Ordem e Significado – A busca pela ordem nas obras de Eric Voegelin e Claude LéviStrauss
-
Upload
mathausschimidt -
Category
Documents
-
view
7 -
download
1
description
Transcript of Ordem e Significado – A busca pela ordem nas obras de Eric Voegelin e Claude LéviStrauss
-
1
Aluysio Augusto de Athayde Neno
Ordem e Significado A busca pela ordem
nas obras de Eric Voegelin e Claude Lvi-
Strauss
Dissertao de Mestrado
Dissertao apresentada ao Programa de Ps-graduao em Cincias Sociais da PUC-Rio como requisito parcial para a obteno do ttulo de Mestre em Cincias Sociais.
Orientador: Prof. Valter Sinder
Rio de Janeiro
Setembro de 2013
DBDPUC-Rio - Certificao Digital N 1111637/CA
-
2
Aluysio Augusto de Athayde Neno
Ordem e significado - A busca pela ordem nas obras
de Eric Voegelin e Claude Lvi-Strauss
Dissertao apresentada como requisito parcial
para obteno do grau de Mestre pelo Programa de
Ps-Graduao em Cincias Sociais do
Departamento de Cincias Sociais do Centro de
Cincias Sociais da PUC-Rio. Aprovada pela
Comisso Examinadora abaixo assinada.
Prof. Valter Sinder Orientador
Departamento de Cincias Sociais PUC-Rio
Prof. Ronaldo Oliveira de Castro UERJ
Prof. Paulo Jorge da Silva Ribeiro Departamento de Cincias Sociais PUC-Rio
Profa. Mnica Herz Coordenadora Setorial do Centro
de Cincias Sociais PUC-Rio
Rio de Janeiro, 13 de setembro de 2013
DBDPUC-Rio - Certificao Digital N 1111637/CA
-
3
Todos os direitos reservados. proibida a
reproduo total ou parcial do trabalho sem
autorizao da universidade, do autor e do
orientador.
Aluysio Augusto de Athayde Neno
Graduou-se em Cincias Sociais pela PUC-Rio
(Pontifcia Universidade Catlica do Rio de Janeiro).
Pesquisador nas reas de Antropologia da religio e
da arte. Atualmente pesquisa as relaes entre
religio e poltica, modernidade e desencantamento,
ordem e significado.
Ficha catalogrfica
CDD: 300
Neno, Aluysio Augusto de Athayde
Ordem e significado: a busca pela ordem
nas obras de Eric Voegelin e Claude Lvi-
Strauss / Aluysio Augusto de Athayde Neno ;
orientador: Valter Sinder. 2013.
100 f. ; 30 cm
Dissertao (mestrado)Pontifcia
Universidade Catlica do Rio de Janeiro,
Departamento de Cincias Sociais, 2013.
Inclui bibliografia
1. Cincias Sociais Teses. 2. Ordem.
3. Significado. 4. Eric Voegelin. 5. Claude Lvi-
Strauss. 6. Mitologia. 7. Cosmos. 8. Sociedades
tradicionais. 9. Sociedades primitivas. 10.
Religio. I. Sinder, Valter II. Pontifcia
Universidade Catlica do Rio de Janeiro.
Departamento de Cincias Sociais. III. Ttulo.
DBDPUC-Rio - Certificao Digital N 1111637/CA
-
4
Para meus pais, Aluysio e Virgnia,
Pelo amor e confiana.
DBDPUC-Rio - Certificao Digital N 1111637/CA
-
5
Agradecimentos
Inicialmente gostaria de agradecer ao corpo docente e aos funcionrios do
Departamento de Cincias Sociais da PUC-Rio. Em especial, agradeo a Diretora
Maria Sarah da Silva Telles pela ateno e apoio ao longo do Mestrado. No
poderia deixa de agradecer a querida Ana Roxo que, em momentos difceis,
sempre se mostrou pronta a ajudar. Tambm no deixo de citar, aqui, a secretria
Monica Gomes a quem sou muito grato.
Ao CNPq e PUC-Rio, pelos auxlios concedidos, sem os quais este
trabalho no poderia ter sido realizado.
Uma palavra para o meu orientador, o Prof. Valter Sinder, a quem sou
muitssimo grato por toda a pacincia, compreenso e ajuda. Minha admirao
que, desde os tempos da Graduao j era grande, s se tornou maior. Valter um
grande modelo para mim de professor, antroplogo e pessoa.
Agradeo ainda ao professor Paulo Jorge da Silva Ribeiro pelo interesse
em participar da banca desta dissertao. Sua aula de Metodologia das Cincias
Sociais, em 2005, ainda na graduao, foi meu primeiro contato com a rea a que
hoje me dedico. Suas aulas ainda esto na memria, principalmente quando me
lembro que, ao chegar em casa, eu debatia com meus familiares sobre todas as
importantes desconstrues empreendidas por nossas leituras e discusses.
Quero agradecer ainda ao professor Ronaldo Oliveira de Castro, a quem
convidei para fazer parte da banca. Vindo de outra instituio, a UERJ, agradeo
ao professor pelo interesse e pelos importantes comentrios dados na
Qualificao.
Ao querido amigo e companheiro nesta viagem, Guilherme Neves
Gonalves, agradeo pelos momentos em que compartilhamos nossas angstias e
nossas alegrias. Com um olhar que pulsa vida, Guilherme provou ainda haver vida
inteligente neste mundo.
Ao amigo Pedro Augusto Salarini, porque simplesmente no h como no
agradecer a um irmo. Nossas vidas esto to entrelaadas, que tudo o que fao
DBDPUC-Rio - Certificao Digital N 1111637/CA
-
6
compartilhado, discutido entre ns. Foram muitas palavras generosas em todos
essas anos, das quais tento retribuir com toda a minha gratido.
Outro grande amigo que no posso deixar de citar Ivan Frota Pacheco. A
ele toda a minha gratido pela lealdade da amizade, pelas longas conversas e por
ter sido o primeiro a me mostrar um outro lado na vida intelectual.
Juliana Zurli Monteiro, pelo companheirismo, compreenso e amor. No
tenho dvidas de que essa dissertao carrega muito de ns dois.
A toda a minha famlia (tios, tias, primos e primas), que muito amo.
Especialmente s minhas tias Wanda de Azevedo Athayde e Lena Athayde Dutra,
que sempre se desdobraram para me ajudar. Denize Athayde Dutra pelo apoio,
carinho e amor sem medidas. E Ana Beatriz, minha irm, pelas palavras doces e
generosas de compreenso e apoio.
Por fim, agradeo aos meus amados pais, Aluysio e Virgnia, a quem
dedico esta dissertao. Todos estes anos, em todos os momentos, sempre pude
contar com muito carinho e amor. Sei que jamais conseguiria morar longe e ter
obtido tantas conquistas sem o apoio deles. Sem eles, nada do que fao teria
sentido...
DBDPUC-Rio - Certificao Digital N 1111637/CA
-
7
Resumo
Neno, Aluysio Augusto de Athayde; Sinder, Valter. Ordem e Significado
a busca pela ordem nas obras de Eric Voegelin e Claude Lvi-Strauss. Rio de Janeiro, 2013. 100p. Dissertao de Mestrado Departamento de Cincias Sociais, Pontifcia Universidade Catlica do
Rio de Janeiro.
Uma das temticas mais fascinantes e recorrentes nas Cincias Sociais e,
mais especificamente na Antropologia, a problemtica da ordem. Essa
dissertao foca a sua anlise em como os homens empreendem a imprescindvel
tarefa de dar significado s suas vidas, s suas instituies, s suas sociedades.
Ordenar, nesse contexto, nada mais do que dar uma justificao, um fundamento
todas as coisas que compem a vida humana. Assim, parto da ideia de que a
maneira mais eficaz de dar ordem e significado (seja a vida individual ou a
sociedade e suas instituies) se encontra na religio. Admito, porm, que as
estruturas de significado presentes nas diferentes culturas no possuem a firmeza
necessria para se impor a todos com a mesma intensidade e da mesma forma.
Portanto, para evitar que o mundo social perca a sua eficcia, necessrio
nomizar ou ordenar a sociedade de uma forma estvel e duradoura. A religio,
admitida aqui como a forma mais eficaz de dar ordem ao meio social, aparecer
no contexto do que o filsofo Eric Voegelin chamou de sociedades
cosmolgicas, ou nas chamadas sociedades frias como denominou o
antroplogo Claude Lvi-Strauss. A ordem e a construo dos significados nas
diferentes sociedades sero analisadas atravs das obras desses dois autores.
Palavras-Chave
Ordem; Significado; Eric Voegelin; Claude Lvi-Strauss; Mitologia;
Cosmos; Sociedades tradicionais; Sociedades primitivas; Religio.
DBDPUC-Rio - Certificao Digital N 1111637/CA
-
8
Abstract
Neno, Aluysio Augusto de Athayde; Sinder, Valter (Advisor). Order and
Meaning the search of order in the works of de Eric Voegelin and Claude Lvi-Strauss. Rio de Janeiro, 2013. 100p. MSc. Dissertation Departamento de Cincias Sociais, Pontifcia Universidade Catlica do
Rio de Janeiro.
One of the most fascinating and recurring themes in Social Sciences and,
more specifically, in Anthropology, is the problem of order. This dissertation
focuses its analysis on how men undertake the essential task of giving meaning to
their lives, their institutions and societies. To order, in this context, is nothing
more than to give a justification, a ground for all things that make up human life.
Thus, I take off from the idea that the most effective way of ordaining and
establishing meaning (whether to individual life or society and its institutions) lies
in religion. I admit, however, that the structures of meaning present in different
cultures do not have the necessary firmness to enforce all with the same intensity
and in the same manner. Therefore, to prevent the social world from losing its
effectiveness, it is necessary to normalize or order society in a stable and lasting
way. Religion, admitted as the most effective way to provide order to social life,
appears in the context of what the philosopher Eric Voegelin called "cosmological
societies.", or cold societies as Claude Lvi-Strauss called in his works. The
order and the construction of meanings in the different societies will be analysed
through the works of this two authors.
Keywords
Order; Meaning; Eric Voegelin; Claude Lvi-Strauss; Mythology;
Cosmos; Traditional societies; Primitive societies; Religion.
DBDPUC-Rio - Certificao Digital N 1111637/CA
-
9
Sumrio
1. Introduo 11 2. Ordem e simbolizao 21
2.1 O problema da ordem nas Cincias Sociais 21
2.2 O sagrado e a ordem 32
2.3 Legitimao e sociedades cosmolgicas 35
3. Eric Voegelin e a busca da ordem 42
3.1 Combatendo o bom combate 42
3.2 A histria das ordens 45
3.3 A simbolizao compacta e as sociedades cosmolgicas 49
3.4 A mitologia e a condio humana 52
3.5 Cosmos e ordem: a simbolizao poltica 57
3.6 A estrutura da realidade, a conscincia e a busca da ordem 61
4. Lvi-Strauss: a forma e o significado 69
4.1 O antroplogo contra a corrente 69
4.2 A busca pelo universal 72
4.3 A etnologia , primeiro, uma psicologia 73
4.4 Mito e significado 77
5. Concluso 87
6. Referncias Bibliogrficas 98
DBDPUC-Rio - Certificao Digital N 1111637/CA
-
10
"What is permanent in the history of mankind is not the symbols but
man himself in search of his humanity and its order. Eric Voegelin
Falar de regras e falar de significado falar da mesma coisa; e, se olharmos para todas as realizaes da Humanidade, seguindo os
registros disponveis em todo o mundo, verificaremos que o
denominador comum sempre a introduo de alguma espcie de
ordem. Se isto representa uma necessidade bsica de ordem na
esfera da mente humana e se a mente humana, no fim de contas, no
passa de uma parte do universo, ento qui a necessidade exista
porque h algum tipo de ordem no universo e o universo no um
caos. Claude Lvi-Strauss
DBDPUC-Rio - Certificao Digital N 1111637/CA
-
11
1.
Introduo
O problema da ordem talvez seja questo fundamental da sociedade
humana. Peter Berger inicia seu livro O dossel sagrado com a seguinte frase:
Toda sociedade humana um empreendimento de construo do mundo
(BERGER, 2012: 15). Eric Voegelin, no primeiro volume de Ordem e Histria,
Israel e a Revelao, inicia sua obra com a seguinte passagem: A ordem da
histria surge da histria da ordem. Toda a sociedade v-se encarregada da tarefa
de, sob suas condies concretas, criar uma ordem que dote de significado o fato
de sua existncia em termos dos fins divinos e humanos (VOEGELIN, 2009: 27).
Dotar de significado a existncia no plano macro (sociedade) e no plano micro
(indivduo), eis a a grande tarefa humana. Tarefa essa, que sempre procurei
estudar, pois exerce em mim um grande fascnio. Quando me deparei com uma
bibliografia que se propunha a debater essa questo, tive a certeza de que as
Cincias Sociais (logicamente, unida com outras reas do conhecimento) haviam
sido a escolha certa. Recordo-me, ainda, que o primeiro livro da rea que peguei
para ler foi o clssico A construo social da realidade de Peter Berger e Thomas
Luckmann, que, evidentemente, trabalha com a questo da significao e da
ordem nas sociedades. Alm, claro, de outras grandes obras como As formas
elementares da vida religiosa do founding father mile Durkheim, os artigos de
Mauss (e a clssica Introduo de Lvi-Strauss) em Sociologia e Antropologia, a
sociologia da religio de Max Weber, as obras de Claude Lvi-Strauss, os tratados
de religio comparada de Mircea Eliade, sem esquecer ainda do magnfico The
golden bogh de Sir James Frazer. Mais recentemente me deparei com a grandiosa
coletnea Ordem e Histria do filsofo e cientista poltico Eric Voegelin, que,
pelo prprio nome da obra, trata exaustivamente do problema da ordem nas
diferentes sociedades e tempos histricos.
DBDPUC-Rio - Certificao Digital N 1111637/CA
-
12
Nesse trabalho, a despeito da enorme bibliografia sobre o tema, me deterei,
sem menosprezar em absoluto os outros autores, com as obras de Eric Voegelin e
Lvi-Strauss.
**
Sabemos que as Cincias Sociais talvez sejam um das reas que mais
produziu obras sobre a temtica religiosa. O fascnio por mitos, ritos, smbolos,
anjos e demnios, magia e alquimia, mestres e iniciaes, que os cientistas sociais
possuem impressionante. Ao mesmo tempo, tambm sabemos que as Cincias
Sociais, desde seu nascimento, sempre se distanciou da metafsica. Weber, no
incio da seo consagrada Sociologia da Religio, em seu clssico Economia e
Sociedade, afirma que esta disciplina no trata da religio como tal, e sim das suas
relaes com a vida social. Antes do prprio Weber, outros, como Comte e
Durkheim, j haviam afirmado a mesma coisa.
Peter Berger, o famoso socilogo americano, apesar de ser pessoalmente
religioso, produz uma sociologia da religio que tambm no escapa a esse tipo de
anlise. Citando a passagem de Berger em sua grande obra O dossel sagrado:
[...]A religio definida aqui como um empreendimento humano porque assim que ela se manifesta como fenmeno emprico. No mbito dessa definio, a
questo de se saber se a religio pode tambm ser algo mais que isso omitida
como, claro, deve-se fazer em qualquer tentativa de compreenso cientfica. (BERGER, 2012, p. 38)
Assim, centrando a anlise no que Voegelin chamou de sociedades
cosmolgicas (sociedades arcaicas ou primitivas), pretendo demonstrar a
maneira pela qual essas sociedades empreendem a tarefa humana de dar uma
ordem sociedade, de construir significados, classificaes, de retirar as coisas do
fluxo contnuo do caos e cosmific-las. E nesse tipo de organizao social, a
ordenao e a religio so uma s e mesma coisa. O caos torna-se cosmos
atravs de justificativas religiosas, ou, falando de uma outra forma, nessas
sociedades a ordem fruto do sagrado. O sagrado (se opondo ao profano, como
na anlise clssica de Mircea Eliade) tem o poder de cosmificar (sensu Eliade) a
realidade social de uma maneira muito forte. Desta forma, quando o mundo social
encarado como coisa bvia, quando a ordem parece provir da natureza mesma
das coisas, h uma fuso do nomos (a ordem socialmente estabelecida) com o
DBDPUC-Rio - Certificao Digital N 1111637/CA
-
13
cosmos (tudo aquilo que considerado como os sentidos fundamentais inerentes
ao universo). Nesse momento a socializao obtm grande xito, na medida em
que os programas institucionais passam a ter um carter ontolgico a tal ponto
que, como diz Berger, neg-los equivaleria a negar o prprio ser: o ser da ordem
universal das coisas e, como conseqncia, o que se nessa mesma ordem.
Nas sociedades arcaicas (ou cosmolgicas), a ordem social (nomos) o
reflexo microcsmico do cosmos como tal, sendo esse cosmos compreendido
como coisa sagrada. Voegelin chega a dizer que ela no vista apenas como um
reflexo, uma expresso dos significados inerentes ao universo como tal, mas essa
ordem chega a ser encarada como o cosmos mesmo. Esse tipo de ordenao
encontrado nas mais variadas sociedades, existindo uma espcie de
uniformizao, logicamente com caractersticas especficas em cada fenmeno.
sabido, portanto, que existem uniformidades entre os fenmenos sagrados ou
religiosos de diferentes culturas. Sobre esse caso, vale citar Berger:
As manifestaes histricas do sagrado variam muito, embora transversalmente se observem uniformidades na cultura (pouco importando, aqui, que essas
uniformidades se devam interpretar como resultantes da difuso cultural ou de
uma lgica interna da imaginao religiosa do homem). (BERGER, 2012, p. 39)
Berger, como a maioria dos socilogos e antroplogos, no quer colocar
em questo como pode ser explicada essa uniformidade que encontramos na
temtica religiosa (e em outras temticas) entre os mais diferentes grupos sociais.
Aqui, entra um ponto muito importante dessa dissertao.
Como dito acima, sempre me fascinei pela questo da ordem, procurando
sempre descobrir como os diferentes autores explicavam (ou no) os mecanismos
de significao e ordenao das coisas numa dada sociedade. Assim, pretendo
aqui, tambm, esboar algumas teorias que tentam explicar essa temtica e acho
que, abstraindo apenas por um momento os diferentes grupos sociais, podemos
fazer uma pergunta fundamental: a ordem produzida de forma arbitrria ou ela
fruto de uma lgica? Se a ordem arbitrria, como podemos explicar esse
fenmeno da universalidade de algumas caractersticas da cultura? Se a ordem
fruto de alguma lgica, da onde provm essa lgica?
No fundo, sabemos que essa questo perpassa todo o debate da
Antropologia, pois, ao afirmar a supremacia da cultura sobre a natureza, e fazer do
DBDPUC-Rio - Certificao Digital N 1111637/CA
-
14
homem uma tbula rasa, nossa rea acabou por se distanciar de outros debates na
psicologia, na cincia cognitiva, na neurocincia, na filosofia e na metafsica. No
pretendo, aqui, defender esse outro lado, mas apenas fazer uma pequena
problematizao das relaes entre a construo social, a natureza e a
metafsica. Acredito que sob uma perspectiva de contraste podemos compreender
melhor o que se passa (e se passou) na Antropologia e nas Cincias Scias em
geral.
No quero, de forma alguma, soar prepotente, pois sei que esse assunto j
foi e ser ainda tema de muitos debates nas mais variadas reas do conhecimento.
Por isso, me propus a trabalhar com uma bibliografia mais clssica sobre o tema,
que problematiza como se d essa construo social, como feita a ordem e as
significaes. Logicamente, como esse um tema que perpassa um escopo
enorme, me limitarei, como dito acima, a analisar aqui apenas a obra do filsofo e
cientista poltico alemo Eric Voegelin sobre as sociedades cosmolgicas (ou
sociedades arcaicas, primitivas) e as maneiras como essas sociedades
empreendem a tarefa de dar ordem ao meio social, e as idias de Claude Lvi-
Strauss a respeito de como os povos sem escrita empreendem a tarefa de
significar, ordenar e simbolizar suas ordens.
Ainda assim, na temtica da ordem, no posso deixar de citar aqui algumas
pequenas passagens, dos autores citados, que muito me impressionaram (e
impressionam) e que me estimularam a realizar esse trabalho. Lvi-Strauss, a que
muitos tm como o maior pensador dentro da Antropologia, foi um dos poucos
que tentou resolver a questo da reincidncia das ordens. Cito-o, aqui, em seu
Mito e Significado:
Falar de regras e falar de significado falar da mesma coisa; e, se olharmos para todas as realizaes da Humanidade, seguindo os registros disponveis em todo o
mundo, verificaremos que o denominador comum sempre a introduo de
alguma espcie de ordem. Se isto representa uma necessidade bsica de ordem na
esfera da mente humana e se a mente humana, no fim de contas, no passa de
uma parte do universo, ento qui a necessidade exista porque h algum tipo de
ordem no universo e o universo no um caos (LVI-STRAUSS, 1985, p. 24).
Lvi-Strauss, que marcou o universo da Antropologia e, mais do que isso,
o mundo das Cincias Humanas, com seu estruturalismo, permite compreender as
similitudes das diferentes ordens atravs de um materialismo hard. Partindo, aqui,
da posio de um de seus herdeiros, o antroplogo Philippe Descola, podemos
DBDPUC-Rio - Certificao Digital N 1111637/CA
-
15
dizer, que recusando a oposio entre matria e esprito, Lvi-Strauss afirmou que
toda a vida social marcada por dois determinismos simultneos e
complementares:
[...] um, de tipo tecnoeconmico, impe ao pensamento coeres resultantes da relao que a sociedade mantm com um meio particular; o outro reflete as
exigncias inerentes ao funcionamento do esprito e se manifesta sempre idntico,
independentemente das diferenas entre os meios. (DESCOLA, 2011, p. 37)
Esse primeiro determinismo nos lembra que o etnlogo, como to bem fez
Lvi-Strauss, deve conhecer as propriedades objetivas dos objetos naturais, que o
esprito vai selecionar em determinado contexto cultural para encaix-lo em
conjuntos significantes, como os mitos e as taxonomias. Assim, para o
antroplogo, importante conhecer bem a ecologia de uma sociedade se h a
inteno de analisar suas produes ideolgicas, pois elas so a prova de um
compromisso entre certos traos do meio e as leis que organizam o pensamento
simblico.
Essa natureza enciclopdica, a que o pensamento se apropria para suas
simbolizaes, boa para pensar. Mas, essa natureza que est disposio do
esprito humano se ope quela outra a que Lvi-Strauss sempre evoca: a natureza
orgnica da nossa espcie. por meio dessa natureza que, segundo Lvi-Strauss,
efetuamos a percepo e a inteleco dos objetos sensveis, ela o mecanismo
biolgico que garante a unidade das operaes mentais e autoriza a esperana de
decifrar-lhes as regras (DESCOLA, 2011, p. 38). Enquanto a natureza externa
colocada num papel subsidirio, a natureza corporal vista pelo antroplogo num
lugar privilegiado. Como na passagem citada de Mito e Significado, a teoria das
faculdades lvi-straussiana se recusa a separar os estados da subjetividade, das
propriedades do cosmos. Assim, como diz o antroplogo:
[...] as leis do pensamento so as mesmas que se exprimem na realidade fsica e na realidade social, no sendo esta ltima outra coisa que um dos seus aspectos (LVI-STRAUSS, 1982, p. 520).
Portanto, h uma base da natureza a que o indivduo se utiliza nas suas
construes simblicas, mas essas construes obedecem s leis do pensamento
que so as mesmas que se exprimem na realidade fsica e social.
DBDPUC-Rio - Certificao Digital N 1111637/CA
-
16
Em O pensamento selvagem, porm, Lvi-Strauss ressalta o aspecto
arbitrrio que comanda as escolhas dos traos distintivos atribudos a tal ou qual
componente dos ecossistemas locais. Nas palavras de Descola:
[...]Lvi-Strauss insistia em mostrar que no h nada de automtico nem de previsvel no modo como uma sociedade seleciona este ou aquele aspecto de seu
hbitat para atribuir-lhe um significado particular e integr-lo em suas
construes mticas. (DESCOLA, 2011: 38)
Essa arbitrariedade, no entanto, segundo Lvi-Strauss, compensada pela
organizao dos elementos em sistemas coerentes. A estrutura dos mitos,
portanto, no aleatria, mas se organiza dentro de determinado nmero de
regras. Assim, exponho, por enquanto, um pouco das explicaes do antroplogo
sobre o tema, j que o assunto ser tratado de forma pormenorizada adiante.
Outro pensador que aqui evoco, como dito acima, Erich Hermann
Wilhelm Vgelin (1901-1986), ou Eric Voegelin. Reconhecido
internacionalmente, Voegelin figura como um dos maiores pensadores do sculo
XX, tendo travado discusses com inmeros intelectuais como, por exemplo,
Hans Kelsen e Hannah Arendt, e dono de uma vasta obra (sua obra completa
possui 34 volumes) que influenciou e influencia muitos intelectuais.
No Brasil, Voegelin foi deixado no ostracismo, mesmo que em 1979 a
Universidade de Braslia tenha lanado o seu A nova cincia da poltica. Com sua
enorme erudio e seu no-flerte com questes mais esquerda, Voegelin sempre
teceu crticas ao pensamento revolucionrio, mas crticas de ordem filosfica, que
impediam qualquer tentativa maniquesta de analisar a questo como um conflito
entre um liberal (no sentido brasileiro do termo) e seus pensamentos contra os
progressistas. Muito pelo contrrio, o filsofo sempre deixou claro que a
honestidade intelectual depende ipso facto do afastamento de qualquer ideologia
e, conseqentemente, de no enquadrar o mundo em categorias estanques e
opostas: At hoje sustento que no se pode, em hiptese alguma, ser ao mesmo
tempo um idelogo e um cientista social competente. (VOEGELIN, 2008, p. 80)
Assim, em 1979, num Brasil dominado, nas cincias sociais, pelo
pensamento marxista, Voegelin no vingou nas classes pensantes nacionais. Ao
contrrio, a intelectualidade brasilis se fez de ouvidos moucos para tentar fazer
um reacionrio, como este, sumir das estantes. Ledo engano, pois que grande
parte da intelectualidade mundial lia e discutia Voegelin (mesmo no
DBDPUC-Rio - Certificao Digital N 1111637/CA
-
17
concordando com seu pensamento), enquanto o Brasil submergia nas suas
escolhas intelectuais, sempre com um ar (mentiroso) de avant la lettre. Hoje,
porm, temos publicadas, por editoras brasileiras, vrias obras de Voegelin, como
toda a coletnea de Ordem e Histria e mais alguns livros como Hitler e os
alemes (que lhe rendeu o exlio nos Estados Unidos) e Reflexes
Autobiogrficas, alm de livros de comentadores e estudiosos da obra do filsofo.
Nessa dissertao, Voegelin entrar com sua anlise sobre o que
denominou sociedades cosmolgicas. Muito citado por Peter Berger em
inmeros de seus livros, Voegelin se props a estudar a histria das ordens em
seu Ordem e Histria. Definindo ordem como a estrutura da realidade como
experienciada pelo homem, bem como a sintonia do homem com uma ordem no
fabricada por ele, isto , a ordem csmica (VOEGELIN, 2008, p. 117), Voegelin
em Israel e a Reveleo, o primeiro volume de Ordem e Histria, analisa as
simbolizaes da ordem cosmolgica do antigo Oriente Prximo
(Mesopotmia, o imprio aquemnida, e o Egito) e das simbolizaes de ordem
em Israel. Seu procedimento ao analisar as diferentes sociedades pode ser
observado na seguinte passagem:
Uma vez que o homem no espera pela cincia at que ela lhe explique a prpria vida, quando o terico aborda a realidade social encontra um campo j ocupado
pelo que poderia ser chamado de auto-interpretao da sociedade. A sociedade
humana no simplesmente um fato ou uma ocorrncia do mundo exterior, que o
observador devesse estudar como se fosse um fenmeno natural. Embora a
exterioridade seja um de seus componentes importantes, ela em seu todo um
pequeno mundo, um cosmion, cujo significado provm do seu prprio interior,
atravs de seres humanos que continuamente o criam e recriam, como modo e
condio de sua auto-realizao. (VOEGELIN, 1979, p. 32)
Esse tipo de abordagem se relaciona profundamente com a metodologia
antropolgica1. Voegelin nos lembra que as simbolizaes usadas na realidade
social, nesse cosmion, no podem ser encaradas como conceitos tericos, para que
no haja risco de uma transferncia dos conceitos do estudioso para a realidade
social estudada. Assim, ao observar as sociedades cosmolgicas, Voegelin
procura no fazer tabula rasa desses grupos, como se pudesse inscrever seus
1 Voegelin, no caso, tenta usar essa metodologia na Cincia Poltica, no seu livro A nova cincia da
poltica, um resumo da conferncia por ele proferida em 1952. Foi publicado, l fora, pela
Universidade de Chicago e, aqui, pela UnB. No fundo, um tratado contra o positivismo ainda
reinante, na poca, nas Cincias Sociais.
DBDPUC-Rio - Certificao Digital N 1111637/CA
-
18
conceitos, mas comea a analis-los a partir do rico conjunto de auto-
interpretaes e prossegue atravs do esclarecimento crtico dos smbolos sociais
preexistentes.
Desta maneira, a ordem das sociedades cosmolgicas simbolizada
analogicamente a partir de uma ordem concebida do cosmos. Assim, os ritmos da
vida vegetal e animal, o ciclo das estaes, as revolues do sol, da lua e das
constelaes podem servir de modelos para a simbolizao analgica da ordem
social. Na lgica de Lvi-Strauss, essa seria a natureza enciclopdica servio das
criaes e simbolizaes do esprito humano.
Para Voegelin, se h uma histria da ordem e as ordens possuem
caractersticas comuns, isso se deve s experincias de equivalncia. Segundo
Voegelin, esse conceito foi tirado das anlises finais de Aristteles. O estagirita,
segundo Voegelin, ao longo da vida, foi ficando cada vez mais fascinado pelo
mito como fonte de sabedoria, fonte essa mais abrangente do que as estruturas da
realidade diferenciadas pelo filsofo. Segundo Voegelin, Aristteles compreendeu
as relaes existentes entre experincias e simbolizaes nos vrios nveis de
compactao e diferenciao. A simbolizao compacta, para Voegelin, refere-se
a das sociedades cosmolgicas. A diferenciao o processo (sem um fim ltimo,
pois o filsofo no acredita em um eidos ou sentido da histria), que atravs do
saltos no ser, faz surgir simbolizaes mais complexas como as de Israel e da
Grcia. Portanto, o filsofo diz que [o] conceito de equivalncia expressa a
identidade reconhecvel da realidade, experienciada e simbolizada em diversos
nveis de diferenciao (VOEGELIN, 2008, p. 160). Em outras palavras, apesar
das diferentes ordens, a reincidncia de caractersticas das mesmas pode ser
explicada, segundo Voegelin, pelo conceito de experincia de equivalncia, pois
as diferentes sociedades experienciam a mesma realidade, e essa realidade auto-
evidente:
Precisei desistir de tomar 'as idias' por objetos de uma histria e definir que o fenmeno investigado seria a experincia da realidade pessoal , social, histrica, csmica. No entanto, s era possvel explorar essas experincias
investigando suas articulaes por meio de smbolos. A delimitao do tema e ,
com ela, do mtodo a ser utilizado nessa investigao fez-me chegar ao princpio
bsico de toda a minha obra mais tardia: a realidade da experincia auto-
evidente. Os homens valem-se de smbolos para expressar suas experincias, e os
smbolos so a chave para compreender essas experincias. No h o menor
sentido em supor, por exemplo, que os sacerdotes egpcios que escreveram a
DBDPUC-Rio - Certificao Digital N 1111637/CA
-
19
Teologia de Mnfis ou os sacerdotes mesopotmicos que desenvolveram o Livro
dos Reis da Sumria fossem incapazes de articular experincias de forma clara
por terem problemas diferentes dos de um Voiltaire, um Comte ou um Hegel. O
que experienciado e simbolizado como realidade, em um processo de
progressiva diferenciao, a substncia da histria. (VOEGELIN, 2008, p. 124 grifos do autor)
Portanto, para o filsofo, todas as sociedades experienciam a mesma
substncia da histria, e a articulam e simbolizam de diferentes maneiras, mas
essas diferentes formas de simbolizao possuem caractersticas semelhantes. Ao
longo desse trabalho, iremos ver como Voegelin analisou as simbolizaes da
ordem atravs de trs caractersticas bsicas: a predominncia da comunidade do
ser; a transitoriedade dos parceiros na comunidade do ser; e a tentativa de tornar a
ordem essencialmente incognoscvel do ser o mais inteligvel possvel por meio
da criao de smbolos que interpretem o desconhecido por analogia com o
realmente, ou supostamente, conhecido.
Ao misturar Lvi-Strauss e Eric Voegelin para a discusso do problema da
ordem, posso ser acusado de unir anlises muito distantes. Porm, o que
procurarei fazer aqui mostrar como elas possuem semelhanas grandes, tambm
admitindo suas diferenas e impossibilidades de intercomunicao. No fundo,
existe uma unio de anlise entre, respectivamente, um antroplogo e um cientista
poltico/filsofo. Essa juno permite olhar para a problemtica da ordem por
ngulos diferentes e s faz enriquecer esse debate.
preciso lembrar, tambm, do importante artigo de Jeffrey C. Alexander,
O novo movimento terico, que coloca as diferentes teorias em uma perspectiva
histrica. Assim, diz o autor:
Contra a dominao do funcionalismo no ps-guerra empreenderam-se duas revolues. Por um lado, surgiram escolas radicais e estimulantes de
microteorizao, acentuando o carter contingente da ordem social e a
centralidade da negociao individual. Por outro lado, desenvolveram-se
vigorosas escolas de macroteorizao, enfatizando o papel de estruturas
coercitivas na determinao do comportamento individual e coletivo. (ALEXANDER, 1986, p. 1)
Pode-se dizer que os trabalhos de Voegelin e de Lvi-Strauss vo no
sentido do que Alexander chama de macroteorizao. Ambos intelectuais
fizeram um enorme esforo para compreender universais, reincidncias,
equivalncias, estruturas, formas do consciente e do inconsciente humano.
DBDPUC-Rio - Certificao Digital N 1111637/CA
-
20
possvel ainda dizer que ambos os pensadores colocaram problemas
inovadores na rea das Cincias Sociais e mais propriamente no estudo da ordem.
Esse trabalho, portanto, pretende ser uma pequena contribuio para as anlises
sobre a ordem.
DBDPUC-Rio - Certificao Digital N 1111637/CA
-
21
2.
Ordem e simbolizao
2.1
O problema da ordem nas Cincias Sociais
O problema da ordem, assim caracterizado por Jeffrey Alexander, dentro
das Cincias Sociais perpassa a ideia de como a sociedade e o indivduo
empreendem a tarefa de dar um significado e uma ordem para o seu mundo social.
As instituies, os valores, as crenas, o poder, e tudo aquilo que permeia o meio
social, necessitam de ordenao e significao. A construo social realidade,
nome homnio do livro de Peter Berger, a construo de um nomos ou de uma
ordem significativa, a funo mais importante da sociedade. Ao ordenar a
sociedade de maneira significativa, no s mundo social passa a fazer sentido,
como a vida do indivduo torna-se compreensvel diante do mundo. Sobre a
questo da ordem dentro de nossa disciplina, diz Alexander:
Refiro-me ao famoso problema da ordem, embora o defina de maneira ligeiramente diferente do que tem sido tipicamente o caso. Os socilogos so
socilogos porque acreditam que a sociedade tm padres, estruturas de alguma
maneira diferentes dos atores que a compem. Concordando embora com a
existncia de tais padres, os socilogos esto freqentemente em desacordo
sobre como na realidade a ordem produzida. Uma vez mais formularei esses
desacordos em termos de tipos ideais dicotmicos, porque exatamente esse
desacordo cumulativo que caracteriza a histria emprica e discursiva do
pensamento social (Ekeh, 1974 e Lewis e Smith, 1980). Essa dicotomia ope as
posies individualista e coletivista. (ALEXANDER, 1986, p. 9)
Tento, nesse primeiro captulo, tratar do problema da ordem atravs do
instrumental das Cincias Sociais. Privilegio na anlise as posies tomadas por
Peter Berger, em seus livros O Dossel Sagrado e A construo social da
realidade, que me parece fazer uma sntese bem construda das abordagens
DBDPUC-Rio - Certificao Digital N 1111637/CA
-
22
sociolgicas, entre outras, de Weber e Durkheim. Sntese que procura no perder
as intenes fundamentais dos founding fathers da sociologia, tentando, portanto,
equilibrar as posies individualista e coletivista a que Alexander se refere no
trecho acima.
Alm disso, foi atravs de Berger que, inicialmente, tomei conhecimento
do problema da ordem e de, como veremos mais frente, como a religio o
empreendimento de ordenao mais penetrante e duradouro.
Assumo que a sociedade um fenmeno dialtico, no sentido em que ela
um produto humano e, ao mesmo tempo, retroage de maneira contnua sobre o
homem, seu produtor. Como na famosa frase de Clifford Geertz - Acreditando,
como Marx Weber, que o homem um animal amarrado a teias de significados
que ele mesmo teceu [...] (GEERTZ, 1978, p. 39) acredito que no pode haver
realidade social sem a presena de seu produtor, assim como, esse mesmo
produtor um produto da sua sociedade, uma viso endossada por muitos
cientistas sociais.
Esse processo dialtico expresso em trs momentos da sociedade: a
exteriorizao, a objetivao e a interiorizao. A exteriorizao [...] a contnua
efuso do ser humano sobre o mundo, quer na atividade fsica quer na atividade
mental dos homens (BERGER, 2012, p. 16). Esse fato , para Berger (ancorado
em uma pliade de especialistas), uma necessidade antropolgica. Nesse sentido,
o homem inacabado ao nascer. A estrutura de seus instintos no possui um
carter especializado, como o caso do animal no-humano, que possui instintos
altamente especializados e dirigidos. O mundo do animal no-humano um
conjunto fechado em termos de possibilidades, pois a estrutura de seus instintos
determina esse mundo de maneira mais ou menos completa. No h um mundo do
homem, no mesmo sentido em que h um mundo dos cavalos, um mundo dos
ratos, dos ces. O mundo do homem um mundo aberto, possvel de ser
modelado (alguns dizem, com limites) pela prpria atividade humana. Ele existe
antes do homem, mas no est pr-fabricado para ele. a esse homem que
compete fazer um mundo para si. No tornar-se homem existe, ento, um
fundamento biolgico, pois o inacabamento humano compele ao homem a
atividade exteriorizante de criar um mundo, desenvolver uma personalidade e
assimilar a cultura. Assim, afirma Berger: O ser humano exteriorizante por
essncia e desde o incio (BERGER, 2012, p. 17).
DBDPUC-Rio - Certificao Digital N 1111637/CA
-
23
Estando biologicamente privado de um mundo do homem, possuindo
uma instabilidade congnita (BERGER, 2012, p. 18) em relao ao mundo, esse
homem precisa pr-se em equilbrio no seu habitat. Por no poder descansar em
si mesmo (Idem)2, necessrio que ele fornea sua vida estruturas firmes, em
contrapartida s que lhe faltam biologicamente. Essas estruturas firmes, que
iremos ver que no so to firmes assim, se encontram na cultura.
Adoto aqui um conceito de cultura corrente na antropologia cultural
americana para se referir totalidade de produtos humanos. Como j dito acima,
alguns desses produtos so materiais e outros no. Os exemplos mais evidentes
desses tipos de produtos so, respectivamente, os utenslios e ferramentas que, em
grande parte, promovem uma transformao da natureza pelas mos dos homens,
e a linguagem, que gera uma enorme gama de smbolos que participam
profundamente da vida humana.
A sociedade um elemento da cultura. Portanto, partilha com os outros
elementos culturais da propriedade de ser um produto humano. Porm, preciso
lembrar, como faz Eric Voegelin em A nova cincia da poltica, que embora a
exterioridade seja um componente importante no estudo das sociedades, a
sociedade em seu todo, um cosmion, um pequeno mundo, onde os seres
humanos continuamente criam e recriam seu significado, como modo e condio
de sua auto-realizao. Esse cosmion iluminado por um complexo simbolismo
que, como veremos mais frente com Voegelin, varia em graus de maior ou
menor compactao e diferenciao. Esse conjunto de smbolos ilumina com um
significado o mistrio da existncia humana, dando um sentido estrutura interna
desse pequeno mundo, possibilitando um significado das relaes entre seus
membros e grupos de membros, assim como a existncia como um todo. Nas
palavras de Voegelin:
A auto-iluminao da sociedade atravs dos smbolos parte integrante da realidade social, e pode-se mesmo dizer que uma parte essencial dela, porque
atravs dessa simbolizao os membros da sociedade a vivenciam como algo
mais que um acidente ou uma convenincia; vivenciam-na como pertencendo a
sua essncia humana. (VOEGELIN, 1979, p. 33)
A criao do complexo de smbolos um empreendimento coletivo, bem
2 Como diz Voegelin, ningum pode cair em si mesmo e no descobrir o grande vazio dessa
experincia.
DBDPUC-Rio - Certificao Digital N 1111637/CA
-
24
como a construo dos bens materiais. O que quer dizer que a construo
humana do mundo sempre social (BERGER, 2012, p. 20). Juntos, homens
fabricam mquinas e ferramentas, aderem a valores, criam instituies e
estabelecem lnguas. Atravs de dispositivos sociais, a cultura, esse apanhado de
produtos humanos, mantm sua posio e manuteno. Assim, a sociedade
apareceu, aqui, anteriormente como um resultado, ou elemento da cultura. Mas, j
se pode ver que ela tambm uma condio para a existncia da ltima. O
encaixe das peas culturais produzidas pelos homens feito atravs de uma
mediadora que a sociedade. Ela distribui e coordena os produtos da atividade
humana, que s nela podem perdurar.
Claude Lvi-Strauss em sua clssica Introduo, A obra de Marcel
Mauss, na coletnea de textos de Marcel Mauss intitulada Sociologia e
Antropologia, nos lembra o carter coletivo do sistema simblico:
prprio da natureza da sociedade exprimir-se simbolicamente em seus costumes e em suas instituies; contrariamente, as condutas individuais normais
jamais so simblicas por elas mesmas: so elementos a partir dos quais um
sistema simblico, que s pode ser coletivo, se constri. (LVI-STRAUSS in MAUSS, 1974, p. 7)
O indivduo projeta na realidade imediata os dados de sua prpria
conscincia. Esse ato, que o filsofo Edmund Husserl chamou intencionalidade,
tenta estabelecer algum sentido para o mundo, um significado, no sentido
fenomenolgico da palavra, que pode fazer com que o mundo faa sentido perante
o ser. Dessa atitude alimenta-se o sistema simblico, que coletivo por princpio.
O discurso simblico no , de modo algum, assimilado imediatamente por
imposio categrica. A atribuio de significados, isto , a compreenso, por
parte do receptor, do repertrio simblico, pressupe a cumplicidade dos
receptores no que se refere sua compreenso. Ou seja, necessrio que vrios
indivduos compartilhem os significados simblicos, permitindo assim, que o
indivduo identifique o smbolo, atribua a ele um sentido e interiorize a
representao nele contida.
Max Weber, em Economia e Sociedade, procura equilibrar essa dicotomia
colocando a ao social como a ao feita com relao significativa indicada a
outro indivduo, e deixando mais patente o lugar do ser humano como construtor
de uma realidade em que ele mesmo produz os significados da sua prpria ao.
DBDPUC-Rio - Certificao Digital N 1111637/CA
-
25
interessante lembrar, que a idia weberiana de ao social significativamente com
relao ao outro encontrou eco na sociologia fenomenolgica de Alfred Schutz.
Juntamente com a noo de intecionalidade de Husserl, a sociologia de Schutz
permite uma compreenso dialtica e, portanto, livre de determinismos das
relaes entre indivduo e sociedade.
Ao fenmeno da exteriorizao, segundo Berger, vem unir-se, como
consequncia, o conceito de objetivao. Os produtos do homem, gerados no
processo de exteriorizao, ganham um carter distinto daquele mesmo que o
produz. Ou seja, esses produtos passam a confrontar-se com o prprio homem que
os produziu como algo que lhe exterior. Esse algo exterior ganha carter de
objeto, material ou no-material, capaz de resistir aos desejos do homem que o
produziu:
Embora toda a cultura se origine e radique na conscincia subjetiva dos seres humanos, uma vez criada no pode ser reabsorvida vontade na conscincia.
Subsiste fora da subjetividade do indivduo, como um mundo. Em outras
palavras, o mundo humanamente produzido atinge o carter de realidade
objetiva. (BERGER, 2012, p. 22)
A objetividade a que os produtos culturais produzidos pelo homem passam
a ter como caracterstica pode ser mais facilmente vista em produtos materiais. Ao
criar um instrumento, como uma ferramenta agrcola, o homem enriquece a
totalidade dos objetos fsicos e busca facilitar o domnio sobre a natureza. Porm,
esse objeto, uma vez usado, no pode ser modificado de imediato e tende a impor
a lgica do seu manejo aos que o utilizam, mesmo que essa lgica no tenha sido
pretendida por aqueles que originalmente conceberam esse objeto. Hoje, com os
meios tecnolgicos imbricados no dia-a-dia do homem (celulares, tablets, leitores
de livros eletrnicos) essa imposio da lgica do objeto aparece muito
claramente.
Os elementos no-materiais da cultura tambm partilham dessa
objetividade. A lngua o exemplo clssico desse caso. As regras da expresso
falada e escrita, organizadas na gramtica, so produtos humanos que dominam,
de forma inconsciente diria Ferdinand Saussure, a comunicao entre os
DBDPUC-Rio - Certificao Digital N 1111637/CA
-
26
indivduos3. Alm disso, o homem constri instituies, que no dia seguinte, o
dominam e enfrentam de maneira controladora e intimidatria. Berger levanta a
questo, que para as Cincias Sociais parece bvia, de que [o] homem produz
valores e verifica que se sente culpado quando os transgride (BERGER, 2012, p.
23)4. Mas, importante lembrar tambm, que o grande Durkheim nos lembra que
o poder coercitivo do fato social pequeno comparado com outros elementos
desse mesmo fato:
O poder coercitivo que lhe atribumos forma at parte to pequena do todo constitudo pelo fato social, que ele pode apresentar tambm o carter oposto.
Pois, ao mesmo tempo que as instituies se impem a ns, aderimos a elas; elas
comandam e ns as queremos; elas nos constrangem e ns encontramos vantagem
no seu funcionamento e no prprio constrangimento. Esta anttese a que os
moralistas tm comumente assinalado entre as duas noes do bem e do dever,
que exprimem dois aspectos diferentes, mas igualmente reais, da vida moral. Ora,
talvez no existam prticas coletivas que deixem de exercer sobre ns esta ao
dupla, a qual, alm do mais, no contraditria seno na aparncia. Se no as
definimos por este lado especial, ao mesmo tempo interessado e desinteressado,
simplesmente porque ele no se manifesta por sinais exteriores facilmente
perceptveis. O bem traz qualquer coisa de mais interno, de mais ntimo do que o
dever, e portanto de menos apreensvel. (DURKHEIM, 1968, p. XXVIII, nota 1)
O carter de objetividade da cultura, portanto, nos diz que a cultura
aparece para o homem como um conjunto de elementos que est fora da sua
conscincia. Conseqentemente, a cultura est disposio para ser apreendida e
compartilhada com todos os que se engajarem (conscientemente ou no) na
empresa. Partilhar dos elementos culturais, de um universo de objetividades, eis a
o que significa estar imerso na cultura. Assim, possvel afirmar, lembrando
Durkheim, que a sociedade est fora do homem com um status de realidade
objetiva, mas que, subjetivamente, a sociedade se caracteriza pela sua fora
coercitiva, e por sua aparncia opaca:
3 Pode-se at hipostasiar esse carter de objetividade dos produtos culturais do homem dizendo,
como fez a Lingstica Estrutural, que a lngua se expressa atravs do homem, e no que o homem
se expresse atravs da lngua. 4 Sem querer me afastar do tema tratado, importe ressaltar que a conscincia culpada, a despeito
de todo o falatrio dos nietzchianos, uma condio sine qua non para a forma gregria de
existncia humana. Se afastar dessa evidncia para entrar numa filosofia de auto-ajuda da busca da felicidade sem culpas, da transvalorao de todos os valores, ou ainda a idia de que a culpa uma inveno crist, uma atitude infantil e temerria. Basta ler qualquer estudo srio sobre sociopatia.
DBDPUC-Rio - Certificao Digital N 1111637/CA
-
27
[os fatos sociais] resultam de snteses que tm lugar fora de ns, a respeito das quais no temos nem mesmo a percepo confusa que a conscincia dos
fenmenos interiores nos pode dar (DURKHEIM, 1968, p. XXVVII, nota 1).
Partilhar de um mundo de objetividades significa tambm que os
devaneios da conscincia solitria se chocam com a realidade efetiva da vida em
sociedade, e esta, como nos lembra acima Durkheim, possui uma opacidade que
resiste a uma anlise por simples introspeco. necessrio sair de si mesmo para
compreender fenmenos amplos como os fatos sociais.
A fora desse carter de realidade objetiva que a sociedade possui, pode
ser medida pela capacidade da mesma em impor-se relutncia dos indivduos: a
sociedade pune, sanciona e controla a conduta individual, e, em alguns casos,
pode mesmo destruir o indivduo. preciso lembrar que, apesar dessa
objetividade coercitiva estar evidente em alguns casos, todas as instituies
sociais possuem esse carter. Como lembrado acima, o carter coercitivo, at em
instituies criadas em consenso, necessrio para a vida em sociedade. Aos que
se esquecem, Berger nos lembra:
Isto [o carter coercitivo das instituies] (com toda nfase) no quer dizer que todas as sociedades sejam variaes da tirania. Quer dizer que nenhuma
construo humana pode, a rigor, ser chamada de fenmeno social a no ser que
tenha atingido aquele grau de objetividade que obriga o indivduo a reconhec-la
como real. Em outras palavras, a coercividade fundamental da sociedade est no
nos mecanismos de controle social, mas sim no seu poder de se constituir e impor
como realidade. (BERGER, 2012, p. 25 grifos do autor)
Essa passagem de Berger revela um conhecimento fundamental que a
Sociologia nos legou: o poder que a sociedade possui de aparecer como realidade
ao indivduo. Mesmo no processo de interiorizao, os fenmenos sociais mantm
o carter objetivo, pois, nesse processo, a conscincia do indivduo reabsorve esse
mundo de maneira que as estruturas externas (sociais) vm a determinar as
estruturas subjetivas da conscincia. A biografia de um indivduo s pode aparecer
como objetivamente real quando compreendida dentro das estruturas do mundo
social. Assim, dentro de sua conscincia, o individuo como eu real pode
conversar consigo mesmo como padre, por exemplo. H um dilogo interno, diz
George Hebert Mead em Mind, Self and Society, entre as objetivaes de si
mesmo. No fundo, o homem objetiva uma parte de si mesmo e a defronta, dentro
da sua conscincia, com figuras disponveis em elementos objetivos do mundo
DBDPUC-Rio - Certificao Digital N 1111637/CA
-
28
social. Na interiorizao, portanto, o indivduo apreende vrios elementos do
mundo objetivado como fenmenos internos da sua conscincia, ao mesmo
tempo, que os apreende como fenmenos da realidade exterior. Ou seja, os
processos que interiorizam o mundo socialmente objetivado so os mesmos
processos que interiorizam as identidades socialmente conferidas (BERGER,
2012, p. 29).
As identidades admitidas socialmente so absorvidas pelo indivduo que as
defronta e as assume, se quiser manter-se dentro de uma ordem (nomos). A
constituio dialtica da identidade pode ser resumida quando afirmamos que o
indivduo torna-se aquilo mesmo que os outros o consideram quando tratam com
ele (Idem). Em Carter e Estrutura Social, Wright Mills e Hans Gerth, resumem
bem essa idia:
Seja como for, sabemos que, em algumas situaes, o conceito que uma pessoa possui de si mesma est mais ou menos integrado com a imagem que os Outros
Importantes tm a seu respeito. A imagem da personalidade que apresenta aos
outros, e que tenta faz-los aceitar ou aprovar, idntica imagem que aspira.
Em outras situaes, podem-se produzir grandes distines entre o autoconceito,
a imagem apresentada e a imagem desejada. (GERTH e MILLS, 1973, p. 108)
Gerth e Mills ainda acrescentam outra informao importante: a possvel
dificuldade de xito na socializao total. No equilbrio dos trs momentos da
sociedade (exteriorizao, objetivao e interiorizao) uma socializao pode
obter xito. Um indivduo totalmente socializado pode ser imaginado como aquele
que possui em sua conscincia um anlogo de cada sentido objetivamente
disponvel no mundo social. Essa simetria entre os elementos objetivos da
sociedade e a conscincia do indivduo empiricamente no existente e
teoricamente impossvel de ser demonstrada:
No podemos afirmar que todos os elementos da estrutura psquica normal do adulto estejam socializados em termos de papis sociais aprovados. Vrios
impulsos e sentimentos que se estabeleceram na estrutura psquica, talvez antes
do surgimento da pessoa, podem no estar institucionalizados, impossibilitados
de agir sob a forma social sobre os papis disponveis s pessoas. O processo de
orientao, estipulado pela incorporao de papis e o condicionamento social,
no pode ser responsvel por tudo aquilo que h no homem; ou seja, as funes
pessoais no incluem todos os elementos da sua estrutura psquica. Por meio de
sistemas especficos de recompensas e proibies, aprovaes e condenaes, o
contexto social impede a manifestao de alguns aspectos da estrutura psquica de
determinadas pessoas. (GERTH e MILLS, 1973, p. 92 grifos do autor)5
5 A palavra pessoa, aqui, empregada por Gerth e Mills no sentido da avaliao do indivduo
DBDPUC-Rio - Certificao Digital N 1111637/CA
-
29
Aqui, vemos a admisso da querela clssica entre indivduo e sociedade. A
socializao do indivduo ocorre de maneira dialtica, pois, como j dito, esse
indivduo participante do processo e se apropria do mundo social, sendo no s
um produto, mas um produtor da ordem social. Por isso, tambm, a socializao
total apenas um conceito que, na realidade emprica, no possvel ser
encontrado, ao considerarmos o indivduo um agente participante da construo
social da realidade, e no apenas um membro passivo.
Afirmo, assim, que as estruturas firmes da cultura, no possuem toda
essa firmeza. Elas no so capazes de se impor totalmente aos indivduos.
Podemos, assim, falar de graus de xito na socializao. Um maior xito
compreende uma maior simetria entre o objetivo e o subjetivo, assim como num
menor xito a assimetria entre esses dois elementos predomina. Para ser um
empreendimento vivel e duradouro, a sociedade deve conseguir, no mnimo,
interiorizar seus sentidos mais importantes. Do contrrio, torna-se difcil
estabelecer uma tradio que permita sua persistncia no tempo.
A socializao, portanto, deve ser um processo contnuo atravs de toda a
existncia do indivduo. Uma grande questo que perpassa o xito da socializao
a dificuldade de manter esse mundo social (a ordem social) como algo
subjetivamente plausvel. A construo desse mundo e a sua manuteno
dependem da conversao com aqueles, como citado acima por Gerth e Mills,
Outros Importantes (os pais, os mestres, os amigos). A permanncia de uma
ordem social depende desse tnue fio de conversao.
A construo social do mundo , em outras palavras, a tarefa humana de
dar uma ordem ao seu cosmos; dotar seu mundo de significado. Uma atividade,
como diz Berger, nomizante ou ordenadora. Dar ordem estrutura da
realidade atividade intrnseca a toda espcie de interao social. Como nos diz
Weber, toda a ao social supe que o sentido individual seja dirigido aos outros.
A contnua interao dessas aes nos lembra Alfred Schutz, permite que os mais
variados sentidos dos atores sociais se integrem numa ordem comum de
significado. Como j explicado acima, no podemos imaginar que essa ordem, ou
esse nomos, abarque todos os significados individuais. Porm, a atividade
integrado com sua estrutura psquica da emoo, do impulso e da percepo, alm da combinao
dos papis que representa.
DBDPUC-Rio - Certificao Digital N 1111637/CA
-
30
ordenadora da sociedade pode ser descrita como totalizante, ou seja, o alcance do
nomos tende a se expandir para abarcar reas cada vez maiores de significados
comuns.
A atividade ordenadora objetiva, dada a partir do processo de objetivao,
tem como grande exemplo a linguagem. Essa imposio da ordem sobre a
experincia, que constitui a linguagem, estanca o fluxo ininterrupto da experincia
e estabiliza, nomeia e significa uma entidade. Nomear, como atividade ordenadora
fundamental, significa no s organizar o caos, mas separar e distinguir coisas. O
chamado princpio de identidade, ou seja, dizer que um item isto e no aquilo,
a atividade ordenadora primordial da qual se originar todas as outras.
A sociedade, portanto, impe experincia uma ordem de interpretao
que compartilhada pelos indivduos, visando uma totalizao dos significados. O
conhecimento objetivo, aquele a que todos os indivduos tm acesso, como
objetivao dos significados compostos pela ordem, em sua maior parte
composto por sentidos pr-tericos. Mesmo sendo o conhecimento terico uma
espcie de guardador das interpretaes oficiais da realidade, a ordem de
interpretao partilhada, em geral, consiste de esquemas interpretativos, mximas
morais, colees de sabedoria tradicional que o homem comum compartilhada
com os tericos. Apesar de existir uma variao quanto aos graus de diferenciao
dos corpos de saber das vrias sociedades, todas elas precisam disponibilizar
um saber aos seus membros. A integrao do individuo numa sociedade
depende ipso facto que ele partilhe do saber disponvel, ou seja, o indivduo
precisa co-habitar seu nomos (BERGER, 2012, p. 34):
Em outras palavras, viver num mundo social viver uma vida ordenada e significativa. A sociedade guardi da ordem e do sentido no s objetivamente
nas suas estruturas institucionais, mas tambm subjetivamente, na sua
estruturao da conscincia individual. (BERGER, 2012, p. 34)
Est a estabelecida a dependncia mtua entre indivduo e sociedade.
Portanto, separar-se radicalmente do mundo social constitui sria ameaa ao
indivduo, pois ele no perde to somente os laos emocionais, mas perde sua
orientao na experincia, chegando, em alguns casos, a perder o senso da
realidade e da identidade. Entra em um estado de anomia. possvel falar em
estados de anomia coletivos e individuais, como a perda de status de todo um
DBDPUC-Rio - Certificao Digital N 1111637/CA
-
31
grupo social ao qual o indivduo pertence; ou perdas estritamente biogrficas,
como a morte de um ente querido ou um divrcio. Em ambos os casos, a ordem
fundamental em termos da qual o indivduo pode dar sentido sua prpria vida
e reconhecer sua identidade, estar em processo de desintegrao. As
consequncias psicolgicas desse processo so gravssimas levando o indivduo a
perder suas posturas morais e a tornar-se inseguro quanta s suas posturas
cognitivas.
A perda da constante conversao com essa ordem fundamental, a entrada
do indivduo numa desordem de sentidos, pode lev-lo a uma tentativa de
ordenao atravs de uma simbolizao individual. Citado anteriormente, Lvi-
Strauss diz que as condutas individuais normais jamais so simblicas por elas
mesmas (LVI-STRAUSS in MAUSS, 1974, p. 7). So apenas elementos dos
quais o sistema simblico, que s pode ser coletivo, ir se construir. Essa iluso
de um simbolismo autnomo gerado pela tentativa de simbolizao individual, diz
o antroplogo, permite sociedade as classificaes das condutas consideradas
anormais, ou psicopatolgicas. As condutas psicopatolgicas individuais
oferecem em cada sociedade uma espcie de equivalente, em escala reduzida, de
simbolismos diferentes dos oficiais. Assim, para Lvi-Strauss, no podemos
considerar que o domnio do patolgico se confunda com o domnio do
individual, pois a classificao dessas perturbaes est inserida numa ordem
coletiva, num nomos, e, por isso mesmo, as condutas consideradas patolgicas se
diferenciam nas diferentes sociedades e nos diferentes perodos da histria.
A reduo do social ao patolgico ilusria na lgica de Lvi-Strauss.
Tudo aquilo que pode ser considerado doena mental, que considerado
estranho medicina oficial de uma determinada sociedade, deve ser visto como
incidncias sociolgicas na conduta de indivduos, cuja histria e as constituies
pessoais, por inmeros motivos, se dissociaram parcialmente do grupo, se
distanciariam da ordem social estabelecida. Mesmo se admitirmos, diz Lvi-
Strauss, um substrato bioqumico das neuroses6, poderia se admitir que essa
origem fisiolgica apenas cria um terreno favorvel, ou sensibilizador a certas
6 Fato amplamente aceito hoje na comunidade cientfica. curioso que esse mesmo fato tenha sido
antecipado, desde os anos 30, nas obras do psicanalista hngaro Lipt Szondi (1893-1986).
Szondi, na poca, foi rechaado por parte do estabilishment acadmico por afirmar que certas
condutas psicopatolgicas s poderiam ter alguma melhora mediante um tratamento (futuro)
atravs da alopatia.
DBDPUC-Rio - Certificao Digital N 1111637/CA
-
32
condutas simblicas (que se diferenciam das condutas oficiais), realando,
assim, a interpretao sociolgica desse tipo de conduta.
2.2
O sagrado e a ordem
A ordem socialmente estabelecida no abrange todas as reas, todos os
desejos de sentido7 dos indivduos. No h, como j dito, uma ordenao ou
simbolizao total. Certos aspectos da psique individual permanecero fora da
estrutura simblica produzida e utilizada socialmente:
[...] resulta que sociedade alguma pode ser integral e completamente simblica; ou, mais exatamente, que ela jamais vir a oferecer a todos os seus membros, e no
mesmo grau, o meio de utilizar-se plenamente na edificao de uma estrutura
simblica que, para o pensamento normal, realizvel apenas no plano da vida
social. Porque, falando com clareza, aquele a quem chamamos so de esprito
que se aliena, pois consente em existir num mundo definvel somente pela relao
entre mim e o outro. A sade individual de esprito implica a participao na vida
social, como a recusa em prestar-se a essa participao (sempre, porm, em
obedincia s modalidades por ela impostas) corresponde ao surgimento das
perturbaes mentais (LVIS-STRAUSS in MAUSS, 1974, p. 10)
A ordenao da sociedade, que gera o nomos socialmente estabelecido,
pode ser compreendida no seu aspecto mais importante como uma barreira contra
o caos: [...] a mais importante funo da sociedade a nomizao (BERGER,
2012: 35). Quando apartado do sentido gerado por essa ordenao, o indivduo
mergulha num mundo de desordem, incoerncia e loucura:
A realidade e a identidade so malignamente transformadas em figuras de horror destitudas de sentido. Estar na sociedade ser so precisamente no sentido de ser escudado na suprema insanidade de tal terror. A anomia intolervel at o ponto em que o indivduo pode lhe preferir a morte.
Reciprocamente, a existncia num mundo nmico pode ser buscada a custa de
todas as espcies de sacrifcio e sofrimento e at a custo da prpria vida, se o indivduo estiver persuadido de que esse sacrifcio supremo tem alcance
nmico.8 (BERGER, 2012, p. 35)
7 Uso essa expresso no sentido em que o psiclogo Viktor Frankl d em sua obra Em busca de
sentido: um psiclogo no campo de concentrao. 8 O estudo das seitas, a que podemos recorrer respeitada instituio ICSA (International Cultic
Studies Association), nos informa sobre a existncia de dois tipos de suicdios, dentro da tipologia
de Dukheim, que geralmente acontecem nesse tipo de ambiente. O suicdio de tipo altrusta, de
alcance nmico, pode ser visto no exemplo da famosa seita do lder Jim Jones, a People Temple Christian Church Full Gospel (ou Templo dos Povos) em que, no ano de 1978, suicidaram-se 918 pessoas coletivamente. Outro tipo de suicdio encontrado nas seitas o suicdio anmico,
DBDPUC-Rio - Certificao Digital N 1111637/CA
-
33
A questo da anomia pode ser descrita atravs do exemplo limite: a morte.
A morte constitui para a sociedade um formidvel problema no s devido sua
bvia ameaa continuidade das relaes humanas, mas tambm porque pe em
cheque os pressupostos bsicos da ordem sobre os quais descansa a sociedade.
Essas situaes marginais (sensu Karl Jaspers) esto constantemente colocando
em risco todo o nomos social, e desvelando a precariedade dos mundos sociais.
Num jogo dialtico de ordem e caos, o indivduo se espreita tentado colocar-se
dentro da realidade:
Visto na perspectiva da sociedade, todo nomos uma rea de sentido esculpida de uma vasta massa de carncia de significado, uma pequenina clareira de
lucidez numa floresta informe, escura, sempre ominosa. Vista da perspectiva do
indivduo, todo nomos representa o luminoso lado diurno da vida, precariamente oposto s sinistras sombras da noite. Em ambas as perspectivas, todo nomos um edifcio levantado frente s poderosas e estranhas foras do
caos. (BERGER, 2012, p. 36)
Para Berger, seguindo a mentalidade das cincias sociais, toda a sociedade
desenvolve mecanismos que ajudam seus membros a permanecerem na realidade
(entendida como aquela ordem oficialmente reconhecida), ou a voltar
realidade, isto , voltar das situaes marginais ao nomos socialmente
estabelecido. Mas, na verdade, o importante mesmo que o mundo social se
estabelea como coisa bvia (BERGER, 2012, p. 37). No basta que o
indivduo interiorize as caractersticas da ordem social oficial como teis,
desejveis ou corretas. necessrio, em termos de estabilidade social, que esse
mesmo indivduo considere essas caractersticas como inevitveis, como partes
integradas do sentido universal da natureza das coisas. A ordem e suas
caractersticas, ento, passam a ser dotadas de um status ontolgico, no sentido
em que, que neg-las equivale a negar o prprio ser o Ser universal, verdadeiro e
estvel e, conseqentemente, o que se nessa ordem.
Toda a vez que o nomos socialmente estabelecido atinge a qualidade de ser
aceito como expresso da evidncia, ocorre uma fuso do seu sentido com os que
so considerados os sentidos fundamentais inerentes ao universo. Nesse momento,
que acontece quando o indivduo, num lampejo de lucidez, se v totalmente perdido e no mais
encontra sua personalidade dentro daquele sociedade/seita, entrando num caso de anomia total.
Um desses exemplos sabidos pertence seita do lder Rajneesh (depois chamado de Osho) em que
um de seus membros, num momento de tomada de conscincia da sua situao, preferiu a morte, o
suicdio, e cimentou seus ps numa tina e pediu para que algum o jogasse numa piscina.
DBDPUC-Rio - Certificao Digital N 1111637/CA
-
34
nas palavras de Berger, nomos e cosmos aparecem como co-extensivos. Ou ainda,
como diz Schutz, a ordem procura aparecer como uma coisa bvia. Assim, quando
a ordem socialmente estabelecida aceita como expresso da natureza mesma das
coisas, o xito da socializao alcana um outro nvel. O mundo social torna-se
inevitvel e transgredi-lo passa a ser um ato de loucura, no s gerando uma
culpa moral, mas, at mesmo, um profundo medo da insanidade, do caos, da
anomia. A ordem social, ento, passa a ter um status ontolgico e neg-la equivale
a negar o prprio ser, esse ente que est inscrito na ordem universal das coisas.
As sociedades arcaicas, ou, nas palavras de Eric Voegelin, sociedades
cosmolgicas, so exemplos maiores da unio entre nomos e cosmos, pois a
ordem social faz parte do cosmos; no apenas um reflexo microcsmico, mas
o cosmos mesmo. Nesses casos, quando a ordem traveste-se de expresso natural
das coisas, seja ela entendida cosmologicamente ou antropologicamente, cria-se
uma estabilidade, o maior xito na socializao entre todos os esforos histricos
humanos.
A religio, aqui, entra inevitavelmente na nossa discusso. Entendo,
juntamente com Mircea Eliade, que a religio pode ser encarada como
cosmificao (ou a ordenao) feita de maneira sagrada. Por sagrado
compreendo a manifestao do supra-natural. Compartilho, aqui, a interpretao
de Eliade:
O sagrado manifesta-se sempre como uma realidade inteiramente diferente das realidades naturais [...] Encontramo-nos diante do mesmo ato misterioso: a manifestao de algo de ordem diferente de uma realidade que no pertence ao nosso mundo em objetos que fazem parte integrante do nosso mundo natural, profano [...] O homem toma conhecimento do sagrado porque este se manifesta, se mostra como algo absolutamente diferente do profano. (ELIADE, 1996, p. 16-17)
Ou seja, a religio pode ser encarada como um empreendimento humano
de ordenao do mundo social, empreendimento este que se difere do mundo
profano, criando uma significao, uma ordenao mais estvel9. Sabemos que as
diferentes civilizaes empregaram essa caracterstica de sagrado a diferentes
coisas: desde elementos da natureza at ao tempo e ao espao, passando pela
sacralizao de seres e espritos, costumes e instituies.
9 No entro aqui, ainda, na questo da plausibilidade como mantenedora da ordenao religiosa.
DBDPUC-Rio - Certificao Digital N 1111637/CA
-
35
A sacralizao do cosmos, portanto, fornece o supremo escudo do homem
contra o terror da anomia. Mais do que isso, afirmando juntamente com Eliade,
parece que foi s atravs do sagrado que foi possvel ao homem, em primeiro
lugar, conceber um cosmos.
2.3.
Legitimao e sociedades cosmolgicas
Dentro da discusso sobre a ordem, e mais especificamente, sobre a
cosmificao sagrada, devemos estar atentos ao ponto da legitimao. Por
legitimao, devemos ter em mente o saber socialmente objetivado que justifica e
explica a ordem social. Ou seja, todos os porqus sobre a estrutura da realidade
social se remetem, em busca de uma resposta, s legitimaes. Alm disso,
preciso lembrar que as legitimaes no tm carter individual, como construes
simblicas, so sempre coletivas. Tambm, nem sempre possuem um carter
normativo, no dizem s pessoas o que elas devem ser, apenas propem o que .
o caso, por exemplo, da moral do parentesco quando, tratando da proibio do
incesto, diz que Voc no pode se deitar com X, sua irm. A legitimao, como
nos lembra Berger, no uma ideao terica, mas, em sua grande parte, possui
um carter pr-terico. Esse fato amplamente desenvolvido por Lvi-Strauss na
sua antropologia estruturalista, que iremos discutir mais a frente.
A simples existncia do nomos de uma sociedade j um fato da sua
prpria legitimao. O carter objetivo da ordem social , em si, um fato
legitimador do mundo socialmente construdo. Isso porque:
[...] quando os sentidos das instituies so integrados nomicamente, as instituies so ipso facto legitimadas, at o ponto em que as aes
institucionalizadas aparecem como evidentes por si mesmas aos que as executam (BERGER, 2012, p. 43).
Porm, como j abordado, o xito da socializao nunca total, e a fim de
minorar os problemas de socializao e controle, outros meios de legitimao so
necessrios. A herana da ordem pelas prximas geraes deve estar baseada num
mecanismo de legitimao que as novas geraes possam habitar. A sociedade
tem que se preocupar com a existncia de frmulas legitimadoras para responder
s perguntas que surgiro inevitavelmente nas mentes da nova gerao. A
DBDPUC-Rio - Certificao Digital N 1111637/CA
-
36
sabotagem da ordem por indivduos que possuem interesses conflitantes um
fato absolutamente inescapvel quando lembramos que a socializao total
impossvel.
Dessa maneira, enquanto no houver nenhum desafio ordem
estabelecida, a objetividade/facticidade da ordem social se mantm como
elemento legitimador. Do contrrio, quando surge uma contestao ou desafio, a
facticidade ou objetivao do mundo socialmente construdo no mais poder ser
tomada como coisa bvia. Faz-se necessrio uma legitimao de razes mais
profundas, que responda s inquietaes tanto da nova gerao, quanto da antiga.
Fazendo um apanhado de graus de legitimao, sem nenhuma valorao
dos mesmos, podemos ver inicialmente um nvel pr-terico de legitimao como
na frase paradigmtica Sempre se fez assim; passando por um outro nvel
incipientemente terico como as mximas morais, os provrbios, a sabedoria
tradicional, que, complexificados, podem ser vistos na forma de mitos, lendas ou
contos populares. As legitimaes explicitamente tericas so aquelas que
separam reas especficas do saber. H ainda as construes altamente tericas
pelas quais a ordem social justificada e legitimada como um todo. Nas palavras
de Voegelin:
A sociedade iluminada por um complexo simbolismo, com vrios graus de compactao e diferenciao desde o rito, passando pelo mito, at a teoria e esse simbolismo a ilumina com um significado na medida em que os smbolos
tornem transparentes ao mistrio da existncia humana a estrutura interna desse
pequeno mundo, as relaes entre seus membros e grupos de membros, assim
como sua existncia como um todo. (VOEGELIN, 1979, p. 32)
A legitimao, que atua na manuteno da realidade tanto no nvel objetivo
quanto subjetivo, possui uma rea maior do que a da religio. Mas, possvel
dizer que a religio foi e o instrumento mais eficaz e amplo de legitimao. Ela
consegue relacionar as precrias construes da realidade com os sentidos ltimos
do cosmos, com o sagrado. A religio consegue a proeza de retirar o carter
construdo da ordem social e legitim-la infundindo-lhe um status ontolgico de
validade suprema, situando-as num quadro de referncia sagrado e csmico.
Provavelmente, a mais antiga forma dessa legitimao possa ser
encontrada naquilo que Eric Voegelin chamou de sociedades cosmolgicas, ou
seja, uma sociedade que conceba a ordem social como um reflexo, ou at mesmo,
a mesma ordem, da estrutura divina do cosmos. Essa ordem se estrutura dentro da
DBDPUC-Rio - Certificao Digital N 1111637/CA
-
37
relao entre o microscosmo (a sociedade) e a o macrocosmo (a estrutura divina
do cosmos).
Voegelin desenvolve sua anlise inicialmente no livro A nova cincia da
poltica e, depois, de forma mais pormenorizada, em toda a srie Ordem e
Histria, principalmente no Volume I, Israel e a Reveleo. Nesse mesmo livro,
na introduo intitulada A simbolizao da ordem, Voegelin inicia suas
observaes dizendo que o homem no pode ser encarado como um espectador
auto-suficiente. Ele, na verdade, um ator, e pelo simples fato da sua existncia,
se v obrigado a desempenhar um papel no drama do ser, embaraado por no
saber ao certo como desempenh-lo:
A prpria circunstncia em que um homem se v acidentalmente na condio de no ter plena certeza de qual pea e de como deve se conduzir para no estrag-la
j desconcertante; mas com sorte e habilidade ele poder livrar-se do embarao
e retornar rotina menos desnorteante de sua vida. (VOEGELIN, 2009, p. 45)
O homem, portanto, no pode retirar-se para uma ilha bem-aventurada a
fim de recapturar seu eu. no cotidiano, dentro da sociedade, que ele deve buscar
desempenhar seu papel, significar sua existncia:
O papel da existncia deve ser desempenhado na incerteza de seu significado, como uma aventura da deciso na linha entre a liberdade e a necessidade (VOEGELIN, 2009, p. 46).
Assim, o desconhecimento da pea e do papel a serem desempenhados
pelo indivduo se misturam com a incerteza sobre quem ele mesmo . Porm,
como nos diz Voegelin:
A preocupao do homem com o significado de sua existncia no campo do ser no permanece presa nas torturas da ansiedade, mas pode expressar-se na criao
de smbolos que se propem a tornar inteligveis as relaes e as tenses entre os
termos distinguveis do campo. (VOEGELIN, 2009, p. 47)
No processo de simbolizao das sociedades cosmolgicas, Voegelin
identificou quatro caractersticas tpicas. A primeira delas a predominncia da
experincia de participao. A experincia de participao pressupe a ideia de
comunidade do ser em que a consubstancialidade dos parceiros se sobrepe
separao de substncias. Atravs dessa simbolizao, possvel mover-se dentro
de uma comunidade em que tudo possui fora, vontade e sentimentos, em que
animais e plantas podem ser homens e deuses, em que homens podem ser divinos
DBDPUC-Rio - Certificao Digital N 1111637/CA
-
38
e deuses so reis, em que o difano cu da manh o falco Hrus e o Sol e a
Lua so seus olhos, em que unicidade subterrnea do ser um condutor de
correntes mgicas de foras boas ou ms que alcanaro subterraneamente o
parceiro superficialmente inalcanvel, em que as coisas so as mesmas e no so
as mesmas, e podem se transformar umas nas outras (VOEGELIN, 2009, p. 47).
Em linguagem antropolgica, a experincia de participao e sua
consubstancialidade dos parceiros pode ser definida dentro da questo do mana.
Marcel Mauss, em seu Esboo de uma teoria da magia , diz , baseado em
uma srie de estudos, que a noo de mana no comporta somente uma idia de
fora ou de ser. O mana tambm poder uma ao, uma qualidade e um estado. A
palavra mana corresponde, ao mesmo tempo, a um substantivo, um adjetivo e
um verbo:
Diz-se que um objeto tem mana para dizer que tem essa qualidade; neste caso, a palavra uma espcie de adjetivo (que no pode ser aplicado a um homem). Diz-
se que um ser, esprito, homem, pedra ou rio tem mana o 'mana de fazer isto ou aquilo'. Emprega-se a palavra mana nas diversas formas das diversas
conjugaes e ento ela pode significar 'ter mana', 'dar mana', etc. (MAUSS, 1974, p. 138)
O mana, portanto, permite uma consubstancialidade entre os seres. Ele est
em uma infinidade de coisas, sendo uma s e mesma fora, no fixa, mas
repartida entre os seres, os homens, os espritos, as coisas, os acontecimentos, e
etc. Assim, ele uma qualidade posta nas coisas, sem prejuzo das outras
qualidades dessas mesmas coisas; est superposto elas. Segundo Mauss, o mana
um acrscimo invisvel, aquilo que poderamos chamar de maravilhoso,
espiritual, em resumo, o esprito que, pela sua eficcia, reside em todas as
coisas. Ele no pode ser objeto de experincia e no o sobrenatural, mas , ao
mesmo tempo, sobrenatural e natural, pois est espalhado por todo o mundo
sensvel. Nessa mesma perspectiva, vale lembrar Voegelin, que ao se referir
experincia de participao, diz que ela no um dado da experincia na
medida em que no se apresenta maneira de um objeto do mundo exterior, mas
s pode ser tida como cognoscvel, na medida em que se participa dela.
O mana, assim, possui um carter misterioso, que capaz de unir ou
consubstancializar diferentes elementos; pertence s partes e ao todo. Ele possui
um poder expansivo, capaz de abarcar reas cada vez maiores: [...] uma espcie
de ter, impondervel, comunicvel, que se expande por si mesmo (MAUSS,
DBDPUC-Rio - Certificao Digital N 1111637/CA
-
39
1974, p. 141). Alm disso, uma espcie de ambiente, e funciona num ambiente
que todo mana. Como diz Voegelin, referindo-se a experincia de participao:
A grande corrente do ser, em que ele [o homem] flui e que flui nele, a mesma
corrente a que pertence tudo aquilo que flutua at sua perspectiva (VOEGELIN,
2009, p. 47).
Ou seja, a comunidade do ser de Voegelin, depende, em linguagem
antropolgica, da existncia da categoria mana. A comunidade do ser como
uma caracterstica da simbolizao das sociedades cosmolgicas, enuncia as
regras da gramtica da categoria mana. Para Mauss, nesse tipo de simbolizao,
que faz parte da magia e da religio, so as idias inconscientes que agem. O
mana, para o antroplogo, uma categoria fundamental do esprito humano.
Numa passagem bem kantiana, Mauss diz que o mana [...] funciona como uma
categoria, tornando possveis as idias mgicas como as categorias tornam
possveis as idias humanas (MAUSS, 1974, p. 147). O mana, portanto, como
todo tipo de simbolizao, como disse acima Lvi-Strauss, uma categoria do
pensamento coletivo. Ele permite, por exemplo, que animais e plantas se
conectem e tenham poderes; permite pensar, nos utilizando de Voegelin, que a:
[...] unicidade subterrnea do ser um condutor de correntes mgicas de foras boas ou ms que alcanaro subterraneamente o parceiro superficialmente
inalcanvel [...] (VOEGELIN, 2009, p. 47)
Permite, at mesmo, permite a existncia de uma grande corrente do ser
em que o homem flui e que flui nele e que a mesma corrente a que pertence
tudo aquilo que flutua at sua perspectiva. (VOEGELIN, 2009, p. 47).
Pode se dizer que a categoria mana permite, assim, que esse mundo
mgico se sobreponha ao mundo natural, criando uma espcie de quarta
dimenso do espao, em que a noo de mana exprimiria a existncia oculta.
Mas, preciso lembrar, que para Mauss, o valor mgico das coisas resulta da
posio relativa que ocupam na sociedade. Adiantando em dez anos a anlise de
As formas elementares da vida religiosa, Mauss afirma:
No fundo, trata-se sempre, na magia, de valores respectivos reconhecidos pela sociedade, valores que no se atm, na realidade, s qualidades intrnsecas das
coisas e das pessoas, e sim ao lugar e posio que lhes so atribudos pela
opinio pblica soberana, pelos seus preconceitos. (MAUSS, 1974, p. 149)
DBDPUC-Rio - Certificao Digital N 1111637/CA
-
40
O mana, como categoria do pensamento coletivo, permite fundamentar
juzos, impondo uma classificao das coisas. A qualidade de mana permite, de
modo arbitrrio, juntar e classificar coisas, ordenando-as hierarquicamente. Nesse
ponto, podemos citar Voegelin que diz que a segunda caracterstica da
simbolizao da ordem nas sociedades cosmolgicas a durabilidade e a
transitoriedade dos parceiros na comunidade do ser. A relao de durabilidade e
transitoriedade cria uma hierarquizao:
Pois as existncias mais duradouras sendo as mais abrangentes, fornecem por meio de sua estrutura o arcabouo em que a existncia menos duradoura precisa
se encaixar se no est disposta a pagar o preo da extino (VOEGELIN, 2008, p. 48).
Essa hierarquizao atravs da durabilidade e transitoriedade poder ser
resumida em termos matemticos da seguinte forma:
Homem < Sociedade < Mundo < Deuses
Ou seja, a existncia humana, sendo a mais precria e transitria, menor
que a sociedade e sua possibilidade de ao atravs do tempo, que menor que o
mundo que dura enquanto as civilizaes passam. Esse ltimo no s superado em
durabilidade pelos deuses, como talvez seja mesmo criado por eles. Existe,
portanto, uma hierarquia da existncia, que vai da efemeridade do homem
existncia eterna dos deuses. Esse elemento de hierarquizao fornece, segundo
Voegelin, uma importante fora de ordenao da existncia do homem. preciso
estar sintonizado com as ordens mais duradouras e mais abrangentes, para que a
existncia menos duradoura no precise pagar o preo de sua extino.
A hierarquizao dentro da comunidade do ser nos informa que os
deuses, por durao e abrangncia, se encontram, logicamente, acima dos homens.
Voltando ao mana, e baseando-se nessa categoria, segundo a lgica de Mauss, a
hierarquizao parte de juzos sintticos a priori que linguisticamente podem ser
expressos na noo de mana (que seria a expresso de sentimentos sociais que se
formam fatal e universalmente a respeito das coisas, de forma arbitrria). Assim,
essa categoria que permite uma consubstancialidade entre as coisas, tambm
permite uma hierarquizao, mas hierarquizao essa, segundo Mauss, baseada na
ordem dos sentimentos, das volies e das crenas. Lembrando Voegelin:
DBDPUC-Rio