ORALIDADE E ESCRITA EM PLATÃO
description
Transcript of ORALIDADE E ESCRITA EM PLATÃO
Texto integrante dos Anais do XVIII Encontro Regional de História – O historiador e seu tempo. ANPUH/SP – UNESP/Assis, 24 a 28 de julho de 2006. Cd-rom.
“Oralidade e Cultura Escrita em Platão: Para pensar a História Oral”
Gustavo Esteves Lopes (Núcleo de Estudos em História Oral-USP)
Apresentação
O presente seminário propõe apresentar o debate entre a chamada escola de
Tübingen-Milano e a historiografia tradicional sobre a doutrina platônica. Mais
precisamente, questões acerca da oralidade e escrita em Platão se fazem discutíveis
do ponto de vista da História Oral, uma vez que os estudos clássicos são de interesse
epistemológico para com a necessidade de si mesma constituir um estatuto autônomo
diante das diversas disciplinas de ciências humanas correlatas.
Franco Trabattoni, da Università degli Studi di Milano – crítico do paradigma
proposto por Giovanni Reale da Università Catolica di Milano à luz de Hans Krämer
e Konrad Gaiser da Tübingen Universität – publicou no Brasil em 2003 suas
conferências realizadas na Universidade de Brasília em 1999. Este livro é o cerne da
discussão, porque dele partiu a provocação no sentido de abalar a interpretação da
escola Tübingen-Milano, fundamentada na “Estrutura das Revoluções Científicas” de
Thomas S. Kuhn, a partir da qual se reflete o legado de um “Platão oral” como
mestre doutrinador da ψύκαγογια (educação da alma), em detrimento do limitado
alcance filosófico da escritura na busca da verdade que existe somente na
imortalidade da alma.
* * *
A escola de Tübingen-Milano e a crítica de Franco Trabattoni
O debate historiográfico, entre Trabattoni e a escola de Tübingen-Milano, têm
como fontes certos excertos dos Diálogos, principalmente em Fedro (274d-275b), e
na Carta Sétima (344c-344d), pelas críticas à cultura escrita, feitas por Platão (nas
palavras de Sócrates e suas também, denominadas autotestemunhos)1.
1 No sentido de estabelecer um debate historiográfico, Cf., TRABATTONI, Franco. Oralidade e Escrita em Platão. (Trad. Roberto Bolzani Filho, Fernando Eduardo de Barros Rey Puente). São Paulo: Discurso Editorial; Ilhéus: Editus. 2003. REALE. Giovanni. Para uma nova interpretação de Platão: Releitura da metafísica dos grandes diálogos à luz das doutrinas não escritas. (Trad. Marcelo Perine). São Paulo: Loyola, 14ª ed. 1991. Como “fontes documentais escritas”, devem ser feitas referências a: PLATON. Phèdre; in: Œuvres Complètes. (Trad. Leon Robin). Paris: Les Belles Lettres, T. IV, P. 3, 4ème ed. 1954._______. Lettres; in: Op. Cit. (Trad. Joseph Souilhé). Paris: Belles Lettres. T. XIII, P.1. 1949.
Texto integrante dos Anais do XVIII Encontro Regional de História – O historiador e seu tempo. ANPUH/SP – UNESP/Assis, 24 a 28 de julho de 2006. Cd-rom.
A leitura dos testemunhos da tradição indireta de Platão (Aristóteles,
Teofrasto entre outros) também é de grande relevância para entender as “Doutrinas
Não Escritas” na Academia, e a formulação do paradigma de um Platão da
“oralidade dialética”, como defende a escola de Tübingen-Milano. Mas Trabattoni
tenta deslocar a análise destas “Doutrinas Não Escritas” de perspectiva aristotelizante
para um retorno à tradição formalista Schleiermacheriana de H. Cherniss, que
valoriza o legado escrito platônico – ainda que os autotestemunhos de Platão e os
testemunhos da tradição indireta refutem a escrita como solução para a memória.
Deste modo Trabattoni desconsidera .o caráter esotérico da comunidade acadêmica,
sem que haja desmerecimento da primazia da comunicação oral. Entende-a como
reformuladora da antiga educação grega baseada na poesia, no mito, em sua plena
oralidade, para “ater-se ao λόγος e a tudo o que, de algum modo, tem a capacidade
de demover e ‘conduzir’ a alma”.
Na perspectiva de Giovanni Reale, o paradigma hermenêutico para estudos
sobre Platão, sob a alternativa da teoria das revoluções científicas de Thomas S.
Kuhn2, deve reler os Diálogos à luz das “Doutrinas Não Escritas” (άγραφα δόγματα),
apoiado também na tradição indireta, como testemunhada por Aristóteles em Física
(209b14-15), e na Metafísica (I, Cap. VI, 987a29- 988a17), na qual ratificava
convívio de Platão em sua juventude com doutrinas pitagóricas e heraclitianas.
Compreender Platão com o conhecimento de sua tradição indireta reforça o valor dos
autotestemunhos que deduzem o comprometimento do mestre que confia à oralidade
a prioridade do ensinamento filosófico das doutrinas das Idéias, porque considerava
reduzida a forma da escritura para o estabelecimento dos mais sérios conteúdos
filosóficos, ao passo que a oralidade faz como código de linguagem (forma) mais
próximo do ideal.3
Para Trabattoni, a escola de Tübingen-Milano é equivocada ao não receber as
críticas de que se para Platão, nestas mesmas doutrinas das Idéias, o saber permanece
na alma e é intraduzível em palavras a verdade (αληθέια), portanto as comunicações
ou discursos seriam imperfeitos sejam em oralidades, sejam em escrituras. E
2 Cf. KUHN, Thomas S. The Structure of Scientific Revolutions. Chicago, London: University of Chicago Press, 2nd ed. 1970. ________. The Essential Tension: Selected Studies in Scientific Tradition and Change. Chicago: University of Chicago Press. 1977. TRABATTONI, F.. Op. Cit. pp. 65-70. REALE, G. Op. Cit. pp. 3-53. 3 Cf. ARISTOTLE. Physics, in: Works of Aristotle translated into English. (Trad. R. P. Hardie, R.K. Gaye). Oxford. 1930. ________. The Metaphysics, I-IX. Cambrigde, London: Harvard University Press. 1933.
Texto integrante dos Anais do XVIII Encontro Regional de História – O historiador e seu tempo. ANPUH/SP – UNESP/Assis, 24 a 28 de julho de 2006. Cd-rom.
tratando-se de que a escritura é o legado histórico da tradição platônica, deve-se
valorizar a afinidade – a natureza congênere ao objeto –, para além da facilidade de
aprender e rememorar o λόγος. Quanto à oralidade, indubitavelmente, é mais valiosa
pela sua capacidade de persuadir por meio da intuição, atualizando o saber em sua
multiplicidade. Da reflexão de Trabattoni pode-se entender que à escritura ficou
reservado o ensinamento de valor menor destinado à multidão, aos desprovidos do
saber filosófico imanente nos que rememoram a verdade contida na “imortalidade da
alma”; e à oralidade, o saber mais íntimo, passível da persuasão e do éros, ainda que
sua perfeição resida apenas no Ente, em Idéia. E os passos socráticos da omissão
surgiriam como método em que não responder ou não solucionar diálogos conduziria
a alma de seu interlocutor a questionar suas próprias verdades que conhecia de modo
imanente.
Se os paradigmas se estabelecem na comunhão de conceitos, a escola
Tübingen-Milano estaria passando por seu momento de “ciência normal” (não mais
“extraordinária”) ao refutar (ou menosprezar no debate) a possibilidade da alternativa
hermenêutica ser criticada pelas respectivas tendências de Isnardi Parente, Cornélia
Vogel, que retornam a Scheleierrmacher, e defendem a supremacia dos Diálogos em
seu conjunto, ao invés de autotestemunhos e testemunhos indiretos. Trabattoni, em
suma, põe em xeque a própria postura alternativa da escola Tübingen-Milano ao
evidenciar o caráter de “ciência normal” deste paradigma hermenêutico que sobrepõe
oralidade à escritura em Platão, posto que Giovanni Reale e Szlelack fogem do
debate após anos de diálogos frustrantes entre os schleiermacherianos (defensores da
supremacia dos Diálogos) e não-schleirermacherianos (defensores da tradição
indireta e dos autotestemunhos). Para Trabattoni, a escola de Tübingen-Milano se
contradiz dentro da perspectiva kuhniana, não somente pela dificuldade em
transportá-la da História da Ciência para os estudos clássicos, mas pela
insuntentabilidade metodológica do próprio paradigma.4
A crítica platônica à cultura escrita em Fedro
Platão apresenta o Diálogo “Fedro” com o conceito de éros, e discorrendo
sobre a importância da Retórica na persuasão filosófic.; e sobre o modo correto de
compor discursos, ao final do texto, por meio de seu “porta-voz” (Sócrates), pode-se
4 REALE, G. Idem. pp. 23-53.TRABATTONI, F. Idem, pp. 37-101.
Texto integrante dos Anais do XVIII Encontro Regional de História – O historiador e seu tempo. ANPUH/SP – UNESP/Assis, 24 a 28 de julho de 2006. Cd-rom.
identificar um autotestemunho de crítica à escrita como mediação dialética para a
transmissão do saber eficaz e filosófico às outras almas, a qual não tem o valor
persuasivo que por meio oralidade a ψύκαγογια se realiza, constituída em si mesma .
No diálogo, Sócrates narra a Fedro o mito do diálogo entre o rei do Egito
Tamos e o deus de artes e ofícios Theuth, no qual o segundo apresenta sua nova
invenção ao rei, que o surpreende reprovando-o. Era um sistema de caracteres
lingüísticos ao qual chamou de escrita, e que serviria como um remédio à memória.
E o rei o surpreendeu ao rebater que não para a memória, mas para a falta de
memória havia descoberto o remédio. Seria pois um paliativo que confiaria na
exterioridade o exercício da rememoração, que causaria o esquecimento na alma,
afastando-a da verdade que existe apenas perfeitamente no domínio das Idéias. Pois,
por meio da oralidade, o conhecimento flui com vivacidade da alma para outra
alma.5
A Carta Sétima
Os autotestemunhos são considerados pelos mais críticos estudiosos
schleiermacherianos leituras duvidosas, no que concerne à interpretação de qual a
verdadeira imagem de Platão. Dentre estes registros, composto principalmente por
cartas, o mais aceitável aos schleiermacherianos é a Carta Sétima.
A Carta Sétima é endereçada aos familiares e amigos de Dion, um discípulo
siracusano de Platão morto pelo acadêmico Calipo após conseguir tomar o poder do
tiranete Dionísio II e não realizar um bom governo. Platão fizera com frustração duas
viagens a Siracura para intervir no governo de Dionísio II, ansioso em receber os
ensinamentos platônicos. Ao final destes acontecimentos Platão redigiu tal carta, que
também pode ser entendida como uma autodefesa perante a opinião pública
ateniense, pela experiência de se envolver com governos tirânicos, sendo que em
Górgias e na República Platão evidencia o mau-caráter dos tiranos.
Na chegada em Siracusa pela segunda vez, Platão mais uma vez testou a
capacidade de Dionísio II para receber seus ensinamentos. Dionísio II foi reprovado
5 PLATON. Fèdre, in: Op. Cit. . pp. 88-9. Assim dissera Theuth a Thamus: “(…) Não para a memória, mas para falta de memória descobriste o reméd.io(...).” (275b4-5). Cf. REALE, G. Idem. pp. 54-67.TRABATONI, F. pp. 137-159. Deve-se considerar o quanto são significativos os exercícios historiográficos contemporâneos acessíveis, que discutem sobre questões de oralidade e cultura escrita. Dentre estas: Cf., HARTOG, François. História de Homero a Agostinho. Belo Horizonte: UFMG. 2001. Neste manual o autor descreve a trajetória da tradição historiográfica à luz dos autores clássicos.
Texto integrante dos Anais do XVIII Encontro Regional de História – O historiador e seu tempo. ANPUH/SP – UNESP/Assis, 24 a 28 de julho de 2006. Cd-rom.
com veemência, confiou seu aprendizado em anotações “filosóficas”, não buscando
com sua própria alma a verdade. Dentre as numerosas críticas ao pretendente aluno
tirano, Platão afirmou que, para todos aqueles que escreveram ou escreverão e se
pretendem competentes sobre o objeto de suas preocupações, é impossível que
tenham compreendido qualquer assunto, pois não existe e não terá jamais nenhuma
obra escrita sobre estes assuntos.
Os não-schleiermacherianos, da escola de Tübingen-Milano, têm especial
interesse na Carta Sétima de Platão, em especial no excerto 341 b. Neste excerto,
Platão é severo com qualquer que escreva sobre suas preocupações esotéricas,
porque estas são incomensuravelmente mais importantes do que aquelas acessíveis
ao público, como os Diálogos. Adverte que quem compreender corretamente seus
ensinamentos sabe por conseguinte que ainda não conhece verdadeiramente os
princípios. Na perspetiva da escola Tübingen-Milano, ainda que Platão tenha sido o
que mais escreveu dentre os filósofos de sua geração, por outro lado não escrever
sobre questões essenciais era um comportamento aristocrático de sua parte
direcionado ao meio filosófico: um comportamento que sentia as mudanças políticas
e pedagógicas atenienses do final do século V a.C., que pode ser considerado um ato
de defesa intelectual contra governos tirânicos e outras correntes filosóficas e
retóricas coexistentes à Academia.6
A Tradição Indireta: O testemunho aristotélico
Platão era crítico do próprio ato de escrever, que causa a limitação dos
princípios verdadeiros, existentes somente em idéia. Mas discípulos como
Aristóteles, cientes que registrar os estudos em textos escritos era uma necessidade
da época, mesmo que sob advertência de Platão, construíram a tradição indireta das
“doutrinas não escritas”. Aristóteles fez comentários sobre Platão em Metafísica
(903a; 987a-988a;1078b) e Física (209b). No livro I de Metafísica, Aristóteles
relatou, como tentativa de uma História da Filosofia, que Platão recebeu de Sócrates
a exigência de definir os princípios das meta-idéias, os quais são inapreensíveis em
formas sensíveis. No livro IV (987a-88a) como relatado acima no texto, Aristóteles
6 PLATON. Lettres, Op. Cit. pp. 54-5. Platão afirmou em sua sétima epístola: “(...)É necessário tirar disto [da crítica à Dioniso II] esta simples conclusão: quando vemos uma composição escrita seja pelo legislador sobre as leis, seja outro não importa sobre qual assunto, dizemos que o autor não tomou nada disto a sério, e se este é sério mesmo(...).”(344c 1-8). Cf. REALE, G. Idem. pp. 68-80. TRABATTONI, F. Idem. pp. 161-82.
Texto integrante dos Anais do XVIII Encontro Regional de História – O historiador e seu tempo. ANPUH/SP – UNESP/Assis, 24 a 28 de julho de 2006. Cd-rom.
ratificou a aproximação de Platão das doutrinas pitagóricas e heraclitianas. No livro
XIII (1078b), expôs a definição platônica de “idéia” como compreensão dos
“universais abstratos”. Em Física (II, 209b), Aristóteles fez referência explicitamente
às chamadas “doutrinas não escritas”, no caso, sobre a unicidade entre matéria e
espacialidade, mas que abarcaria as diversas questões acima levantadas.
A importância do testemunho de Aristóteles, evidenciada pelo debate entre
Trabattoni e a escola de Tübingen-Milano, é a celeuma: as “doutrinas não escritas”
poderiam não tratar dos assuntos relatados pelos testemunhos da tradição indireta;
estes testemunhos romperam com a exigência platônica esotérica e divulgaram os
ensinamentos até então restritos à Academia; ou esses testemunhos ampliaram pela
correta interpretação os “socorros” que os escritos platônicos requerem.7
Compreensão do conjunto de excertos platônicos e da tradição indireta
aristotélica
Na busca da “teoria dos Princípios”, o conhecimento puro, alcançado apenas pela
alma desencarnada, uma, segundo Platão, jamais seria verdadeiramente apreendido
por meio da cultura escrita, se na condição de que entes universais estão presos à
imperfeita condição humana. Pois, esta teoria ratifica o semi-criacionismo pitagórico,
de que, anterior à existência de uma idéia, pressupõe-se a existência de uma proto-
idéia.
Os ensinamentos platônicos esotéricos transmitidos por meio da oralidade
teriam sido comentados e registrados por escrito juntamente com a produção material
dos Diálogos através da tradição indireta, ou são ensinamentos que se mantiveram
relativamente ilesos aos interessados em reproduzi-los por meio da cultura escrita?
Deste questionamento é possível discutir sobre a complexidade na transmissão do
conhecimento até então corrente em oralidade, para ser registrado em cultura escrita.
A oralidade é um código de linguagem que demonstra a harmonia do ser com a
própria alma, porque mais do que se constituir como expressão da memória, por
meio deste se alcança a “educação da alma” (ψύκαγογια); ao passo que por meio da
cultura escrita se exterioriza o conhecimento, de modo a ser apreendido como algo
sensível, e que particulariza em matéria a forma de um assunto que sua definição
somente pode existir verdadeiramente em idéia.
7 ARISTOTLE. Physics. ______. The Metaphysics. pp. 40-3.
Texto integrante dos Anais do XVIII Encontro Regional de História – O historiador e seu tempo. ANPUH/SP – UNESP/Assis, 24 a 28 de julho de 2006. Cd-rom.
Aristóteles, fundamental integrante da tradição indireta platônica, escreve não em
função da idéia em si de escrita, mas porque esta é uma experiência que conduz os
seres humanos ao saber. Tanto que desvia da doutrina platônica inclusive no ato de
redigir seus estudos esotéricos, todavia maioria de seus estudos abertos ao público
tenha se perdido. Mais preocupado com a “filosofia primeira” que “reconhecer a
unidade na multiplicidade do ser”, como Platão entendia, Aristóteles no início de
“Metafísica” (I, 980a) afirma: “Todos seres humanos aspiram por natureza ao saber.”
O “saber técnico” era reservado à condição mortal humana, como pensava Platão, e
este pode ser aproximado da definição de “poiético” dada por Aristóteles, em sua
incompleta obra, a “Poética”. A partir da reflexão de Aristóteles categorização da
“poiética”, entende-se, pois, que esta seria algum saber que passa pelo processo de
produção, de atualização, de ser feito. A oralidade e a cultura escrita, não importa se
em verso ou prosa, devem ser “poiéticas”. Na perspectiva aristotelizante, a oralidade
e a cultura escrita seriam como alicerces de complexo “poiético”; pois compreendia a
poética (a poesia), em sua plenitude, inserida em uma representação teatral trágica. 8
Para pensar a História Oral
O interesse que se faz presente à História Oral, em se inserir nas searas dos estudos
clássicos, vem no sentido de investigar seus pressupostos teóricos, pois os conceitos
de oralidade e cultura escrita são essenciais a si mesma. Estudar Platão é necessário
para compreender as relações entre conhecimento, saber, memória, oralidade, cultura
escrita. Conhecer é necessário ao próprio ser; o saber significa conservar o
conhecimento que aprendeu; a memória, um ente que se explica pelos mitos
cosmogônicos; a oralidade, meio imediato de transmissão do conhecimento,
proveniente da memória; a cultura escrita, um remédio à falta de memória, que,
todavia, não aproxima o ser da verdade, porque preso ao sensível.
Pode-se supor que a História Oral não se resolve inteiramente se tentar encontrar
“puramente” seus pressupostos em Platão. Se entendê-la como conhecimento, esta
possivelmente caminharia à tangente, nas searas filosóficas, pois um levantamento
doxográfico demonstraria que História nunca foi privilegiada, como narrativa, salvo
8 Aristotle. The Metaphysics. pp. 2. Aristote. Poiètique; in: Œuvres Complètes. (trad. J. Hardy). Paris: Belles Lettres, 2ème ed. 1952. pp.41-2. Para Aristóteles o historiador e o poeta se distinguem, respectivamente, em que: “um relata os eventos que aconteceram; o outro, o que poderia acontecer”. (1451b 5-7).
Texto integrante dos Anais do XVIII Encontro Regional de História – O historiador e seu tempo. ANPUH/SP – UNESP/Assis, 24 a 28 de julho de 2006. Cd-rom.
nos argumentos de retores. Saber fatos históricos está limitado à condição humana,
alheio à “educação da alma”, pois que em sua morada (a memória) a alma despreza o
sensível, mesmo que transmitido por meio da oralidade. Mesmo a oralidade, código
mais apropriado na exteriorização do conhecimento contido na alma, não consegue
também verdadeiramente dar formas perfeitas às idéias, ainda que o conhecimento
esteja em movimento, vivo, em meio a planos teóricos e sensíveis. A cultura escrita,
mesmo ao ser que mais faz “poiética” por meio deste código de linguagem,
permanece incomensuravelmente longe da verdade, porque impede o fluir das idéias.
Interpretar literalmente as exposições e críticas conceituais de Platão conduziria a
História Oral a discussões aporéticas, se perpetradas na complexa seara da
epistemologia. Mas a leitura de Platão, sine qua non, ensina: como formalizar um
debate filosófico (por meio do diálogo, mâeutico); a importância dos ensinamentos
esotéricos (teoria dos Princípios); saber o que falar, o que escreve; a tomar com
seriedade a filosofia. Pois como afirma Aristóteles no início de Metafísica: “Todos os
serem humanos aspiram por natureza ao saber” (980a). Platão ensina o porquê do
ideal filosófico; Aristóteles, da natural condição humana de saber.
História Oral, como a própria definição de História, é observação do que
aconteceu, depende do sensível para ser narrada, relatada.9 Principalmente entre os
antigos – Heródoto, Tucídides – o saber histórico se fazia por meio de relatos orais,
para ser forjado em cultura escrita, e que pudesse ser transmitido também oralmente.
A História Oral para ser operada deve passar por desafios filosóficos dos quais não
se pode furtar; deve saber ouvir para saber o que relatar (mediação pela entrevista);
saber como transportar para a cultura escrita o conhecimento em movimento até
então por meio da oralidade (transcriação); reconhecer os limites e possibilidades
metodológicas (devolução pública da pesquisa).
Tanto quanto os estudos mais atualizados em técnicas e metodologias de
pesquisa, a leitura e a compreensão de Platão, apoiados em Aristóteles e outros
autores clássicos, servem ao pesquisador uma segurança intelectual (que pode ser o
entendimento atualizado de “educação da alma”), à medida que ele percebe que suas
preocupações intelectuais são pré-existentes; que houve esforço de gerações e
gerações na investigação do tema pesquisado. Se não existe “verdade” ao modo
9 ARISTOTE. Op. Cit., pp.41-2. Para Aristóteles o historiador e o poeta se distinguem, respectivamente, em que: “um relata os eventos que aconteceram; o outro, o que poderia acontecer”. (1451b 5-7).
Texto integrante dos Anais do XVIII Encontro Regional de História – O historiador e seu tempo. ANPUH/SP – UNESP/Assis, 24 a 28 de julho de 2006. Cd-rom.
platônico na transmissão do saber, mesmo com o apoio de gravações eletrônicas
audiovisuais, é preciso que o debate sobre as relações entre oralidade e cultura escrita
se arrole, para que se estabeleçam quais são os conceitos que compreendem a
História Oral no campo epistemológico.10
10 Para uma leitura que evidencie as principais referências bibliográficas da História Oral, sobre as relações entre oralidade e cultura escrita, recomendam-se: MEIHY, José Carlos Sebe Bom. Manual de História Oral. São Paulo: Loyola. 5ª ed. 2005. THOMPSON, Paul. A Voz do Passado. Rio de Janeiro: Paz e Terra. 1992.