer por dois outrs, como em porrrta oucarrrne.

    A ssociar o R caipira apenas ao interior pau-lista, porm, uma impreciso geogrca e his-trica, embora o R desavergonhado tenha sidouma das marcas do estilo matuto do ator Am-cio Mazzaropi em seus 32 lmes, produzidos de1952 a 1980. Seguindo as rotas dos bandeirantespaulistas em busca de ouro, os linguistas encon-traram o R supostamente tpico de So Paulo emcidades de Minas Gerais, Mato Grosso, MatoGrosso do Sul, Paran e oeste de Santa Catari-

    na e do Rio Grande do Sul, formando um modode falar similar ao portugus do sculo XVIII.Quem tiver pacincia e ouvido apurado poderencontrar tambm na regio central do Brasil eem cidades do litoral o S chiado, uma caracte-rstica hoje tpica do falar carioca que veio comos portugueses em 1808 e era um sinal de pres-tgio por representar o falar da Corte. Mesmo osportugueses no eram originais: os especialistasargumentam que o S chiado, que faz da esquinaumashquina, veio dos nobres franceses, que osportugueses admiravam.

    A histria da lngua portuguesa no Brasil esttrazendo tona as caractersticas preservadas doportugus, como a troca do L pelo R, resultandoem pranta em vez de planta. Cames registrouessa troca emOs lusadas l est um frautas nolugar de autas e o cantor e compositor pau-lista Adoniran Barbosa a deixou registrada emdiversas composies, em frases como frecha-da do teu olhar, do sambaTiro ao lvaro. Emlevantamentos de campo, pesquisadores da USPobservaram que moradores do interior tanto doBrasil quanto de Portugal, principalmente os me-nos escolarizados, ainda falam desse modo. Outro

    sinal de preservao da lngua identicado porespecialistas do Rio de Janeiro e de So Paulo,dessa vez em documentos antigos, foia gente ouas gentes como sinnimo de ns e hoje uma dasmarcas prprias do portugus brasileiro.

    Clia Lopes, da Universidade Federal do Riode Janeiro (UFRJ), encontrou registros dea gen-te em documentos do sculo XVI e, com maisfrequncia, a partir do sculo XIX. Era uma for-ma de indicar a primeira pessoa do plural, nosentido detodo mundo com a incluso necessriadoeu. Segundo ela, o emprego dea gente podepassar descompromisso e indenio: quem diz

    a gente em geral no deixa claro se pretendese comprometer com o que est falando ou sese v como parte do grupo, como em a genteprecisa fazer. J o pronome ns, como em nprecisamos fazer, expressa responsabilidade ecompromisso. Nos ltimos 30 anos, ela notoua gente instalou-se nos espaos antes ocupadospelonse se tornou um recurso bastante usadopor todas as idades e classes sociais no pas inteiro, embora nos livros de gramtica permaneana marginalidade.

    Linguistas de vrios estados do pas esto de-senterrando as razes do portugus brasileiroao examinar cartas pessoais e administrativas,testamentos, relatos de viagens, processos ju-diciais, cartas de leitores e anncios de jornaisdesde o sculo XVI, coletados em instituiescomo a Biblioteca Nacional e o Arquivo Pblicdo Estado de So Paulo. A equipe de Clia Lopetem encontrado tambm na feira de antiguidadesdo sbado da Praa XV de Novembro, no centr

    do Rio, cartas antigas e outros tesouros lingus-ticos, nem sempre valorizados. Um estudanteme trouxe cartas maravilhosas encontradas nolixo, ela contou.

    DE VOSSA MERC PARA C

    Os documentos antigos evidenciam que o por-tugus falado no Brasil comeou a se diferen-ciar do europeu h pelo menos quatro sculos.

    Sem ttulo dasrie Estudopara

    bandeirantes,sem data, de

    HenriqueBernardelli,

    (AcervoPinacoteca doEstado de SP)

    paulistasexpandiram a

    lnguaportuguesa

    conquistandooutras regies R

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    Uma indicao dessa separao o Memrias para a histria da capitania de So Vicente, de1793, escrito por frei Gaspar da Madre de Deus,nascido em So Vicente, e depois reescrito peloportugus Marcelino Pereira Cleto, que foi juiz

    em Santos. Comparando as duas verses, JosSimes, da USP, encontrou 30 diferenas entreo portugus brasileiro e o europeu. Uma delas encontrada ainda hoje: como usurios do por-tugus brasileiro, preferimos explicitar os su- jeitos das frases, como em o rapaz me vendeu ocarro, depois ele saiu correndo e ao atravessar arua ele foi atropelado. Em portugus europeu,seria mais natural omitir o sujeito, j denidopelo tempo verbal o rapaz vendeu-me o car-ro, depois saiu a correr... , resultando em umaconstruo gramaticalmente impecvel, emboranos soe um pouco estranha.

    Um morador de Portugal, se lhe perguntaremse comprou um carro, responder com naturalidade sim, comprei-o, explicitando o complmento do verbo, mesmo entre falantes poucescolarizados, observa Simes. Ele nota que

    portugueses usam mesclise dar-lhe-ei umcarro, com certeza! , que soaria pernstica nBrasil. Outra diferena a distncia entre a lngufalada e a escrita no Brasil. Ningum falamuito,masmuinto. O pronomevoc, que j uma redu-o devossa merc e devosmec, encolheu aindamais, parac, e grudou no verbo:cevai?

    A lngua que falamos no a que escrevemodiz Simes, com base em exemplos como essO portugus escrito e o falado em Portugal smais prximos, embora tambm existam diferenas regionais. Simes complementa as anlistextuais com suas andanas por Portugal. H 1

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    A N A P A U L A C A M P O S I L U

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    FONTES PETRONE, P. ALDEAMENTOS PAULISTAS. SETUBAL, M.A. A FORMAO DO ESTADO DE SO PAULO

    Entre 1550 e 1720,bandeirantes levaramo idioma ao interiordo pas

    Extenso mxima da Capitaniade So Paulo em 1709

    Expedies contra redues jesuticas espanholas

    Expedies de apresamentode outros grupos indgenas

    Expedies mercenriaspaulistas no Nordeste

    Rota aproximada das expediesde Raposo Tavares

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    anos meus parentes de Portugal diziam que noentendiam o que eu dizia, ele observa. Hoje,provavelmente por causa da inuncia das no-velas brasileiras na televiso, dizem que j estoufalando um portugus mais correto.

    Conservamos o ritmo da fala, enquanto os eu-ropeus comearam a falar mais rpido a partir dosculo XVIII, observa Ataliba Castilho, professoremrito da USP, que, nos ltimos 40 anos, plane- jou e coordenou vrios projetos de pesquisa sobreo portugus falado e a histria do portugus doBrasil. At o sculo XVI, diz ele, o portugus brasileiro e o europeu eram como o espanhol,com um corte silbico duro. A palavra falada eramuito prxima da escrita. Clia Lopes acrescentaoutra diferena: o portugus brasileiro conservaa maioria das vogais, enquanto os europeus emgeral as omitem, ressaltando as consoantes, e di-riamtulfnpara se referir ao telefone.

    H tambm muitas palavras com sentidosdiferentes de um lado e de outro do Atlntico. Osestudantes das universidades privadas no pagammensalidade, mas propina. Bolsista bolseiro. Co-mo os europeus no adotaram algumas palavrasusadas no Brasil, a exemplo debunda, de origemafricana, podem surgir situaes embaraosas.Vanderci Aguilera, professora snior da Univer-sidade Estadual de Londrina (UEL) e uma daslinguistas empenhadas no resgate da histria doportugus brasileiro, levou uma amiga portuguesaa uma loja. Para ver se um vestido que acabavade experimentar caa bem s costas, a amiga lheperguntou: O que achas do meu rabo?.

    O SOLDADO E A FILHA DO FAZENDEIRO

    No acervo de documentos sobre a evoluo doportugus paulista (phpp.fflch.usp.br/corpus), es-t uma carta de 1807, escrita pelo soldado ManoelCoelho, que teria seduzido a lha de um fazen-deiro. Quando soube, o pai da moa, enfurecido,forou o rapaz a se casar com ela. O soldado, po-rm, bateu o p: no se casaria, como ele escreveu,nem por bem nem por mar. Simes estranhou

    a citao ao mar, j que o quiproqu se passavana ento vila de So Paulo, mas depois percebeu:Olha o R caipira! Ele quis dizer nem por bemnem por mal!. O soldado escrevia como falava,no se sabe se casou com a lha do fazendeiro,mas deixou uma prova valiosa de como se falavano incio do sculo XIX.

    O R caipira era uma das caractersticas dalngua falada na vila de So Paulo, que aos pou-cos, com a crescente urbanizao e a chegada deimigrantes europeus, foi expulsa para a periferiaou para outras cidades, diz Simes. Era a lnguados bandeirantes. Os especialistas acreditam

    que os primeiros moradores da vila de So Paulo, alm de porrta, pulavam consoantes no meiodas palavras, falandomui em vez demulher, porexemplo. Para aprisionar ndios e, mais tarde,para encontrar ouro, os bandeirantes conquista-ram inicialmente o interior paulista, levando seuvocabulrio e seu modo de falar. O R exageradoainda pode ser ouvido nas cidades do chamadoMdio Tiet como Santana de Parnaba, Piraporado Bom Jesus, Sorocaba, Itu, Tiet, Porto Feliz

    e Piracicaba, cujos moradores, principalmenteos do campo, o pintor ituano Jos Ferraz de Al-meida Jnior retratou, at ser assassinado pelomarido de sua amante em Piracicaba. Os ban-deirantes seguiram depois para outras matas daimensa Capitania de So Paulo, constituda em1709 com os territrios dos atuais estados de SoPaulo, Mato Grosso do Sul, Mato Grosso, Rondnia, Tocantins, Minas Gerais, Paran e SantaCatarina ( ver mapa ).

    Manoel Mourivaldo Almeida, tambm da USPencontrou sinais do portugus paulista antigo emCuiab, a capital de Mato Grosso, que permaneceu com relativamente pouca interao lingus-tica e cultural com outras cidades depois do mdo auge da minerao de ouro, h dois sculosO portugus culto dos sculos XVI ao XVII tinha um S chiado, conclui Almeida. Os paulis-tas, quando foram para o Centro-Oeste, falavamcomo os cariocas hoje! O ator e diretor teatracuiabano Justino Astrevo de Aguiar reconhecea herana paulista e carioca, mas considera umtrao mais evidente do falar local o hbito deacrescentar um J ou umT antes ou no meio daspalavras, como emdjeito, cadju outchuva, uma

    caracterstica da pronncia tpica do sculo XVIIque Almeida identicou tambm entre morado-res de Gois, Minas Gerais, Maranho e na regida Galcia, na Espanha.

    Almeida apurou o ouvido para as variaes doportugus no Brasil por conta de sua prpria his-tria. Filho de portugueses, nasceu em Piritiba,interior da Bahia, saiu de l aos 7 anos, morouem Jaciara, interior de Mato Grosso, e depois 25anos em Cuiab, foi professor da universidadefederal e se mudou para So Paulo em 2003. Elreconhece que fala como paulista nos momen-tos mais formais embora prera falarxtra em

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    vez dextra como os paulistas , mas quandodescontrai assume o ritmo de falar baiano e ovocabulrio matogrossense. Ele estuda o modode falar cuiabano desde 1991, por sugesto de umcolega professor, Lenidas Querubim Avelino,especialista em Cames, que havia verificadosinais do portugus arcaico por l. Avelino lhecontou que um roceiro cego de Livramento, a 30quilmetros de Cuiab, comentou que ele estavaandando pusilo, no sentido de fraco. Avelinoreconheceu uma forma reduzida de pusilnime,que no era mais usada em Portugal.

    Os moradores de Cuiab e de algumas outrascidades, como Cceres e Baro de Melgado, emMato Grosso, e Corumb, em Mato Grosso do Sul,preservam o portugus paulista do sculo XVIIImais do que os prprios paulistas. Paulistas dointerior e tambm da capital hoje falamdia, comumd seco, enquanto na maior parte do Brasil sedizdjia, observou Almeida. O modo de falarpode mudar dependendo do acesso cultura,da motivao e da capacidade de perceber e ar-ticular sons de modo diferente. Quem procurarnos lugares mais distantes dos grandes centros

    urbanos vai encontrar sinais de preservao doportugus antigo.De 1998 a 2003, uma equipe coordenada por

    Heitor Megale, da USP, seguiu a rota das ban-deiras do sculo XVI em busca de traos da ln-gua portuguesa antiga que tenham permanecidoao longo de quatro sculos. As entrevistas commoradores com 60 anos a 90 anos de quase 40cidades ou povoados de Minas Gerais, Gois eMato Grosso trouxeram tona termos esqueci-dos comomamparra (ngimento) emensonha (mentira), uma palavra de um dos poemas deFrancisco de S de Miranda do sculo XV,treio,

    usada no interior de Gois no sentido desurpre-sa, e termos da linguagem popular ainda usadoem Portugal, comodespois, perciso e tristura,comuns no sul de Minas. O que parecia anacrnismo ganhou valor. Dizersancristia em vez desacristia no era um erro, mas uma influnciapreservada do passado, quando a pronncia erassim, relatou o Jornal da Manh, de Paracatu,Minas, em 20 de dezembro de 2001.

    Ao norte, a lngua portuguesa expandiu-spara o interior a partir da cidade de Salvadorque foi a capital do Brasil Colnia durante trsculos. Salvador era tambm um centro de fementao da lngua, por receber multides descravos africanos, que aprendiam o portugucomo lngua estrangeira, mas tambm ofereciaseu vocabulrio, ao qual j haviam se somado palavras indgenas.

    P ara impedir que a lngua de Cames se desgurasse ao cruzar com os dialetos nativos, S bastio Jos de Carvalho e Melo, o Marqus

    Pombal, secretrio de Estado do reino, resolveagir. Em 1757, Pombal expulsou os jesutas, enoutras razes de ordem poltica, porque estavamensinando a doutrina crist em lngua indgenae, por decreto, fez do portugus a lngua ocido Brasil. O portugus se imps sobre as lngunativas e ainda hoje a lngua ocial, embora linguistas alertem que no possa ser chamadde nacional por causa das 180 lnguas indgenfaladas no pas (eram 1.200, estima-se, quandos portugueses chegaram). A miscigenao ligustica, que reete a mistura de povos formadores do pas, explica em boa parte as varia

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    Rua 25 de maro ,1894,de AntonioFerrigno (AcervoPinacoteca doEstado de SP).A cidade de SoPaulo tinha umsotaque prprio

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    regionais de vocabulrio e de ritmos, sintetiza-das em um mapa dos falares do Museu da Ln-gua Portuguesa, em So Paulo. fcil encontrarvariaes em um mesmo estado: os moradoresdo norte de Minas falam como os baianos, osda regio central mantm o autntico mineirs,no sul a inuncia paulista intensa e a leste omodo de falar assemelha-se ao sotaque carioca.

    A PANDORGA E O BIGATO

    H 10 anos um grupo de linguistas estuda umdos resultados da miscigenao lingustica: osdiferentes nomes com que um mesmo objetopode ser chamado, registrados por meio de en-trevistas com 1.100 pessoas em 250 localidades.Brasil afora, o brinquedo feito de papel e varetasque se empina ao vento por meio de uma linha chamado de papagaio, pipa, raia ou pandorga ou ainda coruja em Natal e Joo Pessoa , deacordo com o primeiro volume do Atlas lingusticodo Brasil, publicado em outubro de 2014 com os

    resultados das entrevistas nas capitais (EditoraUEL). J o aparelho com luzes vermelha, ama-rela e verde usado em cruzamentos de ruas pararegular o trnsito chamado apenas de sinal noRio de Janeiro e em Belo Horizonte e tambmde semforo nas capitais do Norte e Nordeste.Goinia registrou os quatro nomes para o mesmoobjeto: sinal, semforo, sinaleiro e farol.

    Comea agora a busca de explicaes paraessas diferenas. Onde nasci, em Sertanpolis,a 42 quilmetros de Londrina, disse VanderciAguilera, uma das coordenadoras do Atlas, cha-mamos bicho de goiaba de bigato por inunciados colonizadores, que eram imigrantes italianosvindos do interior paulista. Segundo ela, os mo-radores dos trs estados do Sul chamam urubude corvo por inuncia dos europeus, enquantoos do Sudeste mantiveram o nome tupi, urubu.

    Cada estado ou regio tem seu prprio pa-trimnio lingustico, que deve ser respeitado,enfatizam os especialistas. Os professores deportugus, alerta Vanderci, no deveriam re-preender os alunos por chamarem beija-or decuitelo, como comum no interior do Paran,nem recriminar os que dizemcaro, churasco ou

    baranco, como comum entre os descendentesde poloneses e alemes no Sul, mas ensinar outrasformas de falar e deixar a meninada se expressarcomo quiser quando estiver com a famlia ou comos amigos. Ningum fala errado, ela enfatiza.Todo mundo fala de acordo com sua histria devida, com o que foi transmitido pelos pais e de-pois modicado pela escola. Nossa fala nossaidentidade, no temos por que nos envergonhar.

    A diversidade do portugus brasileiro togrande que, apesar do empenho dos locutores detelejornais de alcance nacional em tentar criaruma lngua neutra, despida de sotaques locais,

    no h um padro nacional, assegura CastilhoH diferenas de vocabulrio, gramtica, sintaxee pronncia mesmo entre pessoas que adotam anorma culta, diz ele. Insatisfeito com as teoriasimportadas, Castilho criou a abordagem multis-sistmica da linguagem, segundo a qual qualqueexpresso lingustica mobiliza simultaneamen-te quatro planos (lxico, semntica, discurso egramtica), que deveriam ser vistos de modointegrado e no mais separadamente. Ao ladode Verena Kewitz, da USP, ele tem debatido essaabordagem com estudantes de ps-graduao ecom outros especialistas do Brasil e no exterior

    T ambm est claro que o portugus brasi-leiro se refaz continuamente. As palavras podemmorrer ou ganhar novos sentidos. Almeida contouque Celciane Vasconcelos, uma das estudantes deseu grupo, vericou que somente os moradores

    mais antigos do litoral paranaense conheciam apalavrasumaca, um tipo de barco antes comum,que hoje no se constri mais, tirando a antigaserventia da palavra que hoje nomeia uma praiaem Paraty (RJ). Os modos antigos de falar podemressurgir. O R caipira, asseguram os linguistas,

    est voltando, at mesmo em So Paulo, e readquirindostatus, na esteira dos cantores de msicasertaneja. Hoje ser caipira chique, asseguraVanderci. Ou ao menos aceitvel e parte doestilo pessoal, como o da apresentadora de TVSabrina Sato.

    BILHETES DE AMOR

    Os linguistas tm notado a expanso do tratamen-to informal. Tenho 78 anos e devia ser tratadopor senhor, mas meus alunos mais jovens metratam por voc, diz Castilho, aparentementesem se incomodar com a informalidade, incon-cebvel em seus tempos de estudante. Ovoc,porm, no reinar sozinho. Clia Lopes, comsua equipe da UFRJ, vericou que otu predo-mina em Porto Alegre e convive com ovoc noRio de Janeiro e em Recife, enquantovoc otratamento predominante em So Paulo, Curi-

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    tiba, Belo Horizonte e Salvador. Otu j era maisprximo e menos formal quevoc nas quase 500cartas do acervoon-line da UFRJ (www.letras.ufrj.br/laborhistorico/), quase todas de poetas,polticos e outras personalidades do nal do s-culo XIX e incio do XX.

    Como ainda faltava a expresso do falar daspessoas comuns, Clia e sua equipe exultaramao encontrar 13 bilhetes escritos em 1908 porRobertina de Souza para seu amante e para seumarido. Esse material era parte de um processo--crime movido contra o marido, que expulsou de

    sua casa um amigo e a prpria mulher ao saberque tinham tido um caso extraconjungal e de-pois matou o ex-amigo. Em um dos 11 bilhetespara o amante, lvaro Mattos, Robertina, queassinava como Chininha, escreveu: Eu te adorote amo at a morte sou tua s tu meu s o meucoracao e teu e o teu coracao meu. Chininhae todinha tua ate a morte. J o marido, ArthurNoronha, que recebeu apenas dois bilhetes, elatratava de modo mais formal: Eu rezo pedin-do a Deus para voc me perdoar, mas creio quevoce no tem coragem de ver morrer um lhoo lha. E mais adiante: No posso me separar

    de voce e do meu filho a no ser com a morteNo se sabe se ela voltou para casa, mas o mado foi absolvido, por alegar que matou o outhomem em defesa da honra.

    Outro sinal da evoluo do portugus brasileiro so as construes hbridas, com um verbque no concorda mais com o pronome, do tiptu no sabe?, e a mistura dos pronomes de trata-mentovoc etu, como em se voc precisar, voute ajudar. Os portugueses europeus poderiamalegar que se trata de mais uma prova de nosscapacidade de desgurar a lngua lusitana, ma

    talvez no tenham tanta razo para se queixarClia Lopes encontrou a mistura de pronomes dtratamento, que ela e outros linguistas no consideram mais um erro, em cartas do marqus dLavradio, que foi vice-rei do Brasil de 1769 a 1e, mais de dois sculos depois, em uma entrevisdo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso.n

    ProjetoProjeto de histria do portugus paulista (PHPP Projeto Caipira)(n 11/51787-5); Modalidade Projeto Temtico; Pesquisador res-ponsvel Manoel Mourivaldo Santiago Almeida(USP);Investimento R$ 87.372,10 (FAPESP).

    Cena de famlia de AdolfoAugusto Pinto ,1891, deAlmeida Jnior(AcervoPinacoteca doEstado de SP).No nal dosculo XIX opronome voc jera mais formalque o tu

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