Oralizando a Escritura: O guarani, de José de Alencar ... · ao comentário que um mestre...
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Oralizando a Escritura: O guarani, de José de Alencar, Posto Novamente em
“Romance”
Francisco Cláudio Alves Marques
Universidade Estadual Paulista – UNESP
Resumo: Segundo Paul Zumthor, o romance nasce por volta de 1160, atrelado à voz daqueles
poetas de praça que traduziam em língua vulgar obras da literatura erudita escritas
originalmente em latim. Assim nasce a expressão “mettre en roman”, colocar em romance.
Segundo Zumthor (2003), “pôr em romance”, naquele contexto, significava “‘glosar’ em língua
vulgar, ‘pôr, clarificando o conteúdo, ao alcance dos ouvintes, fazer compreender, adaptando
às circunstâncias’.” Não muito distante dos canterini medievais, os poetas de cordel
nordestinos adaptaram textos herdados do romanceiro ibérico para a literatura de folhetos,
como a História de Carlos Magno, da Imperatriz Porcina e outras tantas, aproximando-as da
realidade de seus leitores e ouvintes. Nesta comunicação pretendo demonstrar que o poeta
Klévisson Viana, ao adaptar O guarani, de José de Alencar, para a literatura de cordel, utilizou
técnicas semelhantes às empregadas pelos antigos poetas populares, numa espécie de glosa do
texto erudito.
Palavras-chave: O guarani; Glosa; Literatura de Cordel.
Abstract: According to Paul Zumthor, the romance rises around 1160, linked to the voice of
those square poets who translate works of learned literature originally written in Latin into
vulgar language. Thus the expression "mettre en roman", put into romance, rises. According to
Zumthor (2003), “to put into romance”, in that context, meant “‘glossing’ in vulgar language,
‘to put, by clarifying the content, within the reach of listeners, to make them understand,
adapting to circumstances’.” Not far from the Medieval canterini, twine poets from the
Northeast Brazil adapted texts inherited from the Iberian Romance into the literature of
pamphlets, such as the History of Charlemagne, History of the Empress Porcina and others,
bringing them closer to the reality of their readers and listeners. In this communication I intend
to demonstrate that the poet Klévisson Viana, in adapting for twine literature José de Alencar’s
The guarani, used techniques similar to those used by the old popular poets, in a kind of
glossing of the erudite text.
Keywords: The Guarani; Gloss; Twine Literature.
O conceito medieval de “romance” segundo Paul Zumthor
A adaptação de O guarani, de José de Alencar, para a literatura de cordel, por Klévisson
Viana, é uma prova cabal de que os poetas que compõem no âmbito da cultura popular sempre
tiveram em contato, desde os primeiros folhetos impressos na Europa, em meados do século
XV, com matrizes escritas.
O fato de uma obra pertencente à literatura erudita passar por um processo de reescritura
em outro contexto cultural nem sempre coincidente com aquele que caracteriza o universo
letrado, remete a uma questão já discutida por Bakhtin e retomada por Carlo Ginzburg em O
queijo e os vermes (1987). Falando sobre a cultura popular, e mais especificamente da cultura
camponesa da Europa pré-industrial, marcada pela difusão da imprensa, Ginzburg remete ao
fato de as produções escritas fundadas numa visão de mundo típica do mundo camponês
dialogar estreitamente com a cultura letrada, o que ele resolveu chamar, apoiado em Bakhtin,
de “circularidade”:
[...] entre a cultura das classes dominantes e a das classes subalternas existiu, na
Europa pré-industrial, um relacionamento circular feito de influências recíprocas,
que se movia de baixo para cima, bem como de cima para baixo (exatamente o
oposto, portanto, do “conceito de absoluta autonomia e continuidade da cultura
camponesa” que me foi atribuído por certo crítico). (GINZBURG, 1987, p.12).
O fato é que antes mesmo de as primeiras prensas serem instaladas na Europa, em
meados do século XV, muitas narrativas originalmente escritas em latim já vinham sendo
vulgarizadas, por volta do século XII, por canterini e charlatães, cantores e vendedores
ambulantes que ganhavam a vida traduzindo narrativas alheias para a língua vulgar, as quais
eram lidas ou cantadas nas praças, feiras e estradas por onde passasse um potencial comprador
daquelas narrativas. Assim surge o “romance”, observa Paul Zumthor (1993, p. 266), por volta
de 1160-70, “na junção da oralidade com a escritura”: “Logo de saída colocado por escrito,
transmissível apenas pela leitura (com a intenção, é verdade, de atingir ouvintes), o ‘romance’
recusa a oralidade das tradições antigas, que terminarão, a partir do século XV,
marginalizando-se em ‘cultura popular’”.
A vulgarização de obras traduzidas diretamente do latim dá origem à expressão mettre
em roman, frequente no francês do século XII. Segundo Zumthor (1993, p. 266), operada por
um indivíduo apenas arranhado pela letra, a colocação em romance tinha por destinatário
qualquer pessoa do meio cavalheiresco e nobre. O medievalista observa ainda que “romance”,
originariamente advérbio, provindo do latim romanice, refere-se ao vernáculo e, portanto, de
modo primário, ao oral. (ZUMTHOR, 1993, p. 266)
Com a finalidade de desfazer certos nós conceituais em torno da ideia de pôr em
romance, definido por muitos medievalistas equivocadamente por “traduzir”, Zumthor (1993,
p. 267) salienta que a expressão parece referir-se mais do que apenas à transferência linguística,
ao comentário que um mestre pronuncia sobre um livro de autoridade: “Pôr em romance é
propriamente ‘glosar’ em língua vulgar, ‘pôr, clarificando o conteúdo, ao alcance dos
ouvintes’, ‘fazer compreender, adaptando às circunstâncias’”.
A vulgarização de textos eruditos tem início antes mesmo da invenção da imprensa,
alargando-se com a difusão desta. Na Itália, por exemplo, a partir do século XV tais
vulgarizações eram impressas em folhetos chamados “libretti muriccioli”, estampadas em
papel ordinário e vendidas a baixo custo pelos canterini e ciarlatani. Os pliegos sueltos
espanhóis são da mesma época, bem como a literatura de colportage francesa e a literatura de
cordel portuguesa. O fato é que a técnica de adaptar narrativas eruditas para o folheto sobrevive
às intempéries do tempo, atravessa oceanos e continentes para continuar sobrevivendo no
Nordeste brasileiro.
A transformação do “Livro da Cidade” em “romance”
Quando se trata da adaptação de histórias da literatura erudita para a literatura de cordel,
uma das primeiras perguntas que se faz é: porque o leitor de cordel não lê o romance na sua
versão original? Segundo os poetas de cordel, dois são os motivos que os levam a “traduzir”
em versos as notícias veiculadas pelos meios de comunicação escritos e as histórias de heróis
e heroínas difundidas por meio da literatura erudita. O poeta Manoel de Almeida Filho (Apud.
ALMEIDA, 1979, p. 202) explica que um desses motivos relaciona-se com o fato de o público
nordestino estar acostumado a ler “rimado”, “versado”:
[...] a grande maioria dos nossos fregueses lê o livro cantando. Como a gente
lê, eles aprendem as músicas dos violeiros, e eles cantam aquilo. [...] E, em
casa reúnem uma família, três, quatro, e cantam aquilo, como violeiro mesmo
[...] O folheto tem essa doçura do verso. E o povo nordestino se acostumou a
ler o verso. Então o livro em prosa mesmo, ele não gosta e nem gosta do
jornal, a notícia do jornal. [...] Ele não entende. [...] Porque está acostumado
a ler rimado, a ler versado.
O outro motivo, ainda de acordo com Manoel de Almeida Filho, está relacionado com
o fato de que o leitor “não entende” ou “não gosta” do livro em prosa, de modo que o poeta,
embora muitas vezes semiletrado, “traduz” em versos a obra escrita em prosa, colocando-a ao
alcance do leitor/ouvinte. A mesma explicação é apresentada pelo poeta de cordel Altino
Alagoano, pseudônimo de Maria das Neves Batista Pimentel. Referindo-se ao folheto O
Violino do Diabo, recriado em versos a partir de uma tradução do romance homônimo de Victor
Pérez Escrich, autor espanhol do século XIX, a poeta revela parte dos mecanismos que
presidem a recriação poética, ideológica e textual por que passam muitos textos da literatura
erudita:
Você sabe que o romance é feito numa literatura alta. O povo não entende,
mesmo lendo não entende, não compreende e nem vai perder tempo para ler
o romance. Então eu transformei aquela literatura no linguajar do povo, no
modo que o povo fala, que o povo entende. [...] eu peguei o miolo. A coisa
mais, que me interessa. [...] O romance é o roteiro, agora aqui eu vou
transferir toda essa história para o linguajar do povo e versar. [...] Eu não
posso me afastar da linha do romance, eu posso criar, ajudar no mesmo
sentido. [...] Então aqui neste romance O violino do Diabo ou o Valor da
Honestidade, então, a lição que eu salientei neste romance, foi a honestidade
da moça e do velho, entendeu? Que aquele homem fez toda a trapalhada, toda
a trapaça para iludir esta moça. [...] Para fazer o folheto, eu leio a parte,
analiso e formo o verso dentro daquela parte. Não vou ler todo o livro, eu leio
aquela parte, aí vou fazendo os versos aos poucos conforme a leitura. [...]
Muita coisa a gente tem que abandonar, a gente não pode pegar um romance
e fazer ao pé da letra, tem que aproveitar o pensamento do escritor e
transformar ao nosso pensamento, quer dizer, fazer aquilo de maneira que
seja fiel: o histórico do escritor mais resumido. (Apud. MENDONÇA,
1993, p. 86).
Câmara Cascudo (1978, p. 12) observa que “o poeta popular transforma o livro da
cidade, do autor letrado em romance, romance na acepção clássica de adaptação e assimilação
destinada a um certo ambiente social.” Os autores de textos de cordel costumam denominar
“romance” ou “obra feita” exatamente os folhetos com 24 ou mais páginas resultantes de
recriações poéticas a partir de narrativas pertencentes à tradição escrita. Essa prática consiste
na transformação do “livro da cidade” em folheto, um gênero particular de “romance” adaptado
a um ambiente social específico e colocado ao alcance do leitor/ouvinte, como faziam os
primeiros autores medievais ao “traduzir” em língua vulgar os textos latinos.
Tratando da adaptação de textos eruditos para a literatura de cordel, Márcia Abreu
(2004, p. 201) observa que devem ser levados em consideração os critérios que presidem a
escolha dos textos a serem adaptados e os que norteiam as alterações e preservações. Segundo
a pesquisadora, a resposta a tais perguntas “pode fornecer indícios sobre formas específicas de
relação com a escrita e com a narração”, uma vez que os dois grupos de textos, originais e
adaptações, “requerem habilidades bastante distintas para sua compreensão e apreciação.”
(ABREU, 2004, p. 201)
Segundo Abreu (2004, p. 201), selecionam-se obras eruditas cujos enredos inserem-se
em um destes três núcleos temáticos básicos: “mulheres virtuosas perseguidas por perversos
apaixonados; amores contrariados (devido a diferenças sociais ou religiosas ou a provações
impostas pelo destino) e enfrentamentos entre poderosos e valentes.” Segundo a autora, não
basta que seja uma história convencional, pois é preciso recontá-la de acordo com as “regras”
da composição de folhetos, uma vez que o interesse pelo tema, ou pelo enredo, não basta para
que o público leitor/ouvinte aprecie um texto oriundo da literatura erudita. (ABREU, 2004, p.
202)
Numa sequência de ações mais ou menos próximas das adotadas pelos poetas populares,
Abreu (2004, p. 202) explica que a alteração mais fundamental consiste na transposição da
prosa para o verso e, mesmo quando o texto-matriz passa por uma transcrição praticamente
literal, o poeta insere cortes com a finalidade de obter versos setissílabos, seguidos da
introdução ou alteração de palavras para efeito de rimas. A pesquisadora observa que, nesse
processo de recriação, é bastante peculiar o modo como os poetas leem o texto erudito, sempre
procurando associar “leitura e memorização”. Abreu salienta que essa concepção de leitura
consiste em “deslocar os conhecimentos fixados no papel para a memória”, de modo que os
poetas de cordel “comportam-se como o fazem comunidades iletradas em que todo o
conhecimento tem que ser conservado no cérebro, já que não há formas exteriores de fixação
dos conteúdos.” (ABREU, 2004, p. 203).
O Guarani, de José de Alencar, em versos de cordel
O guarani em cordel, de autoria do poeta Klévisson Viana, foi finalista do 57º Jabuti
na categoria adaptação. Embora editado no formato livro, com vistas a ser adotado nas escolas
de ensino médio e fundamental, o poema composto em sextilhas tradicionais guarda a
preocupação de manter o estilo empregado pelos poetas pioneiros da literatura de cordel,
certamente para manter a identidade do gênero.
Diferentemente do que faz Alencar, o poeta de cordel inicia sua história recriada à
maneira dos trovadores provençais e dos primeiros poetas de praça europeus, cujas obras lidas
nas feiras e ruas eram produtos da vulgarização de textos gregos e latinos. Viana introduz seu
poema pedindo inspiração não às Musas, mas a Deus, para que possa retransmitir ao leitor a
história contada em prosa pelo escritor erudito.
Se Deus traçou meu destino
De poeta popular,
Peço a Ele inspiração
Para poder versejar
O romance O Guarani,
De José de Alencar. (VIANA, 2014, p. 7).
Que se trata de recriação, isso já vem explicitado na segunda estrofe. Quanto à temática,
como bem observou Márcia Abreu (2004), trata-se de uma história de amor e luta, coragem e
heroísmo:
Reescrevendo em cordel
Um clássico do Romantismo,
Recheado de aventura,
Coragem, força, heroísmo,
Amor, nobreza e ação,
Natureza e exotismo. (VIANA, 2014, p. 7).
Na terceira estrofe, além de se isentar da autoria da história a ser recontada, ao tomar
como álibi o texto lido –“Sendo fiel ao que li” –, o poeta apresenta ao leitor os protagonistas e
os qualifica com epítetos geralmente utilizados pelos poetas populares para qualificar os heróis
e os vilões das histórias tradicionais. Desse modo, o leitor já fica sabendo quem fará o papel de
vilão, de heroína ou de herói, podendo, inclusive, prever a condição de cada personagem no
final do enredo: “Eu mostrarei nos meus versos/ A meiga e linda Ceci,/ Com seu leal defensor,/
O devotado Peri.” (VIANA, 2014, p. 7). Aqui também emerge uma característica apontada por
Ong ao falar dos textos fundados no pensamento oral-formular. Segundo Ong (1998, p. 49),
tais textos são mais agregativos do que analíticos, e essa característica, segundo o autor, “está
intimamente ligada às fórmulas como meio de aparelhar a memória.” Assim, diz Ong (1998,
p. 49):
As bases do pensamento e da expressão fundados na oralidade tendem a ser não
tanto meras totalidades, mas agrupamentos de totalidades, tais como termos, frases
ou orações paralelos, termos, frases ou orações antitéticos, epítetos. As nações orais
preferem, especialmente no discurso formal, não o soldado, mas o soldado valente;
não a princesa, mas a bela princesa; não o carvalho, mas o carvalho robusto. Assim,
a expressão oral está carregada de uma quantidade de epítetos e outras bagagens
formulares que a cultura altamente escrita rejeita como pesados e tediosamente
redundantes em virtude de seu peso agregativo.
Como podemos perceber, todo o processo de adaptação repete muitas das técnicas de
composição fundadas no pensamento oral-formular estudadas por Walter Ong (1998). O uso
de fórmulas é um dos procedimentos mais adotados pelos poetas populares: a heroína é sempre
meiga, prendada, virtuosa e fiel; o vilão é sempre perverso, facínora e inescrupuloso etc.
Segundo Ong (1998, p. 45), “As fórmulas ajudam a implementar o discurso rítmico, assim
como funcionam, por si sós, como apoios mnemônicos, como expressões fixas que circulam
pelas bocas e pelos ouvidos de todos.”
Ainda segundo Ong (1998, p. 45), nas culturas orais ou apenas “arranhadas” pela letra,
o pensamento deve ser cuidadosamente articulado, “é preciso exercê-lo segundo padrões
mnemônicos, moldados para uma repetição oral”. Todos esses procedimentos podem ser
facilmente observados na composição de poemas populares, reflexos de uma cultura fundada
no pensamento oral-formular o qual, segundo Ong (1998, p.45).
[...] deve seguir em padrões fortemente rítmicos, equilibrados, em repetições ou
antíteses, em aliterações e assonâncias, em expressões epitéticas ou outras
expressões formulares, em conjuntos temáticos padronizados (a assembleia, a
refeição, o duelo, o “ajudante” do herói e assim por diante), em provérbios que são
constantemente ouvidos por todos, de forma a vir prontamente ao espírito, e que são
eles próprios modelados para a retenção e a rápida recordação – ou em outra forma
mnemônica. As reflexões e os métodos de memorização estão entrelaçados. A
mnemônica deve determinar até mesmo a sintaxe.
Na quarta estrofe do poema de Viana podemos verificar aquela associação entre leitura
e memorização do texto lido, apresentado por Márcia Abreu, e a importância dos recursos
mnemônicos, sublinhada por Ong:
Pleno século dezessete,
Corria o ano da glória
De mil seiscentos e quatro,
Se não me trai a memória.
Eis a indicação do tempo
Do enredo dessa história. (VIANA, 2014, p. 7)
No texto recriado por Klévisson Vianna é possível perceber os procedimentos
tradicionais empregados por outros autores que também praticaram a adaptação de textos da
literatura erudita no início do século XX, como Leandro Gomes de Barros, por exemplo. A
descrição de Dom Antônio de Mariz, por exemplo, encontra-se diluída ao longo de vários
parágrafos em O guarani, de Alencar. No texto recriado, o poeta reúne elementos e
qualificativos que antecipem para o leitor a conduta moral da personagem, não se preocupando
com uma descrição demorada nem com a enumeração de complicações psicológicas que
porventura tenham ajudado a caracterizar Dom Antônio no texto-matriz. Vejamos:
Dom Antônio de Mariz
Era um fidalgo notável
De uma nobreza infinda,
Generoso e agradável,
Que tratava os seus súditos
Como um pai, de forma amável.
Um fiel representante
Da coroa portuguesa.
Mesmo com sessenta anos,
Ainda tinha destreza
E tornara-se o senhor
De uma grande fortaleza. (VIANA, 2014, p. 8).
Álvaro é descrito à maneira do cavaleiro medieval Orlando, sobrinho de Carlos Magno,
seguindo o modelo dos paladinos de França, literatura à disposição dos cantadores e poetas
populares nordestinos:
O jovem Álvaro de Sá
Tinha vinte e oito anos
E era entre os guerreiros
Talvez um dos mais humanos,
Um perfeito cavalheiro,
Cheio de amor e planos.
Apesar de ser tão jovem,
Mostrou que tinha valia
E a Antônio de Mariz
Já há dez anos servia.
Como a um filho, Dom Antônio,
Bastante bem lhe queria. (VIANA, 2014, p. 17).
Para o vilão Loredano também não faltam epítetos que o coloquem em pé de igualdade
com todos os vilões da literatura de folhetos:
Também vinha na bandeira
Um perverso italiano:
Homem vil, ganancioso...
De alcunha Loredano,
Que por inveja de Álvaro,
Queria frustrar seu plano. (VIANA, 2014, p. 17).
A descrição de ambientes se resume a uma série de epítetos que ajudam o leitor a refazer
mentalmente o cenário descrito demoradamente no texto-matriz. Assim, a descrição do
ambiente e da casa de Dom Antônio de Mariz, que ocupa todo o primeiro capítulo do texto-
matriz, é apresentada ao leitor de cordel em apenas seis estrofes:
E lá na Serra dos Órgãos
Conservou sua nobreza.
Mandou vir de Portugal
Artesãos que, com fineza,
Construíram numa rocha
Uma imensa fortaleza.
Tudo ali era pomposo
No cenário especial.
A Natureza sublime
Se esmerou de forma tal:
O rio, a montanha, a mata,
Eis esse cartão postal.
A casa grande, espaçosa,
Foi muito bem construída,
Aproveitando o terreno.
Era a mesma protegida
Pela própria Natureza,
Que a todos dava guarida.
Um castelo medieval,
Na mata terrível e bela,
Era unido ao continente
Por uma ponte singela
Guarnecida, dia e noite,
Por mais de uma sentinela.
Ali as feras viviam
Naquele imenso degredo:
Onças, jiboias, lagartos,
Bichos de provocar medo,
Foram peças do cenário
Desse comovente enredo.
Também no entorno da casa
Tinha um imenso galpão
Onde os aventureiros
Contavam com a proteção
De Dom Antônio naquela
Isolada região. (VIANA, 2014, p. 11).
Outro procedimento adotado por Viana, herdado dos poetas populares pioneiros e da
poesia narrativa medieval, muito comum em Boiardo e Ariosto, é a técnica do entrelaçamento,
que consiste em deixar a narração continuamente suspensa e depois retomada, interligando
várias histórias que ocorrem simultaneamente:
Eu deixo aqui Loredano,
Um ente sem coração,
Doente pela cobiça,
E cego pela ambição,
Para poder prosseguir
Nessa minha narração. (VIANA, 2014, p. 43).
Vamos deixar a família
Do fidalgo por aqui.
Vamos voltar à floresta.
Pra olharmos de per si,
O que na selva sombria
Sucedeu ao bom Peri. (VIANA, 2014, p. 65).
Voltando às produções fundadas no pensamento oral-formular, e aos postulados de
Walter Ong, identificamos no trecho da luta contra os Aimorés, e na ação guerreira de Peri,
ambas hiperbolizadas, muitas das características presentes nas formulações orais. Ong observa
que o pensamento e a expressão fundados na oralidade estão, muitas vezes,
a) próximos ao cotidiano da vida humana: “as culturas orais conceituam e
verbalizam todo o seu conhecimento com uma referência mais ou menos
próxima ao cotidiano da vida humana, assimilando o mundo estranho,
objetivo, à interação imediata, conhecida, de seres humanos.” (ONG, 1998,
p. 53) O leitor de cordel está acostumado tanto à luta cotidiana quanto às
lutas travadas entre valentes no âmbito da literatura de folhetos. Essa mesma
atmosfera de luta, hiperbolizada, é transposta para a versão recriada por
Viana quando da descrição da luta de Peri contra os Aimorés:
Peri na luta brigava
Por um batalhão inteiro.
Cada flecha de Peri
Achava um alvo certeiro,
Mas se Cecília o chamasse,
Ele chegava primeiro. (VIANA, 2014, p. 77).
b) de tom agonístico: “Ao manter o conhecimento imerso na vida cotidiana, a
oralidade o situa dentro de um contexto de luta”. (ONG, 1998, p. 55) No
diálogo de Dom Diogo com Dom Antônio, sobre a morte supostamente
acidental de uma índia por Dom Diogo, no contexto da luta contra os
Aimorés, o jogo de perguntas e respostas obedece às regras da composição
repentista e ocorre no ritmo do “de repente, muito conhecido do
leitor/ouvinte:
Diz Aires: - Ele matou
A índia por acidente.
Seu filho é um bom menino,
Uma pessoa excelente,
E, no manejo das armas,
É bastante competente.
Diz o fidalgo afobado:
- Em andanças com meus pares
Por esses sertões tão ermos,
Passando em muitos lugares,
Constatei que somos poucos
E os Aimorés são milhares.
Foi uma grande imprudência,
Uma atitude feroz!
Replica Aires: - Senhor,
Os índios respeitam a vós!
Diz Antônio: - Um Aimoré
Não pensa assim como nós! (VIANA, 2014, p. 27).
Ao final de toda luta, e tendo Ceci visto que tinha perdido seus pais na guerra, dirige-
se a Peri e diz que quer viver na selva com ele e não na cidade. Nesse ínterim, forma-se uma
inesperada tempestade. Os dois se salvam embarcados no tronco de uma palmeira. A descrição
da enxurrada no final da quarta e última parte do folhetim de Alencar é um tanto demorada. Na
versão em cordel, uma última estrofe sela o destino dos heróis que, na imaginação do leitor
afeito aos inúmeros finais felizes dos contos de encantamento, deverão viver felizes para
sempre.
Veio uma grande enxurrada...
Do tronco de uma palmeira,
Peri fez uma jangada,
Salvou sua companheira.
Deles brotou a semente
Dessa raça brasileira. (VIANA, 2014, p. 85).
A versão em verso não só oferece uma releitura, em chave romântica, do mito universal
da reconstrução após o dilúvio como alude às origens da formação da raça brasileira e da
formação do nosso caráter e da nossa identidade.
Considerações finais
O ato de recontar uma história, no âmbito da literatura de cordel, extrapola a simples
decisão de se sentar ao pé da lareira, na presença de amigos e parentes, para entretê-los nos
dias de frio ou para reconfortá-los do cansaço do trabalho árduo no campo. Recontar aqui
requer a habilidade de aproximar a história lida ou contada na cidade, no interior da literatura
erudita, do universo e da visão de mundo do leitor/ouvinte. O leitor do campo ou das periferias
das grandes capitais brasileiras, que leu no formato do folheto Iracema, Ubirajara, O guarani
e tantos outros textos da literatura livresca, se identificou com seus heróis, dialogou com
situações de luta muitas vezes semelhantes às suas, inscreveu sua história na trajetória de heróis
e heroínas que foram compelidos a usar simultaneamente a força do braço e do amor para
vencer as intempéries e os empecilhos geralmente impostos do alto ou por vilões “facinorosos”
e pervertidos. O poeta Klévisson Viana nasceu e cresceu nesse universo e, com propriedade, à
maneira dos poetas pioneiros, transpôs para a versão em cordel uma história que, em muitos
aspectos, e embora reproduzindo ainda uma visão romântica e idealizada dos nossos
colonizadores e nativos, recupera o mito da reordenação do caos pós-diluviano para, em
seguida, lançar as bases da formação da nossa raça e da nossa identidade.
Referências
ABREU, Márcia. “Então se forma a história bonita”: Relações entre folhetos de cordel e
literatura erudita. Horizontes Antropológicos, vol. 10, n. 22, jul.-ago. 2004, p. 199-218.
ALENCAR, José de. O guarani, Iracema, Ubirajara. Romances Ilustrados de José de
Alencar. 5. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1977, v.1, (I. Formação da Nacionalidade – A.
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ALMEIDA, Mauro William Barbosa de. Folhetos: a literatura de cordel no Nordeste brasileiro.
Mestrado em Antropologia, Departamento de Ciências Sociais da FFLCH/USP, São Paulo,
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CASCUDO, Luís da Câmara. Cinco livros do povo. Rio de Janeiro: José Olympio, 1978.
GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes: o cotidiano e as ideias de um moleiro perseguido
pela Inquisição. Trad. Maria Betânia Amoroso, 3. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.
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ONG, Walter. Oralidade e cultura escrita. Trad. Enid A. Dobránszky, Campinas, SP: Papirus,
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ZUMTHOR, Paul. A letra e a voz na ´literatura´ medieval. Trad. A. Pinheiro e J. P. Ferreira,
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