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ORALIDADE, MEMÓRIA E HISTÓRIA: UMA TEIA DE SABERES EM DEFESA DA COMUNIDADE TRADICIONAL DE FUNDO E FECHO DE PASTO MUCAMBO (BA) IZABEL DANTAS DE MENEZES 1 RESUMO A discussão acerca da educação é recorrente em várias áreas das ciências. No entanto, a maior parte das publicações volta-se, exclusivamente, à análise das possibilidades de educação nos espaços formais. São discussões, que contribuem significativamente para a construção de práticas instituídas e instituintes no cotidiano escolar, contudo, ainda há necessidade de compreender a temática como um fenômeno polissêmico de diferentes contextos históricos e culturais, ciclos da vida, tempo, bem como compreendê-la a partir da complexa relação com os movimentos sociais, especialmente aqueles voltados para a luta do direito a terra de uso comum.Nestes termos, o presente trabalhointenciona apresentar alguns resultados preliminares da pesquisa desenvolvida junto ao Programa de pós-graduação em Educação da Faced/UFBA, cujo objetivo geral é o de compreender os saberes acionados no processo de luta da Comunidade Tradicional de Fecho de Pasto – Mucambo (BA), em defesa da terra ocupada de forma coletiva e que a partir da década de 1980 sofre uma série de ameaças de expropriação. Iniciei retomando a história de ocupação das suas terras e o processo de formação do grupo anterior ao conflito identificando os topos privilegiados de transmissão de saberes. Em seguida tentei compreender os sentidos da terra comum e da luta e organização do grupo para a sua defesa. Por último analisei os saberes acionados e a sua relação com a luta pela terra. Dar conta desses objetivos não foi uma empreitada fácil, afalta de fontes escritas com pistas sobre a origem e a formação da estrutura fundiária da comunidade se transformou num grande desafio teórico-metodológico. Essa dificuldade foi superada 1 Doutoranda do Programa de Pós-graduação em Educação Faced - UFBA. Orientador Professor Dr. Álamo Pimentel. Bolsa PAC-UNEB.

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ORALIDADE, MEMÓRIA E HISTÓRIA: UMA TEIA DE SABERES EM

DEFESA DA COMUNIDADE TRADICIONAL DE FUNDO E FECHO DE

PASTO MUCAMBO (BA)

IZABEL DANTAS DE MENEZES1

RESUMO

A discussão acerca da educação é recorrente em várias áreas das ciências. No entanto, a maior parte das publicações volta-se, exclusivamente, à análise das possibilidades de educação nos espaços formais. São discussões, que contribuem significativamente para a construção de práticas instituídas e instituintes no cotidiano escolar, contudo, ainda há necessidade de compreender a temática como um fenômeno polissêmico de diferentes contextos históricos e culturais, ciclos da vida, tempo, bem como compreendê-la a partir da complexa relação com os movimentos sociais, especialmente aqueles voltados para a luta do direito a terra de uso comum.Nestes termos, o presente trabalhointenciona apresentar alguns resultados preliminares da pesquisa desenvolvida junto ao Programa de pós-graduação em Educação da Faced/UFBA, cujo objetivo geral é o de compreender os saberes acionados no processo de luta da Comunidade Tradicional de Fecho de Pasto – Mucambo (BA), em defesa da terra ocupada de forma coletiva e que a partir da década de 1980 sofre uma série de ameaças de expropriação. Iniciei retomando a história de ocupação das suas terras e o processo de formação do grupo anterior ao conflito identificando os topos privilegiados de transmissão de saberes. Em seguida tentei compreender os sentidos da terra comum e da luta e organização do grupo para a sua defesa. Por último analisei os saberes acionados e a sua relação com a luta pela terra. Dar conta desses objetivos não foi uma empreitada fácil, afalta de fontes escritas com pistas sobre a origem e a formação da estrutura fundiária da comunidade se transformou num grande desafio teórico-metodológico. Essa dificuldade foi superada

1Doutoranda do Programa de Pós-graduação em Educação Faced - UFBA. Orientador Professor Dr. Álamo Pimentel. Bolsa PAC-UNEB.

pelo investimento nas narrativas e depoimentos orais dos sujeitos que na plenitude da relação com natureza e a cultura, puderam trazer informações regadas por uma profunda relação e conhecimento do seu lugar. Uma profundidade guardada na memória dos mais velhos, tecida e atualizada no presente pelos fios complexos do dizer sobre o tempo

antigo.

Palavras-chave: Educação, saberes, História Oral, Comunidade Tradicional de Fecho de Pasto. 1 INTRODUÇÃO: história e memória do lugar (in) visível

[...] nós quando fomos pra luta foi nesse sentido, pra dizer: nós existimos! Essa comunidade existe? Existe! (Rubens Farias)

Existir. Eis o desafio de comunidades rurais historicamente invisibilizadas pelo

poder público e por toda a sociedade. Existir. Eis a ação praticada coletivamente há

mais de trezentos anos por homens e mulheres do campo. - Existe! Eis o que dizem os

que compõem a “história do invisível”. A “história do invisível” não é contada nos

livros que versam costumeiramente sobre os reis, rainhas e homens poderosos das

classes dominantes, certamente a “história do invisível”, hoje com maior repercussão, é

bem distinta daquelas narradas pela historiografia oficial corriqueiramente escrita por

aqueles que retiraram dos “invisíveis” o direito de contar a sua versão sobre os

acontecimentos e fatos que lhes dizem respeito. Eis, portanto, o meu desafio: contar a

história da ocupação das terras2 de uma das muitas comunidades “invisíveis” do

semiárido baiano.

Mucambo, pequena aglomeração descontínua de casas, cercadas de roças

familiares, com uma pequena capela no centro, uma “venda” 3, um campo de futebol,

um bar, uma casa de farinha, uma escola, a Associação e, ao fundo, ou melhor, ao fecho,

uma grande área de terra sem cerca, de uso comum, situada entre as serras da

cordilheira do Espinhaço. É chamada por alguns de vilarejo, por outros de povoado ou

comunidade e na classificação do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística- IBGE,

distrito, no entanto, o cenário da pesquisa ora apresentado tem como referência a

categoria jurídica de Comunidade Tradicional de Fundo e Fecho de Pasto4Mucambo

(CTFFP- Mucambo).

Para encontrar os vestígios da “história invisível” da CTFFP Mucambo tive que

subir e descer vales e morros íngremes das serras que compõe a cordilheira do

2 Godoi (1999) em “O trabalho da memória: cotidiano e história no sertão do Piauí”, utiliza a memória dos sertanejos para apreender a história da ocupação de terras. Pela relevância e originalidade dessa pesquisa a tomo como referência. 3Pequeno comercio onde se vende de tudo conhecido pelos locais como venda. 4 Essa categoria jurídica de Fecho de Pasto, segundo Garcez (1987), é a principal variação da categoria Fundo de Pasto. Para Ehle (1997, p. 11) Fundo de Pasto (FP) “[...] é uma forma tipicamente nordestina de administrar o semi-árido. Grupos interligados por laços de sangue ou de compadrio formam pequenas comunidades [...]”. É um termo regional que se institucionalizou após sua menção na Constituição Baiana no parágrafo único do Artigo 178 (05/10/1989) e seu reconhecimento a nível nacional no Decreto 6.041 (13/07/2006). Esse reconhecimento formal se deu a partir da luta em defesa do domínio da terra ocupada secularmente por diversas comunidades rurais.Esse processo veremos a seguir.

Espinhaço. Entre tombos e solavancos causados pela degradação da estrada de chão me

deparei com dégradé de verde que compunha a paisagem, noções das tonalidades do

“invisível” marcadas no chão e no dizer dos seus moradores. Rastros e relatos de um

povo que narra a sua história sempre na primeira pessoa do plural - nós. Falam de paz e

de luta, de derrotas e de vitórias e, especialmente, da organização deestratégias criativas

na busca da afirmação das suas seculares existências (in) visíveis.

Registrar os vestígios da origem e história da ocupação da comunidade do

Mucambo - Bae, especialmente da “história da luta da Serra da Várzea Comprida”, não

foi uma tarefa fácil. A falta de documentação com pistas sobre sua origem e a formação

da sua estrutura fundiária se transformou num grande desafio teórico-metodológico.

Essa dificuldade foi superada pelo investimento nas fontes orais, a partir do registro da

memória coletiva e individual dos seus moradores.

Em qualquer breve análise que venha a ser realizada na Comunidade Tradicional

de Fecho de Pasto - Mucambo é possível perceber uma trama vigorosa de saberes

transmitidos exclusivamente via oralidade. Esta característica não é exclusiva da CTFP

Mucambo. A tradição oral é o método que se destaca no processo de transmissão de

conhecimentos e de organização social das Comunidades Tradicionais. Num

levantamento sintético de pesquisas em Comunidades Tradicionais foi possível

identificar a valorização do registro oral como meio potencializador de compreensão

acerca da comunidade. A complexidade dos sentidos do dizer dos sujeitos das diferentes

comunidades tradicionais5 foi uma das referências no cenário nacional dos estudos de

5 A relação dos povos tradicionais é bem diversa assim os estudos que as tomam como referencias: Indígenas, quilombolas, pescadores, açorianos, caatingueiros, caiçaras, campeiros, faxinaleses, geraizeiros, jangadeiros,

Carlos Rodrigues Brandão, José Maurício Arruti (2006) Maria Emília Carvalho de

Araújo (2006), passando por estudos localizados aqui no estado da Bahia como o de

Álamo Pimentel (2002), Sandra Nívea Soares de Oliveira (2006)6 Sandra Regina

Magalhães Araújo (2006).

O lugar da História Oral- HO dentro deste trabalho foi sendo construído a partir

da realidade observada, um dispositivo teórico-metodológico imposto pelo campo de

pesquisa. Quando objetivei compreender os sentidos dos saberes de uma Comunidade

Tradicional de Fecho de Pasto que vivenciou um processo de luta pelo reconhecimento

legal do seu território na década de 1980, não sabia de antemão que me valeria de forma

tão especial da memória das pessoas sobre este processo. De inicio imaginei um trajeto

de inspiração etnográfica em que lançaria mão de entrevistas, da observação

participante na comunidade, do diário de campo e da análise dos documentos cartoriais,

da Associação, etc. referente a estrutura fundiária e o processo de luta.

Ainda nas primeiras aproximações com o campo da pesquisa foi possível

identificar a pouca existência de fontes escritas e a pujança de acontecimentos narrados

por seus moradores a respeito do processo de mobilização, bem como uma série de

saberes transmitidos exclusivamente por via oral, como, por exemplo: os versos

cantados no reisado e no samba; a articulação e organização sofisticada dos mutirões na

roça comunitária realizado com aproximadamente 20 famílias na ocasião dos conflitos

marisqueiros, pomeranos e Fundo e Fecho de Pasto. (http://www.ocarete.org.br/povos-tradicionais/comunidades-de-fundo-de-pasto/ acesso em 23/02/2011) 6 Nestes estudos a fala e a memória se constituem em fontes preciosas para o entendimento da “mêtis (astúcia) do saber profundo” nas comunidades goianas de Cibele e Caiçara (ARAÚJO, 2006); “das pedagogias da convivência” no semiárido baiano (PIMENTEL, 2002); identidade quilombola e processo de escolarização na comunidade de Mangal e Barro Vermelho-BA (OLIVEIRA, 2006); antropologia e história do processo de formação quilombola da comunidade de Mocambo (ARRUTI, 2006).

com o fazendeiro; as normas de utilização da área comum construídas via acordos orais;

o cabedal de rezas e plantas usadas pelas benzedeiras. São Cantigas, rezas, versos,

estratégias, encontros, reuniões, agendas, acordos... Tudo tramado pelos fios da palavra.

Percebi portanto, que a mobilização e a luta pela terra se realiza pelo exercício

de um aprender e de um ensinar cotidiano e contínuo tecidos de forma especial, nesta

comunidade, por práticas orais manifestas de forma relacional nas musicas nas, nos

afazeres da cozinha ao pé do fogão, nas noites frias de inverso na lida na casa de

farinha, nas novenas religiosas, nos batalhões da roça. Cultura e natureza expressas num

contexto social que também é ligado por saberes oficiais de um universo “perito”

dotado de um dizer outro tido como forte e útil.

Outro aspecto ligado a esta valorização da oralidade pela comunidade, refere-se

ao sentido da palavra, como costumam dizer por lá “a palavra de um homem vale mais

do que qualquer coisa” “se dei a minha palavra então devo cumprir” “a coisa mais feia

do mundo é um homem sem palavra... isto fere a Deus” ”as palavras tem poder”

(expressões dos entrevistados). Há um sentimento de sagrado envolvendo a palavra.

Lendo HampatêBá (1982) em seu texto Tradição viva, e guardada as devidas

proporções já que estamos falando de comunidades no tempo e no espaço bem

diferentes, pude compreender um pouco mais sobre este aspecto que me saltava os olhos

durante o convívio na comunidade.

O autor, usando da sua forte intimidade com a cultura africana7afirma que para

esta Tradição a fala é um dom de Deus e para explicar a força desta afirmação,

7Filho de Tidjane, chefe da província de Bandiagara, HampateBá conviveu desde a mais tenra idadecom a prática de ouvir histórias e narrativas locais. Ainda na infância teve como referencia Koullel, um grande contador de histórias, em seguida continuou a sua formação grandes mestres tradicionalistas de várias etnias (Bambara, Soninke,

HampateBá se inspira na narrativa africana que descreve o processo de criação de Maa,

o Homem, pela força infinita criadora de todas as coisas, MaaNgala. Segundo a

narrativa Maa, o Homem recebe de MaaNagala a herança de uma parte do poder criador

divino, o dom da Mente e da palavra, está nesta iniciação à cadeia de transmissão oral

da harmonia universal. A partir desta narrativa, o autor tece suas considerações iniciais

sobre o sentido da fala para a África tradicional, assim sintetizadas:

Ela é ao mesmo tempo divina no sentido descendente e sagrada no sentido ascendente (...). A fala é, portanto considerada como a materialização, ou a exteriorização das vibrações das forças (...) falar e escutar referem-se a realidades muito mais amplas do que as normalmente lhes atribuímos. “Quando MaaNagala fala, pode-se ver, ouvir, cheirar, saborear e tocar a sua fala”. Trata-se de uma percepção total, um conhecimento no qual o se envolve na totalidade (...) ela cria uma ligação de vaivém (...) que gera movimento e ritmo, e, portanto, vida e ação. A fala pode criar a paz, assim como destruí-la. É como o fogo. Uma única palavra imprudente pode desencadear uma guerra do mesmo modo que um graveto em chamas (...). A fala que tira do sagrado o seu poder criador e operativo, encontra-se em relação direta com a conservação ou com a ruptura da harmonia no homem e no mundo que o cerca. (HAMPATE BÁ, 1982, p. 185-186)

A máxima de que somos herdeiros desta cultura milenar encontra suas teias de

sustentação quando nos deparamos com contextos rurais, ou mesmo bairros periféricos

urbanos, recheados de sentidos similares desse modo de vida. Com o Mucambo, não é

diferente: pude observar similitudes entre o sentido da fala narrado por Amadou

HampatêBá (1982) e o sentido da fala vivido pela comunidade mucambeira.

Songhai).Concluída a sua formação inicial, HampateBá resolveu coletar as informações de forma sistemática chegou a gravar narrativas de mil informantes.

Trata-se de sentidos de sabenças silenciadas “na cadência do saber racional,

engolido nas gargantas da memória cultural” (ARAÚJO, 2006, p. 35) nos mais diversos

momentos e espaços do cotidiano, cenários em que estes sujeitos ensinam e aprendem e

que, portanto, deve ter acento aqui. Se pretendo fazer desta pesquisa algo importante

para a comunidade, devo ressaltar aquilo que seus moradores tomam como

fundamental, divino, sacral e politicamente importante, a fala. Para tanto, lançarei mão,

afirmo novamente, da referendada metodologia da História Oral (HO).

Devo dizer, no entanto, que para ser fiel a uma atitude etnográfica em campo fiz

cotidianamente um exercício de imersão no contexto da comunidade do Mucambo,

compartilhando do seu cotidiano, registrando, descrevendo e narrando o cheiro, as

cores, os sons e os sabores dos dizeres e dos símbolos compartilhados e partilhados

publicamente (GEERTZ, 1989). Foram no total 40 horas de entrevistas transcritas, em

um trabalho de campo que percorreu entre 2009 a 2012.

Durante esses anos seguir um movimento dentro e fora da comunidade em que

articulava: visitas a comunidade (foram três visitas de um dia, uma visita de dez dias,

uma visita de três dias, uma visita de dois dias; uma visita de quatro dias); entrevistas e

pesquisa nos arquivos nas entidades mediadoras (CPT em Senhor do Bonfim- Sindicato

dos Trabalhadores Rurais de Campo Formoso- CAFFP de Senhor do Bonfim);

entrevistas com pessoas envolvidas no processo na ocasião da Luta da Serra (em

Jacobina, Senhor do Bonfim, Lutanda em Pindobaçu, Borda da Mata em Campo

Formoso, Lagoa Grande, Brejão da Grota em Antônio Gonçalves e Jaguarari), pesquisa

nos arquivos do Cartório de Imóveis de Antônio Gonçalves e Campo Formoso e no

arquivo dos Franciscanos em Campo Formoso; participei também do Dia especial da

Mulher em Brejão da Grota, da Missão da Terra em Antônio Gonçalves, de dois

Seminário sobre mineração organizado pela CPT, da Assembleia da CAFFP em

Medrado Andorinhas de 05 a 07 de fevereiro de 2010; reuniões da Associação

Mucambo e Brejão da Grota.

Neste processo tentei compreender as teias de significados dos gestos, dos

fazeres e dizeres do outro. Procurei ver, ler, fotografar e “descrever” o texto do contexto

para transformar em texto que pode ser lido por vários leitores. Numa atitude que se

esforçou para “estranhar”, ao mesmo tempo em que “me situei” e me aproximei do

“outro” em campo (Idem.).

Desenvolver a escrita da história da comunidade com base nos depoimentos orais

gerou em mim regozijo intelectual, uma vez que as narrativas dos depoentes traziam

sempre informações regadas por uma profunda relação e conhecimento com a totalidade

dos aspectos presentes em seu lugar – natureza e cultura. Uma profundidade guardada

na memória é tecida e atualizada no presente pelos fios complexos do dizer sobre o

tempo antigo. Um dizer repleto de sabenças como também envolto a uma cultura do

silêncio compartilhada por aqueles e aquelas que vivenciaram de forma mais direta a

luta em defesa da terra comum ocorrida no inicio da década de 1980.

1.1 Ethos do silêncio

José Maurício Arruti (2006, p. 211-212) percebeu que os registros memoriais na

comunidade sergipana Mocambo, com “o,” podem ter sido “interditados por certos

tabus ou, ainda, podem estar associados a uma determinada forma de se relacionar com

o passado em que a transmissão das “informações” não é um valor, é um risco.” Diz

também que é possível reconhecer que os bloqueios na forma de transmitir e pensar a

memória não depende apenas da “gestão da memória”, em que o sujeito elimina ou

mantém determinada lembrança, mas dependem de um ethos, de umethos do silêncio.

A expressão ethos do silêncio é oportuna para a análise do não dito captado

inicialmente nos confusos depoimentos de Dôra, Doralice Miranda, uma liderança

atuante no processo de luta pelo reconhecimento legal da área de Fecho e Fundo de

Pasto ficava intrigada com a sua narrativa, ao iniciar a descrição dos primeiros conflitos

na Serra, de repente mudava a narrativa para mencionar um fato atual referente a

Associação (ex. o centro de informática que precisava de sala adequada) e depois

encerrava a entrevista alegando falta de tempo. O fato ocorreu nas três primeiras

entrevistas.

Ao perceber que a comunidade busca sempre registrar em vídeo as suas

manifestações culturais e os seus projetos, desta forma, elegi como uma possibilidade

de contrapartida registrar em vídeo a história da Luta da Serra da Várzea Comprida.

Depois de tudo combinado, chego para a entrevista munida de câmara de vídeo,

microfone, etc. para a minha surpresaa liderança que me concederia a entrevista revelou

que não poderia contar tudo e o que ele havia dito até o momento nas primeiras

entrevistas (duas) era apenas parte da história.8 Outro problema teórico-metodológico

amplia ainda mais o grau de dificuldade da pesquisa, dessa vez com relação aos

documentos escritos pelo movimento- as atas de reuniões, relatórios de encontros-

8Outro fato ocorreu na entrevista com o Seu Cizinho, também liderança do tempo da Luta de Serra da Várzea

Comprida. No meio da entrevista o telefone toca, era a filha de Seu Cizinho que gentilmente a informa que não poderia falar com ela porque estava dando uma entrevista sobre a Luta da Serra, aos berros a filha grita para o pai se calar.

documentos em que até o momento dessa declaração formavam juntos uma fonte de

extrema importância para o andamento da investigação, até o dia em que uma das

lideranças revela: “as atas escrita por nóis não tem muito coisa, muitas informações

porque era perigoso e nóis não escrevia tudo”.

Constatei que estava diante de um grande desafio. Como compreender os

saberes organizados e/ acessados pelo movimento que deflagrou a regularização da área

de Fecho e Fundo de Pasto sem saber, de fato, o que ocorreu? A minha primeira atitude

foi de buscar compreender o motivo do silêncio. Assim, devo dizer que além de

compreender os sentidos da memória falada tive que compreender os sentidos do

silêncio. Assim, o desafio era o de compreender “o que estava além” do dito e escrito

nos registros da comunidade, portanto, o ethos que organiza a maneira de lembrar,

esquecer e silenciar. Compreendi que os possíveis bloqueios não estavam relacionados

ao esquecimento propriamente dito, mas sim ao medo de falar.

Compreender este ethosnão foi tarefa fácil, teve que passar pelo controle das

impressões sugerido porBerreman (1980, 125) a partir da abordagem Dramaturgia

Social de Gofman. O autor, ao estudar uma vila Sirkanda no Himalaia, passou por

estágios de aproximação com a comunidade, em que “as impressões decorrem de um

complexo de observações e inferências, construídas a partir do que os indivíduos fazem,

assim como do que dizem em público, isto é, quando pensam que não estão sendo

observados.”

Apesar de não ter sido ignorada pelos moradores do Mucambo, assim como foi

Berreman (1980) na vila Sirkanda no Himalaia, acredito que a ideia do controle das

impressões se aplica a qualquer instituição ou mesmo comunidade e a tarefa de todo

pesquisador é encontrar o que se produz em termos de informações nos bastidores. O

que existia nos bastidores não poderia ser revelado uma vez que existia um acordo

firmado pela palavra por aqueles que compunham a linha de frente o movimento. O que

era revelado nos DVDs, nas entrevistas e nos passeios pela comunidade era a parte que

podia ser dita. Nesta parte memorável se falava na origem indígena, na passagem de

Lampião pela comunidade e nos projetos conquistados depois do processo de

regularização. Tudo mais contido nos bastidores deveria permanecer silenciado.

Os fatos foram sendo revelados num processo de convivência mais

ampliadocom a escuta dos representantes, da época, das instituições mediadoras como a

CPT, sindicato dos Trabalhadores Rurais de Campo Formoso e como também, das

próprias lideranças que na informalidade do convívio iam soltando aqui e ali alguma

informação. Tudo o que foi escrito foi apresentado e aprovado. No momento da

apresentação outros episódios foram sendo narrados e um fato em particular contribuiu

para que as pessoas se sentissem mais seguras a ponto de aprovar a publicação. O

fazendeiro que ameaça as lideranças na década de 1980 estava muito doente, não estava

ciente de si.

No entanto, metodologicamente o que contribuiu para que avançasse nos

bastidores e captar informações mais detalhadas foi a utilização das caminhadas como

dispositivo de pesquisa e do registro por fotografias e vídeos associado a metodologia

da HO. Perceber que todos os processos da comunidade são exprimidos em termos

espaciais, ou seja, por marcas e formas mnemo-territoriais, procedimento já utilizado e

bem discutido por alguns estudiosos de comunidades rurais e que destaco aqui as

contribuições de Arruti (2006).

1.2A memória do lugar: marcas e formas mnemo-territoriais9

Entre tombos e solavancos da degradação da estrada avermelhada, subindo e descendo serras, entre vales e passarinhos: Mucambolando, mucambiando, mucambando, íamos nós, perdidos nos achados e a procura... (Diário de campo 15/12/2010). Talvez eu deva começar este diário de viagem colocando em foco este ato sentido-sofrido-mágico-necessário-singular-íntimo-compartilhado-formativo- de DESLOCAR-ME. Deslocamento nos seus dois sentidos - físico e intelectual em movimento no campo. Estes dois sentidos são inseparáveis porque na pesquisa de inspiração etnográfica implicada na busca de compreender “as singularidades das ações e representações humanas e os sentidos que os sujeitos assumem”, o esforço do descolamento torna-se fundante. Neste processo de deslocamento físico deixei-me sacudir pessoal e intelectualmente pelo campo, deixei-me sacudir, chocar, seduzir, cansar, desesperar, enfim, deixei-me ser “afetada”, como a própria palavra indica por afeto, deixei-me ser lembrada pelo elo irremediável e interminável da implicação com este pedaço de chão perdido, esquecido e (in) visível. (Diário de campo). Montanhas verdejantes nos fazem pensar a respeito da diversidade do sertão comumente retratado como lugar seco, sem cor. O barulho das árvores, o canto dos pássaros eram os únicos sons que ouvíamos. A água que corre dos riachos tem uma cor de barro e seu trajeto é sinuoso aparecendo e desaparecendo por entre as serras. Árvores frondosas avistamos com regularidade. Poças de água, lama... É impossível chegar de carro até a comunidade. Seguimos a pé. Caminhamos 6 km até o Mucambo e mais 3 Km até a casa do Viló. Desespero minha barriga de 7 meses de gestação está contraída. Sento e ouço o sermão de Viló e o som da natureza. É preciso continuar caminhando... (Diário de campo, 21/03/2010)

9 ARRUTI (2006)

Na preparação da viagem a campo esqueci de preparar o meu corpo... Preparei a mente com leituras e discussões em torno do roteiro de entrevistas, etc. Mas não preparei o meu corpo... Estou cansada. Acho que andei 1000 Km hoje. Se quero respostas para as minhas perguntas tenho que andar, andar subi serra, descer serra em busca dos detalhes sobre a luta da Serra. Ufa! Estou cansada. Meu corpo todo dói. Todas as respostas estão derramadas por esta vastidão de terra, como diz Seu Bernardino, neste “estirão comprido” de chão. Hoje fiz a terceira caminhada pelos arredores da comunidade... E para chegar em casa ainda tive que subi a ladeira do Murici com Açucena nas costas agora entendo porque D. Antônia está doente da coluna...(Diário de campo, 20/12/2010)

Assim, escrevi nos meus diários de campo. Refletindo sobre esses escritos aqui

no conforto do gabinete, percebo o quanto a geografia do lugar, as dificuldades do

acesso à comunidade, as dificuldades de registrar os depoimentos orais, quase todos

realizados durante as caminhadas pelo território, e, sobretudo, os referenciais sócio-

culturais e políticos gerados por esse território, marcam as minhas reflexões sobre essa

comunidade. Assim, não apenas o espaço geográfico, mas tudo o que ele é capaz de

provocar, registrar, gravar, ensinar... Confesso que aprendi muito, a “duras penas”, digo,

a “duras pernas”, confesso, mas aprendi.

A primeira lição foi a de perceber que toda a memória coletiva do grupo se

desenvolve num quadro espacial, assim todo o esforço da memória fez referência a um

determinado espaço físico (p.). Sendo assim, tive que adequar a minha atitude teórico-

metodológica frente a esta constatação. Compreendi que só era possível me aproximar

dos sentidos e sabenças em torno da memória e história dessa comunidade rural

tradicional a partir de esforço físico e intelectual de deslocamento a todos os topos

(lugares) que marcam toda a complexidade da memória e história da comunidade.

Fiz muitas caminhadas a pé por quase todo o território reivindicado. A primeira

caminhada, ainda no início da definição do projeto de pesquisa, foi pela própria

comunidade, na companhia de Vilobaldo Farias. A segunda caminhada foi durante a I

etapa do trabalho de campo na companhia de “seu” Bernardino José dos Santos, pela

área de Fecho de Pasto. A terceira caminhada foi na companhia de Danilo Farias até o

Mota, local onde estava acontecendo um Batalhão10. A quarta caminhada foi na

companhia de Rubinho para conhecer o cruzeiro, marco da história da Luta da Serra da

Várzea Comprida.

Além de adequar tecnicamente o equipamento para gravar as falas sem

comprometer a qualidade do som pelo barulho do vento, das águas dos rios e dos

animais, além também de todo o esforço de registrar, mesmo cansada, detalhes e

impressões no diário de campo, fiz um investimento intelectual, em que me aproximei

das reflexões teóricas de clássicos.

Maurice Halbwachs (1990) na sua ideia de amarrar a memória do indivíduo à

memória do grupo – a memória é coletiva – e esta por sua vez está amarrada ao suporte

espacial físico ou imaginário; Peter Burke (1992) no seu interesse pelos suportes

materiais da memória, e Ecéla Bosi (1994) na sua perspectiva, inspirada em Halbwachs,

onde a memória é trabalho, é todo o empenho, não individual, mas coletivo de não

“reviver”, mas sim de “re-fazer” o passado no sentido de convencionalizaro momento

atual a partir da necessidade do grupo. Diz Bosi (1994, p.55): “A lembrança é uma

10Tecnologia do povo de forte semelhança com o mutirão. Na segunda sessão da tese essa forma de trabalho comunitário será discutida com maior detalhamento.

imagem construída pelos materiais que estão, agora, à nossa disposição, no conjunto de

representações que povoam nossa consciência atual.

Além da aproximação com as discussões trazidas por esses teóricos, outra

aproximação foi necessária – a dos estudos realizados ancorados nesta mesma ideia de

objetivação teórico-metodológica em que o território age como provocador e suporte

dos modos de recordar. Trago três exemplos de estudos que me inspiraram teórico-

metodologicamente.

O diálogo entre a Antropologia e a História é desenvolvido por José Mauricio

Arruti (2006)11 com o objetivo de compreender o processo de formação quilombola da

Comunidade Sergipana Mocambo, do município de Pedra da Folha. A partir de uma

atitude etnográfica, denominada pelo autor de “nômade” (p.223), a memória e a história

da comunidade são tecidas pelo trabalho do pesquisador em campo. Nesse esforço

etnográfico o autor vai descobrindo formas de evocar a memória e registrar os fatos,

descobrindo, especialmente, que a memória desta comunidade é antes de tudo uma

“memória territorial”.

Desta forma, os fatos, antes de formarem uma cronologia, estão dispostos num

encadeamento espacial: “[...] são as mudanças nos trilhos e nas cercas que demarcam as

passagens entre as épocas” (p.243). Para Arruti, o território é para a memória da

população do Mocambo suporte e moldura “o que foi registrado sobre o território é

memorável, o que fica fora dele não é” (p.242). Ele, com sua etnografia nômade,

descobriu a “explosão horizontal dos fatos de memória derramada pelo território.” É

deste autor a expressão – mnemo-territoriais – que utilizo no título deste subitem, é uma

11 Trabalho premiado no concurso EDUSC-ANPOCS Edição 2005. Área: Antropologia

construção gráfica que representa a relação necessária entre memória e território para a

compreensão da origem e história do Mucambo, com “u”.

Para entender a construção da identidade quilombola na comunidade de Mangal

e Barro Vermelho-BA, Sandra Nivea S. Oliveira (2006) buscou na relação entre terra e

educação as bases das suas respostas. Tentando escrever a história da comunidade, com

base nas fontes orais, a autora mergulha no cotidiano da comunidade e descobre que o

rio é um elemento forte na organização das moradias e evidencia um jeito de “querer

ficar junto”. Morar indica a própria identidade do grupo, conclui a autora, uma vez que:

“a terra, que é também território, é o lugar da vida, de simbologias onde constroem

identidades [...]” (p.94) Assim, o rio que banha a comunidade produz alimento material

no fornecimento de peixes, água para a plantação, etc. e, especialmente, alimento não-

material, pois serve de palco para a festa da Marujada e de moradia do Nego D´água,

entidade importante para o grupo e que, segundo os moradores de Mangal, habita o rio.

Maria Emilia C. Araújo (2006, p. 19), afirma: “lugar é laço”. A afirmação parte

da matriz conceitual pautada no saber profundo que circula “nas casas, igrejas, vendas

topos de saber, locus da prosa pedagógica, essência verticalizada do aprender e ensinar,

subterrânea na memória coletiva de uma comunidade”. A autora busca, através de uma

atitude etnográfica, compreender a profundeza da cultura camponesa a partir do dizer do

primitivo-próximo (sujeito das comunidades) na sua relação espacial e nos

ensinamentos dos eixos de trabalho, da terra e da família.

O semiárido brasileiro é reconhecido, tão somente, como a região do país em

que ocorrem secas cíclicas. A disseminação deste único sentido deixa escapar as mais

diversas formas e significados de convivência presentes nesta região. Buscando o

“arrombamento do lugar comum”, que fixa um discurso sobre a seca, Pimentel (2002),

traz para a cena as tensões e distensões dos sujeitos, que alojados no local das suas

existências congregam o que lhes é externo e produzem estados educativos daquilo que

apreendem do mundo, tornam-se, no dizer do autor “fagocitadores do mundo” (p. 17). O

autor toma como referência a experiência educativa realizada pelo Instituto Regional de

Pequena Agropecuária- IRPAA em busca da temática: “ o avesso da ordem e progresso:

intinerários pedagógicos no subsolo das relações sócio-políticas no semi-árido

nordestino”. Uma busca pela compreensão das múltiplas possibilidades de convivência

com o semiárido.

Voltando ao Mucambo, devo dizer que traçar a cronologia dos fatos históricos

que marcam a origem da sua ocupação e todo o processo de reconhecimento legal das

suas terras só foi possível através do reconhecimento de parte da área . Fiz, guardadas

as devidas e enormes proporções relacionadas a minha formação, uma espécie de

“mapeamento topográfico” da comunidade, ou melhor, da região que compreende o que

eles chamam de “Serras da Várzea Comprida e da Várzea Redonda”, a pé.

Caminhar significa etimologicamente marchar, percorrer caminho, seguir e

andar (Aurélio), no entanto, para esta pesquisa significou um dispositivo de pesquisa

fundamental frente ao ethos do silêncio, já descrito anteriormente. Dispositivo que

significou percorrer caminho da memória do grupo a partir das direções dadas pelos

próprios moradores.12

12 Para melhor compreensão da memória e história do grupo por seus feixes de sentidos históricos, tais como: Caminhada pela área de Fecho de pasto- mito de origem expressão da identidade étnica e história da Luta pela terra de uso comum; Caminhada pelas áreas individuais- história da ocupação das terras e relação de parentesco;Caminhada pelo centro da comunidade - projetos decorrentes do reconhecimento e relação entre tradição oral e a escrita

A caminhada pela área de Fecho de Pasto foi emblemática inicialmente para

ouvir as narrativas a respeito do mito de origem e compreender o sentido destas

narrativas para o grupo. Como tudo tem um começo, o começo de tudo narrado pelo

mito da “índia Mucamba”, tem o objetivo de estabelecimento do grupo naquele lugar.

Do ponto de vista político, o mito legitima os membros da comunidade como donos da

terra porque são herdeiros daquela que deu origem ao lugar. Do ponto de vista

antropológico, o mito, comprova uma descendência e uma identidade étnica.

Como nos ensinou Godoi (1999, p.113), em seu estudo sobre os camponeses do

Piauí, “para os camponeses, ler uma paisagem é ler o tempo”. Aqui ler o tempo passado

em que “os mais véio contavam” e em que a experiência vivida se defronta com sinais

deste passado, como os objetos encontrados na roça, nos demonstra a presença da

memória fincada no lugar do vivido, ou seja, “a memória se enraíza no concreto, no

espaço, no gesto, no objeto” (NORA, 1993, p. 9)

As árvores, as serras, as nascentes serviam de “suportes de memória”, ou seja, de

marcas mnemônicas provocadoras do ato de recordar. Assim, ao passarmos por uma

“cavagem13” de uma antiga casa, seu Bernardino nos fala sobre o café produzido até a

década de 1960 pela comunidade e como esta monocultura, principal fonte de

sobrevivência dos moradores, hoje já não é mais produzida. Entender também a forma

complexa de utilização da terra de uso comum, como o espaço era racionado no tempo

por um corte de calendário, em que se configura uma circulação sazonal de uso da terra.

A serra é o que podemos chamar de lugar de memória assim definido por Nora

(1993) como o lugar que guarda em si um leque de significações regadas, desde que o

13 Espécie de terraplanagem.

mundo é mundo, pela cumplicidade entre homem e natureza e emergida pelo sentimento

de pertencimento, identidade e afetividade. O lugar que guarda a origem, o começo de

tudo expresso no mito da índia Mucamba, guarda também saberes e instrumentos que

permitiram o reconhecimento político do grupo como parte deste lugar, ou seja, a serra é

um lugar “com efeito nos três sentidos da palavra material, simbólico e funcional”

(NORA, 1993, p.21).

Esta formação complexa tem como eixo de sentido, a serra. Entre pequenos

proprietários de terra moradores da comunidade e grandes fazendeiros e mineradores

torna o território de Fecho de Pasto um território contestado denominado de Serra da

Várzea Comprida. Isso só foi possível de entendimento via reconhecimento in locu de

parte do território14.

Os lugares-de-memória escolhidos pelos sujeitos da pesquisa não foram

escolhidos aleatoriamente, todos seguiam uma lógica do desenrolar da história do

grupo, especialmente, dos fatos que marcaram a Luta pela Serra da Várzea Comprida

que resultou no reconhecimento da área como Fundo e Fecho de Pasto, o que nos leva

até a definição de Godoi (1999, 113), quanto às imagens-movimento em que

correspondiam a uma memória de ações vividas.

A imagem do cruzeiro provoca emoções indescritíveis às pessoas que viveram o

processo de luta, algumas se emocionam, outras começam a falar compulsivamente

sobre o dia em que fincaram na serra esse marco. Contam que o dia do ato de instalação

do cruzeiro foi houve uma missa e no alto da Serra as pessoas enquanto cantavam iam

construindo o marco com: as pedras retiradas do buraco que o grileiro extraia os

14 Digo em parte porque a área é muito extensa ???? Km.

minérios; o arame farpado arrancado da área comum cercada de forma arbitrária pelo

fazendeiro; e portando uma placa em que está até hoje escrito “esta terra é do povo”.

Este cruzeiro é uma imagem-movimento, uma vez que cada palavra escrita, cada pedra

posta e ainda cada fio de arame farpado nos indica que: [...] a memória se inscrever no

solo do lugar e, à medida que seguimos a narração, os movimentos feitos não são

apenas o percorrer um espaço, são antes a sua própria criação (GODOI, 1999, p. 112).O

cruzeiro é uma expressão desta memória pois carrega dimensões do movimento de uma

história recente num lugar de ocupação antiga na constituição do movimento pela

sobrevivência trazido a lembrança por meio dos sentidos do olhar, do pegar, do ouvir.

2REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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