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ELOISA DE PAULA PEREIRA NASCIMENTO ORANICE FRANCO: ASPECTOS IDEOLÓGICOS E CULTURAIS NAS FÁBULAS DO TIO JANJÃO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS: TEORIA LITERÁRIA E CRÍTICA DA CULTURA São João del-Rei 2016

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ELOISA DE PAULA PEREIRA NASCIMENTO

ORANICE FRANCO: ASPECTOS IDEOLÓGICOS E CULTURAIS NAS FÁBULAS DO TIO

JANJÃO

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS:

TEORIA LITERÁRIA E CRÍTICA DA CULTURA

São João del-Rei 2016

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ELOISA DE PAULA PEREIRA NASCIMENTO

ORANICE FRANCO:

ASPECTOS IDEOLÓGICOS E CULTURAIS NAS FÁBULAS DO TIO JANJÃO

Dissertação apresentada ao Programa de Mestrado em Letras da

Universidade Federal de São João del-Rei como requisito parcial

para obtenção do título de Mestre em Letras.

Área de concentração: Teoria Literária e Crítica da Cultura

Linha de pesquisa: Literatura e Memória Cultural

Orientadora: Profª Drª Suely da Fonseca Quintana

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS:

TEORIA LITERÁRIA E CRÍTICA DA CULTURA

São João del-Rei

2016

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ELOISA DE PAULA PEREIRA NASCIMENTO

ORANICE FRANCO: ASPECTOS IDEOLÓGICOS E CULTURAIS NAS FÁBULAS DO TIO

JANJÃO

BANCA EXAMINADORA

_______________________________________________

Profª Drª Suely da Fonseca Quintana – UFSJ (Orientadora)

_______________________________________________

Profª Drª Maria Andréia de Paula Silva – CES/JF

_______________________________________________

Prof. Dr. Anderson Bastos Martins – UFSJ

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS:

TEORIA LITERÁRIA E CRÍTICA DA CULTURA

2016

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Para meu marido, companheiro e amigo, Luiz

Carlos, e para minhas filhas, Fernanda e Marina,

melhores partes de mim.

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AGRADECIMENTOS

À professora Suely da Fonseca Quintana, pela ajuda constante e por nunca ter me

deixado aflita, sem respostas ou direcionamento, sendo, além de orientadora, uma

amiga sincera e dedicada.

Ao poeta Eric Ponty, cuja generosidade enriqueceu meu trabalho, permitindo o

acesso ao acervo de Oranice Franco.

Ao escritor Nilo da Silva Lima pelo empréstimo de todo o material particular sobre

Oranice Franco.

Aos professores do Mestrado, por ajudarem na minha formação acadêmica.

Ao meu marido, Luiz Carlos, por sempre me apoiar, incondicionalmente.

Às minhas filhas, Fernanda e Marina, por acreditarem em mim em todas as etapas

deste trabalho.

Aos meus netos, Samuel e Pedro, cujos sorrisos alegraram os intervalos entre as

infinitas palavras escritas.

Às minhas irmãs, Rosângela, Rosane e Conceição, genros, sobrinhos e sobrinhas,

que são meu lugar seguro, onde sempre quero estar.

Ao meu pai, Humberto (in memoriam), e à minha mãe, Maria de Lourdes, por serem

os responsáveis pela minha formação moral.

Ao meu amigo e chefe, Fábio Chaves, e à UFSJ por permitirem meu afastamento

para cursar o Mestrado.

Aos meus amigos, que torceram por mim e se alegraram com meu ingresso no

Mestrado.

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RESUMO

Histórias do Tio Janjão foi um programa apresentado na Rádio Nacional, na década

de 1950, escrito por Oranice Franco, poeta, escritor e jornalista mineiro. As histórias

narradas eram fábulas e destinavam-se ao público infantil. A proposta da

dissertação é mostrar que as fábulas, muito além de terem como finalidade apenas o

entretenimento ou a advertência às pessoas, refletem comportamentos e

pensamentos específicos de diferentes períodos em sociedades distintas. Assim, a

primeira parte do estudo analisa alguns representantes do gênero, ao longo do

tempo, mostrando como a produção de fábulas encontrava-se inserida dentro dos

contextos social e cultural de cada época e sociedade. A segunda parte traz

detalhes sobre a vida de Oranice Franco: alguns dados já conhecidos e outros

inéditos obtidos por meio de conversas estabelecidas com vizinhos e amigos da

cidade de São João del-Rei, MG, onde o autor viveu parte de sua vida, falecendo em

1999. As análises de algumas das fábulas, que compõem o acervo do escritor e que

foram narradas no programa da emissora de rádio, possibilitaram comprovar a

relação entre a produção de Oranice Franco e o contexto ideológico e cultural de

sua época. A influência da Rádio Nacional como veículo de comunicação e sua

relação com alguns dos objetivos do governo de Getúlio Vargas foram apresentadas

para reforçar o objetivo principal do estudo. Decretos federais e recortes de jornais

também comprovam a inter-relação entre as fábulas e o momento histórico em que

foram escritas.

Palavras-chave: Oranice Franco; Fábulas; Ideologia; Cultura; Rádio Nacional.

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ABSTRACT

Histórias do Tio Janjão was a program presented on “Rádio Nacional” (National

Radio), in the 1950s, which was written by a poet, writer and journalist called Oranice

Franco, from Minas Gerais. The stories which were told in this program were fables

and they were for children. The purpose of the essay is to show that the fables,

beyond their intention of entertaining or warning people, reflect specific behaviors

and thoughts from different periods in different societies. Therefore the first part of

the study looks at some of the genre representatives over time showing how the

production of fables found itself inserted into the social and cultural context of each

era and society. The second part provides details about Oranice Franco’s life: some

facts were well known and others, which were unpublished, were obtained through

talks with neighbors and friends of him in São João del-Rei, MG, where the author

lived part of his life, dying in 1999. The analysis of some of the fables, which are part

of the writer’s collection and were told in the radio station’s program, made it possible

to prove the relation between Oranice Franco’s work and the ideological and cultural

context of his time. The influence of “Rádio Nacional” (National Radio), as a means

of communication and its relationship with some of Getúlio Vargas’s government

goals, was presented to reinforce the primary objective of the study. Federal decrees

and newspaper clippings also show the interrelation between fables and the historical

moment in which they were written.

Key words: Oranice Franco; Fables; Ideology; Culture; National Radio.

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LISTA DE ILUSTRAÇÕES E QUADROS

FIGURA 1 – Oranice Franco .................................................................................... 61

FIGURA 2 – Notícia sobre o início do programa Histórias do Tio Janjão ............... 64

FIGURA 3 – Capa do disco ...................................................................................... 66

FIGURA 4 – Última referência ao programa Histórias do Tio Janjão ....................... 67

FIGURA 5 – Nota sobre as cartas recebidas ........................................................... 88

FIGURA 6 – Número de cartas mensais .................................................................. 88

FIGURA 7 – Carta de uma mãe ao Tio Janjão ........................................................ 89

FIGURA 8 – Seis volumes das Histórias do Tio Janjão ........................................... 91

FIGURA 9 – Manchete: Campanha contra o jogo .................................................. 101

QUADRO 1 – Relação entre as fábulas contadas e os livros publicados ................ 12

QUADRO 2 – Resumo dos volumes das Histórias do Tio Janjão ............................ 92

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO .......................................................................................................... 9

CAPÍTULO 1

FÁBULAS: GÊNERO E PODER .............................................................................. 17

1.1 A origem da fábula ............................................................................................. 18

1.2 Fábulas indianas: Kalila e Dimna ....................................................................... 20

1.3 Esopo ................................................................................................................. 28

1.4 Fedro .................................................................................................................. 37

1.5 La Fontaine ......................................................................................................... 45

1.6 Monteiro Lobato .................................................................................................. 52

CAPÍTULO 2

TAL ÉPOCA, TAL ESCRITOR ................................................................................. 60

2.1 O princípio... ....................................................................................................... 61

2.2 Nas ondas da Rádio Nacional: o lugar de Vargas e de Franco ......................... 71

2.3 As histórias infantis e as motivações ideológicas ............................................... 79

2.3.1 O primeiro volume ........................................................................................... 93

2.3.2 O segundo volume .......................................................................................... 96

2.3.4 O terceiro volume ............................................................................................ 97

2.3.4 O quarto volume ............................................................................................ 102

2.3.5 O quinto volume ............................................................................................ 103

2.3.6 O sexto volume .............................................................................................. 104

2.3.7 Orana: apropriação e transformação das fábulas ......................................... 105

CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................... 107

BIBLIOGRAFIAS .................................................................................................... 112

APÊNDICES .......................................................................................................... 118

ANEXOS ................................................................................................................. 127

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INTRODUÇÃO

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Meu primeiro contato com o objeto da minha dissertação aconteceu à

época da redação do projeto para o ingresso no Mestrado. Afastada do meio

acadêmico há mais de vinte anos, precisava encontrar um assunto que, além de

satisfazer a um antigo desejo pessoal, também se aproximasse de meus interesses.

Partiu do meu marido a sugestão do nome Oranice Franco. Eu desconhecia a

existência do autor e nada sabia sobre sua produção. Informada que Franco

escreveu crônicas, livros e histórias infantis para uma emissora de rádio, o interesse

surgiu. Ao saber que ele havia morado em São João del-Rei, minha cidade natal, a

decisão foi tomada.

Assim, procurei ler, por intermédio dos meios eletrônicos, tudo o que se

relacionava a ele. Não obtive muito sucesso nas pesquisas iniciais, conseguindo

adquirir apenas dois livros infantis do autor em sebos nacionais. Nada sobre as

crônicas, tema também de meu interesse. Então, delimitei o assunto: trabalharia

com os livros infantis que foram escritos por Oranice. Com a leitura dos dois livros

encontrados, percebi que o autor havia escolhido a fábula como gênero para sua

produção destinada às crianças.

A fábula se liga, de alguma forma, à infância. Ouvir histórias permite sentir

emoções e viver intensamente tudo o que é narrado. Por fazerem parte do universo

infantil, as fábulas sempre foram apreciadas e usadas por pais e educadores para

transmitirem ensinamentos morais às crianças. Mas não era exatamente esse

enfoque que queria dar à minha pesquisa. Muitos já falaram sobre as fábulas e sua

relação com crianças e com a Literatura Infantil. Eu queria algo diferente para um

escritor pouco estudado e conhecido, mas com grande volume de obras.

Ingressando no Mestrado, sob a orientação da Profa. Suely da Fonseca

Quintana, o norte da dissertação foi definido. As fábulas não seriam abordadas

como representantes da Literatura Infantil. Os caráteres ideológico, cultural e social

das fábulas encaminhariam a pesquisa.

Com o tempo, quase todos os livros infantis de Oranice, faltando apenas

um, foram adquiridos e a pesquisa continuava sendo feita no sentido de analisá-los.

Entretanto, durante a coleta de dados, foi estabelecido o contato com Eric Tirado

Viegas, o poeta Eric Ponty, que é o responsável pelo acervo de Oranice Franco.

Após algumas conversas, Eric Ponty permitiu meu acesso ao acervo de

Oranice, fato que foi determinante para o encaminhamento da presente pesquisa. O

acervo é extenso: há cadernos contendo recortes de jornais da época com

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referências ao escritor, pastas com correspondências dos amigos, pastas com

material referente aos livros publicados, todos organizadas pelo autor, produções e

recortes que se encontram em folhas soltas, sem qualquer referência. A maioria da

produção de Franco foi datilografada e alguns textos apresentam anotações feitas à

mão pelo escritor. Há também algumas pastas com parte da produção de Crônicas

da Cidade, todas escritas por Franco e lidas na Rádio Nacional. Entre as fotografias,

há algumas dos ouvintes do programa Histórias do Tio Janjão e também cartas

endereçadas ao Tio Janjão.

As Histórias do Tio Janjão estão distribuídas em seis volumes

encadernados e organizados pelo próprio Oranice Franco, contendo duzentas e

trinta e duas fábulas. Esse número não representa todas as fábulas que foram

escritas, mas, com certeza, foi capaz de fornecer dados muito significativos sobre a

obra do autor. Desse total, algumas foram enviadas por crianças, outras são

originárias dos clássicos infantis e outras são repetidas, isto é, foram contadas mais

de uma vez durante a existência do programa. A primeira fábula do primeiro volume

data de 09 de abril 1953, três meses depois do início do programa.

A leitura de todas as fábulas contidas nesses seis volumes possibilitou

uma nova descoberta. Dez dos dezessete livros de Oranice, que foram publicados

entre as décadas de 1970 e 1990, são uma adaptação das histórias contadas na

Rádio Nacional. À exceção de dois livros, cuja origem não se pôde precisar, os

outros são frutos do programa infantil apresentado pela emissora de rádio. A partir

dessa nova e importante constatação, o objetivo principal do trabalho passou a ser a

análise das fábulas contadas na Rádio Nacional sob as perspectivas social, cultural

e ideológica.

Oranice Franco começou a escrever para as crianças na Rádio Nacional

em 1953 e a publicação de seus livros surgiu a partir da década de 1970 e

prosseguiu até duas décadas seguintes. O QUADRO 1 é um demonstrativo das

datas das fábulas contadas na emissora de rádio e dos livros publicados.

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QUADRO 1 – Relação entre as fábulas contadas e os livros publicados

Data do

Programa

Nome da fábula

contada na Rádio Nome do Livro Publicação1

30/04/53 O burrinho que ria à

toa O burrinho que ria 1984 – 4. ed.

02/06/53 O papagaio mentiroso Niquinho 1980

02/07/53 O pavão orgulhoso O pavão orgulhoso 1988

07/07/53 O peixinho arteiro O peixinho arteiro 1982 – 2. ed.

24/09/53 O urubu cantor O urubu cantor 1989

13/04/54 O coelho sovina A festa do grilo 1977

29/07/54 O cachorrinho de

sangue azul

O cachorrinho de

sangue azul 1987

17/08/54 O touro valentão O touro valentão 1973

30/09/54 O coelhinho mágico O coelhinho mágico 1983 – 3. ed.

30/12/54 O cavalinho e o Ano

Novo O cavalinho Alecrim 1984

A sapinha sapeca Livro não

localizado

13/01/55 A rifa do macaco Macaco Simão rifa um

leão s/d

Esses dados mostram que Oranice se baseou nas histórias contadas na

época da Rádio Nacional para publicar seus livros. Franco escreveu dezessete livros

infantis, contendo dezoito histórias. Desse total, cinco livros não se encaixam no

gênero fábulas. Dos doze livros restantes, apenas um não foi localizado, A sapinha

sapeca. Os volumes encadernados contendo as fábulas da época da Rádio Nacional

e que fazem parte do acervo do escritor não estão completos. Faltam as primeiras

histórias de janeiro a abril de 1953, o que poderia justificar a ausência das duas

histórias que se tornaram livros. Em um dos volumes, entretanto, há uma fábula

intitulada A sapinha sapeca (1953), cujo título é o mesmo do livro não localizado,

levando a supor que pode se tratar da mesma história. A fábula A rifa do macaco

1 Foi utilizada a data que constava nos livros adquiridos, pois não foi localizada a primeira edição de

todos.

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(1955) guarda alguma semelhança com o livro Macaco Simão rifa um leão. As duas

histórias são sobre um macaco que rifa algo que não é dele, sendo obrigado a

trabalhar para consertar o erro. As semelhanças, todavia, param aí. Não se pode

afirmar que as fábulas citadas serviram ou não de inspiração para Franco ao

escrever esses dois livros.

Durante o acesso ao acervo, mais diálogos foram acontecendo entre mim

e o poeta Eric Ponty, que sempre acrescentava novas informações sobre Franco.

Depois, o pai de Eric, o senhor Vicente Viegas, também me relatou vários fatos

sobre a vida de Oranice e da família Franco. Essas informações foram muito

valiosas, pois não constam em nenhum meio impresso ou eletrônico. São frutos de

uma convivência entre amigos e vizinhos que moravam na mesma rua da cidade de

São João del-Rei.

Outro auxílio à pesquisa veio das consultas feitas à Biblioteca Nacional

Digital. Mediante a leitura de várias edições do jornal A Noite, publicadas entre 1953

e 1957, foram obtidas mais informações sobre o programa Histórias do Tio Janjão,

sobre Oranice Franco e sobre fatos da época. Os dados advindos dessa leitura

possibilitaram ter uma visão a respeito do autor a partir de alguns colunistas do

jornal, do posicionamento de Franco perante os fatos que envolviam a Rádio

Nacional, bem como do sucesso, desenvolvimento e término do programa infantil.

Partindo do enfoque dado à pesquisa, a dissertação foi organizada em

dois capítulos. O Capítulo 1 traz informações sobre a origem da fábula, a descrição

de alguns momentos e representantes do gênero, desde a Antiguidade até o século

XX, e o relacionamento entre os temas das fábulas com a ideologia e as relações de

poder que permeavam as questões sociais dos períodos analisados.

A primeira seção do Capítulo 1 traz trechos críticos de Nelly Novaes

Coelho, Neide Smolka, Heinrich Zimmer, Massaud Moisés e Osvaldo O. Portella

sobre o conceito e a estrutura das fábulas, o tratamento dado às personagens e

outras particularidades.

Depois, seguem-se as análises sobre o livro Kalila e Dimna, uma

coletânea de fábulas orientais, de origem indiana, possivelmente do século III a. C. A

leitura do livro de Heinrich Zimmer, Filosofias da Índia, possibilitou a percepção da

relação entre a sociedade indiana antiga e o enredo das fábulas. A posição da

mulher na Índia, o sistema de castas, o dharma e os ensinamentos direcionados aos

reis e governantes, e a inalterabilidade da hierarquia social, a fim de que a ordem

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seja preservada e os erros punidos quase sempre com a morte são aspectos que se

encontram em ambos – fábulas e livro.

Em seguida, abordam-se a vida e a obra de Esopo, nascido no século VI

a. C. e levado como escravo para a Grécia. Nessa seção, mostra-se o tipo de

fábulas produzidas por Esopo: narrativas pequenas e diretas, contendo poucos

castigos físicos e com várias referências aos deuses. O papel da religião, a

submissão aos deuses antigos e a pouca valorização da mulher foram aspectos

analisados a partir dos apontamentos de Fustel de Coulanges. A questão da

escravidão e a postura adotada por Esopo de reafirmar o poder dos nobres e a

submissão do povo tiveram como suporte os ensinamentos de Moses I. Finley.

A pesquisa trata, em seguida, de Tito Júlio Fedro nascido no ano 20 a. C.,

que foi levado como escravo para Roma. Essa parte foi desenvolvida com a

intenção de demonstrar que Fedro usou as fábulas para fazer duras críticas ao

Império e aos nobres, não aceitando a posição servil e a submissão com a mesma

naturalidade que Esopo. As anotações dos escritores Mário Curtis Giordani e Paul

Veyne fundamentaram a relação entre o conteúdo das fábulas e os aspectos da

sociedade da Roma Antiga. Luiz Feracine, além da tradução do livro de Fedro usado

na dissertação, trouxe importantes revelações sobre a vida e a obra de Fedro.

O grande representante do gênero fábulas, Jean de La Fontaine, foi o

próximo a ter parte de sua obra analisada. As informações prestadas sobre a vida e

a obra de La Fontaine foram fornecidas por Lucílio Mariano Júnior, que fez a

introdução do volume 1 do livro Fábulas de La Fontaine. A relação do escritor

francês com a corte e com Luís XIV encontra-se espelhada em suas fábulas e traz

aspectos consonantes com aqueles informados por Jacques Revel. O tratamento

gentil dispensado às mulheres, fruto do estilo de vida adotado por ele, bem como a

crítica aos religiosos e aos nobres perpassam o enredo de suas narrativas.

Aproximando mais de nossa realidade, a próxima seção é dedicada a

José Bento Monteiro Lobato, nascido em Taubaté no ano de 1882. O enfoque aqui

foi o tratamento dispensado às crianças do Sítio do Pica-Pau Amarelo. Em suas

fábulas, Monteiro Lobato criava discussões entre os adultos e os pequenos, dando

voz a esses últimos, que expõem suas opiniões acerca de temas com relevância

política, social, econômica e cultural, entre outros. As informações sobre a vida e a

obra de Lobato foram fornecidas por Loide Nascimento de Souza e por Ismael dos

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Santos. Os pontos de contato entre Monteiro Lobato e Jean-Jacques Rousseau

foram apresentados nessa seção.

O Capítulo 2 apresenta a abordagem sobre Oranice Franco e suas

fábulas produzidas para o programa Histórias do Tio Janjão. Na primeira seção,

foram abordados os fatos relacionados à vida de Oranice Franco, obtidos por meio

das conversas com Eric Tirado Viegas, responsável pelo acervo do escritor, e com

seu pai, o senhor Vicente Viegas. Recortes do jornal A Noite também foram

utilizados para obter dados sobre a vida de Franco e o trabalho desenvolvido por ele

durante o tempo em que trabalhou na Rádio Nacional.

A segunda seção trata da análise da relação entre o governo de Getúlio

Vargas, nos anos de 1930, a Rádio Nacional e a produção de Oranice Franco. Os

pensamentos de Jesús Martin-Barbero deram suporte para o entendimento sobre o

papel do rádio na mediação das massas na América Latina e sobre a utilização do

populismo como estratégia da política de Vargas. Nesse sentido, o rádio surge como

instrumento capaz de atender tanto à mediação das massas como aos interesses de

Vargas e da Rádio Nacional.

Os filósofos alemães Theodor W. Adorno e Max Horkheimer foram citados

para mostrar como o papel alienante da indústria cultural se fez presente na

programação da Rádio Nacional, auxiliando o governo a criar um novo sentido de

nação ao mesmo tempo em que aumentava a audiência de seus programas,

inclusive das Histórias do Tio Janjão.

A última seção do Capítulo 2 refere-se à produção infantil de Oranice

Franco. Os seis volumes que contêm as Histórias do Tio Janjão foram lidos e

algumas fábulas foram analisadas, demonstrando como o escritor atendia às

expectativas sociais, culturais e educacionais da época. Os aspectos educacionais

estariam de acordo com a visão da infância explicada por Philippe Ariès e com as

normas contidas nos decretos educacionais brasileiros da época. A relação entre as

fábulas e o contexto social é evidente, sendo comprovada com os recortes do jornal

A Noite. A postura de autor assumida por Franco, como detentor da verdade e seu

lugar privilegiado de escritor, é analisada a partir das observações contidas em A

Ordem do Discurso, de Michel Foucault. Algumas ideias de Jean Jacques Rousseau

e das escritoras Marisa Lajolo e Regina Zilberman sobre a visão da criança foram

aqui discutidas. Nessa última seção, houve a comparação entre a produção de

Franco e as dos fabulistas citados na dissertação.

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Oranice Franco já foi estudado por Nilo da Silva Lima, na dissertação

de mestrado pela UFMG denominada O processo de criação literária de Oranice

Franco: um estudo genético, em 2004. Essa dissertação, segundo Nilo Lima, é um

estudo mais completo sobre a obra de Oranice, abordando a multiplicidade da

literatura, história e memória cultural. A ênfase desse trabalho foi a pesquisa no

acervo do escritor e o processo de criação desenvolvido ao longo dos anos e das

diversas obras.

Entretanto, a referida dissertação não faz a análise dos livros de fábulas

ou das Histórias do Tio Janjão, citando-os apenas. Em minhas pesquisas, até o

momento, não encontrei nenhum estudo feito sobre as obras de Franco para as

crianças mesmo sendo ele um escritor com projeção nacional. Essa projeção foi

obtida por intermédio da emissora de rádio na qual trabalhou e da qual ele mesmo

se tornou parte de um programa de nacionalização da cultura. Nesse sentido,

portanto, este estudo distanciou-se bastante daquele já realizado.

Buscou-se com esta pesquisa realizar um estudo da narrativa das fábulas

de Oranice Franco contadas no programa Histórias do Tio Janjão da Rádio Nacional.

Oranice Franco é autor de centenas de obras destinadas a adultos, como poesia,

romances e uma infinidade de crônicas, além dos vários livros destinados ao público

infanto-juvenil. A pesquisa acrescentou novos dados sobre um autor bastante

versátil, pouco conhecido no meio acadêmico, mas cuja produção alcançou enorme

audiência no Brasil dos anos de 1950.

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CAPÍTULO 1

FÁBULAS: GÊNERO E PODER

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1.1 A origem da fábula

A necessidade de o homem se comunicar nasceu com ele. Impossível

pensar em sobreviver em um mundo pré-histórico hostil sem a ajuda de outros

homens. Daí, o desejo de estabelecer algum tipo de contato por mais rudimentar

que fosse. Os primeiros desenhos das cavernas simbolizam a vontade do homem de

entender o mundo ao seu redor, repleto de fenômenos incompreensíveis e

imprevisíveis. Essas primeiras formas de inscrição estariam ligadas a antigos rituais

que protegeriam o homem dos eventos naturais, dos animais e dos outros homens.

Interagindo com o mundo, e tendo certo domínio sobre ele, o homem também

desejou transmitir aos outros os conhecimentos adquiridos por meio de suas

experiências diversas. Talvez esse seja o motivo de as narrativas, escritas ou não,

terem sobrevivido através dos séculos. A tradição oral nasceu desta vontade de

passar para as próximas gerações os conhecimentos obtidos de forma lenta e,

muitas vezes, difícil. As narrativas orais e escritas atravessam os tempos, seja com o

objetivo de ensinar, divertir ou advertir sobre fatos, comportamentos e fenômenos.

Entre as várias narrativas antigas, surgiu o conto, que é uma narrativa

que possui apenas um drama, uma ação, um espaço limitado e apresenta poucas

personagens.

Segundo Nelly Novaes Coelho (1982), o conto seria a forma mais simples

de narrativa, caracterizando-se por apresentar uma pequena extensão. O conto deu

origem ao gênero fábula e ambos apresentam pontos comuns.

A fábula (do latim fari = falar e do grego phaó = dizer, contar algo) muito

se aproxima do conto: apenas uma ação, poucas personagens e local descrito de

forma breve. A fábula é uma narrativa curta, em versos ou prosa, que apresenta

situações vividas por animais, mas que são intimamente ligadas aos homens e que

têm por objetivo transmitir um ensinamento ou moralidade.

Sua origem é bem antiga, como atesta Neide Smolka (1994, p. 7):

A fábula teria nascido provavelmente na Ásia Menor e daí teria passado pelas ilhas gregas, chegando ao continente helênico. Há registros sobre fábulas egípcias e hindus, mas sua criação é atribuída à Grécia, pois é onde a fábula passa a ser considerada como um tipo específico de criatividade dentro da teoria literária.

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Coelho (1982) reafirma que a fábula teria nascido no Oriente e acrescenta

que depois ela foi reinventada por Esopo na Grécia e aperfeiçoada em Roma por

Fedro. Mais tarde, La Fontaine, na França, tornou-se o divulgador e recriador do

gênero.

Heinrich Zimmer (2008, p. 21-22) também esclarece:

De fato a Índia é uma das grandes pátrias da fábula popular e muitas destas foram levadas para a Europa durante a Idade Média. A vivacidade e nitidez das imagens gravam fundo no íntimo das criaturas os aspectos mais importantes do ensinamento. São como pontos fixos sobre os quais podemos desenvolver um sem-número

de raciocínios abstratos.

Mesmo sendo a fábula uma expressão literária de origem muito remota,

conseguiu resistir aos séculos mantendo suas características principais: é uma

narrativa com animais que simbolizam os homens, servindo para divertir e para

ensinar. As personagens das fábulas geralmente são símbolos; ou seja,

representam algo que faz parte do senso comum: o leão é o símbolo da força; a

raposa, da esperteza; o lobo, da maldade; o asno, da estupidez.

Massaud Moisés (1982, p. 226) define assim a fábula:

Narrativa curta, não raro identificada com o apólogo e a parábola, em razão da moral, implícita ou explícita, que deve encerrar, e de sua estrutura dramática. No geral, é protagonizada por animais irracionais, cujo comportamento, preservando as características próprias, deixa transparecer uma alusão, via de regra satírica ou pedagógica, aos seres humanos.

Osvaldo O. Portella (1983) comenta que La Fontaine nomeou as duas

partes principais da fábula de corpo e alma. O corpo seria a narrativa que revela as

diferentes situações vividas por animais, representando os seres humanos. E a alma

seria a verdade que surge dentro dessa narrativa. Essa verdade diz respeito a toda

a humanidade. É a experiência dos povos, a noção do bem e do mal, do certo e do

errado e que muda ou adquire novos formatos e significados dependendo da época

em que se encontra.

A fábula mantém uma estrutura relativamente simples e fixa. É uma

narrativa de um conflito, que pode ser um enfrentamento físico ou verbal e uma

conclusão, que é o ensinamento moral. Esse tipo de narrativa pode mostrar como é

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a sociedade de cada época e como as pessoas devem se comportar, a fim de

sobreviver e evitar as possíveis punições advindas de atitudes indesejáveis.

Utilizando-se de animais, a fábula ilustra os diversos conflitos humanos, condenando

os vícios, como o orgulho, a preguiça e a mentira, entre outros. Também, é possível

que se registre, mediante a narrativa, como o homem é impotente diante dos deuses

e dos mais fortes, lutando sempre pela própria sobrevivência e agindo de forma a

não atrair para si mesmo os prejuízos do enfrentamento com os superiores.

Desde as narrativas mais remotas, nota-se que a fábula serviu para

censurar ou aprovar determinadas atitudes dos homens, sempre dependentes do

contexto e da intenção de quem escrevia ou proferia a fábula. O criador da fábula

dava a ela o tipo de estrutura e de moralidade segundo suas ideias e convicções.

Um pequeno caminho histórico será percorrido mostrando como esse

gênero atravessou os séculos, passando por mudanças na forma e no conteúdo

devido à necessidade de adaptação às circunstâncias sociais, culturais e ideológicas

das diferentes épocas.

1.2 Fábulas indianas: Kalila e Dimna

Kalila e Dimna é uma coleção de fábulas orientais, que deve ter surgido

na Índia, por volta do século V a. C., sendo escrita em sânscrito. Os textos foram

traduzidos em mais de trinta idiomas, sendo, portanto, considerados fontes

importantes do fabulário universal.

Zimmer (2008, p. 80) relata que a tradição indiana das fábulas foi

desenvolvida ao lado de grandes tratados técnicos e profissionais. São narrativas

acerca de situações diversas “apresentadas sob o gracioso disfarce do reino animal

– revelando envolvimentos e problemas complexos da política que em todas as

partes confrontam os reis, estados e indivíduos, [...]”. Muitas das fábulas presentes

em Kalila e Dimna englobam situações vivenciadas pelos governantes e a maneira

adequada de agir em cada situação.

De acordo com Mamede Mustafa Jarouche2, todas as traduções

existentes de Kalila e Dimna foram feitas do árabe ou a partir de alguma tradução de

2 Mamede Mustafa Jarouche é professor de língua e literatura árabe na USP. É o responsável pela

tradução, organização, introdução e notas do livro Kalila e Dimna consultado nesta dissertação.

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origem árabe, formando uma cadeia de transmissão muito extensa. O livro Kalila e

Dimna foi traduzido para o árabe em meados do século VIII da era cristã. A tradução

é atribuída a um letrado persa chamado Ruzbih, que, após se converter ao

islamismo, adotou o nome de Abdullah, embora seja mais conhecido pela alcunha

de Ibn Almuqaffa. Essa tradução teria dado origem a diversas outras.

O próprio Almuqaffa (2005, p. 5) esclarece, nas páginas que antecedem

as narrativas do livro, qual é o propósito da obra. De acordo com ele,

[...] o livro reuniu sabedoria e diversão. Assim, os sábios elegeram-no por causa da sabedoria, e os néscios, por causa da diversão; quanto aos jovens que estão a instruir-se, e outros mais, eles se entusiasmam com o saber nele contido, e se lhes torna leve decorá-lo. Quando o jovem se fortalecer e amadurecer e seu intelecto se desenvolver, e ele refletir sobre o que decorou e fixou em sua alma – e que ele antes ignorava, saberá então que aí ele encontrou grandiosos tesouros, [...].

O tradutor persa também afirma que o livro deve ser lido aos poucos,

buscando o entendimento completo de cada história, pois, do contrário, a leitura não

trará benefício algum.

A coletânea apresenta dezessete capítulos, sendo que alguns deles

foram localizados no Pañcatantra, coletânea de narrativas da Índia Antiga escrita em

sânscrito, e outros no Hitopadeça, que seria uma compilação posterior do mesmo

Pañcatantra, comprovando a antiguidade e o entrelaçamento entre as obras

orientais.

O título do livro é composto pelos nomes de dois chacais, Kalila e Dimna,

personagens que aparecem apenas nos dois primeiros capítulos da coletânea. Kalila

é um chacal que representa o homem prudente e resignado, que aceita sua

condição social e que sempre aconselha Dimna, seu irmão. O chacal Dimna é

ambicioso: quer se igualar aos poderosos e emprega todos os meios para conseguir

seu objetivo.

As narrativas do livro se desenvolvem a partir dos questionamentos feitos

pelo rei da Índia, Dabxalim, a Baydabã, um dos seus mais importantes filósofos. O

rei pede paradigmas aplicáveis sobre vários assuntos e o filósofo transmite os

exemplos pelo encadeamento de narrativas. Todos os exemplos são dados para

atender às indagações do rei, que obtém as instruções conforme o próprio interesse.

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Diferentemente das fábulas de Esopo e Fedro, as narrativas da coleção

indiana são mais extensas. Enquanto nas fábulas gregas e romanas os

ensinamentos são breves e diretos, retratando uma situação específica, em Kalila e

Dimna, o entrelaçamento de histórias dá origem a diversas outras instruções dentro

de uma mesma história. Há sempre uma história que se desenvolve dentro de outra

ocasionando o surgimento de um ensinamento a partir de outro.

O tratamento dado às personagens em Kalila e Dimna e nas fábulas de

Esopo e Fedro ora assemelha-se, ora distancia-se. Diferencia-se pelo fato de que

em Kalila e Dimna nem sempre as características próprias de cada animal são

consideradas, sendo mais significativo o ensinamento que se quer transmitir. Assim,

a raposa, considerada símbolo de esperteza, é enganada por um tambor; uma lebre

é escolhida pelos animais para intermediar uma situação com o leão; uma gaivota e

uma cobra naja dividem o mesmo espaço. Esses e vários outros exemplos se

aplicam às narrativas do livro, cuja escolha das personagens não se liga às

características dos animais; o fundamental são as instruções transmitidas.

Nas fábulas grega e romana, as personagens se relacionam às

características que lhes são próprias: o leão representa o poder; a formiga, o

trabalho; a raposa, a astúcia. Nas primeiras duas histórias da coletânea, O leão e o

touro e A investigação acerca de Dimna, o mesmo acontece. A presença do leão

como representante do poder liga-se à característica própria do animal. Binkala é o

rei de um lugar, onde vivem vários animais, inclusive os dois chacais que dão título

ao livro. Há também um touro, Xanzaba, vivendo próximo ao reino e que, a princípio,

perturbou o leão com seus ruídos, pois o soberano nunca tinha visto ou ouvido esse

animal. Mas esse personagem não representa apenas força. O touro é também

considerado como o venerável gênio da justiça, segundo o Código de Manu.3

Na narrativa, Xanzaba é incriminado por Dimna, motivado pela inveja da

amizade surgida entre o rei e o touro. O leão, acreditando nas falsas artimanhas de

Dimna, mata o amigo. Sendo o touro representante da justiça, sua morte, no lugar

de tranquilizar o rei, trouxe inquietação e tristeza ao coração do leão. A justiça não

prevaleceu e isso acabou fazendo com que o rei desconfiasse das atitudes de

Dimna, nomeando seus auxiliares para investigarem as ações do chacal. Nesse

3 O Código de Manu é um dos livros sagrados da Índia. Para os hindus, Manu seria o filho de Brahma

e o mais antigo legislador do mundo. A data da promulgação do Código não é exata, sendo calculada entre os anos de 1300 e 800 a. C. O Código trata de religião, moral e leis civis.

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aspecto, novamente manifestam-se as orientações do Código de Manu, pois quando

um rei não examina uma causa deve nomear um brâmane para desempenhar tal

função. A investigação é feita pelo leopardo, assessor e mestre do leão, e as

mentiras de Dimna são descobertas. O chacal é preso e condenado a morrer de

sede e de fome. Esse animal é utilizado para simbolizar uma pessoa muito má, que

espreita a desgraça de outros para se beneficiar dela, indicando que a escolha do

personagem também se ligou ao que ela representa. Com a morte de Dimna, a

justiça é restaurada, pois o verdadeiro culpado recebeu a punição merecida.

Os dois primeiros capítulos do livro, a título de exemplo, contêm mais de

quinze outras histórias que nascem dentro da história principal, criando uma rede de

narrativas muito semelhantes à rede que se encontra em As mil e uma noites, cuja

origem remonta ao Pañcatantra e, por extensão, ao livro mencionado. Entretanto,

mais que o encadeamento de histórias, Kalila e Dimna apresenta aspectos da

cultura e da sociedade indianas em todos os seus capítulos.

O posicionamento social das personagens remete ao sistema de castas4,

muito comum na Índia Antiga, que, embora abolido após a independência da

Inglaterra, em 1950, deixou muitos resquícios na sociedade indiana.

Pode-se considerar que o leão Binkala seria pertencente à casta dos

xátrias e o chacal Dimna seria um sudra. Dimna não vivia próximo ao rei. Ao

contrário, como ele mesmo declara ao leão, vivia às portas da cidade, ou seja, fora

dos limites reais, onde a sua condição social não lhe permitia frequentar, apenas

esperando que algo acontecesse para tornar-se útil ao soberano. O desejo de

aproximar-se do rei, mudando sua condição social e, consequentemente, receber o

reconhecimento e prestígio é evidente em Dimna desde o início do primeiro capítulo.

Para isso, empenha-se em fazer o que for necessário para conseguir seu propósito

e aproveita-se da fragilidade do leão diante do medo do touro, animal até então

desconhecido pelo rei. Dimna, desse modo, como ele mesmo explica, irá deixar de

4 O sistema de castas ou varna (palavra em sânscrito que significa cor) dividiu a sociedade indiana

desde 600 a. C. As castas são divididas em brâmanes, xátrias, vaixás e sudras, tendo se originado de partes do corpo de Brahma, o deus supremo da religião hindu. Os brâmanes representam a boca de Brahma e são os encarregados da sabedoria, sacerdotal e filosófica. Os xátrias, originários dos braços do deus, são responsáveis pela manutenção e pela defesa do território, sendo que a maioria dos reis vem dessa casta. Os vaixás, nascidos das coxas de Brahma, ocupam-se da produção mercantil e agropastoril. E os sudras, nascidos dos pés, realizam os trabalhos pesados e considerados indignos pelos demais, além de artesanato e produção manual. Os sudras incluem várias castas de intocáveis, cujas ocupações lidavam com a morte, na preparação de enterros ou cremações, e também com o recolhimento de fezes, e sobre as quais há uma série de tabus proibindo contato, inclusive o físico.

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lado a arrogância. Vai suportar os sofrimentos, exibir um rosto sorridente, esconder

a irritação e auxiliar nas resoluções de problemas que o rei possa ter até atingir seu

objetivo. Após ter atraído a simpatia e a confiança do leão, Dimna teme perder os

privilégios até então adquiridos, pois o contato entre o rei e o touro resulta em uma

amizade sincera, mas que foi destruída pelas mentiras elaboradas pelo chacal.

Dimna, causando a morte do touro e reaproximando-se do rei, quase

consegue seu objetivo. Mas seu desejo de mudar de casta representa uma atitude

condenável pelos indianos. Na Índia Antiga, nascer em uma casta significava morrer

nela. Segundo Zimmer (2008), cada casta tem suas vestimentas, adornos e normas

específicas. O que se pode ou não fazer, com quem conversar e casar, as atitudes

particulares ou sociais e as punições por quaisquer tipos de infrações são

regulamentados por normas específicas de cada grupo social. O autor acrescenta:

“Considera-se que a casta forma parte do caráter inato de cada um. A ordem moral

divina (o dharma), que tece e mantém unida a estrutura social, é a mesma que dá

continuidade às vidas do indivíduo” (ZIMMER, 2008, p. 122).

O indiano não deve rebelar-se contra sua situação, pois ele faz parte de

um mesmo grupo, de uma mesma casta, e o grupo tem prioridade sobre qualquer

um de seus membros. Dimna errou ao ansiar pela expressão individual. Deveria ter

agido como seu irmão, Kalila, que aceitava a própria condição. Querendo sair do

anonimato gerado pelo grupo ao qual pertencia, Dimna se mostrou contra os

desígnios do dharma e foi punido por isso.

Atitude diferente em relação ao dharma encontra-se na história de uma

ratinha, que, sendo transformada em menina, volta à forma original e casa-se com

um rato. Nessa narrativa, como em muitas outras, o ensinamento é sobre como a

pessoa deve agir diante da vida de acordo com o dharma. A virtude pessoal e a lei

universal são dependentes uma da outra. A harmonia entre as duas mantém a

sociedade, por isso cada pessoa deve conhecer a si própria e relacionar-se

naturalmente com o seu lugar no mundo tanto social como religiosamente. O

dharma é, ao mesmo tempo, virtude pessoal e lei universal, acontecendo de maneira

harmoniosa. A ratinha, ao desejar voltar ao estado original para casar-se com o rato,

mantém-se fiel em relação ao lugar que ela ocupa no mundo. Ela se reconheceu

como parte de um todo, e não como um ser isolado. Ao aceitar sua condição,

consegue a harmonia entre o individual e o universal. Não se casando com outros

pretendentes – o sol, a nuvem, o vento e a montanha –, que, respectivamente,

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simbolizam o fogo, a água, o ar e a terra, ela se afasta dos quatro elementos. Eles

são substância de todo corpo material e a matéria pode escravizar os sentidos. Na

Índia, a castidade, a pureza e a fidelidade são valores que toda mulher deve

preservar. Negar o casamento com os quatro pretendentes sugere que a ratinha

buscou mais que o prazer das coisas materiais. Empenhou-se em atingir um estado

mais elevado de vida.

Assim como a ratinha dessa narrativa, a mulher indiana deveria buscar a

pureza e a castidade, sendo repudiada e criticada caso agisse de maneira diferente.

O Código de Manu estabelece normas a serem seguidas pelas mulheres. Entre elas,

algumas indicam qual o comportamento esperado por uma mulher e justificam a

abordagem feminina encontrada em Kalila e Dimna. Segundo o Código de Manu, a

mulher não tem vontade própria. Quando criança, é subordinada ao pai, depois ao

marido e finalmente aos filhos, caso o marido tenha falecido. Sua função principal é

ter filhos e cuidar deles. A mãe é considerada a terra e o pai a semente. Sendo

assim, os frutos sempre herdam as características da semente, nunca da terra. A

mulher deve cumprir suas obrigações, buscando o bom comportamento e se

mantendo fiel ao marido, pois, do contrário, atrairá desgraça para toda a família. Se

ela tiver boa conduta, poderá ocupar o mesmo lugar do marido após a morte. Caso

contrário, voltará de um ventre de um chacal, sendo acometida de doenças. Manu,

pai dos homens, deu às mulheres o apetite sexual, a cólera, as más inclinações, o

desejo de fazer mal e a perversidade, por isso elas devem ser sempre vigiadas por

algum homem, a fim de manter bons hábitos.

As mulheres do livro são casadas e quase todas são mentirosas,

prostitutas e interesseiras. Sendo chamadas de devassas, traem o marido, têm

amantes, auxiliam outras mulheres para agirem de modo indevido e são sempre

castigadas fisicamente: levam surras, têm o nariz cortado, ficam desmoralizadas. Os

homens que se deixam enganar por elas são sempre considerados ingênuos e

ridicularizados nas narrativas.

Em apenas uma narrativa, o procedimento da mulher casada é diferente:

ela é formosa, fiel e inteligente. Ela se mantém fiel ao marido, mesmo sendo

procurada por outro homem. Acusada injustamente de adultério, consegue provar

sua inocência. A conduta correta foi o que possibilitou que ela fosse salva. Se não

tivesse agido corretamente, provavelmente teria um destino bem diferente.

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A leoa, mãe do leão Binkala, também recebeu um tratamento

diferenciado. Em momento algum, sua integridade moral é questionada, fato óbvio,

pois ela pertencia a uma classe superior. Mesmo sendo portadora de qualidades, ela

não tem nome. Durante toda a narrativa, ela é tratada como “mãe do leão”. A

conversa entre Dimna e Kalila sobre as mentiras que culminaram com a morte do

touro foram ouvidas pelo leopardo, que as contou para a leoa e esta para o rei.

Entretanto, mesmo sendo sua mãe a lhe contar tudo, Binkala não acredita nela,

tornando-se necessário o testemunho do leopardo. Uma mulher não pode

testemunhar contra um homem, apenas contra outra mulher, e, mesmo assim,

sempre acompanhada por um homem conforme o Código de Manu. Portanto,

apenas a palavra da leoa não foi suficiente para condenar alguém mesmo gozando

ela de certos privilégios.

Excetuando-se esses dois exemplos, os comentários feitos a respeito das

mulheres são sempre pejorativos. Em uma das narrativas, Kalila explica para Dimna

sobre as três coisas que somente o néscio é capaz de fazer: acompanhar os

soberanos, confiar segredo às mulheres e tomar veneno para experimentar. As

mulheres não são dignas de confiança. São capazes de traições e apenas os

ingênuos confiam nelas.

Em outra narrativa, encontra-se o seguinte comentário: “A posição

ocupada pelo dinheiro ante o inteligente é a posição do cisco no olho; a posição das

mulheres é a das serpentes [...]” (ALMUQAFFA, 2005, p. 148). A mulher é sempre

inferiorizada: a posição de serpente remete tanto à posição mais baixa quanto à

capacidade de traição. Os exemplos e comentários do livro são representativos da

situação da mulher na Índia Antiga, cujos resquícios se fazem notar até os dias

atuais.

Em Kalila e Dimna, as narrativas se desenvolvem a partir dos

questionamentos do rei indiano, cujas respostas são dadas por meio de histórias

que envolvem homens e animais, ensinando como agir com o povo, como tomar

decisões e a precaver-se contra os inimigos. Coelho (1985, p. 12) aponta para o fato

de que as narrativas de Kalila e Dimna e outras desse período giravam em torno da

violência:

[...] a vitória ou prepotência dos fortes sobre os fracos; a luta pelo poder através de quaisquer meios; as metamorfoses contínuas; a

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falsidade ou traição das mulheres; a ambição desmedida de riqueza e poder; a astúcia dos fracos para escapar à prepotência dos fortes; a utilização de animais para ‘representarem’ as ações humanas...

Percebe-se também que, praticamente, todas as faltas eram punidas com

a morte. O perdão era quase inexistente. Quando a mãe do leão, no segundo

capítulo do livro, relata ao filho os fatos que envolveram a morte do touro, ela

também o adverte sobre a necessidade de se punir o mentiroso Dimna:

[...] assim que Dimna deixar transparecer o que por ora está ocultando, consistirá em matá-lo, punindo-o por seu crime e preservando teus soldados do mal que ele pode levá-los a perpetrar, pois não se está assegurado de que não reincidirá em algo semelhante (ALMUQAFFA, 2005, p. 97).

A história Os corujões e os corvos é um exemplo como um rei deve ser

sábio o bastante para não se deixar enganar. Os dois grupos de animais, corujões e

corvos, eram inimigos mortais, sendo que os primeiros sempre venciam as batalhas.

Usando de mentiras, um corvo consegue se aliar aos corujões, enganar todos e os

exterminar. O rei dos corujões, deixando-se enganar pelo corvo, causou a morte de

todos. Outras histórias se baseiam no mesmo princípio, que o rei deve ser firme, não

deve perdoar os inimigos e os traidores, devendo estar atento aos conselhos dados

pelos seus auxiliares de confiança.

De acordo com Coelho (1985), nota-se que por detrás dos relatos das

histórias estão os valores próprios de sociedades primitivas, nas quais a hierarquia

social é feita pela lei do mais forte. Esses valores mostram e reafirmam o tipo de

educação de cada cultura – árabe, síria, persa, hindu –, mas têm pontos em comum:

a educação para a guerra, a educação para a elite e a educação conservadora, que

procurava manter uma tradição, sem questionamento por parte do indivíduo,

instaurando-se, assim, a supressão da individualidade.

Nas narrativas que compõem Kalila e Dimna, assim como nas outras que

serão analisadas, há uma relação direta entre o modo de vida social e cultural de um

povo e a literatura criada em cada época.

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1.3 Esopo

Segundo Smolka (1994)5, Esopo teria nascido na Trácia, antiga região da

Macedônica, possivelmente na Lídia ou na Frígia, no século VI a. C., vivendo entre

os anos de 620 e 560. Ele teria sido levado como escravo para Atenas, onde, graças

à sua cultura e criatividade, obteve grande prestígio e reconhecimento dos

atenienses. Atenas era uma cidade próspera, onde circulavam escritores e poetas.

Nesse ambiente, Esopo teria criado suas fábulas, recitando-as em praça pública

para o povo. Essa habilidade fez surgir a admiração dos gregos por Esopo mesmo

estando ele na condição de escravo. Importante salientar que ele não nasceu

escravo. Essa condição foi a ele imposta. Moses I. Finley (2002, p. 109-110) ensina

que na Grécia antiga havia duas formas de suprimento de escravos:

Uma eram os prisioneiros, as vítimas da guerra e às vezes da pirataria. Uma das poucas generalizações sobre o mundo antigo para a qual não há exceção é que as forças vitoriosas tinham direito absoluto sobre as pessoas e as propriedades dos vencidos. Esse direito não era exercido inteiramente todas as vezes, mas com frequência suficiente, e numa escala bem grande, para lançar um suprimento contínuo e numeroso de homens, mulheres e crianças no mercado escravo. Ao lado dos prisioneiros devemos colocar os chamados bárbaros que entravam no mundo grego num fluxo constante – trácios, citas, capadócios etc. – pela ação de mercadores que se dedicavam a esse tipo de comércio o tempo todo, [...].

A condição servil não impediu que Esopo se sobressaísse entre os

atenienses, mas tal prestígio também motivou sua morte. Aristófanes6 é quem

fornece maiores detalhes sobre como teria ocorrido a morte de Esopo. Diz o

escoliasta que Esopo, em visita a Delfos7, teria criticado os habitantes da cidade,

que não trabalhavam vivendo à custa das oferendas feitas ao deus Apolo. Não

satisfeitos com as declarações de Esopo, alguns moradores colocaram uma taça

sagrada entre os pertences do fabulista. Apanhado quando saía da cidade, Esopo

foi acusado de sacrilégio por roubar uma peça sagrada. Como castigo, foi atirado do

5 Neide Smolka traduziu 358 fábulas do grego para o português. Para isso, utilizou o livro bilíngue de

Émile Chambry, que traduziu as fábulas de Esopo do grego para o francês. A tradutora buscou manter a linguagem das fábulas o mais próximo possível do original. Neste trabalho, optou-se por usar o livro de Neide Smolka como referência, seguindo a numeração das fábulas apresentada no livro. 6 Aristófanes, escoliasta (estudioso de texto antigos), viveu no século III a. C. (N.T.).

7 Delfos era uma cidade onde ficava o mais importante oráculo da Grécia. Famoso por suas profecias,

era muito procurado por várias pessoas, inclusive estrangeiros.

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alto de um rochedo. Fustel de Coulanges (2004) esclarece que os povos antigos

acreditavam que a alma não se separava do corpo após a morte, vivendo outra vida.

Daí, surgiu a necessidade de uma sepultura. “Para a alma se fixar na morada

subterrânea destinada a essa segunda vida, impõe-se que o corpo, ao qual a alma

está ligada, seja coberto de terra” (COULANGES, 2004. p. 9). Então, impedir que um

morto tenha uma sepultura era um castigo horrível, pois não teria como alma e corpo

se encontrarem na outra vida. Talvez seja esse o motivo de Esopo ter sido

empurrado de um penhasco, não sendo a ele dada uma sepultura.

O que também diferencia a fábula do conto é a presença do ensinamento

moral, que pode estar no início da narrativa, como fez Fedro algumas vezes, ou no

final, como em Esopo. O ensinamento moral é de tal importância que os copistas da

Idade Média escreviam o texto em preto e deixavam a moral da história para ser

escrita depois em letras vermelhas ou douradas. Em alguns casos raros de

esquecimento por parte dos copistas, as lições de moral foram omitidas nas fábulas.

Talvez essa preocupação em destacar a moral da história seja a

responsável por existirem algumas fábulas de Esopo sem o ensinamento final. Pode

ser possível que, no ato da transcrição das narrativas, algumas lições de moral

tenham sido esquecidas involuntariamente. Entre todas as fábulas de Esopo,

existem apenas onze que não têm o ensinamento final. São elas: O boiadeiro e

Héracles, Diógenes e o calvo, O eunuco e o sacrificador, O gaio que escapou, O

mosquito e o leão, O lobo (contente com sua própria sombra) e o leão, As árvores e

a oliveira, O burro e o cão viajando juntos, A criança e o corvo, a Muralha e a cavilha

e O Inverno e a Primavera.

Apesar da ausência da lição de moral, continua sendo possível extrair os

ensinamentos das narrativas. A fábula 72, O boiadeiro e Héracles, por exemplo, é

sobre um boiadeiro, que, tendo o carro de bois caído num buraco, senta-se e

implora ajuda ao deus Héracles, que lhe aparece e diz: “Põe as mãos nas rodas,

incita os bois e suplica aos deuses enquanto tu mesmo estiveres fazendo isso, ou

suplicarás em vão” (SMOLKA, 1994, p. 46). A moral da história está implícita na

resposta dada pelo deus; ou seja, refere-se ao esforço próprio para se conseguir as

coisas sem abandonar a fundamental ajuda dos deuses.

A dependência dos homens da Antiguidade com os deuses encontra-se

bem representada nas fábulas de Esopo. Boa parte das narrativas envolve os

deuses e seu relacionamento com os homens e com os animais. De acordo com

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Coulanges (2004), a religião foi a responsável pela fundação das sociedades no

mundo antigo e as governou por longos períodos. Romanos e gregos se

submeteram às leis e regras religiosas, que determinaram o modo de agir e de

pensar e os costumes que esses povos deveriam preservar. Tudo indicava que o

mundo era governado por inúmeros deuses mesquinhos, malévolos e que facilmente

se irritavam voltando-se contra os homens. A maioria das fábulas de Esopo ilustra

as severas atitudes dos deuses com os homens e com os animais. A fábula de

número 34, intitulada Homens (dois discutindo sobre deuses), conta:

Dois homens discutiam sobre qual dos deuses, Teseu ou Héracles, era maior. E os deuses, enfurecidos contra eles, vingaram-se cada um sobre o país do outro. A discórdia dos subordinados faz com que os senhores fiquem encolerizados contra seus súditos (SMOLKA, 1994, p. 31).

Essa pequena fábula exemplifica como os deuses enfureciam-se contra

os homens, castigando-os sem piedade. As palavras usadas, “senhores” e “súditos”,

reforçam a relação de subordinação que existia entre homens e deuses e como os

primeiros submetiam-se aos últimos.

Os animais também não escapavam da fúria divina, sendo sempre

castigados com a mesma rigidez praticada contra os homens. A fábula 234, As

abelhas e Zeus, expõe tal situação:

As abelhas, querendo recusar mel aos homens, foram ter com Zeus para pedir que lhes desse força para matar com os ferrões os que se aproximassem de seus favos. E Zeus, indignado com o ciúme das abelhas, condenou-as a perder o ferrão e também a vida toda vez que picassem alguém. Essa fábula poderia ser aplicada aos homens que até consentiriam em ser prejudicados por inveja (SMOLKA, 1994, p. 132).

Zeus é o senhor de tudo: ele dá a vida e pode tirá-la. Ele é o juiz e o

executor. Ele dá as ordens para os homens e animais, podendo ajudá-los ou

castigá-los com a mesma facilidade. Tamanha submissão e temor aos deuses se

baseiam no fato de que a religião ocupava um lugar de destaque no mundo grego,

sendo considerada como parte essencial da vida do indivíduo. Coulanges (2004,

2004, p. 242) ensina:

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O medo dos deuses não foi um sentimento exclusivo do romano, imperava também no coração do grego. Estes povos, formados originariamente por meio da religião, instruídos e educados por ela, conservaram, por muito tempo, o cunho dessa primitiva educação.

E continua:

O ateniense, concebido como inconstante, caprichoso e tão livre-pensador, nutre, pelo contrário, singular respeito pelas antigas tradições e velhos ritos. A sua principal devoção é a religião dos antepassados e dos heróis. O ateniense tem o culto dos mortos, e teme-os (p. 243).

Coulanges (2004) explica que a base dos direitos romano, grego e hindu

foi a religião e as normas por ela imposta. Deriva disso o fato de que essas três

nacionalidades concordam que a mulher é sempre de reputação menor. Ela não

pode perpetuar os ritos familiares e nem prestar homenagem aos antepassados,

porque isso era função exclusivamente masculina. A mulher grega encontrava-se

em situação de maior submissão se comparada à mulher romana. Saía do poder do

pai para passar para o poder do marido. Mudava de casa e assumia o novo lar,

adotando, inclusive, os cultos aos deuses e antepassados do marido, não tendo

mais relação alguma com a família de origem. Assim, não é estranho o fato de haver

poucas fábulas de Esopo sobre a mulher. Elas não eram consideradas; portanto,

não mereciam esse tipo de atenção. Há duas fábulas sobre as mulheres. Uma, O

homem e a mulher (rabugenta), é sobre uma mulher, a qual ninguém suportava,

nem o marido, nem a família, nem os empregados, tamanha a chatice e os modos

rudes dela. Outra é sobre o homem que era amado por duas mulheres e que será

explicada quando da parte sobre Fedro.

Paralelamente à grande influência dos deuses e da religião na vida dos

helênicos, há outro aspecto muito encontrado nas narrativas de Esopo: a obediência

dos servos em relação aos senhores. Percebe-se que a intenção de Esopo ao

contar determinadas fábulas era pregar a resignação e o conformismo diante da

servidão e, por consequência, frente a qualquer trabalho que fosse determinado

pelos senhores. Apesar de ser um escravo, Esopo reforça em suas fábulas os

valores da classe dominante, favorecendo os senhores em oposição aos da sua

própria condição social.

Essa relação paradoxal pode ser entendida pela importância que o

trabalho escravo representou na Grécia Antiga. A escravidão, que hoje é motivo de

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repulsa e indignação, era vista como algo normal entre os gregos. A escravidão era

um fato comum, não questionável, não condenável e que não provocava qualquer

tipo de reação contrária. “O trabalho servil era essencial para preencher as

exigências da agricultura, do comércio, da manufatura, dos trabalhos públicos e da

indústria bélica” (FINLEY, 2002, p. 103).

Segundo Finley (2002), não se podia imaginar a vida na Grécia sem a

presença de escravos. Os escravos podiam desempenhar várias atividades, das

mais pesadas às mais leves. O trabalho nas minas, extremamente duro e miserável,

era exclusivamente realizado por escravos. Além dos escravos usados na lavoura e

nas minas, havia uma parte dos escravos que era utilizada para trabalhos

domésticos. Estes podiam ter mais sorte, obtendo melhores condições de vida e

tratamento mais digno. Embora os detalhes sobre a vida de Esopo sejam pouco

conhecidos, sabe-se que ele era cativo do grego Zeno, que posteriormente o vendeu

ao filósofo ateniense Janto ou Xanto. Desempenhando funções domésticas e tendo

uma vida bem mais confortável do que os escravos empregados nas lavouras e

minas, torna-se compreensível o fato de Esopo falar sobre submissão e obediência

em suas fábulas.

Conforme Eliane Quinelato (2009), nas sociedades gregas antigas, os

nobres não trabalhavam. Eles se ocupavam dos banquetes, das festas, dos rituais

religiosos e das assembleias políticas.

Qualquer tentativa de obter mais direitos e privilégios para um homem, para uma classe ou para um setor da população implica necessariamente uma redução correspondente dos direitos e privilégios de outros. Em todas as sociedades até agora existentes, desde a expulsão do Jardim do Éden, os direitos se chocaram. Pelo menos naquelas esferas do comportamento humano que envolvem bens, poder ou honras, os direitos e privilégios de um homem são as obrigações e as limitações de outros. Isso não é menos verdade se recorrermos ao grego [...] (FINLEY, 2002, p. 85).

O mundo grego sobreviveu graças ao trabalho servil. O trabalho escravo

surgiu como uma necessidade do povo grego, uma vez que a classe abastada não

desempenhava tipo de trabalho algum. Não havia qualquer constrangimento em

relação a isso. Quinelato (2009) explica que o trabalho era considerado uma

atividade inferior. Os nobres deveriam ter quantos escravos fossem necessários

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para que fossem poupados de exercerem quaisquer atividades laborais, por

menores que fossem.

Na mesma proporção que o ócio fazia parte da aristocracia grega, o

trabalho ganhava espaço na vida dos escravos e daqueles chamados homens livres.

A impressão nítida que se tem é de que a maioria dos escravos compunha-se de estrangeiros. Isto é, a regra rezava que (exceto a escravidão decorrente de dívida) os atenienses nunca eram mantidos como escravos em Atenas, ou os coríntios em Corinto (FINLEY, 2002, p. 111).

A escravidão dos povos vencidos em guerras ou os obtidos por meio de

pirataria não era motivo de vergonha ou desonra para quem o praticava. Quase

todos os habitantes do mundo helênico possuíam um ou dois escravos domésticos

em suas residências. A escravidão era um fato comum da vida, algo a ser esperado

como consequência de guerras ou sequestros. Não se esperavam rebeldias ou

revoltas. Os escravos estrangeiros teriam um destino bem melhor que os outros

compatriotas mortos em combate. Esopo, ao pregar a aceitação da condição

subalterna em muitas de suas histórias, enfatiza a naturalidade da escravidão entre

os gregos.

Várias histórias de Esopo pregam a obediência aos senhores e

proclamam que as pessoas devem contentar-se com a situação na qual se

encontram. A fábula 288, A cauda e o corpo da serpente, narra que a cauda de uma

serpente resolveu brigar com o restante do corpo, impondo que ela, e não a cabeça,

iria guiar a cobra. Mal andou um pouco, caiu num buraco cheio de pedras, ferindo

gravemente o corpo todo da cobra. A narrativa termina com a moral da história: “A

fábula é oportuna para os homens tolos e maus que se revoltam contra seus

senhores” (SMOLKA, 1994, p. 288).

As personagens que não aceitam a condição subalterna, revoltando-se

contra ela, acabam por serem castigadas e ficando em situação pior que a anterior.

A fábula 89, A mulher e as servas (SMOLKA, 1994, p. 89), é sobre uma mulher que

acordava as suas servas para o serviço assim que o galo cantava. Acreditando ser o

galo o causador da sua infelicidade, as servas resolvem matar o galo. A situação,

entretanto, se agrava, pois, não tendo mais o galo para denunciar o amanhecer, a

mulher passa a acordá-las mais cedo. Dessa pequena narrativa, pode-se

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depreender que não se deve se revoltar contra os senhores, pois isso pode ser a

causa de males maiores.

Um expressivo número de fábulas segue a mesma linha de pensamento,

punindo os que não se contentam com a condição atual. As personagens que não

se contentam com a própria situação são sempre punidas, ou com a morte, ou com

castigos físicos, ou são colocadas em uma situação muito pior que a anterior.

Geralmente, o descontentamento está ligado ao trabalho ou à própria condição de

vida. Como acontece, por exemplo, na fábula 33, A raposa e o dragão (SMOLKA,

1994, p. 26), na qual uma raposa, com inveja do tamanho do dragão, tenta

distender-se até ficar do mesmo tamanho, mas acaba morrendo. A moral dessa

história realça a utilidade da submissão ao declarar: “Assim sofrem os que desejam

competir com os mais fortes; com efeito, eles próprios se prejudicam mais

rapidamente do que conseguem atingi-los” (SMOLKA, 1994, p. 26). Clara se faz a

mensagem da fábula: os grandes, que são os mais fortes, são inigualáveis. Não há

como uma raposa ou um escravo chegar ao mesmo status de um dragão ou nobre.

É uma luta inútil e antecipadamente perdida. Tentar lutar contra isso é prejudicar a si

mesmo sem atingir os superiores de alguma forma.

Existe uma fábula, que se encontra no livro Kalila e Dimna e que, depois,

foi narrada por Esopo, na qual uma pequena mudança ocorrida é digna de menção.

Em Kalila e Dimna, há uma fábula sobre um leão, um chacal e um asno. O leão,

acometido de sarna, encontrava-se impossibilitado de caçar, o que trazia prejuízo ao

chacal, que vivia dos restos das caças do leão. Diante de tal situação, o leão disse

ao chacal que a única cura seria comer as orelhas e o coração de um asno. O

chacal procurou um asno, o qual reclamava da vida que tinha ao lado de seu dono,

um lavadeiro que o maltratava. Além de prometer pastos verdes e férteis e a

liberdade, o chacal contou ao asno que perto dali havia uma asna no cio e que

precisava de um marido. O asno, excitado, foi com o chacal, mas quando chegou

perto da toca do leão, este saltou em suas costas, mas não o agarrou. O asno fugiu

apavorado, mas o chacal, a pedido do rei, novamente foi atrás do asno.

Encontrando-o, disse a ele que quem havia pulado nas costas dele havia sido a

asna, motivada pelo cio. O asno novamente excitou-se e seguiu o chacal. Mas,

dessa vez, foi morto pelo leão. Num momento de distração do leão, o chacal comeu

as orelhas e o coração do asno. O rei, sentindo falta dessas partes, pergunta por

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elas. O chacal diz: “tivesse ele [o asno] coração e orelhas, não teria retornado a ti

depois do que lhe fizeste” (ALMUQAFFA, 2005, p. 170-172).

Em Esopo, na fábula 199, O leão, a raposa e o veado, a narrativa passa

por variações. O leão, também doente, pede que a raposa traga-lhe um veado para

que ele possa comer as entranhas e o coração do animal. A raposa convence o

veado de que ele será o novo rei dos animais, uma vez que o leão está prestes a

morrer, e que o veado deve esperar a morte do rei ao lado dele. O trecho da história

indiana que apela para os instintos sexuais do animal é trocado pela possibilidade

de mudança de situação social, atitude digna de condenação nas fábulas de Esopo.

O veado vai ao encontro do leão, que também o deixa escapar, ferindo-lhe apenas

as orelhas. O veado foge, mas a raposa o convence a voltar, dizendo que o leão só

queria lhe dar conselhos secretos. O veado volta para a toca do leão e é morto.

Aqui, também, a raposa se aproveita de uma distração do rei para comer o coração

do veado. Questionada sobre o paradeiro dessa parte, a raposa responde: “Na

verdade, o veado não tinha coração. Não o procureis mais, pois que coração8 teria

ele que por duas vezes veio parar na casa e nas patas de um leão” (SMOLKA, 1994,

p. 114-115).

A mudança nos pequenos detalhes não é significativa. O ponto principal é

justamente a troca entre o apelo aos instintos sexuais do asno, que se encontra em

Kalila e Dimna, pela possibilidade de alcançar um nível social mais elevado,

presente em Esopo. Essa sutil mudança reforça que, para o fabulista grego, as

pessoas, principalmente escravos e homens do povo, devem se conformar com a

situação em que se encontram, sob pena de serem castigadas de diferentes formas,

inclusive com a morte.

Considerando a relação entre a escravidão e o trabalho, há outras

histórias de Esopo nas quais é possível ter conhecimento sobre as diversas

profissões do mundo grego antigo. Finley (2002, p. 106) esclarece que a economia

da Grécia Antiga baseava-se na agricultura: “Através de toda a história grega, a

esmagadora maioria da população tirava sua principal riqueza da terra”.

A fábula 83, intitulada O lavrador e seus filhos (SMOLKA, 1994, p. 54),

narra sobre um lavrador, à beira da morte, que chama os filhos e diz que eles devem

procurar o que está enterrado na vinha. Os filhos revolvem a terra, não acham um

8 Para os gregos, o coração, e não o cérebro, era a fonte da inteligência (N.T.).

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tesouro, mas a terra bem removida dá mais frutos. Tem-se aí a valorização da terra,

sendo capaz de gerar riquezas. Tem-se também o reconhecimento da experiência: o

pai, ancião, passa para os filhos o conhecimento capaz de garantir a eles o sucesso

na lavoura.

Grande parte das fábulas cita diversas profissões da época: O cabreiro e

as cabras selvagens, O carvoeiro, O boiadeiro e o leão, O lavrador e a serpente, O

jardineiro e o cão, O lenhador e Hermes, Os viajantes e o urso, O pastor e o

lobachos e O ferreiro e o cãozinho.

Outro aspecto que as fábulas deixa claro é a rivalidade entre os gregos e

os árabes. Smolka (1994, p. 69) diz que “A crítica feita aos árabes era muito comum

entre os gregos, que os consideravam os mais bárbaros dos bárbaros. Para os

helenos, todos eram bárbaros, salvo eles mesmos”. A fábula 112, O carro de

Hermes e os árabes, conta que:

Um dia, Hermes, conduzindo por toda a terra um carro cheio de mentira, de maldades e fraudes, em cada região ia distribuindo um pouco da carga. Mas, quando chegou ao país dos árabes, diz-se que o carro de repente quebrou. E os árabes, como era uma carga preciosa, pilharam o carro e não deixaram que o deus fosse a outros povos. Os árabes, mais que qualquer outro povo, são mentirosos, enganadores; com efeito, em sua língua não há verdade (SMOLKA, 1994, p. 69).

Vários outros temas são encontrados nas fábulas de Esopo, como a

inutilidade da luta contra os mais fortes, a punição pelo orgulho, mentira, inveja ou

vaidade excessiva, a crítica aos tolos que se deixam enganar ao lado da valoração

da esperteza para não cair em armadilhas. A fábula 14, O gato e as galinhas,

representa tantas outras do fabulista, que sinalizam que a esperteza pode ajudar a

se livrar de um perigo certo. A narrativa é sobre um gato, que, sabendo estarem

doentes as galinhas, se disfarça de médico. Mas as galinhas não permitem que ele

entre no galinheiro, escapando da morte certa. De forma inversa, há várias fábulas

nas quais o animal é castigado com a morte por culpa própria. Entre muitas, há a

fábula 270, O burro, a raposa e o leão, que conta a história de uma raposa que se

associou a um burro, mas, tendo encontrado um leão, resolveu entregar o burro

como troca pela própria segurança. Estando o burro preso, o leão matou primeiro a

raposa. Subentendidas nessa e em outras fábulas estão as noções de justiça e

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lealdade, as quais devem prevalecer para que não se tenham consequências

inesperadas e desagradáveis.

As fábulas de Esopo são bastante curtas, com narrativas simples, sem o

uso excessivo de adjetivos ou quaisquer outros detalhes desnecessários ao

entendimento do que se quer transmitir. Os adjetivos, quando aparecem, são

apenas os estritamente necessários à caracterização das personagens. Ilustrativa

de tal simplicidade é a fábula 194, A leoa e a raposa: “Uma leoa, censurada por uma

raposa por ter gerado apenas um filhote, disse: Um, mas leão. O mérito não deve

ser medido pela quantidade, mas pelo valor” (SMOLKA, 1994, p. 111). O próprio fato

de ser uma narrativa simples e curta facilita a compreensão e assimilação rápida dos

ouvintes. Esopo era um contador de histórias e falava para o povo. Daí, o uso de

uma linguagem menos rebuscada e artificial, sendo bastante diferente do

vocabulário usado nas epopeias.

Mediante essas pequenas narrativas com animais, é possível analisar as

ações humanas que podem ser dignas de elogios ou de censura. Ações que

mostram aspectos do comportamento, valores e as relações sociais da Grécia

Antiga.

1.4 FEDRO

Tito Júlio Fedro (Titus Iulius Phaedrus) nasceu na Trácia, perto da

Macedônia, aproximadamente no ano 20 a. C. Ainda jovem, foi levado como escravo

para Roma, a fim de servir o imperador Otávio Augusto (31 a. C. – 14 d. C.). O

imperador, reconhecendo os talentos de Fedro, deu a ele a oportunidade de

aperfeiçoar-se no domínio do latim e da arte literária. Além disso, Augusto o libertou

e ele passou a usar o nome Phaedrus Augusti Libertus: Fedro, o liberto de Augusto.

Fedro faleceu na miséria no ano 44 da era cristã, com 64 anos, no império de

Cláudio.

Segundo Mário Curtis Giordani (1997), Augusto fez grandes reformas em

Roma nos setores financeiro, político, administrativo, religioso e social. Também,

incentivou as artes, entre elas a arquitetura e a literatura. O exercício literário chegou

a proporcionar o sustento de alguns cidadãos romanos. Ainda sobre o período do

império de Augusto, o autor comenta:

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A substituição da República pela Monarquia transformou completamente as condições do desenvolvimento da atividade literária. A prosa, de modo especial a eloquência, entra em declínio; a poesia, entretanto, atinge o apogeu. Compreende-se que, não mais existindo a liberdade de expressão dos tempos republicanos, a oratória tenha recebido um golpe mortal. Mas, sob a proteção de Augusto e de seu amigo Mecenas, os poetas dão asas à sua fantasia. Observe-se também que a personalidade marcante de Augusto soube influir, sem prejudicar-lhe a inspiração, no tema escolhido para as obras poéticas (GIORDANI, 1997, p. 242).

Embora Fedro não tenha escrito suas fábulas na época de Augusto, foi

nesse terreno de liberdade e proteção que começou a ter contato com as letras,

talvez, esboçando seus primeiros escritos, mesmo que apenas em pensamento.

Com a morte de Augusto, Tibério assumiu o poder de 14 a 37 da era cristã e a

situação de Fedro passou por profundas mudanças. O clima era outro. Tibério era

profundo conhecedor da situação do Império Romano, pois havia feito parte do

governo de Augusto. Inteligente, com habilidades políticas e diplomáticas, ele se

mostrou um líder autoritário e de caráter questionável, trazendo um clima de terror

ao final de seu reinado. Nesse ambiente, nada favorável a críticas contra o governo

ou às pessoas que dele faziam parte, Fedro começou a escrever suas fábulas.

Então, tornou-se vítima de uma perseguição liderada por Lúcio Sejano, primeiro

ministro de Tibério, que se viu atingido por algumas das narrativas. Sejano usou sua

influência e conseguiu o exílio do fabulista logo após a publicação das primeiras

fábulas. Outras fábulas foram escritas no exílio e o último livro dá sinais de que ele

teria saído da prisão e estava novamente exercendo sua atividade de escritor.

A produção original de Fedro é composta por cinco livros, contendo

noventa e três fábulas, cinco prólogos e três epílogos, incluindo, além das fábulas,

pequenas histórias sobre Esopo, Sócrates e Sinômides, e alguns textos de defesa

contra seus acusadores. Alguns críticos afirmam que Fedro também tenha escrito

um apêndice com mais trinta fábulas. Os cinco livros foram escritos durante os

governos de Tibério e Calígula. Esse último governou por pouco tempo, apenas de

37 a 41 da era cristã. Nesse curto período, Calígula esbanjou a fortuna acumulada

por Tibério, criou novos impostos, condenou inocentes à morte, além de cometer

vários desatinos, frutos de sua doença mental.

Tendo estudado grego, Fedro encantou-se com as fábulas,

principalmente as de Esopo, que, séculos atrás, havia contado esse tipo de histórias,

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as quais permaneceram conhecidas e divulgadas. A maioria de suas fábulas trata

dos mesmos temas das narrativas de Esopo. Fedro, admitindo ser um admirador do

artista grego e buscando a mesma fama, reescreveu várias fábulas e criou outras.

De acordo com Luiz Feracine (2006, p. 16)9, o fabulista tinha dois

objetivos distintos ao escrever suas narrativas:

Primeiro, descrever, filmando as linhas predominantes da ética social no Império Romano. Depois, acordar, no espírito do leitor e do ouvinte, o senso de análise reflexiva e crítica tão colimado pelos filósofos do passado. Assim o potencial latente da racionalidade vem à tona e enobrece a dignidade do homem, que, mesmo sendo escravizado, revela-se cônscio de seu valor intrínseco com base na racionalidade cuja liberdade se manifesta na busca do bem honesto.

Esopo e Fedro possuíam pontos de contato e pontos de divergência.

Sendo escravos, ambos adotaram a fábula como estilo, aperfeiçoando-se nessa arte

e usando-a para mostrar a sociedade da época. Mas enquanto o primeiro

expressava-se, de alguma forma, em consonância com os interesses do governo

grego, o segundo não se curvava facilmente, questionando e ironizando a vida e a

atitude dos nobres, fato que acabou por motivar o seu exílio. Os dois valorizam as

virtudes, mas as fábulas de Fedro apontam para o valor da honestidade, da verdade

e da justiça como qualidades que enobrecem o homem, independente da condição

social e política que tenham. No Livro III, a fábula, A irmã e o irmão, ilustra a

importância que Fedro deu às virtudes, valorizando-as em muitas fábulas. A história

é sobre um homem que tinha um filho belíssimo e uma filha muito feia. Estando os

dois em constante discussão, ouvem do pai que eles devem se olhar no espelho

diariamente. “Tu, meu filho, para não estragar (tua) formosura com os males do

vício; tu (minha filha) para que embelezes este (teu) rosto como os bons costumes”

(FERACINE, 2006, p. 70-71). A importância das virtudes é uma constante nas

narrativas de Fedro contrapondo-se a todo o tipo de vaidade e vícios que

impregnaram o Império Romano.

Os Livros I e II foram os causadores da ira de Sejano e,

consequentemente, de todo o processo de acusação contra Fedro até a decretação

do exílio do autor. Logo na primeira fábula, intitulada O Lobo e o Cordeiro, depara-se

com a narrativa sobre um lobo, que, empenhado em devorar um cordeiro, busca

9 Luiz Feracine fez a tradução, apresentação e introdução do livro Fábulas, de Fedro, usado na

dissertação.

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argumentos que justifiquem a atitude cruel. Sendo respondido de forma

inquestionável pela vítima, o lobo se enfurece e devora o cordeiro injustamente.

Fedro termina a fábula usando tais palavras: “Escrevi esta fábula por causa

daqueles indivíduos que oprimem os inocentes por razões fictícias” (FERACINE,

2006, p. 41). Essa fábula havia sido contada por Esopo, diferençando-se no final,

que traz a seguinte lição: “A fábula mostra que, ante a decisão dos que são maus,

nem uma justa defesa tem força” (SMOLKA, 2002, p. 126). A mudança no

ensinamento transmitido pela fábula é suficiente para representar o posicionamento

de cada autor em sua respectiva época. Em Esopo, a advertência é para os maus,

que não se abalam diante de qualquer argumento por mais justo que seja. Em

Fedro, a crítica é explícita: os “indivíduos que oprimem” é uma referência clara aos

nobres que dominam os subordinados, homens livres ou não. Dentro da mesma

perspectiva, Fedro adverte: “A sociedade com os mais fortes nunca é segura”

(FERACINE, 2006, p. 44).

Segundo Paul Veyne (2002), a economia do Império Romano se

mantinha pelo trabalho do escravo, que desempenhava as mais diferentes funções

domésticas ou não. Entretanto, o setor principal, a agricultura, concentrava-se nas

mãos de homens juridicamente livres. Os pequenos camponeses independentes

sofriam para pagar todos os impostos. Embora livres, as obrigações com o Estado

não cessavam, pois apenas os pobres trabalhavam. A ociosidade em Roma, como

na Grécia, era vista como mérito, nunca como vergonha. As pessoas de bem

exerciam cargos de direção. A única atividade digna de um nobre era comandar. E

comandava homens livres e escravos.

A escolha das personagens da fábula O lobo e o cordeiro também

reafirma a ideia de poder e dominação. Em quase todas as fábulas, o lobo, assim

como o leão e a raposa, representam os mais fortes, enquanto o cordeiro, a lebre e

o asno representam os mais fracos, e, por extensão, o povo e os escravos. Numa

época em que os nobres viviam à custa do trabalho escravo e de homens livres, o

teor dessa fábula e o ensinamento que a finaliza não poderiam ter boa aceitação.

Coulanges (2004) revela que, na Roma Antiga e também na Grécia, o

homem comum não era em nada independente. Tudo pertencia ao Estado e aos

interesses de sua defesa. A fortuna dos homens pertencia ao Estado, que podia

usá-la quando fosse necessário. Havia leis que regulamentavam a vida particular

das pessoas. Por exemplo, em Roma, as mulheres eram proibidas de beber vinho.

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O homem não era dono de si mesmo. Até os deuses que deveria adorar eram

aqueles adorados pela nobreza da cidade em que vivia.

Ainda no Livro I, a fábula O asno e o velho pastor exemplifica novamente

o posicionamento de Fedro frente aos nobres. Fedro, quase sempre, iniciava suas

fábulas com a instrução e depois narrava a história, como acontece na referida

fábula que começa assim: “Na mudança de governo dos cidadãos, além do nome do

dominador, para os pobres nada muda” (FERACINE, 2006, p. 48). A fábula vai

contar sobre um pastor que, vendo aproximarem-se os inimigos, aconselha ao asno

que também fuja, mas este responde que para ele não faz diferença a quem irá

servir, uma vez que já tem a sua sela. A palavra sela, usada pelo asno, está ligada

ao trabalho submisso, a algo que aprisiona, tolhendo a liberdade. Para os

subalternos de Roma, pouca diferença faria quem era o imperador ou os senhores,

uma vez que a escravidão e o estado de submissão não se alterariam. Coulanges

(2004, p. 250-251) comenta:

É erro singular, entre todos os erros humanos, acreditar-se que nas cidades antigas o homem gozava de liberdade. O homem não tinha sequer a mais leve ideia do que esta fosse. Ele não se julgava capaz de direitos, em face da cidade e dos seus deuses. [...] o governo muitas vezes mudou de forma; mas a natureza do Estado ficou mais ou menos a mesma, a onipotência quase em nada diminuída. O sistema de governo tomou vários nomes, sendo uma vez monarquia, outra aristocracia, ou ainda democracia, mas com nenhuma dessas revoluções o homem ganhou a verdadeira liberdade, a liberdade individual. Ter direitos políticos, poder votar e nomear magistrados, ser arconte, a isto se chamou liberdade; mas o homem, no fundo, não foi mais que escravo do Estado.

Nas considerações de Veyne (2002), as relações dos homens com os

deuses eram semelhantes às relações com os poderosos, nobres e imperadores. O

romano deveria saudar e cultuar seus deuses, devendo obediência e total

submissão a eles, pois eram senhores caprichosos e cruéis sempre prontos a aplicar

os mais diversos castigos. Esopo escreveu muitas fábulas relacionadas aos deuses,

mostrando a severidade com que eles tratavam os homens. Em Fedro, a referência

às divindades diminuiu consideravelmente, havendo pouca alusão aos deuses e aos

seus relacionamentos com os seres mortais. Embora o Imperador Augusto tenha

procurado reacender o culto politeísta, reerguendo templos e ressuscitando velhos

cultos e cerimônias, o Cristianismo já era uma realidade também em Roma, e com

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ele a religião passaria a ter a conotação de obediência, mas também de amor. Fedro

não faz referência a Deus em nenhuma de suas fábulas, continuando a citar Júpiter

como deus principal. Em As rãs pedem um rei, tem-se o único exemplo no qual

Júpiter se irrita com as rãs, que reclamam do primeiro rei enviado por ele, e envia

outro, que as devora uma a uma. Nas outras três fábulas que se referem aos

deuses, há apenas a alusão ao nome de Júpiter, e, em apenas uma, comenta-se

que os falsários são castigados pelos deuses. Essa atitude do fabulista romano é um

reflexo da presença do Cristianismo cada vez mais popularizado nos governos de

Tibério e Calígula.

A mulher recebeu a atenção do fabulista romano, sendo caracterizada

de maneira negativa, representada na forma humana ou por animais. A situação das

mulheres em Roma apresenta um quadro de crescente conquista de autonomia. Em

épocas mais primitivas, a mulher era totalmente dependente do pai e, depois, do

marido. Com o tempo, a mulher romana adquiriu mais liberdade que a mulher grega,

podendo sair de casa, fazer visitas e compras, além de participar de banquetes na

companhia dos maridos. O fato de ser casada não era visto como uma prisão

eterna, pois o matrimônio nunca foi indissolúvel em Roma. O divórcio podia

acontecer por vontade do marido ou por consentimento de ambos. Durante o

Império, o divórcio já fazia parte da vida dos romanos e chegou a números tão

expressivos que se tornou um dos causadores do decréscimo da natalidade. O

imperador Augusto, preocupado com o baixo índice de natalidade, o que prejudicaria

o fortalecimento do Império, resolveu dar à mulher divorciada a oportunidade de

casar-se novamente e, em alguns casos, reivindicar seu dote. A mulher romana

pôde, a partir de então, casar-se e divorciar-se várias vezes. Esse tipo de liberdade

saiu do ambiente imperial e chegou até as mulheres do povo. Algumas, com mais

posses que outras, também se integraram à nova liberdade, começando e

terminando um casamento com a mesma facilidade. A religião também controlava a

vida e a conduta das mulheres. De acordo com Coulanges (2004), a religião ditava

as normas de comportamento das mulheres desde as épocas mais primitivas, sendo

o adultério considerado a falta mais grave que se poderia cometer. Em Roma, o

marido podia condenar a mulher à morte caso ela o traísse. A História tem

testemunhado que, após um período de vigilância e subalternidade, a conquista da

liberdade muitas vezes leva ao desregramento. Não foi diferente em Roma. A

liberdade adquirida pelas mulheres fez com que muitas delas se entregassem à

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luxúria, disfarçada ou não em casamento legal, e a outros vícios, como negócios

ilícitos ou prostituição. Além disso, conscientes de seu poder financeiro e sexual,

muitas delas passaram a intervir na política, influenciando seus maridos e amantes,

fato que não agradava a todos.

A postura das mulheres frente à autonomia adquirida é criticada por Fedro

em suas narrativas. A fábula A velha e a jovem amando o mesmo homem é sobre

um homem que, sendo amado por duas mulheres, uma mais nova e outra com idade

avançada, acaba ficando calvo, pois a primeira lhe arrancava os cabelos brancos e a

segunda, os pretos, desejosas ambas de ocultar a idade do amante. O ensinamento

que precede a fábula afirma: “Aprendemos mediante exemplos que os homens são

explorados pelas mulheres de modos variados, quer amem, quer sejam amados”

(FERACINE, 2006, p. 57). Muito diferente daquela lição encontrada em Esopo, que,

em fábula muito semelhante, apenas ensina sobre a nocividade de tudo que é

anômalo. Novamente, tem-se uma sutil mudança apenas na moralidade, mas que

mostra, com clareza, como era a visão do escritor diante do mundo que o cercava e

como suas palavras eram bem condizentes com a cultura da época. Esopo apenas

adverte sobre o prejuízo que pode advir de uma situação atípica. Fedro usa da

mesma história para demonstrar como as mulheres podem causar danos aos

homens, estando estes subordinados aos caprichos do sexo feminino.

A disputa pelo cavanhaque e As cabras de barba são duas fábulas

praticamente idênticas e exemplificam como as mulheres foram menosprezadas pelo

fabulista romano. Em ambas, as cabras receberam de Júpiter a barba, causando a

revolta dos bodes, pois elas estavam se igualando a eles em dignidade. O deus

tranquiliza os bodes, dizendo que elas jamais se igualarão a eles em fortaleza e

virtude, respectivamente. A barba simboliza a dignidade masculina e todos os

direitos que os homens possuíam desde eras primitivas, como direito à herança dos

pais e ao dote de suas esposas. Adquirindo a mulher o direito à herança e ao próprio

dote, torna-se ela também dona de sua própria “barba”. Entretanto, isso não é

suficiente para torná-la igual aos homens, pois ela nunca terá a mesma fortaleza e a

mesma virtude. Suas atitudes simbolizam exatamente o contrário, que ela não é

capaz de manter a virtude quando a ela é dado um pouco de liberdade.

Uma fábula, muito semelhante à outra encontrada em Kalila e Dimna,

reforça, novamente, que as fábulas mudam de acordo com a realidade da época em

que foram escritas. Em Kalila e Dimna, há uma história sobre um médico famoso,

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que morreu e cujos livros foram estudados por outros homens, buscando fama e

fortuna. A filha do rei do lugar, grávida, começa a ter problemas de saúde. Um

homem apresenta-se como médico e diz poder salvar a princesa, mas acaba

causando a morte da moça. O rei, revoltado, manda que o falso médico beba o

mesmo remédio, causando-lhe a morte. Em Fedro, um péssimo sapateiro começa a

praticar a medicina, enganando todos. O rei do lugar adoece e, a fim de testar a

competência do médico, oferece veneno a ele, esperando que soubesse qual

antídoto usar. O falso médico não tem alternativa a não ser falar que estava

mentindo e que só conseguiu fama graças à ignorância do povo. O rei convoca o

povo e repreende as pessoas, pois elas foram capazes de colocar suas vidas nas

mãos de quem não sabe nem calçar-lhes os pés. Na época das fábulas indianas,

quase todos os erros eram punidos com a morte. O rei não podia perdoar

determinados atos sob pena de parecer fraco e benevolente demais. A leoa, no

episódio da investigação sobre Dimna, adverte o filho sobre a ameaça que poderá

sofrer a reputação do rei diante dos soldados caso não puna o traidor com a morte.

À época do Império Romano, a situação era um pouco diferente. O rei, embora não

pudesse demonstrar fraqueza, precisava demonstrar sabedoria e perspicácia,

mostrando para todos que era capaz de perceber qualquer atitude contra sua

pessoa. Os sapateiros, assim como os homens que exerciam outras atividades

artesanais, não eram bem vistos nem valorizados pelos nobres. O trabalho que

merecia destaque era o relacionado às atividades de comando, exercido apenas

pelos homens pertencentes às classes privilegiadas. Fedro finaliza essa fábula

criticando os que conseguem dinheiro graças à astúcia enganando os imprudentes.

Duas fábulas com histórias semelhantes, porém as alterações ocorridas simbolizam

a maneira pela qual o homem se posicionava diante da sociedade.

Fedro afirma que a poesia e o apólogo nasceram da necessidade de falar

para o mundo sobre a verdade das coisas e dos fatos. “Os escravos, súditos

eternos, tinham o que falar, mas não ousavam. Então o seu sentimento fundiu tudo

em fábulas, gracejando em torno das coisas desonestas. Eis o projeto de Esopo”

(FERACINE, 2006, p. 65). Em Roma, imperava a “lei do silêncio” para os escravos e

homens do povo, que tudo viam, mas não podiam se manifestar. Nesse sentido, o

gênero fábulas atende à necessidade de expressão, tirando da fala dos homens as

palavras de crítica e questionamento e colocando-as na fala dos animais e plantas, e

disfarça a manifestação direta do próprio pensamento.

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1.5 LA FONTAINE

Jean de La Fontaine nasceu em 1621, filho de Charles de La Fontaine e

Françoise Pidoux, falecendo em 1695. Aos vinte anos, ingressou como noviço em

um convento, mas abandonou os estudos religiosos. Depois, tornou-se advogado,

mas não exerceu a profissão. Preocupado com a vida boêmia que o filho levava,

Charles arrumou o casamento de La Fontaine com a jovem Marie Héricart.

Entretanto, ele não permaneceu muito tempo casado, tendo um filho único. O

casamento e a vida em família não atraíam a atenção do poeta. Ele deixa claro esse

sentimento em carta enviada à esposa: “Aborrece-me a ideia de me prender às

crianças, [...]; por isto, faço votos de ignorar esse inocente” (MARIANO apud LA

FONTAINE, 1989a, p. 20). Embora tenha ignorado o filho, o mesmo não fez com a

esposa. Sempre a amparou e a elogiou até a morte dela. A atitude positiva em

relação às mulheres, presente em suas fábulas e muito diferente do que foi

analisado até então, é justificada por ele ter vivido sempre sob a proteção de alguma

mulher influente da época.

Quando La Fontaine estava com 31 anos, seu pai faleceu e ele herdou o

cargo de Inspetor de Águas e Florestas, mudando-se para Paris. Embora pudesse

ter uma vida digna com essa profissão, La Fontaine preferiu usar seu encanto

pessoal para aproximar-se dos nobres e das grandes damas da corte e viver à custa

deles, sem precisar trabalhar, podendo dedicar-se tranquilamente a leituras e outros

afazeres literários. A escolha por esse tipo de comportamento encontra repouso em

duas fábulas. A fábula A corte do leão conta que Dom Leão come os súditos quando

desagradado por eles, escapando apenas a raposa. As estrofes finais ilustram a

postura do autor: “Quem busca na Corte mercês,/ deve agir sempre assim, usando

de esperteza:/ nem servilismo vil, nem a brutal franqueza;/ prefira ao ‘sim’ ou ‘não’, à

astúcia de um ‘talvez’” (LA FONTAINE, 1989b, p. 42). Outra fábula, intitulada Os

funerais da leoa, é sobre um cervo que é acusado de não chorar no funeral da leoa,

mas escapa de ser morto pelo leão contando mentiras com eloquência para o rei. La

Fontaine, então, ensina: “Com sonhos e ilusões diverti sempre os reis,/ bajulai-os

com a mais agradável mentira./ Se no seu coração existir algo de ira,/ vossa isca

engolirão e amigo seu sereis” (LA FONTAINE, 1989b, p.121).

Vivendo dessa maneira, utilizando-se dos dons pessoais para atrair

simpatias e favores, La Fontaine está longe de ser considerado um moralista. “Suas

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fábulas advertem, mas não fantasiam desfechos felizes para os sonhadores e os

puros. O lobo vence, a lei do cão prevalece” (MARIANO apud LA FONTAINE,

1989a, p. 18). Ele não tinha preocupação em idealizar a moral da história, e sim em

alertar. O poeta sabia muito bem trafegar entre os nobres, cortejando sem bajular e

aproximando-se de quem pudesse tirar algum proveito. Agindo dessa forma,

aproximou-se de Nicolas Fouquet, superintendente de Finanças de Luís XIV. Tendo

a proteção do homem mais forte do reino, pôde assumir definitivamente sua posição

de homem das letras.

Entretanto, Luís XIV tornou-se um monarca absolutíssimo e o prestígio de

Fouquet diminuiu consideravelmente. La Fontaine mostrou-se fiel e defendeu o

amigo abertamente em um poema, desagradando o rei. Com receio de possíveis

perseguições, ele decidiu se autoexilar em Limousin por um ano.

Aos 43 anos, obteve a proteção da duquesa de Bouillon, sobrinha de

Mazarino, primeiro-ministro da França, e passou a servir à viúva do Duque de

Órleans. Foi nesse período que começou a escrever suas fábulas, primeiro sem a

intenção de publicá-las, o que acabou acontecendo em 1668, aos 47 anos.

O sucesso alcançado pela publicação de suas fábulas propiciou sua

entrada no Palácio de Versalhes e permitiu que La Fontaine fosse apresentado a

Luís XIV, que externou sua admiração pelo poeta e ofereceu-lhe uma quantia em

dinheiro, demonstrando ter esquecido o incidente envolvendo Fouquet.

Morrendo a Duquesa de Órleans, Fontaine mudou-se para a casa de

Madame de La Sablière, com a qual viveu durante vinte anos e em cuja residência

sempre havia reuniões de intelectuais e poetas. A vida do poeta seguiu mais

tranquila e sem grandes novidades.

Ao chegar aos 70 anos, La Fontaine reaproximou-se da Igreja,

escrevendo poemas religiosos e começou a praticar a penitência. Sua preocupação

com a morte era evidente na última carta escrita a um amigo: “Como hei de

comparecer perante Deus, tendo vivido como vivi?” (LA FONTAINE, 1989a, p. 24). O

poeta morreu em 1695, cercado de respeito e admiração.

Em uma carta do primeiro volume do livro de fábulas, La Fontaine escreve

ao herdeiro de Luís XIV, Luís, o grande Delfim, com seis anos na época, dedicando

a ele as histórias do livro. Na mesma carta, La Fontaine faz elogios a Luís XIV

assegurando ao pequeno Delfim que o pai é um exemplo a ser seguido, pois obteve

glória em seus feitos.

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O poeta francês explica que as fábulas de Esopo são infantis à primeira

vista, mas guardam verdades importantes e que estas são favoráveis para que as

crianças tornem-se boas mesmo quando ainda não distinguem entre o bem e o mal.

Nesse aspecto, as ideias de La Fontaine e Jean-Jacques Rousseau se aproximam

por considerarem a criança como um ser incapaz de distinguir entre o que é certo ou

errado. Entretanto, no livro Emílio ou da Educação, Rousseau (2014, p. 128),

embora reconheça o encantamento que as fábulas de La Fontaine possuem, critica

o fato de as fábulas serem construídas em versos, tornando ainda mais difícil a

compreensão das crianças, e afirma: “Fazemos com que todas as crianças

aprendam as fábulas de La Fontaine, e não há uma única criança que as entenda”.

No prefácio do mesmo volume, La Fontaine explica que escolheu

reescrever algumas fábulas de Esopo, colocando-as em versos, e de Fedro, tirando

delas a brevidade e inserindo um toque de alegria. La Fontaine considera, então,

que as fábulas

não são apenas morais: servem também para ensinar outras coisas. As particularidades dos animais e seus diversos caracteres nelas se exprimem, e consequentemente os nossos também, uma vez que somos a síntese do que há de bom e de mau nas criaturas irracionais. [...]. As fábulas, portanto, são um quadro onde cada um de nós se acha descrito. O que elas nos apresentam confirma os conhecimentos hauridos em virtude da experiência pelas pessoas idosas e ensina às crianças o que convém que elas saibam (LA FONTAINE, 1989a, p. 38-39).

Na Advertência do segundo volume, La Fontaine reafirma que, no volume

anterior, ele se referiu às fábulas de Esopo e que, no presente, irá falar de outros

temas sobre os quais não vê necessidade de expor os motivos que o levaram a

escrevê-los e de onde retirou os assuntos abordados. “Somente direi, por uma

questão de reconhecimento, que devo a maior parte deles ao sábio indiano Pilpay10,

cujo livro foi traduzido em todas as línguas” (LA FONTAINE, 1989b, p. 18).

La Fontaine se destacou na arte da simpatia e da afabilidade,

conseguindo sempre estar protegido por alguma mulher nobre da corte francesa.

10 Pilpay é o suposto autor de uma coleção de fábulas, chamadas Fábulas de Pilpay, que teve origem

numa antiga coleção indiana, escrita em sânscrito e intitulada Pañcatantra, de onde vieram algumas das fábulas de Kalila e Dimna.

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Disso, resulta o tratamento dado às mulheres em suas fábulas. Nas fábulas

indianas, em Esopo e Fedro, as mulheres eram categorizadas como adúlteras,

mentirosas ou rabugentas. La Fontaine adota uma postura diferente, não

menosprezando ou inferiorizando a mulher.

Na fábula intitulada A mulher afogada, La Fontaine (1989a) inicia a

história contando que há um gracejo popular que diz não ter acontecido nada de

importante, tratando-se apenas de uma mulher afogada. Ele se posiciona contra tal

afirmação, dizendo: “Não uso essa expressão assaz deselegante/ em relação a

quem sempre está nos causando/ sentimentos felizes, ternura e alegria” (LA

FONTAINE, 1989a, v. 1, p. 223). Só depois dessa explicação é que o poeta conta a

história. A defesa das mulheres continua na fábula As mulheres e o segredo, na qual

o poeta diz que as mulheres não conseguem guardar segredos, mas que há também

muitos homens que se assemelham a elas. Em outras fábulas, nas quais a

personagem feminina tem participação, não há referências ofensivas a nenhuma

mulher. O máximo que se encontra é a presença de alguns pequenos vícios e

vaidades. Apenas na fábula O mal casado, La Fontaine adjetiva uma mulher como

ciumenta, rabugenta e implicante, sendo que a história é semelhante à fábula

contada por Esopo, que se refere a uma mulher rabugenta. Em ambas as histórias,

os maridos se cansam da chatice das esposas e as enviam ao campo para passar

uma temporada. O poeta francês, entretanto, se utiliza da mesma fábula, fazendo

alterações para criticar o casamento e para apresentar sua posição pessoal em

relação a esse sacramento. Ele escreve: “Se o belo e o bom andassem sempre de

mãos dadas/ eu me casaria amanhã;/ mas como as relações dos dois estão

cortadas,/ e só de raro em raro acha-se uma alma louçã/ dentro de um corpo sem

defeito,/ prefiro não casar e viver satisfeito” (LA FONTAINE, 1989b, p. 27). Nessa

fábula, o foco principal é a crítica ao casamento, descartado da vida pessoal do

autor, e não uma crítica às mulheres.

O relacionamento entre o poeta francês e a nobreza também se faz

presente nas fábulas, ora dedicando aos nobres várias fábulas, como, por exemplo,

à Madame de Montespan (uma das amantes de Luís XIV), ao senhor de Barilon, à

Mademoiselle de Sillery e ao Duque de Borgonha11, filho mais velho do Delfim; ora

11

O Duque de Borgonha contava com onze anos e La Fontaine com setenta e dois. O jovem príncipe era aluno de Fénelon, que usava as fábulas de La Fontaine como matéria para composições em latim.

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criticando embora de uma forma bem mais sutil que as censuras encontradas em

Fedro. A fábula As videntes relata sobre uma mulher que usa uma casa vazia de

uma vidente e, para exercer essa profissão, apenas não retira a placa escrita

“vidente”. O poeta francês termina a fábula satirizando alguns nobres: “Vi no Palácio

alguém, com uma toga emprestada,/ tornar-se pessoa afamada./ Seguir os seus

conselhos era a voga./ Não era sua a fama, era da toga...” (LA FONTAINE, 1989b,

p. 64-67)

La Fontaine viveu na época de Luís XIV, o Rei Sol, que assumiu

verdadeiramente o trono francês em 1661, aos 23 anos, embora tenha sido

considerado rei ainda na infância. Durante o reinado de Luís XIV, o absolutismo

francês atingiu seu apogeu. Luís XIV estabeleceu a monarquia do direito divino,

segundo a qual o rei era sagrado e todo o seu poder vinha de Deus. Além disso,

exerceu a autoridade absoluta: sua vontade se transformou em lei e justiça. Jacques

Revel (1991) comenta que Luís XIV concedeu vários privilégios aos nobres, mas

cobrou, em troca, uma submissão irrestrita à autoridade do rei. “Constatação ainda

mais verdadeira para os cortesãos, que o soberano obstinadamente vigia nos

detalhes de sua vida e que exercem uns sobre os outros e mais ainda sobre si

mesmo um controle incessante” (REVEL, 1991, p. 197).

A famosa frase de Luís XIV – “O Estado sou eu” – sintetiza suas ações.

Ele declarava a guerra e propunha a paz, e administrava os bens do Estado como

se fossem próprios. O discurso do Rei Sol, apresentado por Gustavo de Freitas

(1976), ilustra o posicionamento do monarca:

É somente na minha pessoa que reside o poder soberano [...], é somente de mim que os meus tribunais recebem a sua existência e a sua autoridade; a plenitude desta autoridade, que eles não exercem senão em meu nome, permanece sempre em mim, e o seu uso nunca pode ser contra mim voltado; é unicamente a mim que pertence o poder legislativo, sem dependência e sem partilha; é somente por minha autoridade que os funcionários dos meus tribunais procedem, não à formação, mas ao registro, à publicação, à execução da lei, e que lhes é permitido advertir-me o que é do dever de todos os úteis conselheiros; toda a ordem pública emana de mim e os direitos e interesses da Nação, de que se pretende ousar fazer um corpo separado do monarca, estão necessariamente unidos com os meus e repousam inteiramente nas minhas mãos (LUÍS XIV apud FREITAS, 1976, p. 201-202).

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Uma fábula de La Fontaine, intitulada Os membros e o estômago, faz uso

da relação entre os membros e esse órgão do corpo, para registrar como um não

vive sem o outro, da mesma forma que Luís XIV afirma em seu discurso não haver

possibilidade de um corpo separado da figura e do poder do monarca. A história do

poeta é sobre os membros do corpo que resolvem parar de trabalhar, pois só o

estômago era recompensado com comida, mas acabam ficando fracos e precisam

voltar ao serviço, a fim de evitar a morte. Esopo contou uma fábula semelhante, O

estômago e os pés, na qual os pés apenas reclamam de carregarem o estômago.

Entretanto, em sua fábula, La Fontaine acrescenta: “Isto pode aplicar-se ao governo

real:/ ele recebe e dá, visando ao bem geral/ Para ele trabalhamos; reciprocamente,/

outro não há que nos sustente.” E termina: “Este apólogo foi usado/ à guisa de

comparação,/ e o povo, arrependido, ouvindo a exortação,/ retornou ao dever,

calado” (LA FONTAINE, 1989a, p. 189-190). Evidenciando dessa forma a submissão

que todos devem apresentar diante do poder real, La Fontaine não desagrada o rei.

No discurso do monarca ou nas palavras do poeta, a lição é clara: o poder se

concentra nas mãos de uma só pessoa e por isso ela deve ser obedecida sem

questionamento.

Os elogios à nobreza continuam permeando várias outras fábulas. Em

uma delas, La Fontaine continua a destacar as boas qualidades que um rei deve

possuir, seguindo o que fez na carta dirigida ao filho mais velho do rei, na qual citou

os adjetivos que devem constituir o caráter de um governante. A fábula O leão

preparando-se para a guerra é sobre um leão que decide guerrear e convoca todos

os animais de acordo com suas habilidades, não dispensando nem a lebre nem o

asno, porque “O monarca sábio e prudente/ enxerga a utilidade que tem toda gente./

Governar bem é mais que sorte:/ é o dom de usar e distinguir o ponto forte” (LA

FONTAINE, 1989a, p. 345).

Todavia, não há somente elogios nas fábulas do poeta francês. Em

algumas delas, há a presença de críticas, ora sutis, ora diretas, aos nobres e ao

clero. À época do Rei Sol, a sociedade era dividida em Primeiro Estado, composto

pelo clero; Segundo Estado, formado pela nobreza; e Terceiro Estado, formado pela

burguesia, camponeses e o restante da população. Os dois primeiros Estados não

pagavam impostos e era a minoria da população. O clero era dividido em alto e

baixo cleros, sendo que o alto clero era composto por bispos, abades e cônegos,

que eram filhos de nobres, havendo bispos nomeados ainda na infância. Havia

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também o baixo clero, que, formado por vigários e monges vindos da burguesia e

classe baixa, não possuía tantos recursos como o alto clero.

Na fábula O rato que se retirou do mundo, La Fontaine censura a atitude

de um rato, que, para fugir dos gatos, se esconde dentro de um enorme queijo

holandês, isolando-se do mundo. “Solitário, tranquilo e bem alimentado,/ precisava o

ermitão de mais algum cuidado?/ Tornou-se gordo e grande, como às vezes fica/

aquele que a Deus se dedica” (LA FONTAINE, 1989b, p. 30). Estando uma cidade

de ratos ameaçada por um exército de gatos, seus habitantes vão pedir ajuda ao

famoso ermitão, que diz que nada pode fazer a não ser pedir a Deus que auxilie os

ratos em seus problemas. A fábula termina com mais uma crítica: “Saiba o leitor que

esse ratinho/ não é nenhum monge cristão,/ mas algum dervixe mesquinho,/ pois um

monge, eu suponho, é caridoso. Ou não?” (p. 31). Percebe-se a reprovação ao alto

clero, que, vivendo em castelos e junto aos nobres, não se dedica à religião, e sim a

gozar de inúmeros privilégios, estando “tranquilo e bem alimentado”. Tal censura

pode estar relacionada ao fato de que La Fontaine não quis seguir a vida religiosa,

afastando-se de Deus e da Igreja, e reaproximando-se de ambos quando, em idade

avançada, passou a temer a morte.

Nas fábulas de La Fontaine, é possível identificar as características da

sociedade francesa da época, independentemente se por meio de elogios ou

críticas. Nesse aspecto, Ismael dos Santos (2006) aponta que as fábulas possuem

três momentos distintos de criação. O primeiro, representado por Esopo, apresenta

a fábula como indicadora do comportamento humano. No segundo momento, Fedro

vai usar a fábula como forma de satirizar a sociedade da época. E o terceiro

momento, dedicado a La Fontaine, que continua a tradição moralizante das fábulas

e passa a utilizá-las como meio de divertir a corte e criticar a sociedade da época.

Coelho (1985) comenta que La Fontaine foi o responsável por restituir à

fabula, em verso, todo o seu relevo literário e elevá-la ao nível da alta poesia. Ele

admirava os antigos e também os modernos, tendo buscado seus argumentos nos

gregos, latinos e franceses, nas parábolas bíblicas, nos contos populares e nas

narrativas medievais e renascentistas, entre outros. Dessas diversas fontes é que irá

se originar a heterogeneidade de suas fábulas. Devido a inúmeras traduções, suas

fábulas perderam a apresentação em verso, mas as situações humanas que elas

retratam venceram o tempo. As fábulas de La Fontaine denunciam as misérias,

desequilíbrios e injustiças de sua época. A autora afirma que:

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Embora tenha alterado ou enriquecido substancialmente os argumentos e o espírito das fábulas que retomou dos Antigos, La Fontaine não tocou no caráter ou na simbologia que seus antecessores atribuíram aos animais. Nele, o leão ainda é o monarca orgulhoso; a raposa é a astúcia; o rico é gordo; o pobre é magro; a garça é delicada; o coelho, um desmiolado sem experiência; a doninha, uma astuta; o gato, um Tartufo, gabola; o urso, um rústico cabeçudo e solitário; a cigarra vive pelo ideal da arte; a formiga, pelo trabalho incessante; o burro, um fanfarrão; o rato, a esperteza matreira; o corvo, a voracidade etc. etc. (COELHO, 1985, p. 63).

La Fontaine foi o primeiro a direcionar suas fábulas para as crianças,

diferenciando-se de seus antecessores nesse aspecto. O poeta francês dedicou um

de seus livros ao pequeno Delfim, afirmando que as fábulas possuem verdades que

deveriam ser apresentadas às crianças. Entretanto, não deixou de usar suas

histórias para exibir o comportamento nem sempre elogiável dos reis, dos nobres e

do clero. Embora trafegasse no mundo nobre, soube usar sutileza para exibir e

satirizar a sociedade da época.

1.6 MONTEIRO LOBATO

José Bento Monteiro Lobato nasceu em Taubaté, São Paulo, no dia 18 de

abril de 1882 e morreu em 05 de julho de 1948. Era filho de José Bento Marcondes

Lobato e Olímpia Monteiro Lobato. Alfabetizado pela mãe, logo despertou o gosto

pela leitura, lendo todos os livros infantis da biblioteca de seu avô, o Visconde de

Tremembé. Desde menino, Lobato mostrava seu temperamento agitado e

questionador, escandalizando a sociedade quando se recusou a fazer a primeira

comunhão. Mais tarde, em sua formatura da faculdade de Direito, pronunciou um

discurso agressivo, o qual fez com que vários professores, padres e bispos se

retirassem da sala. Atuou como promotor público e paralelamente publicava seus

primeiros contos em jornais e revistas, posteriormente reunidos em uma obra

chamada Urupês.

Registrado com o nome de José Renato Monteiro Lobato resolveu mudar

o nome, evidenciando novamente seu espírito inquieto, pois queria usar uma

bengala que fora do pai falecido, e que, portanto, possuía as iniciais J.B.M.L. Passou

a se chamar José Bento. Assim, as suas iniciais ficaram iguais às do pai. Em 1908,

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casou-se com Maria Pureza da Natividade e teve quatro filhos: Marta, Edgar,

Guilherme e Rute.

Em dezembro de 1917, publicou, no jornal O Estado de São Paulo, um

artigo intitulado “Paranoia ou Mistificação?”, no qual critica a exposição de Anita

Malfatti, pintora paulista recém-chegada da Europa. Com essa publicação, estava

criada a polêmica entre Lobato e os modernistas.

Numa época em que os livros eram editados em Lisboa ou Paris,

Monteiro Lobato, em sociedade com Octalles Marcondes Ferreira, fundou a

Companhia Gráfico-Editora Monteiro Lobato. Com o racionamento de energia, a

editora foi à falência. Os dois editores venderam tudo e fundaram a Companhia

Editora Nacional. Lobato mudou-se para o Rio de Janeiro e começou a publicar

livros para crianças. Em 1921, publicou Narizinho Arrebitado, livro de leitura para as

escolas. A obra fez grande sucesso, o que levou o autor a prolongar as aventuras de

sua personagem em outros livros girando todos ao redor do Sítio do Pica-Pau

Amarelo.

Loide Nascimento de Souza (2009) conta que, quando Lobato publicou

seu primeiro livro infantil, ele já era um escritor e um editor reconhecido. A ideia de

escrever para crianças surgiu dentro do ambiente doméstico, pois o escritor queixa-

se de não haver livros destinados aos filhos. Em uma carta escrita ao amigo

Godofredo Rangel, em 1916, o escritor fala sobre o projeto de escrever para

crianças, reescrevendo as fábulas de Esopo e La Fontaine de um jeito brasileiro,

mudando, quando preciso, a prosa e as moralidades, além de trocar os bichos

personagens estrangeiros pelos animais personagens brasileiros. Na mesma carta,

ele relata que seus filhos guardam na memória as histórias contadas por Purezinha,

esposa de Lobato, mas que não prestam atenção na moralidade. Esta fica no

subconsciente e vai se revelar mais tarde, quando eles se tornarem capazes de

compreender o mundo e as relações que o envolvem.

Aqui, surge um ponto de contato entre Monteiro Lobato e Rousseau, pois

o filósofo francês também possuía ideias inovadoras sobre a infância afirmando: “Os

mais sábios prendem-se ao que aos homens importa saber, sem considerar o que

as crianças estão em condições de aprender. Procuram sempre o homem na

criança, sem pensar no que ela é antes de ser homem” (ROUSSEAU, 2014, p. 4). O

filósofo francês, dando continuidade à sua maneira de conceber a infância, sustenta

que cada fase da vida tem a perfeição e a maturidade que lhe são próprias e que,

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muitas vezes, pensa-se apenas no homem feito. Dever-se-ia pensar em uma criança

feita, plena das habilidades e características peculiares dessa fase da vida. Ambos

os escritores viam na criança um ser com pensamentos próprios, preocupando-se

com o tipo de educação que deveria receber e com o tipo de compreensão que ela

tem dos fatos.

Esse tipo de pensamento manifesta-se na constante preocupação de

Lobato com a literatura infantil, reaparecendo depois, em 1921, na nota introdutória

do livro Fábulas de Narizinho, na qual Lobato escreve:

As fábulas constituem um alimento espiritual correspondente ao leite na primeira infância. Por intermédio delas a moral, que não é outra coisa mais que a própria sabedoria da vida acumulada na consciência da humanidade, penetra na alma infante, conduzida pela loquacidade inventiva da imaginação. Essa boa fada mobiliza a natureza, dá fala aos animais, às árvores, às águas e tece com esses elementos pequeninas tragédias donde resulta a ‘moralidade’, isto é, a lição da vida. O maravilhoso é o açúcar que disfarça o medicamento amargo e torna agradável a sua ingestão. O autor nada mais fez senão dar forma sua às velhas fábulas que Esopo, La Fontaine e outros criaram. Algumas são tomadas do nosso ‘folk-lore’ e todas trazem em mira contribuir para a criação da fábula brasileira, pondo nelas a nossa natureza e os nossos animais, sempre que isso é possível (LOBATO apud SOUZA, 2009, p. 105-106).

O tratamento de Lobato em relação às crianças, considerando-as seres

capazes de pensar e de se posicionar diante daquilo que elas veem, sentem, leem e

ouvem, garante o sucesso dele na reescritura das fábulas clássicas. Sua produção

foi reeditada várias vezes, atingindo grande público. O escritor trabalhou por mais de

vinte anos nesse tipo de projeto, fazendo alterações a cada edição, ora simplificando

a linguagem, retirando os excessos de literatura, ora acrescentando mais

comentários infantis à narração. As fábulas continuam sendo semelhantes às

tradicionais, o que vai diferenciá-las é o tratamento dados aos ouvintes e à

narradora, no caso, D. Benta.

Disso, resulta o comentário feito por Coelho (1985), que afirmou caber a

Monteiro Lobato

ser, na área da Literatura Infantil e Juvenil, o divisor de águas que separa o Brasil de ontem e o Brasil de hoje. Fazendo a herança do passado imergir no presente, Lobato encontrou o caminho criador que a Literatura Infantil estava necessitando. Rompe pela raiz, com

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as convenções estereotipadas e abre as portas para as novas ideias e formas que o nosso século exigia (COELHO, 1985, p. 185).

Santos (2001) também comunga com o mesmo pensamento, pois afirma

que Lobato foi o responsável pelas primeiras revoluções estéticas na literatura para

as crianças, citando, entre outras inovações, a contestação de regras sociais e a

pluralidade de vozes. Segundo o autor, Lobato visava ao “encontro da criança

brasileira com a cultura de sua pátria e, em paralelo, à aproximação do leitor infantil

com o universo narrativo clássico possibilitando uma reflexão crítica sobre a rigidez

da moralidade tradicional” (SANTOS, 2001, p. 52).

Lobato, desde criança, destacou-se por sua rebeldia e pela arte de causar

polêmicas: foi assim com a negativa em fazer a primeira comunhão, foi assim com a

exposição de Anita Malfatti e não foi diferente com suas fábulas. Nelas, encontra-se

o questionamento sobre o enredo, as personagens e o desfecho das fábulas

tradicionais. Nas fábulas de Lobato, a crítica às fábulas clássicas fica a cargo, na

maioria das vezes, das crianças personagens do Sítio do Pica-Pau Amarelo.

As personagens do Sítio, que ouvem as histórias contadas pela avó, não

apresentam uma recepção passiva dos ensinamentos contidos nos textos e

assumem outro perfil de ouvinte ou leitor: a criança que pensa, questiona, cria novas

fábulas, sugere outros finais, demonstrando, assim, sua percepção do mundo. No

caso das crianças do Sítio, elas se recusam a aceitar o que há nas fábulas como

verdades absolutas. Rousseau (2014, p. 91) corrobora o pensamento do escritor

paulista ao afirmar:

Conhecer o bem e o mal, perceber a razão dos deveres do homem não são coisas para uma criança. A natureza quer que as crianças sejam crianças antes de serem homens. Se quisermos perverter essa ordem, produziremos frutos temporões, que não estarão maduros e nem terão sabor, e não tardarão em se corromper; teremos jovens doutores e crianças velhas. A infância tem maneiras de ver, de pensar e de sentir que lhes são próprias; nada é menos sensato do que querer substituir essas maneiras pelas nossas, [...].

Rousseau e Lobato concebem a criança como um ser capaz de

posicionar-se diante do mundo. Entretanto, ambos a colocam sempre sob a

orientação de um adulto. Rousseau, ao criar o aluno imaginário – Emílio –, assegura

que as crianças devem ser criadas com liberdade, mas sempre sob a supervisão

dos adultos, para que não se machuquem e para que não sejam colocadas em

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situações de riscos. Acredita que as crianças aprenderiam melhor por si mesmas do

que com constantes interferências. “Amai a infância, favorecei suas brincadeiras,

seu amável instinto” (ROUSSEAU, 2014, p. 72). Em Lobato, as crianças do Sítio,

embora sob a supervisão de um adulto, seja Dona Benta ou Tia Nastácia, podem

emitir opiniões. Quando as fábulas são contadas, a interferência de Dona Benta é

mínima. Ela se utiliza das fábulas para ensinar sobre os fatos do mundo, mas deixa

que as crianças reflitam e manifestem seus pensamentos em relação às histórias

ouvidas.

O relacionamento entre a avó e os netos no Sítio representa o

pensamento de Lobato sobre a família: pessoas cordiais que se respeitam, mas que

discordam umas das outras. As crianças do Sítio não são agressivas ou mal-

educadas. Elas são questionadoras. Lobato dá às crianças a oportunidade de

expressarem suas opiniões sobre os fatos e pessoas. Rousseau, por sua vez,

explica que os adultos só devem dar às crianças o que elas precisam, e não por que

elas pedem. O filósofo francês é totalmente contra que uma criança se torne

autoritária, pois ela não pode mandar nos adultos. A criança, para Rousseau, deve

ser exposta a diversas situações que ampliem seus conhecimentos e seu senso de

observação. Por esse motivo, considerava que o livro Robson Crusoé era perfeito

para Emílio, pois traria muitos conhecimentos além do romance em si. Nesse ponto,

Rousseau iguala-se a Lobato, que, durante a narração das fábulas, criava

oportunidades para que vários assuntos fossem ensinados às crianças, mas

diferenciam-se por ser o primeiro mais rígido e por concentrar todo conhecimento no

adulto, como sendo o único capaz de ter algo a ser transmitido, enquanto o segundo

permitia que as crianças externassem os conhecimentos próprios e chegassem às

próprias conclusões.

Nas fábulas de Lobato, o contexto social cede lugar aos questionamentos

das crianças feitos a cada história lida por D. Benta. Não que o contexto social seja

ignorado por Lobato, um homem atento ao seu tempo e que, por várias vezes,

envolveu-se em polêmicas, mas retratar a sociedade da época não era o objetivo

principal do autor. A leitura de suas fábulas e de outras histórias destinadas ao

público infantil evidencia a preocupação do escritor paulista na formação de uma

criança no sentido mais amplo e heterogêneo. Inseridos nas fábulas, encontram-se

vários ensinamentos, além das moralidades. Fala-se sobre a gramática portuguesa,

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sobre o latim e sobre a literatura entre tantos outros assuntos que fornecem diversos

conhecimentos para as crianças de forma mais leve, mais lúdica.

Vários autores já mencionaram ser a boneca Emília o alter ego de Lobato,

porque é dela que partem os questionamentos mais ousados em relação às fábulas.

Como seu criador, Emília se mostra sempre pronta a indagar sobre tudo o que a

cerca. Nada escapa ao seu olhar atento e avaliador. Incapaz de aceitar a moralidade

da fábula como verdade única, a boneca de pano abusa de seu lugar de

enunciação, criticando e censurando as histórias contadas por Dona Benta. Embora

também façam críticas, as crianças do Sítio não apresentam a mesma ousadia da

boneca, que inicia quase todos os comentários pós-audição das histórias.

Logo na primeira história do livro, Lobato apresenta duas versões para a

famosa fábula A cigarra e a formiga, evidenciando o posicionamento que irá assumir

durante todo o livro. Não há somente a formiga malvada que deixa a cigarra morrer

de frio e fome. Tem lugar a formiga boa, que admite que o trabalho do artista é

também digno de reconhecimento. Lobato apresenta uma nova perspectiva, não

associando a atividade artística à ociosidade inconsequente; ao contrário, dá a ela o

seu devido valor. “Os artistas – poetas, pintores, músicos – são as cigarras da

humanidade” (LOBATO, s/d, p. 412). Logo na primeira fábula, Emília surge para

protestar, afirmando que os animais têm uma linguagem própria e discordando de

Dona Benta, que afirmou o contrário.

Muitas fábulas são adaptações de La Fontaine ou de Esopo, como o

próprio escritor assume em carta enviada ao amigo Rangel. A fábula intitulada A rã e

o boi, muito conhecida, é sobre uma rã que queria se tornar tão grande quanto um

boi, inflando-se até estourar, foi contada por Esopo, Fedro e La Fontaine. Ao lado de

pequenas alterações feitas por cada fabulista, a mudança na moralidade vem

corroborar o que foi explanado até então sobre a relação entre a obra e a ideologia

de cada época. Esopo finaliza a referida fábula com o seguinte ensinamento: “Assim

sofrem os que desejam competir com os mais fortes: com efeito, eles próprios se

prejudicam mais rapidamente do que conseguem atingi-los” (SMOLKA, 1994, p. 26),

deixando claros o reconhecimento da supremacia do mais forte e a submissão

passiva dos mais fracos. Fedro inicia a mesma fábula afirmando: “O fraco que quer

imitar o poderoso perece” (FERACINE, 2006, p. 51), reforçando a ideia de

impotência do povo diante dos governantes. Em La Fontaine, a moralidade muda

para se tornar uma crítica aos burgueses, que não deveriam almejar igualarem-se

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aos nobres, como acontecia antes da concretização da Revolução Francesa. O

poeta francês termina assim a sua versão da mesma fábula: “Tantos no mundo,

assim com a rã, agem:/ todo burguês quer ter mansões de grãos-senhores,/ todo

marquês quer ter seu pajem” (LA FONTAINE, 1989a, p. 79). Na versão de Lobato, a

moral da história é fornecida por meio de um provérbio popular: “Quem nasce para

dez réis não chega a vintém”. Sendo o provérbio representante da experiência

popular, sua mensagem é quase sempre aceita passivamente. Todavia, a boneca de

pano não compartilha da mesma opinião e grita: “Eu nasci boneca de pano, muda e

feia, e hoje sou até ex-Marquesa. Subi muito. Cheguei a muito mais que vintém.

Cheguei a tostão...” (LOBATO, s/d, p. 414) Emília subverte a moral da história,

colocando em dúvida o que a experiência do povo admite como verdade.

O uso de provérbios populares como moralidades integra o projeto de

Lobato de escrever à nacional as fábulas clássicas. Assim, na fábula O lobo e o

cordeiro, tem-se um cordeirinho, que, acusado injustamente de turvar a água que o

lobo iria beber, não escapa da morte mesmo sendo coerente em suas respostas. A

mensagem é clara: “Contra a força não há argumentos”. Dona Benta explica que

essa fábula revela a essência do mundo, ou seja, que os fortes sempre vencem.

Mas Emília não concorda, pois, segundo ela, os fortes podem ser vencidos com o

uso da esperteza, qualidade admirada pela boneca. Em outra fábula, Emília admite

que se tivesse um filho iria ensiná-lo apenas uma coisa: que ele fosse esperto.

A fábula O homem e a cobra foi contada por Esopo e Fedro. Em ambas

as versões, a cobra, antes congelada, mata o homem que a salvou. Em La Fontaine,

o final muda, pois o homem mata a cobra antes que seja picado por ela. Lobato

segue a mesma linha, fazendo com que o homem também mate a serpente e evite o

bote fatal. O autor, em sequência, finaliza a fábula com a mudança do dito popular:

“Fazei o bem e não olheis a quem” para “Fazei o bem, mas olhai a quem” (LOBATO,

s/d, p. 448). Aqui, surge outro exemplo, dentre muitos, da mínima interferência de

Dona Benta ao narrar as histórias. Ela explica que Confúcio, segundo ela o maior

filósofo prático da humanidade, ensinou uma coisa muito certa: “Tratai os bons com

bondade e os maus com justiça”. Ela não se posiciona, apenas aproveita-se da

oportunidade para ensinar. É Emília quem reage ao ouvir o ensinamento do filósofo

chinês, batendo palmas e declarando ser Confúcio quem concorda com ela, pois o

pensamento dela é: “Para os maus, pau!” (LOBATO, s/d, p. 448).

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A ênfase dada à Emília coloca a personagem como um centro de reflexão

da criança, desorganizando o centro do adulto. Emília pode, então, ser considerada

como um suplemento no sentido dos ensinamentos de Jacques Derrida. Embora

perturbe o centro harmônico do adulto, com suas críticas e questionamentos

constantes, esse centro não se esgota, pois a presença e postura dos adultos

continuam existindo. Mas a cada posicionamento da boneca de pano, novos

suplementos são acrescentados à visão dos adultos, num jogo constante no qual o

final será sempre alterado, mas nunca concluído. Cada fábula é acrescida de novas

parcelas que podem vir em forma de críticas à moralidade, repreensão ou elogio a

alguma personagem ou simples aprovação daquilo que foi narrado. Emília é, ao

mesmo tempo, um suplemento da criança, do adulto e da fantasia. Suplementa a

criança quando faz comentários que não seriam bem aceitos se partissem de uma

criança de verdade, porque o lugar de enunciação de Emília, boneca de pano, é

mais confortável. Ao questionar os ensinamentos dos adultos, como fez com os

provérbios, incorpora o centro infantil ao centro adulto, adicionando novas

perspectivas a este. E, finalmente, suplementa a própria fantasia por ser uma

boneca de pano que não só participa da história como personagem, mas posiciona-

se diante das situações apresentadas, agindo além da fantasia. A fantasia

ultrapassa os limites do fantástico dando lugar ao surgimento de pontos de vistas

diferentes daqueles inquestionáveis até então.

Diferentemente das fábulas e dos autores mencionados, encontra-se nas

fábulas lobatianas um endereçamento bem específico: a formação da criança.

Desde Kalila e Dimna passando por Esopo e Fedro, a inter-relação entre a produção

literária e o contexto social e cultural de cada época esteve presente nas entrelinhas

das histórias. Em La Fontaine, além de comunicar-se com a época, as fábulas

começam a considerar a criança como destinatária das histórias criadas e

reinventadas. Entretanto, é Lobato que passa a considerar as crianças como

capazes de formar julgamentos próprios a partir das histórias ouvidas ou lidas. Suas

fábulas apresentam ouvintes ativos, que assumem uma posição própria diante do

mundo e de suas relações.

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CAPÍTULO 2

TAL ÉPOCA, TAL ESCRITOR

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2.1 O princípio...

Oranice Franco (FIG. 1) nasceu em Lima Duarte, MG, em 02 de

novembro de 1919. Era filho de Luiz Gonzaga Franco, farmacêutico e funcionário do

Banco Crédito Real, e Alice Baumgratz Franco, tendo como irmãs a Dra. Berenice e

as professoras Clarice e Doralice e a costureira Eunice.

FIGURA 1 – Oranice Franco Fonte: acervo do escritor

Provavelmente, em 1929, mudou-se com a família para São João del-Rei.

Estudou no Curso Primário Anexo à Escola Normal de São João del-Rei e no

Colégio Santo Antônio, no qual cursou o ginasial. No acervo do escritor, encontram-

se registros da época em que ele frequentou a escola primária. Há dois conjuntos de

avaliações no acervo: um de 1929, quando cursou o segundo ano, e outro de 1930,

relativo ao terceiro ano. As provas mensais eram distribuídas nas disciplinas: Língua

Pátria, Aritmética, Ciências Naturais, História do Brasil e Geografia. Entre as provas

de Língua Pátria, há duas redações – uma feita em 1929 e outra em 1930. Ambas

possuem moralidades no final. Uma redação, ANEXO A, termina com a moralidade:

“Quem tudo quer tudo perde” e a outra, ANEXO B, termina: “Quem rouba é

castigado”. A redação com esse tipo de final foi uma instrução da professora ou

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indica um estilo do escritor? Seja qual for a resposta – instrução ou estilo –, essa

influência iria aparecer nos anos seguintes na produção de Franco para crianças.

Depois, em Barbacena, Oranice cursou a Escola Agrícola, formando-se

agrimensor. Conforme conta Nestor de Holanda, em um artigo para o jornal A Noite,

datado de 22 de agosto de 1955 e intitulado “Da necessidade de ser mineiro”,

ANEXO C, Oranice chegou a exercer, por um tempo mínimo, a profissão de

agrimensor. Na época, um tio fazendeiro precisava fazer uma pinguela sobre uma

pequena valeta para passagem de homens e animais. Franco derrubou uma peroba

e a transformou na pequena ponte. A primeira pessoa que passou só não caiu

porque pulou antes, e só não morreu porque a profundidade era pouca. Disso,

resultaram dois fatos: primeiro, o fazendeiro mandou aterrar a pequena valeta;

segundo, o agrimensor descobriu que se quisesse exercer a profissão devidamente

deveria voltar ao primeiro ano do curso. Como não voltou a frequentar o mesmo

curso, mudou de profissão. A relação entre Oranice e os estudos não seria tão

harmônica, como ele mesmo afirmou em depoimento apresentado nas páginas

seguintes.

Assim, Franco acabou descobrindo que o jornalismo era a sua verdadeira

vocação. No final da década de 1930, foi para Belo Horizonte, onde residiu até os

primeiros meses de 1940. Na capital mineira, relacionou-se com vários escritores,

como Murilo Rubião, Otto Lara Resende e Paulo Mendes Campos, entre outros.

Depois, passou rapidamente por São João del-Rei, partindo para o Rio de

Janeiro, a fim de trabalhar na área do jornalismo. No Rio de Janeiro, começou

trabalhando no jornal A Noite, que ocupava o edifício Joseph Gire. Tamanha era a

importância do jornal como poderoso meio de comunicação que o edifício ficou

conhecido como A Noite. Nesse mesmo edifício, funcionava a Rádio Nacional, na

qual Oranice Franco foi admitido em 02 de abril de 1940. Na emissora, ele produziu

programas, sozinho ou em parceria com outros escritores. Na mesma época,

trabalhou com Mário Lago e Dias Gomes. Oranice Franco fez parte da Era de Ouro

do Rádio, integrando uma época significativa da história do Brasil e do rádio.

Em 1950, Franco escreveu uma de suas novelas, A Marcha para Deus,

baseada na história dos pracinhas do 11º Batalhão de Infantaria de São João del-Rei

na Segunda Guerra Mundial. A partir de 1951, tornou-se redator-chefe da Rádio

Nacional em substituição a Acyr Bocchat. No mesmo ano, Nestor de Holanda (1951)

escreveu um artigo, “Oranice Franco e outros poetas”, para o jornal A Noite, no qual

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noticia que Oranice iria escrever uma Antologia dos Poetas do Rádio (ANEXO D).

Entretanto, não foi localizado tal livro e nem há mais notícias sobre se a redação

deste se tornou uma realidade. Segundo a notícia publicada, Oranice já havia

começado sua pesquisa, que continha aproximadamente duzentos nomes entre

sonetistas, improvisadores, trovadores, parnasianos, surrealistas e modernistas.

Em uma seção do jornal A Noite, denominada “Palpite do Dia”, de

novembro de 1951, encontra-se um pequeno depoimento de Franco sobre o rádio.

Escreveu Franco (1951, p. 11):

Quem está fora do rádio anda cheio de belas sugestões para fazer isso e aquilo; mas, meu Deus, quem pertence à simpática panela radiofônica vê, com espanto, que todas as sugestões já foram feitas, deram ou não resultados. Vindo para o rádio, trouxe meu baú de ideias. Pequeno, humilde como eu mesmo. E venho gastando o meu capital, lutando por um rádio melhor. Melhor em todos os sentidos. [...]. Uma coisa que sempre quis tirar do rádio – ou melhor, podar uns 90 por cento – foi o adjetivo. Esse cidadão, a meu ver, é o nosso grande inimigo. Antes ou depois de um substantivo próprio ele tem levado muita gente à falência – e a pior delas: a do camarada que pensa que tem dinheiro (leia-se talento) e não o tem. E começa a sacar o futuro. Minha sugestão é deixar a coisa como está, pois ela vai muito bem. Há muita gente boa dirigindo os destinos das emissoras – não subamos acima das sandálias. É um conselho sábio que vem desde o mais recuado tempo.

Além do sentimento de estima que o escritor demonstra possuir em

relação ao rádio, traduzido pela expressão “simpática panela radiofônica”, ambiente

restrito, mas harmonioso, percebe-se que Oranice expunha suas opiniões sobre os

assuntos que cercavam a emissora de maneira clara, direta e, talvez, um pouco

ofensiva. A resposta dada bem poderia ser um desabafo direcionado aos não

satisfeitos com o fato de ele ter se tornado redator-chefe na emissora em março de

1951. Entretanto, além disso, o sentimento de humildade está presente em Oranice,

que considera suas ideias pequenas e humildes e conclui o depoimento sustentando

que não se deve subir acima das sandálias. Pequenas marcas capazes de indicar a

personalidade simples do escritor mineiro.

Outro texto de Nestor de Holanda, publicado em 09 de agosto de 1952,

Variações sobre um poeta, ANEXO E, traz, em suas linhas, outra característica de

Oranice: seu apego a Minas Gerais. Escreve o colunista que Orana, como Oranice

era chamado na intimidade, pode ter um domicílio em qualquer parte do mundo, mas

nunca uma residência. Continua o texto dizendo que atualmente Oranice encontra-

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se domiciliado no Rio de Janeiro, mas que reside em São João del-Rei, agarrando-

se a “uma espécie de complexo de Édipo em relação à terra-mãe”. Holanda

antecipou o que o próprio Franco definiria dois anos depois no livro Mares de Minas:

“Minas é um estado d’alma”.

A partir de 1953, na Rádio Nacional, começou a escrever fábulas para o

programa As histórias do Tio Janjão, apresentado por Álvaro Aguiar. O jornal A Noite

noticiou o início da apresentação do programa, numa quarta-feira, 07 de janeiro de

1953 (FIG. 2).

FIGURA 2 – Notícia sobre o início do programa História do Tio Janjão Fonte: A Noite, 1953, edição 14295, p. 7.

O referido jornal não poupa elogios a Oranice Franco, escrevendo na

edição do dia 07 de dezembro de 1953:

[...] as Histórias do Tio Janjão se impuseram logo ao conceito dos pais e ao agrado dos filhos, pois são para as crianças. Seu autor, o poeta mineiro Oranice Franco, com tais histórias tornou-se na rádio o que Monteiro Lobato foi na literatura infantil, isto é, suas histórias foram aceitas unanimemente e com notório aprazimento (A NOITE, 1953, p. 7).

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O programa era transmitido inicialmente uma vez por semana, mas,

devido ao grande sucesso, passou a ir ao ar duas vezes por semana, às terças e

quintas, no horário de 17h30min às 17h55min. Várias dessas histórias encontram-se

no acervo do autor e constituem objeto de análise neste trabalho.

Outra prova do grande sucesso do programa era a “confusão” quanto à

identidade do Tio Janjão. Nas publicações do jornal A Noite, ora consideravam que o

Tio Janjão era Oranice Franco, ora que cabia a Álvaro Aguiar esse título. Quase

todas as notícias relacionadas a Oranice Franco, depois de 1953, o ligam ao Tio

Janjão. Mesmo quando a publicação Mas há outras publicações que afirmam que

Álvaro Aguiar era o Tio Janjão. No dia 21 de abril de 1953, o referido jornal escreveu

que Álvaro Aguiar “vive o Tio Janjão e o faz com muito júbilo e ternura porque

também é pai e sabe o quanto as histórias é sobre uma nova novela que Franco

está escrevendo ou sobre alguma biblioteca que terá o nome de “Tio Janjão”, a foto

publicada é a de Oranice Franco. têm agradado” (A NOITE, 1953, p. 8, grifo meu).

Franco e Aguiar decidiram lançar um disco, Histórias do Tio Janjão (FIG.

3), contendo algumas fábulas. O lançamento desse disco, em 1956, testemunha a

dificuldade de se identificar o Tio Janjão. No anverso da capa, encontra-se a figura

de Álvaro Aguiar, mas no verso há um pouco sobre a vida de Aguiar e Franco. Em

uma fotografia, publicada em 16 de dezembro de 1955, ANEXO F, o jornal A Noite

esclarece que “o escritor do Tio Janjão (Oranice Franco) e o próprio Tio Janjão

(Álvaro Aguiar)” estão resolvendo questões sobre o lançamento do disco. Em todos

os momentos, percebe-se que escritor e intérprete se misturam e se confundem.

Franco possuía fotografias e cartinhas dos “sobrinhos” em seu acervo, o que prova

que ele era visto como o Tio Janjão pelas crianças. A dúvida entre autor e intérprete

comprova o sucesso do programa e sua grande audiência.

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FIGURA 3 – Capa do disco Fonte: disco de vinil, 1956.

O caráter moralizante e educativo do programa de rádio, bem como seu

sucesso diante do público, pode ser confirmado com os dizeres que se encontram

na contracapa do disco de vinil Histórias do Tio Janjão, de 1956.

Êste12 famoso programa do rádio brasileiro, um dos poucos aconselhados pela Liga Católica de Moralidade, foi apresentado na Rádio Nacional, primeiramente, às quartas-feiras, com o tempo de apenas 15 minutos no horário da manhã. Na décima apresentação, eram tantos os pedidos, chegaram tantas cartas, que a Direção Geral resolveu apresentá-lo 2 vêzes por semana, às 17.30, horário mais conveniente para a garotada, e até hoje permanece nesse horário. Feito dentro dos mais rígidos princípios pedagógicos, o programa ‘Histórias do Tio Janjão’ se tornou, em breve, o líder de seu horário e, mais do que isso, um sadio orientador de nossa infância e juventude que têm no Tio Janjão não um mestre carrancudo, mas um admirável amigo. Com quase três dezenas de programas originais, ‘Histórias do Tio Janjão’ teve, recentemente, a unânime consagração das maiores expressões da inteligência brasileira, não só de escritores e jornalistas, mas de mestres e professores especializados em educação infantil, que recomendaram o programa como precioso auxiliar na educação e formação do caráter das crianças brasileiras (AGUIAR, 1956, disco de vinil).

As quatro fábulas que fazem parte desse disco foram extraídas do

material produzido e transmitido pela Rádio Nacional. Duas delas foram ao ar em

1953, O ratinho poeta e O porquinho flautista. As histórias Os brinquedos

abandonados e O macaco que foi rei por um dia foram extraídas da produção de

1954.

12

Optou-se por usar a escrita original da contracapa do disco de vinil.

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O escritor mineiro continua com outras produções paralelas às histórias

infantis. Outra novela de Franco, Meu pai, meu melhor amigo, começou a ser

transmitida pelo rádio em 1954, cujo tema é “a posição de pai face ao filho, na teia

desses problemas de ordem moral, psicológica e prática, um contrariando o outro”.

(ANEXO H). A novela tornou-se um sucesso, agradando o público adolescente e,

por extensão, os pais e educadores.

Detalhes da vida de Franco são noticiados por meio do jornal A Noite: os

períodos de férias, a morte do pai em 1952, uma delicada intervenção cirúrgica

ocorrida em 1955, o dia do aniversário e o lançamento dos livros, incluindo a

publicação de alguns poemas, entre outros.

Percebe-se que, a partir de 1956, as publicações jornalísticas sobre

Oranice foram se tornando mais raras. Tudo indica que, no período de março a

agosto desse ano, o programa esteve fora do ar, pois há uma publicação que

anuncia o retorno do programa para setembro de 1956. Após isso, o nome Histórias

do Tio Janjão só aparece na seção da programação da rádio ao lado de tantas

outras. Não há mais elogios ou quaisquer considerações a respeito do escritor. A

única nota diferente é a que trata da substituição de Álvaro Aguiar por Celso

Guimarães, na qual também há a informação de que o programa será apresentado

apenas uma vez por semana (ANEXO I). A última ocorrência sobre o programa data

de 12 de dezembro de 1957 (FIG. 4):

FIGURA 4 – Última referência ao programa Histórias do Tio Janjão Fonte: A Noite, 1957, edição 15.794, p. 4.

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Em 1972, Oranice Franco se aposentou e voltou para São João del-Rei,

onde permaneceu até sua morte. Em setembro de 1999, Oranice Franco deixou

para Eric Tirado Viegas, o poeta Eric Ponty, todos os direitos autorais de sua obra,

ANEXO J, cujo material foi consultado para pesquisa.

Além do acesso ao acervo, as primeiras conversas com Eric Ponty e,

posteriormente, com seu pai, o Sr. Vicente de Paulo Barbosa Viegas, revelaram

outros fatos sobre a vida de Oranice Franco. O Sr. Vicente disse que a amizade

entre a família Franco e a família Viegas começou a princípio porque eram vizinhos

na Av. Oito de Dezembro em São João del-Rei. Depois, o câncer desenvolvido por

uma das irmãs de Oranice fez com que a presença dele fosse requisitada na

residência, pois ele era farmacêutico e o patriarca da família, também farmacêutico,

já havia falecido. Assim, a amizade começou a se solidificar. Tendo se tornado

amigo de Oranice, o Sr. Vicente, por algumas vezes, levava seu filho, Eric, para

visitar o vizinho. Sendo Eric poeta e leitor, logo a amizade entre ele e Oranice foi

estabelecida também. Os anos se passaram e todas as irmãs de Franco morreram

por algum tipo de câncer. Mais tarde, o próprio Oranice foi vítima de um câncer na

laringe, que o matou em 02 de novembro de 1999, coincidentemente, no mesmo dia

de seu nascimento. Festeiro, havia planejado e organizado, antecipadamente, a

festa dos seus 80 anos. Morreu em casa, aproximadamente às 16 horas, quando a

empregada da casa foi até a casa dos Viegas pedir ajuda. O corpo foi velado na

igreja de São Gonçalo e enterrado no cemitério da mesma igreja.

Oranice, assim como as quatro irmãs, não se casou nem deixou filhos.

Sabedor de que sua doença não teria cura, embora fizesse um tratamento em Belo

Horizonte, o escritor procurou o amigo Vicente e pediu que este providenciasse seu

inventário. O pedido foi cumprido e o inventário devidamente registrado. Os bens

foram distribuídos para as entidades de assistência social da cidade de São João

del-Rei e também para particulares. A casa, ANEXO K, foi doada para a APAE, e a

grande fortuna que possuía em dinheiro foi doada para as Obras Sociais do Padre

Paiva, Conferência do Rosário, Serviço de Assistência à Criança Carente e Especial

(SACE) e Sopa Vovô Faleiro. Receberam uma quantia em dinheiro o pedreiro, o

pintor, as duas empregadas da casa e o médico que o tratou, Dr. Júlio. Para o amigo

e jornalista, Secundino, Franco deixou uma generosa soma em dinheiro resultante

da venda de um apartamento no Rio de Janeiro. Colocou os dólares num embrulho

de papel e pediu que Vicente o entregasse ao amigo jornalista. Ao abrir o pacote,

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Secundino, disse admirado: “Oranice safado. Nem que eu viaje por toda a Europa

não gasto todo o dinheiro que tem aqui”. Parte da fortuna de Franco veio da

aposentadoria do Ministério da Agricultura, conforme informado pelo poeta Eric e

também comprovado por um certificado de um curso de aperfeiçoamento promovido

por esse Ministério (ANEXO L).

Eric contou que Oranice pretendia queimar toda a produção dele e todos

os papéis que faziam parte de sua memória pessoal, como recortes de jornais –

organizados em pastas ou soltos –, propagandas da Rádio Nacional, fotografias e

cartas, entre outros. Oranice chegou a queimar muita coisa, inclusive o último livro

de memórias, que só foi lido por ele e por poucos amigos. O restante da produção

só não foi consumido pelo fogo, porque o escritor foi impedido pela empregada da

casa, a qual lembrou ao patrão que ele havia prometido doar todo o acervo para o

amigo e vizinho Eric.

De acordo com Nilo da Silva Lima (2004), Oranice Franco deixou grande

diversidade e quantidade de obras. Escreveu cinco livros de poesia: Minha rua de

Minas (1949), O poço da memória (1952), Mares de Minas (1954), Gostamos de azul

(1963) e Oranice’s (1982). Também, é autor de uma trilogia de contos formada pelos

livros Lagoa Mansa (1972), Estórias de Lagoa Mansa (1981) e Tem peru na Lagoa

(1983).

Franco escreveu aproximadamente duas mil e trezentas crônicas, entre

1955 e 1965, para o programa da Rádio Nacional, intituladas Crônicas da Cidade. O

jornal A Noite noticiou o início dessa produção na edição do dia 09 de novembro de

1955, informando que, a partir do dia 15 do corrente, Oranice Franco passaria a

escrever as crônicas, que iriam ao ar de segunda a sábado, às 13 horas, além de

elogiar o escritor (ANEXO M). As crônicas eram lidas por César Ladeira, Álvaro

Aguiar e, às vezes, Paulo Gracindo.

Na Rádio Nacional, Franco produziu, com Mário Brasini, Ghiaroni, Pedro

Anísio e Alziro Zarur, novelas que foram sucessos na época de ouro do rádio. Entre

as novelas, têm-se: O gato de botas (1945-1946), O noivo Menelau (1945-1946), A

marcha para Deus (1950), Caminhos da Vida (1952), Meu pai, meu maior amigo

(1954), Clarice (s/d) e Para toda vida (s/d).

Franco escreveu dezessete livros infantis, contendo dezoito histórias: São

Francisco rio rico (1971), O touro valentão (1973) e O menino que voa (1973), em

parceria com Mary França, duas histórias em um mesmo livro: A festa do grilo e O

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Velocípede Abandonado (1977), João Violeiro (1979), Niquinho (1980), O

homenzinho verde (1980), O peixinho arteiro (1982), O coelhinho mágico (1983), O

burrinho que ria (1984), Cavalinho Alecrim (1984), Amazonas o rio mar (1986), O

cachorrinho de sangue azul (1987), O urubu cantor (1989), O pavão orgulhoso

(1999), A sapinha sapeca (s/d) e Macaco Simão rifa um leão (s/d). Os livros São

Francisco rio rico, O menino que voa, Amazonas o rio mar, O homenzinho verde e

João Violeiro não se enquadram no gênero fábulas. A sapinha sapeca, cujo

exemplar não foi localizado, parece ser uma fábula, tendo em vista o título da

narrativa.

No acervo de Oranice, há uma página do 2º Anuário do Rádio, da revista

Publicidade, datada de setembro de 1946, na qual Oranice escreveu sua

autobiografia. O texto ficou “tão bom e espontâneo” que os redatores da revista

resolveram publicar do jeito que Franco escreveu sem colocá-lo nos moldes do

Anuário. A autobiografia de Franco, embora traga dados já mencionados, apresenta

um novo aspecto: o olhar do escritor sobre si mesmo.

Eu me chamo Oranice Franco. Nasci em Lima Duarte, cidade mineira, no dia 02 de novembro de 1919. De Lima Duarte, minha família mudou-se para S. João del-Rei, também em Minas Gerais, e aí fiz meus estudos, cursando, além do grupo, o Ginásio Santo Antônio e o Instituto Padre Machado. Como todo ‘bom’ aluno, fui reprovado várias vezes, e achando que os responsáveis eram os professores, corri outros colégios, sem o menor resultado: Escola Agrícola de Barbacena, Academia de Comércio de Juiz de Fora etc. Nada. O erro estava em mim mesmo. A minha vida, sem querer bancar o modesto, não tem nada de mais. Fiz tudo o que um garoto do interior faz, nadei nos mesmos rios, levei as mesmas surras, tive as mesmas namoradas. Não há mérito, evidentemente. Desde cedo, tomei-me de amores pelo jornalismo. Escrevi numa porção de jornais. Comecei, como todo mundo, pelo começo, isto é, fazendo versos. Horrorosos versos de amor. Depois, conheci o modernismo e suas facilidades. Caí-me de amores por ele e... adeus, rima, adeus, métrica. Escrevi versos tão confusos que até hoje não consigo compreendê-los. Nem eu, nem ninguém mais. Por que quando os escrevi, duas pessoas sabiam o que significavam – eu e Deus. Agora, só Deus. Com os primeiros fios de barba, achei que era tempo de criar juízo. Arrumei as malas e fui para Belo Horizonte. Qual o que! Na capital mineira me ajuntei a outros poetas e desandei. A coisa foi pior porque, tomando conhecimento dos famosos hai-kais, fiquei muito mais confuso. Em Belo Horizonte eu estava ficando pior, voltei a S. João del-Rei e daí, depois de outra crise poética (desta vez foi o folclore), decidi tentar a sorte no Rio. Além dos versos, trouxe dentro da mala um continho meu: ‘Enquanto Rosa é criança’. Embora não

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acreditasse muito no valor dele, foi justamente esse conto que me abriu caminho no Rio. Passei, então, a colaborar na ‘A Noite Ilustrada’, ‘Carioca’. Principalmente na ‘A Noite Ilustrada’, onde me encontro até hoje. Um dia, levado por amigos, tentei o rádio, como redator especializado. Gostei e fui ficando. Não me passava, então pela cabeça, escrever novelas, programas etc. Mas como tudo tem seu tempo, chegou um dia que, com Mário Brasini, resolvi tentar a novela. Fui bem-sucedido. A novela agradou. Daí vieram outras, e uma centena de programinhos. Se não são lá muito bons, não são também horríveis. Espero continuar escrevendo novelas, se Deus quiser. O meu sonho, porém, o verdadeiro sonho de todo escritor – é o livro. Eu bem que podia escrever um livro, mas não quero. O livro é uma coisa que fica, para todo o sempre. Esse sonho não será concretizado já. É bom a gente escrever um livro, mas não apenas um livro. Aí está, sem grandes torneios, a minha vidinha. Nada tem demais, conforme avisei. É simples, comuníssima. Também não me considero, absolutamente, um sujeito de ‘cartaz’. Além de uma grande quantidade de programas, escrevi, com meus colegas de redação da Rádio Nacional: ‘O Gato de Botas’, ‘As novas mil e umas noites’, ‘Alma Encantadora das Ruas’, ‘O Testamento Fatal’, ‘O Noivo Menelau’, ‘A História da Semana’ etc. E as novelas de parceria com Mário Brasini: ‘Clarice’, ‘Quem é esta mulher’. Sozinho, tenho no ar uma novela regional, ‘Para toda a vida’ (FRANCO, 1946, p. 110).

De aluno malsucedido a escritor de contos, poesias, novelas e histórias

infantis, a trajetória de Oranice Franco perpassa a história da Rádio Nacional. O

sucesso de um e de outro se encontram entrelaçados, como mostrado a seguir.

2.2 Nas ondas da Rádio Nacional: o lugar de Vargas e de Franco

De acordo com Othon Jambeiro et al. (2004), o Brasil dos anos 1930

presenciou profundas mudanças políticas e sociais. Não mais um país formado por

poderes políticos regionais em cada estado e território, como ocorria até a década

de 1920, na qual a preocupação do governo era basicamente voltada para as

relações exteriores, defesa do território nacional e distribuição de verbas com fins

políticos. Agora, com a Revolução de 30, o poder buscava centralizar-se, ao mesmo

tempo em que fazia surgir um novo relacionamento entre governo e sociedade,

impondo uma ideologia de país único. A personagem principal dos anos 1930, o

então presidente Getúlio Vargas, tinha, entre tantos, um propósito bem definido –

criar uma identidade nacional. Vargas almejava também o reconhecimento pessoal

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de seus esforços, tornando-se admirado pela população por meio do

desenvolvimento econômico advindo do processo de industrialização e

modernização. Getúlio Vargas liderou e conduziu a revolução de 1930 a 1945,

tendo, a princípio, ideais democráticos. Entretanto, em 1937, ele estabeleceu uma

aliança com os militares e instalou a ditadura do Estado Novo. Sob o pretexto de

proteger o País e seus cidadãos, dividiu todos os poderes do Estado entre ele

mesmo e os militares. Em novembro desse mesmo ano, foi promulgada a nova

Constituição, estabelecendo uma ditadura que enfatizava o papel hegemônico do

Estado sobre o indivíduo e as instituições sociais além da soberania presidencial

sobre os Poderes Legislativo e Judiciário. Jesús Martin-Barbero (1997), ao tratar da

modernidade e da mediação de massa na América Latina, instrui:

Surge assim um novo nacionalismo, baseado na ideia de uma cultura nacional que seria a síntese da particularidade cultural e da generalidade política, da qual as diferentes culturas étnicas ou regionais seriam expressões. A nação incorpora o povo, transformando a multiplicidade dos desejos das diversas culturas num único desejo: participar do sentimento nacional. Sob esta forma, a diversidade legitima a insubstituível unidade da nação. Trabalhar pela Nação é, antes de mais nada, torná-la una, superar as fragmentações que originaram as lutas regionais ou federais no século XIX, tornando-lhe possível a comunicação entre várias regiões – rodovias, estradas de ferro, telégrafos, telefones e rádio – mas acima de tudo das regiões com o centro, com a capital (MARTIN-BARBERO, 1997, p. 217, grifos do autor).

O governo criou, dessa maneira, a necessidade de se ter uma nação

única, que agregasse todas as camadas da sociedade. O Brasil deveria ser um país,

cujas diversidades regionais e culturais seriam direcionadas para um centro único –

o governo Vargas. A ilusão de uma nação sem diferenças reforçaria o poder

governamental. Não se poderia, portanto, ignorar o poder dos meios de

comunicação de massa para transmitirem tais ideias, e não se poderia fazer isso

sem um plano estratégico eficiente.

A regulamentação das relações trabalhistas, o desenvolvimento da

indústria e a criação de mecanismos de importação e exportação são apenas uns

dos projetos governamentais da época. Todas essas metas tinham como objetivo

aproximar as regiões do Brasil com o centro, sendo que algumas dessas metas

tinham caráter populista. Os meios de comunicação de massa não ficariam fora do

conjunto de projetos de Vargas, pois se mostrariam eficientes para que fossem

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alcançados o fortalecimento do Estado, a promoção da figura pessoal do presidente

e a divulgação dos valores defendidos pelo governo em todo o território nacional. A

estratégia política do populismo é assim explicada:

De 1930 a 1960, o populismo é a estratégia política que marca a luta em quase todas as sociedades latino-americanas, com maior ou menor intensidade. [...] Em primeiro lugar, surge no Brasil Getúlio Vargas, conduzindo o processo que leva da liquidação do ‘Estado oligárquico’ ao estabelecimento do ‘Estado Novo’. A partir de 1930, as condições do crescimento industrial no Brasil, a incapacidade da oligarquia para dirigi-lo, as aspirações liberal-democráticas das classes medias urbanas e as pressões vindas ‘de baixo’, exercidas por uma massificação antecipada, dão lugar a um pacto político entre massas e o Estado, por meio do qual se origina o populismo. Trata-se de um Estado que, erigido em árbitro dos interesses antagônicos das classes, arroga-se, entretanto, a representação das aspirações das massas populares, em cujo nome exercerá a ditadura, ou seja, a manipulação direta das massas e dos assuntos econômicos (MARTIN-BARBERO, 1997, p. 224-225).

A grande ambição de Vargas era se tornar popular no País inteiro. Ele

criou as leis trabalhistas e instituiu o salário-mínimo, beneficiando a classe menos

favorecida. Além disso, utilizou-se dos meios de comunicação de massa para

divulgar seus ideais de unificação da identidade cultural do povo brasileiro. Entre os

meios de comunicação que tornaram possível o populismo de Vargas, o rádio surgiu

como um instrumento eficaz para que se alcançasse esse objetivo: o aparelho

estava presente em quase todos os lares e era ouvido por letrados e analfabetos.

Em 1937, o programa Hora do Brasil passou a ser transmitido em todas as

emissoras de rádio, e o presidente usou esse programa para falar diretamente ao

povo, alcançando grande parte da população e reforçando a propaganda de seu

governo.

Entre 1928 e 1935, diversas agências de propaganda americanas se

estabeleceram no Brasil, acompanhando os investidores estrangeiros que vieram

para cá e desempenharam um papel importante no desenvolvimento da radiodifusão

no País. Essas agências produziram ou ajudaram a produzir programas voltados

para as novas classes de consumidores, atraindo as verbas que antes eram

destinadas aos jornais e revistas para as propagandas de rádio. As propagandas

comerciais nas emissoras de rádio foram liberadas em dez por cento de toda a

programação por meio do Decreto nº 21.111, de 1º de março de 1932 (BRASIL,

1932), alterando positivamente a situação financeira das emissoras de rádio. Dessa

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forma, o modelo da radiofusão do Brasil se assemelhou ao modelo americano:

programação dinâmica e eclética, dirigida às audiências mais diversificadas

possíveis, sempre intercaladas com anúncios dos patrocinadores. A programação

das emissoras passou por mudanças: antes, notícias e alta cultura, dirigidas apenas

àquelas camadas mais ricas; agora, via-se a introdução de programas de

entretenimento, destinados a atender às novas camadas de consumidores, situadas

nas classes média e baixa. Todas as atividades de radiodifusão ficaram sob o

rigoroso controle do governo Vargas. As concessões para as emissoras de rádios

incluíam tanto os aspectos técnicos de produção e transmissão como o conteúdo da

programação que ia ao ar. Uma das justificativas para esse controle da programação

seria o caráter doutrinador do rádio na formação de crianças e adolescentes. Com

esse tipo de justificativa, entre outros, o governo criou, mediante um decreto, o

Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), órgão subordinado diretamente ao

presidente da República, aspecto que reforça a importância que a propaganda

assumiu na época. Além de centralizar, coordenar e orientar a propaganda nacional

interna ou externa, o órgão tinha também a finalidade “de fazer censura do teatro, do

cinema, de funções recreativas e esportivas de qualquer natureza, de radiodifusão,

da literatura social e política, e da imprensa, quando a estas forem cominadas as

penalidades previstas por lei” (BRASIL, 1939).

Nascida pouco antes da criação do DIP, a Rádio Nacional do Rio de

Janeiro foi ao ar pela primeira vez em 1936, exatamente na década em que o Brasil

assistia ao crescimento da sua economia, incrementada por investimentos

estrangeiros. Desde o início, a Rádio Nacional buscou ser uma emissora de

sucesso, fato que se tornou realidade, principalmente durante a Era de Ouro do

rádio. A primeira radionovela apresentada pela emissora, em 1940, foi Em busca da

felicidade, do cubano Leandro Blanco, que atingiu altos índices de audiência e

inaugurou o sucesso desse tipo de programação. No ano de 1941, apresentado por

Heron Domingues, teve início o programa Repórter Esso, que se tornou uma

referência no modo de se fazer jornalismo no rádio. Em 1942, a Rádio Nacional

inaugurou seu auditório com quatrocentos e oitenta e seis lugares sentados, onde

aconteciam os famosos programas de auditório, que contribuíram, ainda mais, para

o sucesso da emissora. A Rádio Nacional tinha sua própria orquestra, contratava

artistas famosos e possuía uma programação muito diversificada. Também, foi a

primeira a realizar concursos de rei e rainha do rádio. A programação diferenciada, a

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aparelhagem moderna, os artistas famosos, tudo contribuiu para o sucesso da

emissora.

O rádio se consolidou como um setor economicamente rentável tanto

pelas empresas anunciantes como pelo governo, que incorporou a Rádio Nacional

ao seu patrimônio em 1940. Entretanto, a emissora não era sustentada por recursos

públicos. A rádio continuou a sobreviver apenas com o dinheiro das propagandas, o

que confirma a grande rentabilidade da emissora. A edição nº 14.402, de 16 de maio

1953, do jornal A Noite, comprova que o êxito obtido pela emissora continuou por

muitos anos:

A Rádio Nacional afirma, de maneira categórica, que não é verdade que viva às expensas do erário público Não há, no orçamento da República, uma só rubrica que a beneficie direta ou indiretamente, e, ao contrário do que se diz, sem conhecimento de causa nada mais tem feito durante 13 anos de incorporação ao patrimônio da União do que aumentar os seus valores de maneira assombrosa e sem que o Tesouro Nacional retirasse de suas arcas um só níquel. [...]. Como pode verificar qualquer pessoa desinteressada, sem paixões, a Rádio Nacional mantém um plano geral de programação que abarca todas as esferas da cultura, da educação e da recreação, sendo difícil encontrar semelhança com essa linha em qualquer atividade de suas congêneres (A NOITE, 1953, p. 3).

A resposta da emissora contra um suposto encerramento de suas

atividades incluiu comentários sobre o início da rádio no prédio A Noite,

detalhamento de toda a aparelhagem técnica incorporada ao patrimônio e listagem

de sua múltipla programação, citando, entre os programas de sucesso de audiência,

as Histórias do Tio Janjão.

Coincidentemente, o ano de 1940 marcou a incorporação da Rádio

Nacional ao patrimônio do governo e a chegada de Oranice Franco à Rádio

Nacional. Começou ali a relação entre o escritor, a emissora e o governo. Em

entrevista concedida à Agência Brasil, Roberto Salvador (2004) conta que, na época

da incorporação da emissora, Getúlio Vargas colocou na direção da Rádio Nacional

Gilberto de Andrade e disse a ele: “O governo não quer dinheiro da Rádio Nacional.

Ele quer o poder da Rádio, quer força, quer que a Rádio seja o porta-voz da cultura

brasileira”.

Sabedor do poder do rádio na vida das pessoas, Getúlio Vargas reafirmou

o que Theodor W. Adorno e Max Horkheimer disseram sobre a indústria cultural, na

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década de 1940, ou seja, que ela tem um caráter altamente alienante,

desempenhando a mesma função de um estado fascista. A indústria cultural,

segundo esses pensadores, promove a alienação do homem, pois leva o indivíduo a

não meditar sobre si mesmo e sobre a totalidade do meio social no qual vive,

transformando-se em uma marionete do sistema que o envolve. Para os filósofos, a

indústria cultural cria padrões que são oferecidos à clientela, que acredita ser autora

desses padrões, mas que, na verdade, está é perdendo sua capacidade de agir e

criticar.

Martin-Barbero associa-se a esses pensadores ao afirmar que a América

Latina do final dos anos de 1930 se caracterizou, entre outros, pela intensa migração

para as cidades e pela hegemonia da indústria cultural com o cinema e o rádio. A

ascendência do rádio está na sua capacidade de dar à população a oportunidade de

se “ouvir” diariamente nos programas, seja pela manutenção de suas tradições, seja

pela incorporação de novos valores, dos quais não é sujeito, e sim receptora. Em

relação ao rádio, diz o autor:

Juntamente com o cinema, o rádio será o outro meio que permitirá conectar o que vem das culturas camponesas com o mundo da sensibilidade urbana. Conservando suas falas, suas canções e não poucos traços de seu humor, o rádio mediará entre tradição e modernidade. E será também o veículo mais eficaz – até o surgimento da televisão em final dos anos 50 – para a transmissão de valores de classe e raça, bem como para a redução da cultura a slogans [...] (MARTIN-BARBERO, 1997, p. 267).

Entretanto, quando Martin-Barbero considera que o rádio vai além do

espaço de sublimação, tornando-se um expediente com o qual o povo reencontra

seu sentimento de classe, o autor se distancia dos filósofos alemães. O rádio não

seria apenas um dos meios usados pela indústria cultural, de forma opressora, mas

uma forma de as classes populares recuperarem seus discursos:

[...] a particular capacidade do rádio para mediar o popular tanto técnica como discursivamente. Levando-nos, assim, à pista que, rompendo a obsessão pelas estratégias da ideologia nos permite indagar como pode o operário encontrar no rádio uma orientação para a existência nas cidades e o migrante, por sua vez, modo de se manter ligado à terra natal, e à dona de casa, um acesso às emoções que de outro modo lhes estão vedadas. E como isso acontece porque o rádio fala basicamente o seu idioma – a oralidade não é mera ressaca do analfabetismo, nem o sentimento é

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subproduto da vida para os pobres – e pode assim servir de ponte entre a racionalidade expressivo-simbólica e a informativo-instrumental, pode ser e é algo além de mero espaço de sublimação: aquele meio que para as classes populares está preenchendo o vazio deixado pelos aparelhos tradicionais na construção de sentido (MARTIN-BARBERO, 1997, p. 315, grifos do autor).

Na vida dos brasileiros, a influência do rádio também se faria presente.

No Almanaque da Rádio Nacional, Ronaldo Conde Aguiar (2007) conta que na

época dourada do rádio quase todos os lares brasileiros tinham um aparelho de

rádio na sala, que ficava ligado o dia inteiro. Por meio dele, as pessoas ouviam uma

programação bem variada: radionovelas e programas humorísticos e de auditório. O

rádio criou estilos, palavras e expressões do dia a dia. Sobre a influência do rádio na

vida dos brasileiros, escreve Ronaldo Aguiar (2007, p. 9):

Sem que pouquíssimos percebessem isso na época – mas o rádio foi um instrumento essencial à nossa feitura como nação. O rádio levou às cidades (pequenas, médias e grandes) e aos rincões mais afastados uma mensagem – boa ou má, não importa – que uniu brasileiros em torno de algumas aspirações e desejos comuns. [...]. Através das ondas do rádio, forjamos traços singulares da nossa identidade, a partir da qual edificamos, aos trancos e barrancos, o nosso país possível – este que aí está. Imperfeito, desigual, macunaímico. O rádio pôs o Brasil e o mundo na sala do brasileiro. Com sua capacidade de falar simultaneamente a milhões de pessoas, o rádio transformou-se numa ferramenta poderosa de informação de massa.

Adorno e Horkheimer (1985) têm um posicionamento mais pessimista em

relação “às mensagens boas ou más” que eram levadas através do rádio. Para

esses pensadores, o telefone seria um instrumento de comunicação mais liberal,

pois permitiria que as pessoas desempenhassem seus papéis de sujeito. O rádio,

entretanto, é mais democrático, uma vez que transforma todos em ouvintes iguais,

para fornecer a eles, de forma autoritária, os mesmos programas nas diversas

emissoras de rádio. Os ouvintes não participam de nada, pois mesmo os programas

de auditório, por exemplo, são organizados de cima para baixo. Assim, pensam os

ouvintes que os programas expressam seus desejos, mas esses desejos haviam

sido estabelecidos antes. As supostas distinções entre as categorias dos programas

é algo predeterminado. As boas ou más qualidades dos programas servem apenas

para dar a falsa ilusão de que existe concorrência e que há a possibilidade de

escolha.

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O fornecimento ao público de uma hierarquia de qualidades serve apenas para uma quantificação ainda mais completa. Cada qual deve se comportar, como que espontaneamente em conformidade com seu nível, previamente caracterizado por certos sinais e escolher a categoria dos produtos de massa fabricados para seu tipo (ADORNO, HORKHEIMER, 1985, p. 58).

Com seus programas diversificados e inúmeros patrocinadores, tornam-se

compreensíveis o papel desempenhado pela Rádio Nacional e a repercussão do

programa infantil de Oranice Franco. Segundo Aguiar (2007), nenhuma outra

emissora de rádio alcançou tanto sucesso como a Rádio Nacional. Em 1944, a

Rádio Nacional detinha setenta por cento da audiência contra dez por cento da

segunda colocada, a Rádio Tupi. Os cantores da Rádio Nacional também eram os

mais queridos pelos ouvintes. Além desses dados, o sucesso da Rádio Nacional

pode ser medido por meio do seu faturamento. Em 1947, havia no Rio de Janeiro

treze emissoras de rádio. A Rádio Nacional faturava cinquenta milhões de cruzeiros,

enquanto a Rádio Tupi faturava vinte e quatro milhões de cruzeiros. Resumindo, a

Rádio Nacional faturava doze milhões de cruzeiros a mais do que a soma de todas

as outras concorrentes.

O declínio da Rádio Nacional teve início em 18 de setembro de 1950

quando foi inaugurada a TV Tupi de São Paulo. A princípio, o fato não gerou

grandes preocupações, pois a maioria da população não dispunha de recursos para

ter um aparelho de TV em casa e os dirigentes da Rádio Nacional consideravam que

a televisão seria uma moda passageira e que nada substituiria o rádio. Quando se

deram conta do erro que cometeram, os dirigentes tentaram fundar a TV Nacional,

buscando, em vão, a concessão necessária para um canal de TV durante todo o

governo de Juscelino Kubitscheck.

A Rádio Nacional foi perdendo a audiência devido à concorrência da

televisão, que, a cada dia, conseguia mais telespectadores. Até que, em 10 de abril

de 1964, César de Alencar, Hamilton Frazão e Celso Teixeira denunciaram vários

colegas da Rádio Nacional às autoridades policiais como sendo subversivos. Muitos

deles foram presos, outros investigados, demitidos ou aposentados e até exilados. A

emissora havia perdido muito de seus artistas, que migraram para a televisão e

agora ficava sem vários de seus profissionais. Chegava ao fim a época de ouro da

Rádio Nacional.

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Nessa época, segundo Lima (2016, p. 6):

Oranice Franco manifesta-se publicamente contra a perseguição sofrida por vários colegas do rádio e outros intelectuais, como Mário Lago, Paulo Gracindo, Paulo Roberto, César Ladeira. São demitidos 67 funcionários da Rádio Nacional e 81 postos sob investigação, denunciados por apoio ao comunismo.

O caráter amigo e generoso de Oranice Franco já havia sido comentado

por Vicente Viegas, amigo e vizinho em São João del-Rei, ao relatar que o autor

doou a casa e grandes quantias em dinheiro para amigos e instituições de

assistência social. À época da ditadura, seu posicionamento não foi diferente.

Defendeu os amigos e acabou sendo afastado da redação de as Crônicas da Cidade

em julho de 1964, impedido, assim, de expor sua opinião.

A Rádio Nacional seria tanto um instrumento de massificação cultural,

como também teria momentos de espontaneidade e autonomia. O programa

Histórias do Tio Janjão iria oscilar entre um e outro aspecto.

2.3 As histórias infantis e as motivações ideológicas

Oranice Franco foi admitido na Rádio Nacional em 1940, época na qual o

Brasil passava por uma série de transformações políticas e econômicas,

característica do primeiro governo de Getúlio Vargas. O ano de 1940 também marca

a incorporação dessa emissora ao patrimônio do governo federal. Aos poucos, com

investimentos e servindo de porta-voz aos interesses de Vargas, a Rádio Nacional

foi conquistando mais espaço e importância. Contratou artistas de destaque, tinha

sua própria orquestra e seu próprio auditório, e vários programas eram líderes de

audiência. Chegou ao ápice de seu sucesso. Notícias, entretenimento e esporte

faziam parte da programação para todos os membros de uma família. Novelas para

as donas de casa; o Repórter Esso e as notícias esportivas para os pais. As

crianças não foram esquecidas, pois também faziam parte do projeto educacional

brasileiro.

De acordo com Otaíza de Oliveira Romanelli (1980), logo após assumir o

poder em 1930, Vargas criou vários ministérios, entre eles o Ministério da Educação

e Saúde Pública, tendo inicialmente como ministro Francisco Campos e depois

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Gustavo Capanema, que ocupou o cargo de 1937 a 1945. Alguns aspectos desse

Ministério foram realmente renovadores em termos educacionais. Até essa data, o

ensino não era organizado em termos de um sistema nacional. Cada unidade da

federação possuía um sistema próprio, sem articulação com o governo central. A

reforma de Francisco Campos foi ao encontro das expectativas de Vargas – criar a

unidade nacional também na educação, pelo menos nos ensinos comercial e

superior.

Era a primeira vez que uma reforma atingia profundamente a estrutura do ensino e, o que é importante, era pela primeira vez imposta a todo o território nacional. Era, pois, o início de uma ação mais objetiva do Estado em relação à educação (ROMANELLI, 1980, p. 131).

Embora tenha representado um avanço na estrutura educacional

brasileira, os decretos sancionados nessa época ajudaram a marginalizar ainda mais

o ensino primário e o médio, pois trataram de organizar de forma prioritária o sistema

educacional das elites, e nenhum dos decretos dessa época foi direcionado ao

ensino primário. Além disso, havia a obrigatoriedade de se prestar exame para

acesso ao ensino médio, o que exigia dos alunos do curso primário um nível de

educação que não era fornecido pelas escolas públicas, aumentando a separação

entre as classes sociais e a defasagem no tipo de educação que cada classe

recebia.

Só após a queda de Vargas, em 1945, é que o governo começou a se

preocupar com o ensino primário. Até aqui, cada Estado mudava o seu sistema de

ensino primário de acordo com suas concepções políticas. O Decreto-Lei nº 8.529,

de 02 de janeiro de 1946 (BRASIL, 1946a), criou a Lei Orgânica do Ensino Primário,

estabelecendo as finalidades, categorias, estrutura e outras características próprias

para esse nível de ensino. Meses depois, a Constituição de 1946 determinou que

caberia à União legislar sobre as diretrizes e bases da educação nacional. Merece

destaque o artigo 166 da referida Constituição ao decretar que “A educação é direito

de todos e será dada no lar e na escola. Deve inspirar-se nos princípios de liberdade

e nos ideais de solidariedade humana” (grifo meu).

A partir do momento em que a educação passou a ser considerada como

responsabilidade da família e da escola pela Carta Magna do País, a relação entre

as duas instituições tornou-se ainda mais íntima. Além disso, a Constituição de 1946

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tornou o ensino primário gratuito e obrigatório a todos, aumentando a procura por

esse nível de ensino, principalmente pelas camadas da sociedade que não tinham

condições de ingressar no ensino médio ou superior. Foi justamente dos alunos do

ensino primário que seria formada a audiência do programa Histórias do Tio Janjão,

escrito por Oranice Franco e lido por Álvaro Aguiar, cujo início foi em janeiro de

1953. Rapidamente, as fábulas de Oranice tornaram-se um sucesso junto a pais e

educadores na formação das crianças. As histórias eram contadas uma vez por

semana, às quartas-feiras, às nove horas e quarenta e cinco minutos. Pela leitura de

algumas edições do jornal A Noite, nota-se que, a partir de abril do mesmo ano, o

programa passou a ser irradiado duas vezes por semana, às terças e quintas-feiras.

O horário também foi alterado para as dezessete horas e trinta minutos, tornando o

programa acessível às crianças que estudavam nos períodos da manhã e da tarde.

Atendeu-se, dessa forma, a um público muito maior e a audiência só aumentou. As

fábulas sempre traziam algum ensinamento: o valor do estudo, da obediência aos

pais, da honestidade e da bondade, entre outros, e eram as responsáveis por unir a

emissora de rádio, a família e a escola em torno de objetivos educacionais.

Segundo Marisa Lajolo e Regina Zilberman (1985), entre 1940 e 1960, a

fonte para a produção de livros de literatura infantil foi a tematização da infância,

quer representada literalmente por crianças, quer por meio de bichos ou bonecos

animados. “A fábula e depois o conto de fadas foram as modalidades literárias que

precederam à conversão de personagens não humanas, mas antropomorfizadas,

em símbolo das vivências e da interioridade da criança” (LAJOLO; ZILBERMAN,

1985, p. 112). Os animais das histórias representam as crianças, frágeis e

desprotegidas, necessitando de amparo e cuidados constantes. O texto dos livros

adota uma postura doutrinária, aproveitando para transmitir ensinamentos morais e

moldar atitudes, destacando o valor da obediência. A maioria dos livros dessa fase

coloca a casa, o lar, como o lugar ideal no qual se deve estar. Os animais (crianças)

desobedientes desejam fugir, cometem um erro, passam por dificuldades e voltam

para casa, arrependidos e modificados. Embora as autoras estejam se referindo aos

livros publicados nesse período, as fábulas de Oranice enquadram-se nessa mesma

proposta. Os animais, representantes das crianças nas narrativas de Franco, após

cometerem erros e arrependerem-se, retornam ao lar, o lugar seguro onde querem

permanecer. É na família que os valores morais são transmitidos e mantidos, valores

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que são os promotores de uma vida tranquila e feliz, característica que reforça o

enunciado do artigo 166 da Constituição de 1946.

La Fontaine, Lobato e Franco, entre tantos outros, valeram-se de histórias

para transmitirem ensinamentos aos mais jovens. Mediante narrativas em prosa ou

em versos, os autores escreviam para as crianças, havendo sempre uma fração

pedagógica a nortear as narrativas. As crianças ouviriam ou leriam histórias que as

ajudariam a serem pessoas mais responsáveis, bondosas e estudiosas.

Pensamentos desse tipo, embora comuns, não são unânimes. Rousseau, por

exemplo, não acreditava que se podia ensinar às crianças utilizando somente as

palavras. O exemplo era essencial para se chegar a esse fim.

Jovens mestres, peço-vos que penseis nesse exemplo e vos lembreis de que em todas as coisas vossas lições devem consistir mais em atos do que em palavras, pois as crianças facilmente se esquecem do que disseram e do que lhe dissemos, mas não do que fizeram e do que lhes fizemos (ROUSSEAU, 2014, p. 107).

Caso se considere que a criança só tem a lembrança daquilo que ela

mesma fez ou que fizeram a ela, as fábulas não teriam valor como formadora moral,

restringindo-se ao caráter lúdico. Não importariam os conselhos, mesmo que

repetidos, incessantemente, por pais, educadores ou pelo Tio Janjão. As crianças

não guardariam uma só palavra do que foi dito. Mas parece que, em se tratando do

Tio Janjão, o efeito das palavras foi além, pois as crianças apresentavam mudanças

de comportamento, confirmadas por meio das cartas enviadas por mães, por

professoras e pelas próprias crianças ao programa. Talvez pelo alcance da Rádio

Nacional como divulgadora e formadora de opinião, talvez pelo modo pelo qual os

conselhos eram dados – falava-se o nome da criança para o País inteiro ou o seu

endereço, o que resultava no mesmo, pois, ao ouvir o endereço, a criança sabia que

o recado era para ela. Talvez porque o programa era ouvido pela família, ou pelo

menos, pela mãe e pelos filhos. Ouvia-se no rádio, reforçava-se em casa.

A relação entre uma emissora de rádio e instituições sociais, como, por

exemplo, a família, não é nova. Segundo Martin-Barbero (1997), a partir da década

de 1930, aconteceu na América Latina, com diferenças entre os diversos países, as

grandes migrações para as áreas urbanas e a hegemonia do rádio e do cinema. As

massas populares não iriam ao cinema apenas para se divertirem, e sim para terem

a oportunidade de verem, na tela, as mesmas experiências vividas no seu cotidiano.

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Com o rádio, não foi muito diferente. Ele seria capaz de conservar os costumes das

massas camponesas, agora urbanas. A programação, previamente estabelecida,

como a da Rádio Nacional, permitia que a família reconhecesse os próprios valores

nas palavras ouvidas no rádio. Reunidos em volta do aparelho de rádio, mães e

filhos escutavam, através das palavras do Tio Janjão, os mesmos conselhos

repetidos nos ambientes familiar e escolar. Reafirma-se aqui a cumplicidade que

deveria existir entre família e escola no que tange à educação das crianças

determinada, inclusive, pela Carta Magna de 1946. O rádio faria a mediação entre o

que era valorizado na família e o reforçado na escola, e vice-versa.

Evidencia-se, desde o primeiro programa, o compromisso do Tio Janjão

com a formação moral das crianças – seu objetivo, sua verdade. Cada escritor,

autor, pessoa comum, possui a sua verdade própria. Entretanto, é sabido que a

verdade absoluta não existe. Nenhum filósofo até hoje admitiu a existência dela.

Todo escritor tem vontade que suas palavras sejam verdade. Mas, por traz de cada

verdade, há a vontade da verdade. E, em se tratando do Tio Janjão, a verdade

almejada é que as crianças sejam boas, mas a vontade da verdade é que o controle

sobre elas seja efetivo e eficiente. Michel Foucault (1971) afirma que a vontade de

verdade tem como base uma instituição, que a reforça e a reconduz no meio de

várias práticas como a pedagogia e os sistemas de livros e de edição. A vontade da

verdade é também reconduzida pela forma como o saber é distribuído, valorizado,

atribuído e repartido dentro de uma sociedade. O Tio Janjão apoia-se nas

instituições, família e escola, para reforçar seus ensinamentos, que são reafirmados

por essas instituições.

Ao se comparar Lobato e Franco, verifica-se que ambos querem ensinar.

A verdade dos dois aí se assemelha. Distanciam-se quanto à vontade da verdade.

Lobato quer que o ensinamento para as crianças aconteça de forma lúdica. No Sítio

do Pica-Pau Amarelo, as instituições de preservação do caráter estão ausentes. Não

há pais e mães, escolas ou igrejas. As crianças aprendem com a audição de

histórias, que são acompanhadas de observações e críticas que fazem a tudo o que

ouvem dos adultos. Os pequenos ouvintes do Sítio não são passivos. Eles escutam

as histórias, expõem suas opiniões, criticam moralidades e personagens. O mesmo

não acontece com as histórias do Tio Janjão. Os pequenos ouvintes do rádio não

são sujeitos das narrativas. Não é dada a eles a oportunidade de interação e análise

crítica. Eles apenas escutam, assimilando ou não os ensinamentos transmitidos. A

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verdade contada nas fábulas tem como objetivo a formação moral do futuro cidadão.

E a vontade da verdade de Franco é que as crianças vivam sob o controle das

instituições – escola e família –, que difundem o saber, reconduzindo a vontade de

verdade. Sobre essa vontade, ensina Foucault (1971, p. 6-7):

E, no entanto, é sem dúvida dela que menos se fala. Como se a vontade de verdade e suas peripécias fossem mascaradas pela própria verdade na sua explicação necessária. E a razão disso talvez seja esta: se, com efeito, o discurso verdadeiro já não é, desde os gregos, aquele que responde ao desejo ou aquele que exerce o poder, o que é que, no entanto, está em jogo na vontade de verdade, na vontade de o dizer, de dizer o discurso verdadeiro – o que é que está em jogo senão o desejo e o poder? O discurso verdadeiro, separado do desejo e liberto do poder pela necessidade da sua forma, não pode reconhecer a vontade de verdade que o atravessa; e a vontade de verdade que há muito se nos impôs e tal, que a própria verdade – que a vontade de verdade quer – mascara a vontade de verdade. Por tudo isso, os nossos olhos só veem uma verdade que é riqueza, fecundidade, força doce e insidiosamente universal. E, ao invés, não vemos a vontade de verdade enquanto prodigiosa maquinaria destinada a excluir.

A verdade de Oranice Franco mascara a sua vontade de verdade. Não se

trata apenas de formar as crianças. Trata-se de exercer o controle sobre elas. Por

isso, os conselhos do Tio Janjão envolvem questões as mais diversas possíveis: o

tipo de roupa que os pequenos devem usar, a alimentação que devem receber, o

comportamento com as visitas, com os colegas, na escola e em casa. Enfim,

diferentes regras de comportamento que devem estar presentes no convívio escolar

e familiar. Pais e professores veem, nas histórias contadas, apenas ensinamentos

úteis aos filhos e alunos. O próprio caráter doutrinador é visto como algo positivo, e

não como ausência de espírito crítico e observador. Os pontos de vista sobre os

papéis da mulher e do homem, sobre educação, jogos de azar, resignação e

obediência cega que permeiam todas as fábulas são vistos como verdades não

questionadas.

Tudo isso leva o programa Histórias do Tio Janjão a um nível de

aceitação que Tio Janjão começa a receber cartas de mães e educadoras, que,

literalmente, pedem ao escritor que as ajudem na educação dos filhos e alunos.

Analisando o acervo do escritor, é possível concluir que, na fase inicial do programa,

os conselhos eram gerais e não havia uma destinação mais específica, como

aconteceria meses depois. A fábula mais antiga do acervo, mostrada no ANEXO M,

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data de 09 de abril de 1953, três meses depois da primeira apresentação das

histórias no rádio, e traz o seguinte comentário do Tio Janjão:

Boa tarde, meus queridos sobrinhos. [...] Se fizerem algumas artes, acontecerá o seguinte: os seus pais ficarão aborrecidos, as suas professoras também... e também o Tio Janjão ficará aborrecido, muito aborrecido e não contará as suas histórias, as lindas histórias que vocês gostam. E sabem por quê? Porque elas são um prêmio para os meninos bonzinhos, para os meninos bem comportados, para os meninos que só dão alegria a todos. Perceberam? [...] (HISTÓRIAS DO TIO JANJÃO, 1953, p. 1).

Nos primeiros meses do programa, os conselhos foram praticamente os

mesmos. Tio Janjão falava aos ouvintes mirins, logo no início do programa,

reforçando os valores de respeito e obediência aos mais velhos, importância dos

estudos e do bom comportamento. No programa do dia 29 de setembro de 1953, Tio

Janjão leu uma carta que foi a ele endereçada e que comprova a sua influência

sobre as crianças da época:

[...] E eu estou muito satisfeito com o sobrinho Joel Alves, que mora em Novo Horizonte. Diz ele em sua carta: ‘Tio Janjão, eu moro muito longe da cidade – 4 quilômetros e aqui não tenho coleguinhas no sítio onde moro e preciso ir sozinho à escola – e vou a pé, tio Janjão, pois não tem condução – e eu antigamente não queria mais estudar estava cansado de andar todos os dias 8 quilômetros para ir e voltar. Mas depois, ouvindo as histórias do tio Janjão criei mais coragem e estou estudando muito’. É isso mesmo, meu querido sobrinho José Alves. Faça o sacrifício de andar os 8 quilômetros diários, pois, mais tarde, você será recompensado, não é mesmo? Um menino que faz tantos sacrifícios para estudar mais tarde vai ser recompensado na vida. Disso eu tenho certeza (HISTÓRIAS DO TIO JANJÃO, 1953, p. 2).

Esse é um exemplo, entre muitos, de como o programa era uma

referência para as crianças, atraindo a simpatia e aprovação de pais e professores.

A ascendência do Tio Janjão sobre as crianças aumentava a cada programa. Os

conselhos iam ficando mais direcionados, inclusive com algumas broncas dirigidas

aos meninos que falam mentira, chupam dedo, andam descalços, fazem manhas.

Ele também fez algumas ameaças aos “sobrinhos” e “sobrinhas”, comentando que o

Tio Janjão sabia tudo o que estava acontecendo com eles, seja de certo ou de

errado, mas, a princípio, não revelava que recebia cartas dos pais e professores. Em

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um programa que foi ao ar no dia 13 de janeiro de 1955, Tio Janjão iniciou, assim, a

narrativa:

Boa tarde, meus queridos sobrinhos. Muito boa tarde. Como vão passando todos vocês, de saúde e de comportamento? Ah, eu sei que a maioria dos sobrinhos vai bem; sei, também, que há uns sobrinhos, poucos felizmente, que não andam, em absoluto, procedendo bem. Ah, como é que eu sei? Bem, isso eu não conto. A verdade é que sei. E tanto é assim que quero chamar a atenção de alguns desses peraltas. Não vou dizer os nomes deles, mas espero que eles se emendem. Pois, do contrário, eu direi o nomes deles. Nomes e endereços direitinho mesmo, para que todos fiquem sabendo que são eles. Comecemos: vou dizer apenas os nomes das ruas, só para que fiquem sabendo que o Tio Janjão sabe mesmo. Vamos aos fatos: na rua Senador Fonseca, em Jundiaí, S. Paulo, existe um sobrinho de 7 anos, que merece ser felicitado, pois passou para o segundo ano com média 90. Mas esse sobrinho tem umas coisas que põem o tio Janjão triste. Não é cuidadoso e não gosta de comer. Você precisa ter mais cuidado com seus objetos e, principalmente, comer bastante para crescer livre de doenças e ficar forte feito um Tarzan (HISTÓRIAS DO TIO JANJÃO, 1955, p. 1).

Os conselhos e as histórias têm um caráter pedagógico e disciplinador.

Oranice é o autor do texto. Ele é quem controla o que vai ou não ser dito. Segundo

Foucault (1971, p. 9), não se deve entender o autor como aquele que profere ou

escreve um texto, “mas como princípio de agrupamento do discurso, como unidade

e origem das suas significações, como lastro da sua coerência”. Na perspectiva do

filósofo, esse princípio não se apresenta da mesma forma em qualquer lugar e de

forma constante. Há discursos anônimos, do dia a dia, cujo autor não se pode

definir. Havia no discurso científico, na Idade Média, a exigência sobre a

identificação do autor para dar ao discurso os ares de verdade. Já na ordem do

discurso literário, a partir do séc. XVIII, a função do autor cercou-se de novos

aspectos.

[...] pretende-se que o autor dê conta da unidade do texto que se coloca sob seu nome, pede-se que revele, ou que pelo menos traga no seu íntimo, o sentido escondido que os atravessa, pede-se que os articule, com a sua vida pessoal, com as suas experiências vividas, com a história que os viu nascer. O autor é o que dá, à inquietante linguagem da ficção, as suas unidades, os seus nós de coerência, a sua inserção no real (FOUCAULT, 1971, p. 9).

E continua:

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Seria absurdo, claro, negar a existência do indivíduo que escreve e que inventa. Mas eu penso – e isto pelo menos a partir de certa época – que o indivíduo começa a escrever um texto, no horizonte do qual gira uma obra possível, retoma à sua conta a função do autor: o que escreve e o que não escreve, o que desenha, mesmo a título de rascunho provisório, como esboço da obra, aquilo que ele deixa e que sai como as palavras do dia a dia, todo esse jogo de diferenças é prescrito pela função autor, tal como ele a recebe da sua época, ou tal como, por sua vez, a modifica. Pois ele pode muito bem perturbar a imagem tradicional que se tem do autor, é a partir de uma nova posição do autor que ele recortará, em tudo aquilo que ele teria podido dizer, em tudo aquilo que ele diz todos os dias, a todo o instante, o perfil ainda oscilante da sua obra (FOUCAULT, 1971, p. 9).

Franco exerce sua função de autor de maneira tradicional. Ele se

estabeleceu como autor seguindo os moldes literários, culturais e ideológicos de seu

tempo e as exigências da emissora de rádio na qual trabalhou. Oranice foi educado

de maneira tradicional e desenvolveu seu trabalho para que fosse coerente com o

que se esperava do Tio Janjão. Em momento algum, ele “perturba a imagem

tradicional que se tem do autor”. Ao contrário, suas narrativas se adaptam à

sociedade da época. Suas histórias são feitas a partir de escolhas de palavras,

vocabulário, termos diários, cujo endereçamento é a orientação do pequeno ouvinte.

Exercendo seu papel de autor, Franco continuava a atrair mais ouvintes e

admiradores. As cartas destinadas ao Tio Janjão não paravam de chegar à Rádio

Nacional. O volume de cartas chegava a um ponto que o escritor se desculpava por

não conseguir responder a todas elas, ficando restrito apenas à leitura delas. A FIG.

5 traz uma notícia do jornal A Noite, que comprova o recebimento das cartas. A nota

jornalística denota, com clareza, a “utilidade” do programa, quando afirma que

Franco escreve essencialmente para distrair as crianças, mas que a influência que

exerce nas crianças é de tal maneira que contribui, de modo efetivo, para a

formação moral dos pequenos ouvintes.

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FIGURA 5 – Nota sobre as cartas recebidas Fonte: A Noite, 01/02/54, edição 14621, p. 5.

A FIG. 6 é um recorte de jornal encontrado no acervo do escritor

informando sobre o volume de cartas recebidas. Trata-se de uma entrevista dada

por ele e por Álvaro Aguiar quando planejavam o lançamento do disco em dezembro

de 1955.

FIGURA 6 – Número de cartas mensais Fonte: A Noite, 1955, edição 15.191, p. 2.

A FIG. 7 apresenta uma carta que foi publicada no jornal A Noite e que

sintetiza o sentimento que as mães tinham em relação ao programa infantil da Rádio

Nacional.

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FIGURA 7 – Carta de uma mãe ao Tio Janjão Fonte: A Noite, 1955, s/p.

Logo no início da carta, chama a atenção o fato de ter sido citado o nome

da mãe acompanhado do nome do esposo. A mãe escreve a carta, mas é

referenciada mediante o nome e a profissão do marido. A mulher, nessa época,

limitava-se, com poucas exceções, a ser dona de casa ou professora. Essa visão da

mulher ia se repetir nas Histórias do Tio Janjão. Pode-se afirmar que, na grande

maioria de todas essas histórias, a mulher apresenta como características a

bondade, a compreensão e o dom de perdoar infinitamente os erros que eles

venham a cometer. A redação do jornal alia-se à mãe escrevente acrescentando, na

mesma notícia, que o programa faz verdadeiros “milagres”, curando defeitos morais

ou psicológicos. A Rádio Nacional, o Tio Janjão e o jornal A Noite reconhecem a

ascendência do programa frente à vida infantil da época.

Não só as cartas ratificam o sucesso do programa. Várias bibliotecas de

escolas primárias receberam o nome de “Tio Janjão”. Em maio de 1953, o Grupo

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Escolar “Miguel Couto” de Divinópolis, Minas Gerais, escolheu o Tio Janjão como

patrono do ano da biblioteca escolar. Depois, em 1955, ele foi novamente escolhido

como patrono da biblioteca da mesma escola. Em 1954, o nome do Tio Janjão foi

sugerido pelos próprios alunos para compor a lista de possíveis nomes para o Clube

de Leitura do Grupo Escolar “Antônio Carlos”, em Inhapim, Minas Gerais. Tio Janjão

venceu com boa diferença os outros candidatos. No mesmo ano, o Grupo Escolar

“Pedro Vaz”, de Lima Duarte, cidade natal de Oranice Franco, também lhe prestou

uma homenagem, elegendo-o como patrono da Biblioteca Infantil da escola.

O autor desenvolveu um diálogo entre o Tio Janjão e os pequenos

ouvintes, quando produzia as fábulas para o programa de rádio, mandando recados

para as crianças, reprimindo-as ou parabenizando-as. Depois, Oranice Franco

manteve, em seus livros, o mesmo diálogo que estabeleceu com os ouvintes da

Rádio Nacional. Nos livros, encontram-se traços da oralidade da época do

programa. No final do livro A Festa do Grilo (1977), o autor escreve:

Bem, agora um segredo, que deve ficar entre nós. Nada de ir contar ao Grilo, hem? O Leão ficou muito entusiasmado com a atitude do Grilo, vendo-o tão desprendido, tão popular, e confidenciou a alguns elementos de sua corte: - Estou precisando de um auxiliar assim. Já estou cansado e a cada dia mais me pesa esta coroa de rei. Mas... boca fechada, meus queridos leitores! O Grilo só deve saber o que o Rei Leão disse a seu respeito dentro de poucos dias, quando fizer aniversário. Quem sabe nosso Grilinho, dentro em breve, se veja transformado em... Príncipe? Eu não duvido nada (FRANCO, 1977, s/p).

Com esse recurso, o autor consegue inserir os leitores dentro da

narrativa, criando um vínculo que propicia a melhor assimilação dos ensinamentos

que deseja transmitir. Ele atrai a atenção das crianças para o livro da mesma forma

que atraiu a atenção dos ouvintes para as histórias da Rádio Nacional.

No acervo de Oranice Franco, encontram-se seis volumes (FIG. 8)

contendo grande parte das fábulas que foram contadas no programa do Tio Janjão.

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FIGURA 8 – Seis volumes das Histórias do Tio Janjão Fonte: acervo de Oranice Franco.

As histórias foram encadernadas em capa dura com a inscrição “Histórias

do Tio Janjão”, além da numeração das narrativas contidas em cada volume. As

primeiras histórias estão numeradas a lápis pelo próprio escritor e não

correspondem à ordem exata em que foram apresentadas. Assim, a primeira história

do Volume 1 não é a primeira que foi contada na emissora de rádio. Apenas nos

volumes seguintes é que essa numeração corresponderá à ordem de apresentação.

O QUADRO 2 é um resumo do conteúdo dos seis volumes que fazem

parte do acervo de Oranice Franco.

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QUADRO 2 – Resumo dos volumes das Histórias do Tio Janjão

Volume

1

09/04/53

a

14/07/53

Volume

2

16/07/53

a

09/10/53

Volume

3

13/10/53

a

04/02/54

Volume

4

09/02/54

a

08/07/54

Volume

5

13/07/54

a

04/01/55

Volume

6

06/01/55

a

14/07/55

TOTAL

Número de

histórias 27 25 34 43 47 56 232

Enviadas por

crianças 0 0 01 16 19 17 53

Clássicos

infantis 0 01 04 04 04 06 19

Dupla:

Tonico e

Peixoto

0 0 03 01 04 07 15

Repetidas 0 0 0 0 04 11 15

Personagens

não mudam

a atitude

02 0 0 0 0 0 02

É possível verificar a existência de grande quantidade de histórias

produzidas, bem como um número expressivo de crianças que também enviaram

narrativas próprias para serem lidas no programa. Os dados numéricos contidos no

QUADRO 2 serviram de suporte para que se chegasse a uma melhor compreensão

sobre o desenvolvimento do programa no decorrer dos três anos de sua

comprovada duração.

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2.3.1 O primeiro volume

As vinte e sete fábulas contidas no primeiro volume do material de Franco

mostram uma produção original. O APÊNDICE A traz um quadro-resumo desse

volume. Não há histórias repetidas, nem enviadas por “sobrinhos” e nem simples

repetição dos clássicos infantis. Dessas fábulas, quatro se transformaram em livros.

A fábula, O papagaio mentiroso, transformada em livro com o título de Niquinho,

apresenta mudança apenas de personagem: o papagaio da primeira história

transforma-se em um menino na segunda, mas o enredo permanece o mesmo.

Outra história, O peixinho arteiro e o livro de mesmo nome possuem aspectos

semelhantes entre si, com pequenas variações no enredo, conservando, entretanto,

os ensinamentos sobre não desobedecer aos pais e sobre ser estudioso.

A primeira história do primeiro volume, O pica-pau apaixonado, contém

indícios do tipo de produção que será exibida. A fábula é sobre um filhote de pica-

pau que não picava pau, causando brigas entre seus pais. Diz o pai pica-pau para a

esposa: “A culpa é sua. Criou esse menino cheio de mimos. E agora, viu no que

deu?” (FRANCO, 1953, p. 2) Mais adiante, o autor diz que a mãe do pica-pau era

boazinha como todas as mães e tentava acalmar o marido com medo que ele fosse

mais enérgico com o filho. Reações típicas da década de 1950, na qual as mulheres

trabalhavam em casa, cuidando dos filhos, e os maridos eram os provedores da

família. A carta enviada por uma mãe à Radio Nacional, presente na FIG. 7, fornece

uma pequena amostra da abordagem feminina da época. Essa postura encontra-se

presente em várias outras histórias. A mãe sempre é apresentada como uma pessoa

boa, compreensiva, pronta para perdoar infinitamente, sendo responsável pela

educação dos filhos. Os pais, quando aparecem, corrigem os filhos de forma mais

enérgica, ou dão exemplos, ou ensinam alguma profissão, atitudes não adequadas à

figura feminina.

A fábula O beija-flor que não beijava flor (1953) possui enredo

semelhante: um filho que não segue os conselhos e a profissão do pai, causando

conflitos na família. Entretanto, ao final, o filho desobediente adapta-se à sua

condição natural e, assim, mantém a família unida e feliz. A maioria das histórias

desse volume trata da importância do trabalho, do estudo e da obediência aos pais e

professores e do valor da verdade.

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Escrevendo para um público infantil, Franco adota uma postura

reveladora da concepção que se tinha sobre infância na época. A criança era vista

como um ser frágil, que precisa ser vigiado, ensinado, disciplinado. Mas nem sempre

a infância foi concebida dessa forma. Philippe Ariès (1986) esclarece que na

sociedade medieval o sentimento da infância não existia, não significando que as

crianças eram desprezadas ou negligenciadas, e sim que as particularidades da

infância não eram reconhecidas. Assim que a criança não dependia mais da mãe ou

da ama, ela ingressava no mundo adulto, não se distinguindo dele. A criança muito

pequena, que ainda não podia ser incorporada ao mundo adulto, não “contava”, tão

grande era a taxa de mortalidade nessa fase. A partir do século XVII, os adultos

começaram a se divertir com as crianças e aparentavam não ter problemas em

admitir o prazer que elas lhes proporcionam. Os adultos leem para os pequeninos,

brincam com eles e começam a se importar quando um deles morre.

Esse sentimento da infância pode ser ainda melhor percebido através das reações críticas que provocou no fim do século XVI e, sobretudo, no século XVII. Algumas pessoas rabugentas consideravam insuportável a atenção que se dispensava então às crianças: sentimento novo também como que o negativo do sentimento da infância a que chamamos de ‘paparicação’ (ARIÈS,

1986, p. 159).

Algumas pessoas diziam que as crianças não mereciam atenção, que era

ridículo vê-las fazendo qualquer tipo de gracinhas e que só os pais viam algo de

bom nisso. Os moralistas e educadores do século XVII tinham verdadeira

repugnância pela “paparicação”. Esse novo sentimento existia tanto nas classes

superiores como nas classes mais populares.

Entre os moralistas e educadores é que apareceu o outro sentimento da

infância: o interesse psicológico e a preocupação moral com as crianças. Era preciso

conhecer a mente da criança para melhor adaptar o nível dela aos métodos de

educação. A preocupação era fazer das crianças pessoas honradas e homens

racionais. O primeiro sentimento, a paparicação, surgiu no meio familiar. O segundo

veio por intermédio dos eclesiásticos ou homens da lei, que se preocupavam com a

formação moral da criança, aspecto negligenciado até então. Recusavam-se a ver

as crianças como brinquedos encantadores, mas como frágeis criaturas de Deus,

que precisavam ser preservadas e disciplinadas. Esse sentimento passou para a

vida familiar, sendo perpetuado nos séculos seguintes.

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O modo de se compreender a criança, encontrado nas fábulas de Franco,

reflexo da sociedade dos anos de 1950, aproxima-se do segundo sentimento da

infância. Era preciso tratá-la de forma diferente. Entender o mundo dela, aproximar-

se dele e, a partir daí, ensiná-la os valores morais. O entendimento sobre a criança e

sobre a educação que ela deveria receber aparece exemplificado no início da

história contada em 07 de julho de 1953. O locutor faz a propaganda da Casa

Valentim, patrocinadora do programa Histórias do Tio Janjão, e acrescenta:

[...] Contar histórias... acariciar o coração da infância, fazer desabrochar o sorriso da criança triste, como se descobríssemos o perfume escondido no recesso de uma flor... Alimentar a semente do futuro homem. Na semente mora a figura geométrica da futura árvore. Na criança vive o semblante do homem do futuro. Alimentá-lo de sentimentos puros é construir o homem novo para o Brasil. Este é o nosso sonho. Torná-lo realidade, o nosso anseio. A luz do nosso sonho iluminado pela realidade dos nossos anseios concretizará por certo a grandeza do Brasil (HISTÓRIAS DO TIO JANJÃO, 1953, p. 1).

Tio Janjão, a Rádio Nacional e a Casa Valentim tinham pontos de

convergência em relação à educação das crianças. Tio Janjão preocupava-se com a

educação moral das crianças, consideradas como seres inocentes, aos quais se

deveriam dedicar atenção e vigília constantes. A emissora de rádio fazia sua parte

como veículo de comunicação, incentivando a audição de programas educativos. Já

a Casa Valentim unia-se aos dois, para obter maior visibilidade diante do público

ouvinte. A patrocinadora do programa chegou a criar concursos com prêmios para

incentivar a leitura e escrita dos pequenos ouvintes. Em 1954, um dos concursos

consistia em escrever sobre um dos vultos nacionais, previamente selecionados e

divulgados pela emissora. O primeiro prêmio foi uma bolsa de estudos para o curso

ginasial completo, em qualquer estado do Brasil ou no Distrito Federal, em regime

de externato, internato ou semi-internato. O menino que ganhou o primeiro prêmio

escreveu para o Tio Janjão agradecendo a ele e à Casa Valentim pela premiação. A

patrocinadora financiou o prêmio, mas o agradecimento foi tanto para ela como para

o Tio Janjão, que não teve participação direta no concurso a não ser incentivar as

crianças para que escrevessem sobre os vultos nacionais.

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2.3.2 O segundo volume

O segundo volume do acervo, APÊNDICE B, é composto por vinte e cinco

fábulas. O tratamento dado às mães continua o mesmo. Elas são dedicadas,

atenciosas e cuidam da casa e dos filhos. Os ensinamentos das histórias giram em

torno dos mesmos enfatizados no primeiro volume. Algumas histórias tratam do

repúdio à preguiça, às fofocas e à gula. A partir da história de número 46, há a

correspondência exata entre o número do programa e a numeração a lápis feita por

Franco. Parece que o autor quis compor os volumes e como não tinha as primeiras

histórias encaixou outras, em ordem cronológica, mas que não correspondiam à

ordem de apresentação na Rádio Nacional.

A história 29, A girafa de pescoço curto, é a única que faz referência a

Deus. Em nenhuma outra, há qualquer menção a Deus ou à religião. Tendo uma

girafinha nascido com o pescoço curto, vivia triste e queria morrer. A mãe falava

para ela se conformar com a sorte que Deus lhe dera, pois Ele é perfeito e faz tudo

certo mesmo que as pessoas não entendam. No decorrer da narrativa, uma grande

seca atinge a floresta e o pai da girafinha diz que a melhor solução é ir para um

zoológico, pois lá os homens cuidam dos animais, os quais não têm que se

preocupar com mais nada. Não precisam trabalhar para comer e têm água e comida

com fartura. Franco, ao enfatizar o lado positivo dos zoológicos, ratifica a pouca

preocupação na época sobre a questão de animais presos em cativeiro. O próprio

animal selvagem é que deseja ir para o zoológico, trocando, sem o menor problema,

a liberdade por comida e abrigo. A consciência ecológica não havia atingido o nível

de hoje. Então, esse tipo de narração se adéqua ao pensamento da época.

Na história que foi ao ar no dia 09 de outubro de 1953, Aguiar diz que as

crianças podem escrever pedindo para que ele conte histórias conhecidas, como

Chapeuzinho Vermelho, que foi contada nesse dia. Não há como saber se o

acúmulo de funções exercidas por Franco dificultou a escritura de duas fábulas por

semana ou se isso foi uma cartada da emissora para manter a audiência ainda não

ameaçada pela presença da televisão.

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2.3.4 O terceiro volume

Trinta e cinco histórias fazem parte do terceiro volume, APÊNDICE C, e

foram contadas entre outubro de 1953 e fevereiro de 1954. A fábula A macaquinha

sapeca, provavelmente, obteve grande aceitação das mães da época, refletindo o

conceito que as pessoas tinham sobre o comportamento feminino e sobre as

mulheres ideais para o casamento. A história é sobre uma macaquinha que só

queria se pintar e ir a bailes. A mãe da macaquinha, desconsolada, se queixava:

“Essa geração de hoje só pensa em bailes. No meu tempo, a gente se divertia, é

claro, mas não tanto como hoje. Só depois de ajudar em casa, de trabalhar muito, é

que a gente ia aos bailes” (FRANCO, 1953, p. 2). Indiferente ao que a mãe pensa, a

macaquinha vai aos bailes, dança com todos e despreza um admirador, um

macaquinho bom, trabalhador e estudioso. Ela se envolve com um jovem macaco,

que tem um carro, e fala com ele sobre apresentá-lo à família dela. O jovem

responde que não tem o menor interesse em ter compromisso e que jamais se

casaria com ela, explicando:

[...] Eu acho que você [a macaquinha] é ideal para a gente sair, ir aos bailes, passear de automóvel. Mas, para casar, nunca. [...] Você não serve para casar comigo. Eu, para casar, quero alguém que saiba cozinhar, saiba cozer, não frequente bailes, como você, que acorde cedo... (FRANCO, 1953, p. 8)

Além disso, o macaco revela que o apelido da macaquinha entre todos é

“sapeca” devido ao seu comportamento. No final da narrativa, a macaquinha se

arrepende, aprende a cozinhar, a costurar, enfim, torna-se uma pessoa apta ao

casamento, que acaba acontecendo com o antigo admirador. O conteúdo da

narração está de acordo com o que se esperava de uma mulher da época. Ela

deveria ser recatada, prendada, sabendo desempenhar todas as funções de uma

dona de casa. O Decreto-Lei 8.529 (BRASIL, 1946a), ao tratar do ensino primário

supletivo, diz que os ensinos de Economia Doméstica e Puericultura deveriam ser

ministrados apenas para o sexo feminino, sinalizando para a separação entre as

funções femininas e masculinas dentro da sociedade da época. A própria legislação

reafirmava o lugar da mulher na sociedade. Tamanha aceitação obteve esse tipo de

narrativa, que, dois meses depois, Oranice escreveu outra história, com o conteúdo

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muito semelhante: A sapinha sapeca, que reforça os adjetivos que uma “moça

direita” deve possuir, a fim de realizar um bom casamento.

Os representantes masculinos dessas e de outras fábulas são

apresentados em dois grupos. O primeiro é formado pelos estudiosos, artistas e

poetas, possuindo uma série de adjetivos que os tornam exemplos de

comportamento. O segundo é formado por aqueles que não têm boas qualidades,

mas as adquirem com o decorrer dos fatos e tornam-se tão exemplares quanto os

do primeiro grupo. A maioria quase absoluta dos títulos envolve personagens do

sexo masculino. Poucos títulos são direcionados às personagens femininas, cuja

atuação fica reduzida àquilo que se espera delas. As representantes femininas de

todas as histórias não são poetas, como o Ratinho Poeta, e nem cantoras, como o

Urubu Cantor. Ou são mães exemplares, ou são mocinhas que se casam depois. Se

não estudam, isso não lhes traz prejuízo algum. Não são punidas por não se

dedicarem aos estudos. São punidas por não desempenharem o papel que se

espera delas. A macaquinha foi punida por ser sapeca e por não saber cozinhar e

costurar, e não por não gostar de estudar. O “defeito” que as personagens femininas

apresentam é de gostarem de bailes, não obedecerem às mães, não terem

autoestima como na história da girafinha mencionada nos parágrafos anteriores.

Nenhuma das personagens do sexo feminino tem uma profissão a não ser a de

professora. Em todas as narrativas produzidas por Franco, o magistério é exercido

exclusivamente por mulheres, característica do ensino primário da época, cujos

alunos eram os ouvintes do programa. Nas narrativas, são as mulheres que ficam

viúvas. Nenhuma delas morre, deixando qualquer responsabilidade para os pais. Em

O Cavalo do Rei (1954) e O burrinho trapaceiro (1954), os pais morrem, mas a

educação dos filhos continua a cargo das mães, que sobrevivem para verem os

filhos modificados positivamente.

Ainda nesse volume, encontra-se uma história que apresenta um aspecto

novo: a presença de uma dupla de personagens que irá aparecer em mais quatorze

histórias. Trata-se da dupla o Ratinho Tonico e o Gato Peixoto. A primeira história,

contada em dezembro de 1953, narra como os dois personagens se conheceram,

brigando inicialmente, mas ficando amigos depois. A partir dessa história, os

personagens aparecerão em outras, ora brigando, ora demonstrando carinho um

pelo outro. Em algumas narrativas, surge a figura de um cachorro chamado

Telêmaco. Oranice Franco faz pequenas ligações de uma nova história com a

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anterior, atraindo a atenção das crianças para personagens já conhecidos. A terceira

história da dupla, irradiada em fevereiro de 1954, evidencia como Oranice

desenvolve o elo entre as narrativas.

O ratinho Tonico, sempre muito esperto, vivia zombando do gato Peixoto, sempre um pouco bobinho. Da última vez o ratinho prometeu que não ia fazer nenhuma brincadeira com o gatinho, mas depois, com o passar dos dias, esqueceu sua promessa, pensando: a minha vida está muito enjoada. Eu não tenho nenhuma distração depois que eu fiz as pazes com o Gato Peixoto. Eu vou tornar a amolá-lo (FRANCO, 1954, p. 2).

Em março de 1954, o mesmo recurso foi usado retornando os fatos

ocorridos e facilitando o entendimento da nova narrativa:

O ratinho Tonico e o gato Peixoto são dois velhos amigos... algumas vezes, dois velhos inimigos. Algumas vezes, fazem as pazes e passam a viver muito bem, um com o outro; algumas vezes, no entanto, se desentendem e viram fera um com o outro. Vamos encontrá-los brigados, definitivamente brigados (FRANCO, 1954, p. 2).

Nova ligação de histórias foi feita em 13 de julho de 1954. Escreveu

Franco:

Como os meus sobrinhos já bem conhecem, devido às outras histórias, o Ratinho Tonico vive sempre às voltas com o Gato Peixoto. Ora estão de bem, ora estão de mal, na imensa fábrica de queijo em que ambos vivem. Vamos encontrá-los brigados, com o gato correndo atrás do ratinho (FRANCO, 1954, p. 2).

Essas histórias guardam alguma semelhança com o famoso desenho

Tom e Jerry, criado nos anos de 1940 e dirigido por William Hanna e Joseph

Barbera, mestres da animação na época. Em ambas as produções, há um gato, um

rato e a presença eventual de um cão. Os personagens se envolvem em diversas

aventuras, mas, na maioria delas, o ratinho é mais esperto e engana o gato.

O burrinho trapaceiro (1954) é outra história que deve ter agradado muito

os pais da década de 1950. Trata-se de uma fábula que adverte todos, não só as

crianças, sobre os perigos dos jogos de azar. Nessa história, o burrinho convence

um amigo a apostar a própria bicicleta num jogo de dados, mas trapaceia e ganha o

jogo. Com o desenrolar da história, a mãe do burrinho, viúva, se vê diante da

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possibilidade de ficar sem a casa para pagar uma dívida de jogo contraída pelo

falecido marido. O burrinho se arrepende, devolve a bicicleta e acaba conseguindo o

perdão da dívida do pai. Após o término da história, Tio Janjão aconselhou:

Vocês, meus queridos sobrinhos, não devem, pois, nunca jogar... Há tantos divertimentos bons e sadios pra vocês, que fazem bem ao corpo e divertem tanto, não é mesmo? Assim, quando quiserem jogar com vocês, ou quiserem apostar alguma coisa – vocês digam que não, que seus pais não gostam e o tio Janjão menos ainda (FRANCO, 1954, p. 12).

A advertência contra o jogo continuou no programa que foi ao ar em 23 de

setembro de 1954. Ao final da história, Tio Janjão falou para as crianças:

Viram, meus sobrinhos? Viram como é feio o jogador? Não se deve jogar nem de brincadeira, nem a valer bala ou bola de gude. Há tantos jogos – o vôlei, o basquete, as corridas, o ping-pong, dezenas e dezenas de jogos interessantes, próprios para meninos e meninas. Jogos que ajudam o desenvolvimento físico, que fazem bem à saúde, não é mesmo? Mas nada de praticar um desses jogos a valer, ouviram? (FRANCO, 1954, p. 10)

O Decreto-Lei nº 9.215, de 30 de abril de 1946 (BRASIL, 1946b), proibiu a

prática ou exploração dos jogos de azar em todo o território nacional, considerando,

entre outras justificativas, que tais jogos são nocivos à moral e aos bons costumes.

A Rádio Nacional, veículo de comunicação que possuía uma programação familiar

para os seus ouvintes, se expressou contra o jogo por uma questão moral e também

por fazer parte do governo. Então, uma fábula contra o jogo está de acordo com o

que se espera de um programa educativo. As fábulas clássicas se preocupavam

mais em mostrar como a realidade do mundo se apresenta e como os homens se

comportam diante das mais diferentes situações. Oranice Franco está preocupado

em ser o mentor das crianças. O bem sempre tem que prevalecer. A personagem

pode errar, mas ela sempre se corrigirá e se tornará melhor. O jogo levou um

menino a perder uma bicicleta e um pai de família a quase perder a própria casa. A

mensagem é direta: ninguém, criança ou adulto, deve se envolver com o jogo.

O jornal A Noite traz, desde 1950, notícias sobre a campanha contra o

jogo, feita pelo governo, e sobre a prisão de contraventores ligados aos jogos de

azar. Mais uma vez, emissora e jornal adotam a mesma conduta na preservação dos

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valores morais. A edição 14.326, de 12 de fevereiro de 1953, sintetiza o pensamento

do referido jornal em relação ao jogo:

No dia seguinte ao seu aparecimento, já o chamado ‘Jogo do Bicho’ começa a ser perseguido pela polícia. No entanto, ainda hoje, ele, com o seu fôlego de sete gatos, continua a existir brilhantemente apesar das contemporâneas e ferozes campanhas, que contra o mesmo já tem movido as autoridades públicas, apoiadas pela imprensa (A NOITE, 1953, p. 4).

A FIG. 9 traz uma manchete de primeira página, enfatizando o combate

ao jogo:

FIGURA 9 – Manchete: Campanha contra o jogo Fonte: A Noite, edição 14.933, p. 1.

O programa que foi ao ar em 14 de janeiro de 1954 aponta para mais um

recurso que a direção da Rádio Nacional utilizou para manter a audiência e/ou

minimizar o volume de trabalho de Franco. Aguiar anunciou que, a partir daquela

data, as crianças poderiam escrever histórias, sendo que as melhores seriam lidas

na Rádio. Assim, uma vez por mês, haveria apresentação das histórias das crianças

e, em outra oportunidade, seria narrada uma história extraída dos clássicos infantis.

Quinze dias depois desse anúncio a primeira história enviada por uma “sobrinha” foi

ao ar com o título de O pintinho infeliz. Entretanto, os próximos volumes de fábulas

iriam comprovar que a apresentação desses dois tipos de histórias ultrapassou a

quantidade de uma vez por mês.

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2.3.4 O quarto volume

O quarto volume contém quarenta e três histórias e o quadro-resumo

desse volume encontra-se no APÊNDICE D. Nos cinco meses relativos a esse

volume, dezesseis histórias foram enviadas pelas crianças e quatro retiradas dos

clássicos infantis, excedendo o número divulgado por Aguiar sobre a narração

dessas histórias.

Nesse volume, encontra-se a história A ovelhinha preta, que, se fosse

contada nos dias de hoje, possivelmente, criaria grande polêmica e Franco poderia

até ser acusado de racismo. A narrativa é sobre uma ovelhinha que era negra e vivia

aprontando na escola e em casa. A professora, cansada de aconselhar, coloca a

ovelhinha de castigo por ela haver pintado o muro da escola, dizendo que ela não

deveria ser uma ovelha negra no meio das brancas. Ofendida por ter sido chamada

de negra, que era realmente a cor dela, a ovelhinha se pinta de branco, com cal, e

quebra a vidraça da escola. A professora vê o que acontece, mas não reconhece a

ovelhinha. As duas discutem e a professora diz:

Minha filha, você precisa estudar mais. Chamar uma ovelha de ovelha preta não quer dizer que ela seja preta na cor. Está entendendo? É no caráter, no procedimento, no modo de agir. Você, branca como é, é uma ovelha preta. Assim, as criaturas também. Há homens brancos que são ovelhas pretas. E há homens pretos, retintos que nem carvão, que, no entanto, são ovelhas brancas, pela sua bondade, pela sua mansidão de coração (FRANCO, 1954, p. 9).

Frases do tipo “preto de alma branca” por muito tempo foram

consideradas como um elogio aos negros. Eles tinham a cor preta, mas, pelo

menos, havia algo de bom, a alma branca. Na época, isso poderia ser visto como

normal e não ocasionaria conflitos ou críticas. Mas uma história para crianças com

tal comentário, provavelmente, provocaria a rejeição de muitos pais e educadores

nos dias de hoje. Não se trata aqui de questionar o posicionamento de Franco, se

ele era ou não racista. Isso não é relevante. O que se deseja mostrar é como as

palavras usadas refletem a realidade de uma época específica, comprovando

novamente que as fábulas e os contextos social e cultural encontram-se

entrelaçados. O primeiro governo de Vargas tinha como objetivo, entre outros, criar

uma identidade nacional. Segundo João Henrique Zanelatto (2010), um projeto

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governamental de desenvolvimento e integração nacional usaria, entre outros

recursos, a valorização das figuras do índio e do negro como representantes da

nacionalidade brasileira. Entretanto, essa igualdade entre as raças estaria ainda

muito longe de se tornar uma realidade. Prova disso é a fábula citada, que retrata o

verdadeiro conceito que existia quanto à raça negra. A bondade e o caráter seriam

capazes de transformar uma pessoa negra em uma “ovelha branca”.

No meio da conversa com a professora, a ovelhinha passa mal por causa

da cal e é socorrida pela professora. A professora perdoa a ovelhinha e diz que as

mães foram feitas para perdoar; o mesmo acontecendo com as professoras, que são

outras mães. Intensifica-se, então, a visão comum sobre as mães e as educadoras

como símbolos do amor e compreensão sem limites.

Ainda no quarto volume, no programa que foi ao ar no dia 09 de março de

1954, Aguiar vai explicar que, a partir dessa data, seriam lidas duas histórias

enviadas pelas crianças devido ao aumento de cartas recebidas. A fábula O

coelhinho sovina, que foi ao ar em 13 de abril de 1954, transformou-se no livro A

festa do Grilo, em 1977, tendo como única alteração a substituição do coelho pelo

grilo. É o único livro de Oranice que contém duas histórias – A festa do Grilo e o

Velocípede Abandonado.

2.3.5 O quinto volume

O quinto volume, APÊNDICE F, apresenta quarenta e seis histórias,

distribuídas de julho de 1954 ao início do ano de 1955. Desse total, dezenove foram

enviadas por crianças, comprovando que o número de crianças que atendiam ao

chamado do Tio Janjão só aumentava. As cartas chegavam de diversos estados do

Brasil: São Paulo, Minas Gerais, Rio de Janeiro, Paraná e Espírito Santo e do

Distrito Federal, e representavam o alcance da Rádio Nacional e,

consequentemente, do programa Histórias do Tio Janjão.

Algumas histórias foram contadas anteriormente e voltaram a ser

contadas em 1954. A dúvida quanto ao motivo desse fato bem como do aumento de

fábulas enviadas por crianças e a narração dos clássicos infantis permanece. Não

parece ser o motivo, entretanto, ligado a uma suposta decadência do sucesso do

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programa, uma vez que, no jornal A Noite, Oranice continuava sendo elogiado e

reconhecido como o famoso Tio Janjão.

2.3.6 O sexto volume

Ao se analisar o sexto volume das Histórias do Tio Janjão, APÊNDICE F,

verifica-se que, das cinquenta e seis fábulas do volume, trinta e quatro não são de

Oranice Franco, e sim enviadas por crianças, retiradas dos clássicos ou são

repetições de narrativas já apresentadas. No ano de 1955, Franco continuou

fazendo sucesso como escritor do programa infantil, mas afastou-se do rádio em

agosto para passar por uma intervenção cirúrgica e em outubro começou a escrever

as Crônicas da Cidade diariamente. Os dois fatos talvez justifiquem a diminuição das

narrativas originais e a ausência de outros volumes contendo mais histórias.

Após o término da última fábula do sexto volume, o locutor deixou claro

que há mais histórias a serem contadas. “A Rádio Nacional acabou de apresentar o

programa de Oranice Franco ‘Histórias de Tio Janjão’ que voltará ao ar na próxima

terça-feira, às cinco e meia da tarde” (HISTÓRIAS DO TIO JANJÃO, 1955, p. 9).

Outra prova da continuidade do programa é a existência de mais duas

histórias não encadernadas. A primeira data de 30 de agosto de 1955 e corresponde

ao programa 241. Entretanto, está numerada a lápis, pelo próprio autor, como sendo

a 255, talvez manifestando o desejo de organizar o sétimo volume. A segunda

história, numerada a lápis como sendo 256, é de 1º de setembro de 1955, intitula-se

João de Barro Sabido e é uma repetição da fábula contada em 05 de maio de 1953.

A partir daí, as referências ao programa pelo jornal A Noite foram

diminuindo gradativamente. O referido jornal, nos meados de 1957, limitou-se

apenas a colocar as Histórias de Tio Janjão dentro da programação da Rádio

Nacional. Não há mais notícias exclusivas sobre Oranice Franco. A última referência

ao programa foi feita nesse jornal em dezembro de 1957, comprovando que o

programa continuou a ser apresentado, pelo menos, até essa data.

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2.3.7 Orana: apropriação e transformação das fábulas

A leitura das fábulas do acervo de Oranice Franco viabilizou descobrir que

o autor praticamente não buscou nas fábulas clássicas os temas para as suas

narrativas. Suas histórias são diferentes embora conservem os aspectos

fundamentais das fábulas clássicas.

Uma das fábulas de Oranice, O touro valentão (1954), transformada em

livro em 1973, apresenta um enredo similar à fábula de Esopo, O Leão e o Inseto.

Na fábula de Esopo, um inseto se aproxima de um leão e o desafia para uma briga

afirmando ser muito mais forte. O leão aceita o desafio. O inseto começa a ferroar o

leão, que, tentando pegá-lo com as garras, consegue apenas atingir a si mesmo,

ficando, assim, bastante ferido. Por fim, o inseto vence o leão e vai embora cheio de

orgulho, a fim de relatar seu grande feito para o mundo. Mas, na ânsia de voar para

longe e rapidamente espalhar a notícia, acaba preso numa teia de aranha.

Em O touro valentão, Oranice conta sobre o touro encrenqueiro, que vivia

batendo nos outros animais, pois considerava a si mesmo como sendo o melhor de

todos. O animal ignorava os diversos pedidos de sua mãe para que ele mudasse de

comportamento. Um dia, o touro desafiou todos os animais da floresta para brigarem

com ele. Um marimbondo aceitou o desafio. O Touro Valentão riu muito, mas logo

depois começou a receber várias ferroadas do inseto até desmaiar. O inseto dá uma

ferroada por cada animal que ele bateu e várias por ele não obedecer à própria mãe,

que era boazinha. No final, o touro fica manso e se torna um puxador de carro de

boi, e as crianças até subiam nele.

A ideia de ter um grande animal vencido por um inseto é a mesma, com

algumas variações. Em Esopo, o inseto provoca o leão, sem motivo algum, e o

desafia para uma briga. Vence o leão, mas é castigado por ser orgulhoso. Em

Oranice, o marimbondo vence o touro, mas o touro “merecia” ser ferroado, pois

gostava de bater em outros animais, além de ser orgulhoso e desobediente. Mas, no

final, o touro torna-se manso e passa a obedecer à mãe dele. Em Esopo, o

personagem não muda de comportamento: o inseto causou confusão com o leão

sem motivo e o orgulho o levou à morte. Em Oranice, a personagem tem a

oportunidade de modificar a atitude de forma positiva, abandonando o orgulho e,

principalmente, a desobediência aos mais velhos, defeito constantemente combatido

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nas fábulas de Franco. Reprovando esse e outros vícios, o autor evidencia o caráter

educativo de suas narrativas.

Outra fábula, intitulada O ratinho destemido (1954), possui uma

semelhança com a famosa fábula A assembleia dos ratos. Modifica-se por ter um

ratinho, Zequinha, que era muito estudioso e recebia crítica de todos por sua

dedicação aos estudos. Mas, quando foi preciso colocar o guizo no pescoço do gato,

ele foi o único que teve coragem e conseguiu realizar a façanha. Na fábula, as

variações são feitas, a fim de mostrar que a inteligência vale mais do que a força e

que as crianças devem sempre estudar, não se importando com o julgamento dos

outros.

O touro valentão (1954) e O ratinho destemido (1954) são as únicas

fábulas que guardam alguma correspondência com o tema das fábulas tradicionais.

A leitura das obras dos fabulistas clássicos tornou possível constatar que muitas

fábulas são repetições ou adaptações feitas pelos autores através dos tempos. À

exceção das fábulas do livro Kalila e Dimna, cujo conteúdo das histórias é bem

específico, as fábulas de Esopo, Fedro, La Fontaine e Monteiro Lobato se repetem.

Entretanto, mesmo com enredos semelhantes, as fábulas apresentam variações que

atendiam à época em que foram produzidas, conforme abordado no Capítulo 1.

As Histórias do Tio Janjão alcançaram sucesso e conquistaram toda uma

geração de pais, professores e pequenos ouvintes. Talvez, Franco tenha recebido

críticas por dedicar-se à literatura infantil, tantas vezes e por tantos, considerada

como arte menor ou subliteratura. Independentemente de possíveis críticas ou dos

comprovados elogios, as fábulas de Oranice Franco, além dos aspectos ideológicos

e pedagógicos que endossaram, permitiram conhecer um pouco mais sobre a época

em que foram produzidas.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

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O programa da Rádio Nacional, Histórias de Tio Janjão, de Oranice

Franco, além de ser uma forma de entretenimento, foi utilizado para transmitir os

valores morais às crianças, disciplinando-as e, ao mesmo tempo, auxiliando pais e

professores na educação dos filhos e alunos.

As fábulas de Oranice seguiam estilo constante: sempre se iniciavam com

o protagonista apresentando alguma falha: preguiça, orgulho, mentira,

desobediência. Com o desenrolar da história, ele era colocado em uma situação

agradável, que foi obtida por meio do próprio defeito. Depois, a situação se invertia e

o protagonista era colocado em risco. A partir daí, surgia a grande transformação e a

personagem tornava-se virtuosa. A personagem errava e recebia o castigo, tendo a

chance de se arrepender e mudar a atitude. Em O Cavalo do Rei (1954), o cavalinho

se torna orgulhoso e abandona os pais, mas, depois de muito sofrimento, volta para

casa e se torna um ótimo filho. Também, em O Porquinho Porco (1955), o porquinho

é desobediente e não gosta de tomar banho, mas, depois de quase ser engolido por

uma sucuri, transforma-se em um filho exemplar.

De todas as fábulas lidas diretamente do acervo de Franco, em apenas

duas os personagens não mudam de atitude, permanecendo no mesmo estado

original. A fábula O elefante bobalhão, contada na Rádio Nacional em abril de 1953,

é sobre um elefante que não aprende a ficar esperto mesmo passando por

dificuldades. Outra fábula, Chorão, o cachorro gordão (1953), relata sobre um cão

que só sabia comer e chorar, não fazendo nada para mudar sua situação. À exceção

dessas duas fábulas, em todas as outras, há uma modificação positiva de caráter

por parte dos protagonistas.

Embora a metamorfose das personagens seja frequente em Franco, isso

não afasta sua produção da estrutura da fábula clássica: uma pequena narrativa,

vivida por animais, representantes dos seres humanos, encerrada por uma

moralidade. Os clássicos intencionavam mostrar o que poderia acontecer com as

pessoas que cometiam erros. Se elas mudavam ou não de comportamento não

importava e, na grande maioria das vezes, essa mudança não acontecia. A

transmissão dos ensinamentos era o propósito principal da narrativa, que se servia

do binômio erro/castigo para alcançar tal meta. A personagem que se comportasse

de forma desonesta, adúltera ou mentirosa receberia o castigo e não conseguiria

triunfar.

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As fábulas indianas, as de Fedro e as de Esopo foram produzidas para

adultos. A relação entre erro e castigo aparecia muitas vezes de forma implícita, pois

a mensagem, transmitida nas entrelinhas, era compreendida sem esforço pelos

adultos. Em La Fontaine, Lobato e Franco, a relação entre castigo e erro necessitou

de uma abordagem mais explícita, uma vez que as narrativas eram direcionadas às

crianças.

Quando La Fontaine começou a fazer adaptações nas fábulas clássicas

com o intuito de destiná-las às crianças, pequenas alterações aconteceram na forma

e no conteúdo das narrativas. O verso foi o estilo escolhido e várias fábulas de

extensão reduzida receberam acréscimos do escritor francês, a fim de facilitar a

compreensão das crianças. Depois, Lobato valeu-se das mesmas fábulas

tradicionais para permitir que as crianças se posicionassem de modo crítico diante

das narrativas ouvidas. Franco criou fábulas originais para os pequenos ouvintes da

Rádio Nacional, as quais fizeram parte tanto do projeto político-cultural como do

projeto pedagógico da época.

A fábula foi utilizada, desde o seu surgimento, para transmitir

ensinamentos morais, e o seu conteúdo revelou, de forma velada ou explícita, o

comportamento de cada tempo. Todos os escritores aqui apresentados fizeram uso

da fábula para demonstrar como a realidade se apresentava em cada época,

deixando registrado o estilo de cada um. Percebe-se que, na feitura de uma fábula,

talvez considerada simples por alguns, o controle do discurso se faz presente.

Desde o início, escrever fábulas implicava certo número de regras que deveriam ser

seguidas, estabelecendo-se as condições para seu emprego. Foucault (1971) já

havia se pronunciado a respeito quando afirmou que, caso certo exigências não

fossem satisfeitas, ninguém poderia pertencer à ordem do discurso. Alguns locais do

discurso não seriam abertos a todos, restringindo-se a um grupo, e outros locais

somente dariam a impressão de estarem à disposição de quaisquer sujeitos.

Esopo, Fedro, La Fontaine, Lobato e Oranice tinham um lugar privilegiado

quando da redação de suas narrativas. Mesmo tendo sido colocados na condição de

escravos, Esopo e Fedro recebiam tratamento especial e tinham conhecimentos que

os diferenciavam dos outros da mesma classe social. La Fontaine, amparado por

nobres na corte francesa, pôde dedicar-se integralmente à escritura de suas fábulas.

Lobato transferiu para as suas fábulas o estilo polêmico e questionador que o seguiu

desde a infância. Franco, na Rádio Nacional, contou com um veículo de

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comunicação para favorecer ainda mais o seu lugar diferenciado de escritor. Então,

ele produziu suas narrativas escolhendo as palavras e o efeito que elas teriam sobre

as crianças, seguindo regras que ele, escritor, conhecia. Mesmo quando os

“sobrinhos” enviavam para a rádio as narrativas próprias, eles não se apoderavam

do discurso, como acontecia com as crianças do Sítio do Pica-Pau Amarelo, que

tinham a oportunidade de se posicionarem diante do que era narrado a elas. As

crianças do Tio Janjão não se manifestavam. Quando escreviam, elas apenas

repetiam o que foi permitido conhecer, tendo a falsa sensação de que uma região do

discurso estaria disponível para elas. Na verdade, quando as histórias enviadas por

crianças eram lidas no rádio, o que se tinha eram a comprovação da audiência do

programa Histórias do Tio Janjão, paralela ao sucesso da própria emissora, e a

certificação de que o intuito pedagógico estava sendo alcançado. A participação das

crianças encerrava-se aí. A ordem do discurso não consente que os segredos e

privilégios dos escritores sejam revelados e permitidos a todos. Como uma

sociedade fechada, o discurso tende a permanecer sob a proteção de quem

conhece seus atributos e, principalmente, seu poder de persuasão. As histórias

produzidas pelas crianças traziam a mesma estrutura das histórias de Franco: um

animalzinho, com algum defeito moral, que errava, sofria, arrependia-se e

transformava-se. Nada mudou. O discurso continuou nas mãos de Oranice. O rádio,

na perspectiva dada por Adorno e Horkheimer (1985), seria um instrumento da

indústria cultural, oferecendo às crianças e pais da década de 1950 a falsa

impressão de que eles seriam capazes de criarem ou escolherem algum programa,

quando, na verdade, tudo já estava estabelecido conforme os interesses

econômicos e políticos envolvidos.

Nesse contexto, Oranice Franco oscilou entre a tradição e a modernidade.

Escreveu fábulas seguindo os modelos tradicionais e preocupando-se em ensinar

através das moralidades, mas se utilizou do rádio, um veículo moderno de

comunicação, para transmitir suas fábulas. Foi um autor no sentido tradicional,

adequando-se aos moldes literários de sua época, e foi moderno por produzir um

programa de rádio para crianças. Trabalhando na Rádio Nacional, emissora

pertencente ao governo, Franco foi um escritor, cuja produção foi útil aos interesses

governamentais e educacionais. A Rádio Nacional aliou-se aos objetivos do primeiro

governo de Vargas, principalmente por ser uma emissora com alcance nacional, que

atingia elevados índices de audiência. Martin-Barbero (1997) afirma que o rádio

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desempenhou papel relevante na tentativa de formação de uma identidade nacional,

objetivo de Vargas, na qual estariam eliminadas as diferenças culturais e regionais

do País.

Quando Oranice começou a escrever suas fábulas, Vargas estava no

seu segundo governo. A atitude da Rádio Nacional não se alterou. Ou seja, a

emissora continuou sendo porta-voz do governo. Mas encontrou em Oranice Franco

um escritor que manteve uma maneira própria de escrever e com objetivo bem

definido: disciplinar as crianças por meio das fábulas, auxiliando as instituições,

família e escola, na formação moral dos pequenos ouvintes. O fato de ter se tornado

útil ao regime político da época e aos interesses econômicos da Rádio Nacional,

mesmo que de forma não intencional, não tira de Oranice Franco o caráter inovador

de suas iniciativas. Suas fábulas e os comentários dirigidos aos ouvintes tornaram

possível conhecer e reconhecer aspectos sociais, ideológicos e culturais das

décadas de 1930 a 1950 no Brasil.

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BIBLIOGRAFIA

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BIBLIOGRAFIA DO CORPUS FRANCO, Oranice. Histórias do Tio Janjão. Volume 1. 1953. Encadernação pessoal. ______. Histórias do Tio Janjão. Volume 2. 1953. Encadernação pessoal. ______. Histórias do Tio Janjão. Volume 3. 1953 e 1954. Encadernação pessoal. ______. Histórias do Tio Janjão. Volume 4. 1954. Encadernação pessoal. ______. Histórias do Tio Janjão. Volume 5. 1954 e 1955. Encadernação pessoal. ______. Histórias do Tio Janjão. Volume 6. 1955. Encadernação pessoal. ______. O ratinho poeta, O porquinho flautista, O macaco que foi rei por um dia e Os brinquedinhos esquecidos. In: AGUIAR, Álvaro. Histórias do Tio Janjão. Rio de Janeiro: Disco vinil, 1955. ______. São Francisco rio rico. Rio de Janeiro: Conquista, 1971. ______. O touro valentão. Rio de Janeiro: Conquista, 1973. ______. A festa do grilo. Rio de Janeiro: Presença, 1977. ______. João Violeiro. Rio de Janeiro: Conquista, 1979. ______. Niquinho. Rio de Janeiro: Conquista, 1980. ______. O peixinho arteiro. 2. ed. Rio de Janeiro: Conquista, 1982. ______. O coelhinho mágico. 3. ed. Rio de Janeiro: Conquista, 1983 ______. O burrinho que ria. 4. ed. Rio de Janeiro: Conquista, 1984. ______. O homenzinho verde. 3. ed. Rio de Janeiro: Conquista, 1984. ______. Cavalinho Alecrim. Rio de Janeiro: Conquista, 1984. ______. Amazonas o rio mar. 2. ed. Rio de Janeiro: Conquista, 1986. ______. O cachorrinho de sangue azul. Rio de Janeiro: Conquista, 1987. ______. O urubu cantor. Rio de Janeiro: Conquista, 1989. ______. Macaco Simão rifa um leão. Rio de Janeiro: Conquista, s/d.

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BIBLIOGRAFIA DA PESQUISA ADORNO, Theodor W.; HORKHEIMER, Max. Dialética do Esclarecimento: fragmentos filosóficos. Tradução Guido de Almeida. Rio de Janeiro: Zahar, 1985. p. 1-79. AGUIAR, Ronaldo Conde. Almanaque da Rádio Nacional. Rio de Janeiro: Casa da palavra, 2007. ALMUQAFFA, Ibn. Kalila e Dimna. Tradução, organização, introdução e notas Mamede Mustafa Jarouche. São Paulo: Martins Fontes, 2005. ARIÈS, Philippe. História Social da Criança e da Família. 2. ed. Rio de Janeiro: Guanabara, 1986. BIBLIOTECA NACIONAL DIGITAL. A Noite 1950 a 1959. Disponível em: <http://memoria.bn.br/DocReader/Hotpage/HotpageBN.aspx?bib=348970_05&pagfis=31364&pesq=&url=http://memoria.bn.br/docreader#>. Acesso em: 27 dez. 2015. BRASIL. Decreto nº 21.111, de 1 de março de 1932. Aprova o regulamento para a execução dos serviços de radiocomunicação no território nacional. Disponível em: <http://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1930-1939/decreto-21111-1-marco-1932-498282-publicacaooriginal-81840-pe.html>. Acesso em: 30 jan. 2016. ______. Decreto-Lei 1.915, de 27 de dezembro de 1939. Cria o Departamento de Imprensa e Propaganda e dá outras providências. Disponível em: <http://www2.camara.leg.br/legin/fed/declei/1930-1939/decreto-lei-1915-27-dezembro-1939-411881-publicacaooriginal-1-pe.html>. Acesso em: 30 jan. 2016. ______. Decreto-Lei nº 8.529, de 2 de janeiro de 1946a. Lei Orgânica do Ensino Primário. Disponível em: <http://www2.camara.leg.br/legin/fed/declei/1940-1949/decreto-lei-8529-2-janeiro-1946-458442-publicacaooriginal-1-pe.html>. Acesso em: 22 mar. 2016. ______. Lei nº 9.215, de 30 de abril de 1946b. Proíbe a prática ou a exploração de jogos de azar em todo o território nacional. Disponível em: <http://www2.camara.leg.br/legin/fed/declei/1940-1949/decreto-lei-9215-30-abril-1946-417083-norma-pe.html>. Acesso em: 2 mar. 2016. ______. Constituição (1946). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: 1946. Disponível em: <www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao46.htm>. Acesso em: 22 mar. 2016. COELHO, Nelly Novaes. Panorama histórico da Literatura Infantil/Juvenil (das origens indo-europeias ao Brasil contemporâneo). 3. ed. refundida e ampl. São Paulo: Quíron, 1985.

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COULANGES, Fustel de. A cidade antiga. Tradução Fernando de Aguiar. 5. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2004. DERRIDA, Jacques. Gramatologia. 2. ed. São Paulo: Perspectiva, 2004. ______. A Farmácia de Platão. Trad. Rogério da Costa. São Paulo: Iluminuras, 2005. ______. A escritura e a diferença. 2. ed. São Paulo: Perspectiva, 1995. SMOLKA, Neide (Trad., introd. e notas). Esopo, Fábulas Completas. São Paulo: Moderna, 1994. FERACINE, Luiz (Trad., apres. e introd.). Fábulas, de Fedro.. São Paulo: Escala, 2006. FINLEY, Moses I. Economia e Sociedade na Grécia Antiga. Tradução Marylene Pinto Michael. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2002. FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. Tradução Edmundo Cordeiro com ajuda para a parte inicial de Antônio Bento. 1971. Disponível em: <http://www.scribd.com/doc/2520353/Michel-Foucault-A-Ordem-do-Discurso>. Acesso em: 22 jun. 2015. FREITAS, Gustavo de. 900 textos e documentos de História. Plátano, Lisboa, 1976. v. 2, p. 201-202. Disponível em: <http://www.4shared.com/office/QCj5zycX/freitas-g-de-900textosedocu.htm>. Acesso em: 28 nov. 2015. GIORDANI, Mário Curtis. História de Roma. 12. ed. Rio de Janeiro: Vozes, 1997. JAMBEIRO, Othon. et al. Tempos de Vargas: o rádio e o controle da informação [online]. Salvador: EDUFBA, 2004. 191 p. Disponível em:<http://books.scielo.org>. Acesso em: 12 jan. 2016. LA FONTAINE, Jean de. Fábulas de La Fontaine. Tradução Milton Amado e Eugênio Amado. Ilustrações Gustave Doré. Introdução Lucílio Mariano Júnior. Belo Horizonte: Itatiaia, 1989a. v. 1. ______. Fábulas de La Fontaine. Tradução Milton Amado e Eugênio Amado. Ilustrações Gustave Doré. Belo Horizonte: Itatiaia, 1989b. v. 2. LAJOLO, M; ZILBERMAN, R. Literatura Infantil Brasileira: histórias & histórias. 3. ed. São Paulo: Ática, 1985. LIMA, Nilo da Silva. O processo de criação literária de Oranice Franco: um estudo genético. 2004, 124 f. Dissertação (Mestrado em Teoria da Literatura)–Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2004.

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______. A literatura e a vida. Disponível em: <www.oranicefranco.blogspot.com.br>. Acesso em: 5 fev. 2016. LOBATO, Monteiro. Fábulas e Histórias Diversas. São Paulo: Brasiliense, s/d. MARTIN-BARBERO, Jesús. Dos meios às mediações: comunicação, cultura e hegemonia. Tradução Ronald Polito e Sérgio Alcides. Rio de Janeiro: Ed. da UFRJ, 1997. MOISÉS, Massaud. Dicionário de Termos Literários. 3. ed. São Paulo: Cultrix, 1982. PORTELLA, Osvaldo O. A fábula. Revista Letras, Curitiba, PR, v. 32, p. 119-138, 1983. Disponível em: <http://dx.doi.org/10.5380/rel.v32i0.19338>. Acesso em: 8 set. 2015. PRIORE, Mary del (org.) et al. História das crianças no Brasil. 7 ed. São Paulo: Contexto, 2010. REVEL, Jacques. Os usos da civilidade. In: ARIÈS, Philippe; DUBY, Georges (Org.). História da Vida Privada 3. São Paulo: Companhia das Letras, 1991. p. 169-209. ROMANELLI, Otaíza de Oliveira. História da Educação no Brasil. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 1980. ROUSSEAU, Jean-Jacques. Emílio ou da Educação. Tradução Roberto Leal Ferreira. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2014. SALVADOR, Roberto. Professor universitário conta fatos que marcaram história da Rádio Nacional. Brasília: Agência Brasil, 29 jun. 2004. Entrevista concedida a Alessandra Bastos. Disponível em: <http://memoria.ebc.com.br/agenciabrasil/noticia/2004-06-29/professor-universitario-conta-fatos-que-marcaram-historia-da-radio-nacional>. Acesso em: 22 abr. 2015. SANTOS, Ismael dos. A fábula na literatura brasileira (De Anastácio a Millor, incluindo Coelho Neto e Monteiro Lobato). 2001. 162 f. Dissertação (Mestrado em Literatura)–Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2001. Disponível em: <https://repositorio.ufsc.br/xmlui/handle/123456789/81821>. Acesso em: 15 fev. 2015. ______. A retórica de transposição da fábula para a cultura brasileira e a sua poética em livros para crianças: intencionalidade e estratégias. 2006. 266 f. Tese (Doutorado em Literatura)–Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2006. Disponível em: <http://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/103122>. Acesso em: 28 nov. 2015. SOUZA, Loide Nascimento de. Monteiro Lobato e o processo de reescritura das fábulas. In: LAJOLO, Marisa; CECCANTINI, João Luís (Org.). Monteiro Lobato, Livro a Livro: Obra infantil. São Paulo: Ed. da UNESP; Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2009. p. 103-119.

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QUINELATO, Eliane. A figurativização do trabalho nas fábulas de Esopo. 2009. 195 f. Tese (Doutorado em Letras)–Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, Araraquara, 2009. Disponível em: <http://acervodigital.unesp.br/handle/unesp/173721?locale=pt_BR>. Acesso em: 6 set. 2015.

VEYNE, Paul. O império romano. In: ______ (Org.). História da vida privada 1. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. p. 1-212. ZANELATTO, João Henrique. Estado, cultura e identidade nacional no tempo de Vargas. Santa Catarina, 2010. Disponível em: <periodicos.unesc.net/historia/article/download/418/427>. Acesso em: 23 mar. 2016. ZIMMER, Heinrich. Filosofias da Índia. Compilação Joseph Campbell. Tradução Nilton Almeida Silva e Cláudia Giovani Bozza. 4. ed. São Paulo: Palas Athena, 2008.

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APÊNDICES

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APÊNDICE A – Volume 1

Número Data Título Observações

01 09/04/53 O pica-pau apaixonado Escrito “Livro”13

02 14/04/53 O elefante sem memória Escrito “Livro”

03 16/04/53 O leão porcalhão Escrito “Livro”

04 21/04/53 O ratinho preguiçoso Escrito “Livro”

05 23/04/53 O elefante bobalhão Escrito “Livro”.Personagem não muda a atitude

06 28/04/53 O canarinho orgulhoso

07 30/04/53 O burrinho que ria à toa Escrito “Livro”. Livro publicado: O burrinho que ria

08 05/05/53 João de Barro Sabido

09 07/05/53 O gatinho medroso Escrito “Livro”

10 12/05/53 A baleia solitária

11 14/05/53 A velha mentirosa

12 19/05/53 O casamento do canguru Escrito “Livro”

13 21/05/53 A sapinha cantora

14 26/05/53 Chorão, o cachorro gordão Personagem não muda de atitude

15 28/05/53 Juquinha

16 02/06/53 O papagaio mentiroso Escrito “Livro”. Livro publicado: Niquinho

17 04/06/53 A traça burrinha Escrito “Livro”

18 09/06/53 O tico-tico abandonado

19 16/06/53 O gatinho preguiçoso Escrito “Livro”

20 18/06/53 Os três gatinhos pretos

21 23/06/53 O rinoceronte invisível

22 25/06/53 O tigre que só dizia não

23 30/06/53 O avestruz anão

24 02/07/53 O pavão orgulhoso Escrito “Livro”. Livro publicado: O pavão orgulhoso

25 07/07/53 O peixinho arteiro Livro publicado: O peixinho arteiro

26 09/07/53 O anel mágico Escrito “Livro”

27 14/07/53 O beija-flor que não beijava flor

13

A palavra “livro” aparece escrita, a lápis, em algumas histórias, indicando, possivelmente, a vontade de o escritor transformá-las em livros.

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APÊNDICE B – Volume 2

Número Data Título Observações

28 16/07/53 O cachorrinho mentiroso

29 21/07/53 A girafa do pescoço curto Escrito “livro”.

30 23/07/53 A cobra maldosa

31 28/07/53 O galinho valentão

32 30/07/53 Juca, o patinho bonzinho

33 04/08/53 As travessuras do ursinho preto

34 06/08/53 O porquinho guloso

35 11/08/53 Lulu, o cachorrinho maldoso

36 13/08/53 O patinho linguarudo

37 18/08/53 O elefante que seria ser beija-flor

38 20/08/53 Donga, o patinho desobediente

39 25/08/53 A gatinha imprestável

40 27/08/53 O coelhinho orelhudo

41 01/09/53 O boi que não gostava de trabalhar

42 03/09/53 A formiguinha comilona Interessante

43 08/09/53 A raposa coto

44 10/09/53 O ratinho poeta Contada no disco de 1956 com o mesmo nome.

45 15/09/53 O tigre de bengala

46 17/09/53 O macaquinho arteiro

47 22/09/53 O tubarão que era mau

48 24/09/53 O urubu cantor Livro: O urubu cantor

49 29/09/53 A coruja desobediente

50 01/10/53 O jabuti apressado Escrito “Livro”.

51 06/10/53 O papagaio intrigante

52 09/10/53 Chapeuzinho Vermelho Clássicos infantis

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APÊNDICE C – Volume 3

Número Data Título Observação

53 13/10/53 O coelhinho que não sabia ler

54 15/10/53 O leão que não gostava de ninguém

55 20/10/53 O pinguim alfaiate

56 22/10/53 A lontra bilontra

57 27/10/53 O pé de feijão encantado Clássicos infantis

58 29/10/53 A macaquinha sapeca

59 03/11/53 O coelhinho mentiroso

60 05/11/53 O pombinho que queria dar a volta ao mundo

61 10/11/53 A águia medrosa

62 12/11/53 O casamento do gato

63 17/11/53 O gatinho e o canarinho

64 19/11/53 A bela e a fera Clássicos infantis

65 24/11/53 O galinho garnisé

66 26/11/53 O faisão dourado

67 01/12/53 O burrinho pacato

68 03/12/53 O gafanhoto ambicioso

69 08/12/53 O bem-te-vi que não via nada

70 10/12/53 A Sapinha Sapeca

71 15/12/53 O papagaio que não errava

72 17/12/53 O camelo arteiro

73 22/12/53 O ratinho Tonico e o gato Peixoto

74 24/12/53 Branca de Neve Clássicos infantis

75 29/12/53 O porquinho flautista Contada no disco de 1956, com o mesmo nome.

76 31/12/53 O besouro cabeçudo

77 05/01/54 Telêmaco e Peixoto em* Quem não tem cão caça com gato

78 07/01/54 O burrinho trapaceiro

79 12/01/54 O gambá arteiro

80 14/01/54 Aladim e a lâmpada maravilhosa Clássicos infantis

81 19/01/54 O macaquinho ladrão

82 21/01/54 Os dois ursinhos

83 26/01/54 O sapinho vaidoso

84 28/01/54 O burrinho tímido

85 02/02/54 O ratinho Tonico e o gato Peixoto

86 04/02/54 O pintinho infeliz Enviada por uma “sobrinha”

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APÊNDICE D – Volume 4

Número Data Título Observação

87 09/02/54 A ovelhinha preta

88 11/02/54 A onça lograda Escrito “Livro”

89 16/02/54 A Bela Adormecida do bosque Clássicos infantis

90 18/02/54 As orelhas do coelho Enviada por “sobrinho”

91 23/02/54 A rã vaidosa Escrito “Livro”

92 25/02/54 O gato de botas Clássicos infantis

93 04/03/54 O coelho mentiroso Enviada por “sobrinha”

94 09/03/54 A tartaruga que corria mais que o vento

95 11/03/54 O cavalinho da estrela na testa

96 16/03/54 A onça e o coelho Enviada por “sobrinha”

97 18/03/54 O ratinho Tonico e o gato Peixoto Outra aventura

98 23/03/54 A baleia teimosa

99 25/03/54 A Gata Borralheira Clássicos infantis

100 30/03/54 O coelhinho de asas vermelhas Enviada por “sobrinha”

101 01/04/54 O camelo hipócrita

102 06/04/54 O ratinho que virou gato

103 08/04/54 O macaquinho mau Enviada por “sobrinho”

104 13/04/54 O coelho sovina Livro: A festa do grilo

105 15/04/54 O coelho e o macaco Enviada por “sobrinha”

106 20/04/54 O leão sem juba

107 22/04/54 O macaco engraçado Enviada por “sobrinha”

108 27/04/54 O urso preguiçoso

109 29/04/54 O papagaio e o burrinho Enviada por “sobrinho”

110 04/05/54 O canguru moleque

111 06/05/54 A justiça do leão Enviada por “sobrinha”

112 11/05/54 O boizinho malvado

113 13/05/54 O gato do mato Enviada por “sobrinha”

114 18/05/15 O sapo e o violino encantado

115 20/05/54 A onça e o coelho Enviada por “sobrinha”

116 25/05/54 A galinha branca Enviada por “sobrinha”

117 27/05/54 O sapinho desobediente

118 01/06/54 Os cães encantados Clássicos infantis

119 03/06/54 O porquinho guloso Enviada por “sobrinha”

120 08/06/54 O elefante sem tromba

121 10/06/54 O macaco apostador

122 15/06/54 Os brinquedinhos abandonados Contada no disco de 1956 com o mesmo nome.

123 17/06/54 A abelha gorducha

124 22/06/54 Mariinha, a menina boazinha

125 24/06/54 O coelhinho branco Enviada por “sobrinha”

126 29/06/54 O macaco que foi rei por um dia Contada no disco de 1956 com o mesmo nome

127 01/07/54 O cavalo do rei

128 06/07/54 O castigo dos linguarudos Enviada por “sobrinha”

129 08/07/54 O ratinho dançarino Enviada por “sobrinha”

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APÊNDICE E – Volume 5

Número Data Título Observação

130 13/07/54 Ratinho Tonico e gato Peixoto

131 15/07/54 O coelho e a raposa Enviada por “sobrinho”

132 20/07/54 O jacaré de óculos

133 22/07/54 O marrequinho peralta

134 27/07/54 O leão e o galo Enviada por “sobrinha”

135 29/07/54 O cachorrinho de sangue azul Livro: O cachorrinho

de sangue azul

136 03/08/54 O ratinho destemido Semelhante à

Assembleia dos ratos

137 05/08/54 A tartaruga faladeira Enviada por “sobrinha”

138 10/08/54 O macaquinho que não sabia contar

139 12/08/54 O jaboti sem coração Enviada por “sobrinho”

140 17/08/54 O touro valentão Livro: O touro valentão

141 19/08/54 O fígado do macaco Enviada por “sobrinho”

142 26/08/54 Ratinho Tonico e gato Peixoto

143 07/09/54 O lobinho desobediente Enviada por “sobrinha”

144 ? ? Retirada do volume

145 14/09/54 A vingança dos animais Enviada por “sobrinha”

146 16/09/54 O papagaio boateiro

147 21/09/54 Mimoso, o carneirinho preto Enviada por “sobrinha”

148 23/09/54 O cavalinho jogador

149 28/09/54 O ratinho desobediente Enviada por “sobrinha”

150 30/09/54 O coelhinho mágico Livro: O coelhinho

mágico

151 05/10/54 Os dois gatinhos arteiros Enviada por “sobrinha”

152 07/10/54 O cabritinho chofer

153 12/10/54 Nadir, a galinha engolidora de cobra

154 14/10/54 O leopardo mentiroso Enviada por “sobrinha”

155 19/10/54 O cãozinho cabeçudo Enviada por “sobrinho”

156 21/10/54 Tonico, Peixoto e o canguru Valentim

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157 26/10/54 O patinho que não sabia nadar

158 28/10/54 O coelhinho surdo Enviada por “sobrinha”

159 04/11/54 O canguru moleque Repetida

160 09/11/54 O leão sem juba Repetida

161 11/11/54 Aladim e a lâmpada maravilhosa Clássicos infantis

162 16/11/54 A bela adormecida do bosque Clássicos infantis

163 18/11/54 A vingança do coelho Enviada por “sobrinho”

164 23/11/54 O patinho teimoso Enviada por “sobrinha”

165 25/11/54 Branca de Neve Clássicos infantis

166 30/11/54 Quem não tem cão caça com gato Repetida

167 02/12/54 A sapinha sapeca Repetida

168 07/12/54 Chapeuzinho Vermelho Clássicos infantis

169 09/12/54 Rato Tonico e gato Peixoto Enviada por “sobrinho”

170 14/12/54 O pavão sem coração

171 16/12/54 O porquinho prático Enviada por “sobrinho”

172 21/12/54 O elefante de ouro

173 23/12/54 Tonico e Peixoto festejam o Natal

174 28/12/54 Negócios na floresta Enviada por “sobrinha”

175 30/12/54 O cavalinho e o Ano Novo Livro: O cavalinho

Alecrim

176 04/01/55 O gavião ambicioso Enviada por “sobrinho”

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APÊNDICE F – Volume 6

Número Data Título Observação

177 06/01/55 O porquinho porco

178 11/01/55 A menina tartaruga Enviada por “sobrinha”

179 13/01/55 A rifa do macaco

180 18/01/55 A corujinha teimosa Enviada por “sobrinha”

181 20/01/55 Lili e Zequinha Enviada por “sobrinha”

182 25/01/55 Gato Peixoto e ratinho Tonico

183 27/01/55 A casaca do louva-deus Enviada por “sobrinho”

184 01/02/55 A afilhada da onça Enviada por “sobrinha”

185 03/02/55 O cavalinho respondão

186 08/02/55 Rato Tonico e gato Peixoto

187 10/02/55 O coelhinho sabido Enviada por “sobrinho”

188 15/02/55 O pintinho mentiroso Enviada por “sobrinho”

189 17/02/55 O macaco adulador

190 24/02/55 Patola, o patinho teimoso Enviada por “sobrinha”

191 01/03/55 O canguru moleque Repetida

192 03/03/55 O pica-pau apaixonado Repetida

193 08/03/55 A baleia solitária Repetida

194 10/03/55 Chorão, o cachorro gordão Repetida

195 15/03/55 O tigre que só dizia não Repetida

196 17/03/55 O rinoceronte invisível Repetida

197 22/03/55 O pintinho que não queria trabalhar Enviada por “sobrinha”

198 24/03/55 Tonico e Peixoto

199 29/03/55 Tonico e Peixoto

200 31/03/55 A girafa de muletas

201 05/04/55 Os dois coelhinhos pretos Enviada por “sobrinho”

202 07/04/55 A macaquinha ambiciosa

203 12/04/55 Chapeuzinho Vermelho Clássicos infantis

204 14/04/55 O cãozinho Gabola

205 19/04/55 O leão fujão

206 21/04/55 A galinha dos ovos de ouro Conhecida

207 26/04/55 O macaco logrador Enviada por “sobrinho”

208 28/04/55 Peixoto salva Tonico Enviada por “sobrinha”

209 03/05/55 O porquinho encantado

210 05/05/55 O papagaio que fazia medo aos outros

211 10/05/55 O cofre das relíquias**

212 12/05/55 Peixoto e Tonico

213 17/05/55 O remédio infalível Enviada por “sobrinha”

214 19/05/55 O coelhinho e o relógio roubado

215 24/05/55 Por que a leoa não tem juba Enviada por “sobrinho”

216 26/05/55 O macaco que perdeu a cauda Enviada por “sobrinha”

217 31/05/55 Branca de Neve Clássicos infantis

218 02/06/55 O pinguim alfaiate Repetida

219 07/06/55 O cachorrinho de sangue azul Repetida e livro

220 09/06/55 A bela e a fera Clássicos infantis

221 14/06/55 O cabritinho chofer Repetida

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222 16/06/55 A bela adormecida do bosque Clássicos infantis

223 21/06/55 A veadinha orgulhosa Enviada por “sobrinha”

224 23/06/55 O leão que não gostava de ninguém Repetida

225 28/06/55 O faisão dourado Repetida

226 30/06/55 Dona Baratinha Clássicos infantis

227 05/07/55 Peixoto e Tonico

228 07/07/55 O coelhinho comilão Enviada por “sobrinha”

229 12/07/55 O cachorro potoqueiro

230 14/07/55 A ovelhinha curiosa Enviada por “sobrinho”

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ANEXOS

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ANEXO A – Redação de 1929

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ANEXO B – Redação de 1930

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ANEXO C – Da necessidade de ser mineiro

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ANEXO D – Oranice Franco e outros poetas

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ANEXO E – Variações sobre o poeta

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ANEXO F – Oranice Franco e Álvaro Aguiar conversando sobre o disco

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ANEXO G – Meu pai meu melhor amigo

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ANEXO H – Substituição de Álvaro Aguiar por Celso Guimarães

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ANEXO I – Declaração de Oranice para Eric Tirado Viegas

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ANEXO J – Casa de Oranice Franco em São João del-Rei

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ANEXO K – Curso de Oranice no Ministério da Agricultura

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ANEXO L – Início da redação das Crônicas da Cidade por Franco

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ANEXO M – Fábula contada no programa de 09 de abril de 1953

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