ÓRFÃO DO ELDORADO - MILTON HATOUM

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    rfos do Eldorado

    O Instinto de Nacionalidade em

    Um olhar regionalista

    Jssica de Souza Carneiro

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    Literatura um sistema que se compe deunidades organizadas responsveis por umacerta nalidade. Mas, quais so as partes, porexemplo, do sistema literrio brasileiro? Qualo elemento comum entre essas partes? Halguns pontos de divergncias entre tericosda rea no que se refere ao perodo exato deformao da literatura brasileira enquantosistema autnomo. A saber, Antnio Cndido,em Formao da literatura brasileira,a rmaque com os rcades mineiros, as ltimasacademias e certos intelectuais ilustrados, quesurgem homens de letras formando conjuntosorgnicos e manifestando em graus variveis

    a vontade de fazer literatura no Brasil. ParaAfrnio Coutinho, emFormao da literaturabrasileira, porm, a origem da literaturabrasileira se efetua em pleno estilo barroco.Ambos os autores, entretanto, concordamque o elemento que existe em comum entre aspartes do sistema literrio produzido no passe caracteriza pela busca de autenticidade e daconstruo de sentidos plurais para o Brasil noque consiste formao do imaginrio e das

    tradies nacionais: a integrao do par lnguanacional/terra natal imagem e memriade brasilidade.

    nesse contexto que o presente ensaiopretende abordar o conceito de instintode nacionalidade, proposto por AfrnioCoutinho, segundo o qual o aspecto esttico ede literariedade observado nos primrdios daliteratura brasileira se manifesta na encarnaodo trao nativista e do esprito nacional. Talaspecto ainda se encontra visvel nas formascontemporneas de representao do Brasilatravs da literatura, como se poder perceberpor meio da anlise da narrativa (ps)modernarfos do Eldorado, de autoria do escritoramazonense Milton Hatoum.

    O instinto de nacionalidade, segundo

    Coutinho, caracterizado por Machado deAssis, em ensaio redigido na dcada de 1870,como aquele sentimento ntimo que buscaa expresso de qualidades nativas sobre amatria, a forma, a estrutura, a temtica, acaracterizao de personagens e a seleode assuntos genuinamente brasileiros naliteratura. Conforme o autor, trs so asprincipais formas apresentadas pelo naciona-lismo em literatura: em primeiro lugar, a

    literatura compreendida como instrumentode um ideal nacional de expanso e domniopoltico de um povo ou raa; em segundo,

    LITERATURA

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    Cano do exlio

    Minha terra tem palmeiras,Onde canta o Sabi;As aves, que aqui gorjeiam,No gorjeiam como l.

    Nosso cu tem mais estrelas,Nossas vrzeas tm mais ores,Nossos bosques tm mais vida,Nossa vida mais amores.

    Em cismar, sozinho, noite,Mais prazer eu encontro l;Minha terra tem palmeiras,Onde canta o Sabi.

    Minha terra tem primores,Que tais no encontro eu c;Em cismar sozinho, noiteMais prazer eu encontro l;Minha terra tem palmeiras,Onde canta o Sabi.

    No permita Deus que eu morra,Sem que eu volte para l;Sem que desfrute os primoresQue no encontro por c;Sem quinda aviste as palmeiras,Onde canta o Sabi.

    Gonalves Dias, 1847

    Exlio do p quebrado

    Minha terra tem aaizeiroque um palmiteiro boliuas mangueiras j no enfeitama catorze de abril

    Minha terra Ver-o-Pesoda Bahia do GuajarOs periquitos daquino cantam como os de l

    Minha terra curiosaTem caveira de sapo enterradoA gente toca carimbs que escuta marujada

    Que prazer encontro eu lnas manhs de chuva naa garoa vai brotandofeito xixi de menina

    No permita, minha Senhora,Santinha de amor e de fQue eu desmanche sem voltarao Crio de Nazar

    Paulo Nunes, 2001

    a valorizao do pitoresco sob todas asmanifestaes nacionais; e, por ltimo, o daautenticidade de um brasilismo interior,identi cado principalmente em virtude dotema indianista.

    primeira vista, pode-se dizer querfos do Eldoradose desenvolve a partirda manifestao da segunda forma denacionalismo literrio apontada por Coutinho,que a do pitoresco, uma vez que a obra seconcentra na descrio das especi cidadesda regio Norte do Brasil: a Amaznia. Estaaspirao pe o regional acima do nacional,mas no faz do sentimento de patriotismoreferido por Machado de Assis enquantoinstinto de nacionalidade menos autntico

    no texto literrio em questo. Ao buscar nointerior do pas a sntese do prprio Brasil, oregionalismo tambm re ete a linguagem dobrasileiro sob a perspectiva da universalidadedo sentimento nacional.

    O que acontece, como no caso derfosdo Eldorado, que o autor regionalistadescreve sua terra e sua gente no apenas comexaltao, mas de maneira centrada e re exiva,muitas vezes apoiado em um passado mtico,numa tentativa de compreender um momentohistrico particular ou as singularidades de umcenrio espec co. A ttulo de exempli cao, possvel citar a esse respeito a poesia indianistade Gonalves Dias que, no sculo XIX, nascedaquela aspirao patritica de fundar a

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    nobreza do pas sob um olhar de nostalgia enacionalismo: a clebreCano do Exlio.Talpoema foi adaptado em inmeras verses,dentre elas, a do poeta paraense Paulo Nunes,que confere obra um olhar regional, mas nopor isso menos patritico ou nacionalista.

    No primeiro poema, nota-se umsentimento de idealizao, de carter otimista,de exotismo e referncia natureza, ao passoque, no segundo, observa-se o humano emsuas relaes com o meio, com a linguagem,a paisagem e a cultura de uma determinadaregio. luz desses exemplos, entende-seque a narrativa rfos do Eldorado marcada

    pela nostalgia que permeia o olhar de Hatoumsobre Manaus/Amazonas, cidade onde nasceuem 1952, e da qual se auto-exilou em 1998,quando, insatisfeito com a poltica local,passou a morar de nitivamente em So Paulo.Assim, Hatoum busca imprimir em sua obraliterria um olhar nacionalista com enfoqueregional, desvendando, a vida, a histria e osmodos do Norte, um pedao do pas muitasvezes desconhecido pelos prprios brasileiros.

    Numa cidade beira do rio Amazonas,

    um passante vem procurar abrigo sombrade um jatob e, incauto ou curioso, dispe-sea ouvir um velho com fama de louco. o quebasta para Arminto Cordovil comear a contara histria de rfos do Eldorado a histriade seu prprio amor pela ndia Dinaura, mastambm a crnica de uma famlia, de umaregio e de toda uma poca que, base da seivada seringueira, encara os sonhos seculares deum Eldorado Amaznico. Percebe-se, ento,que a narrativa se fundamenta nas lembranasde um tempo e um lugar muito peculiares etraz tona a abordagem de temas universais,como amor, dio, vingana, desestruturaofamiliar, falncia, etc. O esprito nacionalistade Hatoum, em rfos do Eldorado,percorreas diversas partes da Amaznia: a cidade, amata, o rio... O personagem principal usa osespaos de sua vida para contar lendas e mitosamaznicos, contos de botos que engravidamvirgens e mulheres que largam o mundo paraviver numa cidade encantada no fundo do rio.

    A voz da mulher atraiu tanta gente, que fugida casa do meu professor e fui para a beirado Amazonas. Uma ndia, uma das tapuias da

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    cidade, falava e apontava o rio. No lembroo desenho da pintura no rosto dela; a cordos traos, sim: vermelha, sumo de urucum.Na tarde mida, um arco-ris parecia uma

    serpente abraando o cu e a gua. Floritafoi atrs de mim e comeou a traduzir o quea mulher falava em lngua indgena; traduziaumas frases e cava em silncio, descon ada.Duvidava das palavras que traduzia. Ou da voz.Dizia que tinha se afastado do marido porqueele vivia caando e andando por a, deixando-asozinha na Aldeia. At o dia em que foi atradapor um ser encantado. Agora ia morar com oamante, l no fundo das guas.

    V-se, assim, que, logo na primeira linhadesse trecho que inicia a narrativa de MiltonHatoum, a histria ambientada tendo comocenrio principal a beira do rio Amazonas e, j a, tambm faz referncia s tradies ecaractersticas do povo nativo, bem comos lendas, mitos e crenas do local que, emseguida, vm narrados com a histria dohomem da piroca comprida, da mulher

    seduzida por uma anta-macho, da cabeacortada. O narrador em primeira pessoa,Arminto Cordovil, descreve e faz parte de umafamlia tradicional da regio e remete-se auma srie de momentos marcantes na histriada Amaznia, como a Guerra dos Cabanos, oCiclo da Borracha, aBlle poque, que tiveramimpacto decisivo na formao da identidadenacional e at mundial, como se observa notrecho: Fazia tempo que eu no pisava emManaus, e eu sabia que a guerra na Europaprejudicava a exportao da borracha. A guerrae as seringueiras plantadas na sia.

    Esse cunho nacional, brasileiro, impressona literatura de Hatoum, bem como o carterregionalista da obra, re ete o que Machado deAssis caraterizou e Afrnio Coutinho conceituoucomo instinto de nacionalidade. De acordocom Coutinho, enfatizar os valores de nossascaractersticas raciais, sociais, culturais ereivindicar os direitos de uma fala que se

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    especializou no contato da rugosa realidadenacional constitui uma constante na histriaintelectual e na literatura brasileiras, tanto queos temas nacionalistas, nossas frutas, nossosfeitos, nossos hbitos, podem ser vistos aindana literatura (ps)moderna, como no caso derfos do Eldorado.

    Prximo da oresta, via os casebres tristes

    da Aldeia, ouvia palavras em lngua indgena,murmrios, e, quando voltava pela beira dorio, via barcos pesqueiros atracados na rampado Mercado, barcos carregados de frutas, umvapor que descia o Amazonas para Belm.(...) Uns anos antes da morte do meu pai, aspessoas s falavam em crescimento. Manaus,a exportao de borracha, o emprego, ocomrcio, o turismo: tudo crescia.

    O que pretende o nacionalismo brasileiro a rmar o Brasil, observa Coutinho, que

    cita o regionalismo como expresso da almabrasileira a falar uma lngua que s brasileirosentendem e sentem; o mesmo pensamentobrasileiro nacional (...) pensamento de fazerBrasil dentro do Brasil.. Essa a rmao se

    exempli ca com os seguintes trechos derfos do Eldorado:

    Uma tapuia me amamentou. Leite de ndia ouo suco leitoso do tronco do amap (p.16).

    Meu pai gostava de Vila Bela, tinha um apegodoentio pela terra natal (p.17).

    O corao e os olhos de Manaus esto nosportos e na beira do Rio Negro (p.19).

    Eram loucos para conhecer o Teatro Ama-zonas, no entendiam como poderia existirum colosso de arquitetura no meio da selva(p.21).

    Flechvamos peixinhos, subamos nas rvores,tomvamos banho no rio e corramos na praia(p.21).

    Assim, a narrativa de Hatoum cria smbolosque traduzem literariamente a vida social no

    pas em um contexto histrico determinadoe nacionaliza as singularidades de uma regioparticular, o Norte brasileiro: Em pouco tempoo humor de Manaus se alterou. Li nos jornais umdesabafo do meu pai: reclamava dos impostos

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    absurdos, do valor das taxas alfandegrias, dopssimo funcionamento do porto, da balbrdiana nossa poltica., o que mais uma vezremete ao carter universal da obra. AfrnioCoutinho a rma que nenhuma cultura seconstri no isolamento, custa unicamentedas qualidades nativas, cortando os laos coma comunidade humana. Portanto, as correntesliterrias contemporneas, ainda que sob olharregionalista, se entrosam e se vivi cam narelao entre o nacional e o universal.

    Coutinho chama ateno ainda para ofato de que, diante da perspectiva exposta,a temtica nacionalista constitui uma linha

    permanente na literatura brasileira de prosa everso desde as primeiras experincias literriasque se manifestaram no pas at chegar nosdias atuais. O fato que a exaltao lrica daterra ou da paisagem, da crena do prpriomito do Eldorado, da terra prometida, ricae farta, habitada por um bom selvagem,que serve de inspirao para a narrativa deHatoum, sempre in uenciou fortemente aliteratura nacional. Expresses dessa presenaimpositiva da natureza na literatura brasileira

    so o indianismo, o sertanismo, a literaturapraieira, os diversos ciclos da cana, do couro,do cangao, da seca, a nal de contas, doregionalismo. As caractersticas regionais derfos do Eldorado, por exemplo, cam muitoclaras com a exaltao das singularidadesdo cenrio amaznico: o povo, a cultura, osrecursos naturais.

    Nenhum elemento em rfos do Eldorado ganha maior destaque do que os rios da regio.A riqueza hdrica da Amaznia que fornece omodo de vida da famlia Cordovil, que permitea fuso dos imigrantes estrangeiros comos ndios. tambm na gua que Armintodeposita as histrias de infncia, esperanas eat os seus desassossegos de amor. No mais, anarrativa de Hatoum tambm salienta a belezado povo local, das indiazinhas comparadass mulheres europias, boas e belas em tudo,s que plidas demais. Do ponto de vistacultural, ressalta-se a referncia ao mito doEldorado, que, na obra, representa uma dasverses ou variaes possveis na crena daCidade Encantada, identi cada como parteda cultura indoeuropia e que tambm semanifesta na cultura amaznica e amerndia.

    Expresses populares e prprias dovocabulrio local tambm podem serobservadas em rfos do Eldorado, comonos trechos O Amazonas arrastava tudo:restos de pala tas, canoas e barcos debubuia e Mano, quem no deve favores paraAmando?. Em outros trechos, Hatoum citaalguns dos cartes postais da Regio Norte: oteatro Amazonas, em Manaus, a Cidade Velha,o Teatro da Paz, o Largo de Nazar, a loja ParisNAmrica e o Ver-o-Peso, em Belm. Como j mencionado, a obra de Hatoum faz aindareferncias a fatos ocorridos na Amaznia defundamental importncia para a constituio

    da histria nacional, conforme exposto notrecho a seguir:

    O presidente Vargas disse que os Aliadosprecisavam do nosso ltex, e que ele e todosos brasileiros fariam tudo para derrotar ospases do Eixo. Ento milhares de nordestinosforam trabalhar nos seringais. Soldados daborracha. Os cargueiros voltaram a navegarnos rios da Amaznia; transportavam borrachapara Manaus e Belm, e depois os hidroavieslevavam a carga para os Estados Unidos. Ossonhos e as promessas tambm voltaram. Oparaso estava aqui, no Amazonas, era o que sedizia. O que existiu, e eu no esqueci nunca, foio barco Paraso. Atracou a embaixo, na beirado barranco. Trouxe dos seringais do Madeiramais de cem homens, quase todos cegos peladefumao do ltex.

    A partir da anlise desenvolvida possvel concluir, juntamente com Coutinho,que o nacionalismo literrio no Brasil aincorporao literatura da realidade local em tipos, costumes e instituies.rfosdo Eldorado, na estrutura e na temtica, um exemplo perfeito, nos tempos atuais, deuma obra com feitio brasileiro tpico, queexempli ca claramente o conceito de instintode nacionalidade: o elemento comum entreas partes que constituem o sistema literriobrasileiro.

    SAIBA MAIS

    CANDIDO, Antonio. Formao da literaturabrasileira. 6 edio. Belo Horizonte: Itatiaia, 1981.

    COUTINHO, Afrnio. Conceito de literaturabrasileira (ensaio). Rio de Janeiro, Acadmica, 1960.

    HATOUM, Milton. rfos do Eldorado. So Paulo:Companhia das Letras, 2008.

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