OrFEL - Edição Especial Transborda

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Belo Horizonte - edição especial - setembro de 2011 Transborda na cidade

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O fanzine OrFEL é uma publicação contruída colaborativamente. Esta edição é uma parceria entre a FEL - Fora do Eixo Letras - e o Coletivo Fora das Bordas (BH). Ela contempla autores de diversas partes de Minas Gerais.

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B e l o H o r i z o n t e - e d i ç ã o e s p e c i a l - s e t e m b r o d e 2 0 1 1

Transborda na cidade

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Com esta edição especial* para o Festival de Artes Transversais Transborda 2011, o fanzine OrFEL propõe percorrer a ideia de cidade em seus diversos meandros. E já que o tema do próprio festival, organi-zado pelo Coletivo Pegada e integrado do Circuito Mineiro de Festivais Independentes, é a ocupação do espaço público, nada melhor do que usarmos nossa ferramen-ta, o texto, para denunciar o “roubo” e o “amesquinhamento” desse espaço, como elucida o querido João Antônio nas suas Notas sobre a utopia e a cidade.

É justamente pela necessidade de recons-truir a cidade como “espaço do diálogo, da polifonia” e também “dos encontros, das situações, do encantamento”, que pre-tendemos - junto às outras atividades do Transborda 2011 - provocar o questiona-mento do ethos na cidade hoje, focando no sentido de ethos como modo de ser dos cidadãos.

Diante dos sérios riscos de destruição desse espaço de realização do “humano do homem”, espaço da liberdade por ex-celência, intervenções como esta fazem-se ainda mais urgentes, pois colocam em

EditorialJunia Mortimer (Pegada / Fora das Bordas)

Ricardo Sangiovanni (O Purgatório)Tatiana Oliveira (FEL - Fora do Eixo Letras)

Cada cidade pode ser outra/ quando o amor a transfigura(Mario Benedetti)

Expediente

Conselho Editorial: Junia Mortimer (Pegada / Fora das Bordas) Ricardo Sangiovanni (O purgatório)Tatiana Oliveira (FEL - Fora do Eixo Letras)

Projeto gráfico, capa e ilustrações:Esther Gonçalves (Percepções)

Equipe de apoio ao conselho editorial: Rita de Podestá (Transição Poética).

Colaboradores desta edição: Ensaio crítico: João Antônio de Paula (CEDEPLAR/FACE/UFMG) – Notas sobre a cidade e a utopiaPoemas:Aluizio Moraes de Rezende – Obscuro DesejoRenan Moreira – sem títuloHugo Lima – Trânsito Franceline Rodrigues Silva – Co-autoriaSaulo de Oliveira Campos – A imaginaçãoProsa:Isabel de Assis Fonseca – Pensão dispensadaRodolfo Gullar – Estranho comum amorTradução:Junia Mortimer (Pegada / Fora das Bordas) Ricardo Sangiovanni (O purgatório)Ricardo Viel (O purgatório)

Imagem:Fora das Bordas

“Textos assinados são de responsabilidade dos autores.”

xeque esse modo de ser contemporâneo em que prevalecem interesses privados sobre os coletivos. Como sabemos, a ideia de cidade se fundamenta justamente no contrário.

Isso não significa, no entanto, que a esfera do público deva anular a esfera do priva-do, pois não nos interessa sermos massa, ou tous-un. Quando essas esferas deixam de ser legítimas e extrapolam uma justa medida de importância na composição da cidade, aproximamo-nos de organizações sociais totalitaristas ou que, diferentes da cidade, não primam pelo bem comum, pela res publica.

É como no sertão, por exemplo, se com-preendemos, segundo Guimarães Rosa, que “sertão é onde manda quem é forte, com as astúcias”. Precisamos encarar a en-cruzilhada do futuro das nossas cidades e nos lançar, como o velho Riobaldo Tatara-na, à ação no mundo público - ação políti-ca, sem que isso signifique anular a figura de Diadorim, a morada do afeto, por cuja doçura do olhar o jagunço viu “as cores do mundo”. Mas, nessa travessia, nossa maior arma, aqui, é a palavra.

*O OrFEL é uma ação da FEL - Fora do Eixo Letras, frente do Circuito Fora do Eixo que trabalha com a cadeia criativa lit-erária. Esta edição especial, também produzida de forma colaborativa, prioriza autores mineiros, selecionados por meio do I Concurso Literário OrFEL Transborda 2011, com intento de incrementar a visibilidade da produção literária mineira principalmente agora, neste segundo semestre de 2011, quando acontecem os Festivais Independentes no Estado.

Esta edição especial foi produzida em parceria com nossos amigos dos blogs Transição Poética e O Purgatório - a eles, nosso muito obrigado.

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É preciso imaginar povoadas, cheias de vidas plenas aquelas cidades de Edward Hooper. É preciso imaginar felizes aqueles homens, aquelas mulheres que se apresentam tão silen-ciosos e melancólicos. É preciso imaginar que a solidão, a que parecem condenados, pode se transformar em festa e alegria, em compartil-hamento e cooperação.

É preciso lembrar, com Etienne de La Boétie, que a nossa servidão é voluntária, é preciso lembrar que somos a maioria, é preciso lem-brar que nada nos impede de fazer da cidade o lugar da vida melhor, da vida não danificada.

É preciso acreditar que a “máquina do mundo”, aquela entrevista pelo poeta Carlos Drum-mond de Andrade, de novo se entreabriu e revelou-se inteira, a todos, é preciso acreditar que é possível decifrar seu “claro enigma”, que já sabíamos em nosso coração: que “É preciso viver com os homens, é preciso não assassiná-los”, (...) que eles “Estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças”.

“Entre eles, considero a enorme realidade.O presente é tão grande, não nos afastemos.Não nos afastemos muito, vamos de mãos da-das.” (...)

É preciso convocar a utopia porque, como disse Ernst Bloch, ela é “consciência antecipa-dora”, é “sonho diurno”, que atualiza, perma-nentemente, a construção da plena emanci-pação.

É preciso reconhecer, como disse Marx, que “se o homem é formado pelas circunstâncias,

Ensaio crítico

Notas sobre a cidade e a utopia

João Antônio de Paula(CEDEPLAR / FACE / UFMG)

devemos tornar humanas as circunstâncias”, o que, no nosso tempo, significa tornar humana a vida na cidade, o que, na nossa cidade, tão longe do mar, significa também ver aqui o que Killian Fritsch viu noutro lugar, noutra cidade pavimentada: “sous les pavés la plage”.

É preciso dizer com Jacques Rancière, que a democracia não é uma forma de governo, nem um estilo de vida social, sendo, de fato, o modo de subjetivação pelo qual existem sujeitos políticos, que não visam se instalar no poder mas no político, o qual se realiza através do dissenso, pela reivindicação da diferença.

É preciso fazer da democracia a invenção per-manente de direitos, como apontou Claude Lefort.

É preciso saber, como dizem Attila Kotanyi e Raoul Vaneigem, que “na realidade, não vive-mos em um bairro de uma cidade, senão que no poder. Vivemos em algum lugar da hierar-quia”.

É preciso não perder de vista que esta hierar-quia que nos condena, na cidade e em todo canto, à vida danificada tem nome, é aquela imposta pelo capital, cujo propósito é a busca, incessante, de sua autovalorização mediante a exploração do trabalho, a mercantilização de tudo, a manipulação e a alienação gerais.

É preciso não esquecer T. W. Adorno quando disse que, sobretudo, em tempos de crise, é preciso contraditar e resistir, oferecer resistên-cia ao que afirma e reafirma: que não há alter-nativa, senão a rendição ao ditado imperativo

do capital; que a história acabou; ao mesmo tempo que irrompem novas contradições, que intensificam o aumento do desemprego – a precarização do trabalho, a desconstituição de direitos sociais, trabalhistas e previdenciários, a perda de biodiversidade, a expansão da de-sertificação e do aquecimento global, a crise urbana e a crise cultural, uma crise civilizatória.

É preciso, com Henri Lefebvre, apostar que a disputa pela cidade ainda está em curso, e que à centralidade única do capital e do poder que o sustenta, se contrapõem hoje outras central-idades, novos sujeitos, novas formas de socia-bilidade, de propriedade, de gestão, baseadas na solidariedade.

É preciso, sempre, valorizar a ciência, mas é preciso não esquecer a poesia, que ela faz o conhecimento rimar com emancipação. Disse Baudelaire: “É preciso chegar até o fundo do desconhecido para encontrar o novo”; “o real só é possível se visualizado desde o diverso”.

É preciso construir a cidade como espaço do diálogo, da polifonia, da diversidade, da difer-ença, da alteridade, do outro, da deriva, dos desejos, dos fluxos, dos encontros, das situ-ações, do encantamento, que a cidade é tanto de Bakhtin, e de Guy Debord, quanto de todos que a querem livre e feliz.

É preciso denunciar o roubo do espaço públi-co, é preciso denunciar o amesquinhamento do espaço publico. Disse Oskar Negt – “Gos-taria de lembrar também a origem do termo “privado”, que é derivado do verbo privare, que significa roubar. Roubar de quem? Original-mente se rouba da comunidade suspendendo o seu direito. Na origem não está o privado e sim o comunitário.”

É preciso ver a cidade como fato social total, no sentido que Marcel Mauss deu à esta ideia. Fato social total que agregaria o mediato e o imediato, o individual e o coletivo, o sincrônico e o diacrônico, o que é e o pode ser, o que será

pela projeção do sonho, do desejo.

É preciso concordar com Pierre Francastel: “Os homens, as sociedades não criam o seu am-biente apenas para satisfazer certas necessi-dades físicas ou sociais, mas também para projetar num espaço real de vida algumas das suas ambições, das suas esperanças, das suas utopias”.

É preciso impedir, na cidade, onde for, a desigualdade, a exclusão, a segregação, o in-dividualismo, o privatismo, a violência. É pre-ciso fazer da cidade, de todo lugar, o reino da liberdade, da liberdade autêntica, aquela que Hegel disse só se realizar quando for radical-mente a liberdade de todos.

É preciso ler Francisco Jarauta, ler Giulio Carlo Argan, aprender com ele que a história da arte é a história da cidade, e que arte é, como viu Stendhal, promessa de felicidade.

É preciso acordar a cidade, aquela que Mário de Andrade cantou certa vez:

“Estrelas árvores estrelasE o silêncio fresco da noite estrelada”(...)“É preciso acordar a cidade:Dorme Belo Horizonte.Seu corpo respira de leve o aclive vagarento das ladeiras...Não se escuta sequer o ruído das estrelas camin-hando...Mas os poros abertos da cidadeRespiram com sensualidade com delícia”(...) É preciso acordar a cidade, preencher seus poros com o que em nós se recusa a acreditar que a última palavra sobre o nosso destino foi dada.

8 de agosto de 2011.

2 | OrFEL - Transborda na cidade - edição 2011 | “Everybody knows that our cities were built to be destroyed” (“Maria Bethânia”, Caetano Veloso)

| OrFEL - Transborda na cidade - edição 2011 | 3“Quando eu disse a ela que o amor passou, a cidade levemente flutuou” (“Disse a ela”, Samuel Rosa e Chico Amaral)

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obscuro desejoAchilles de Borborema

meretrizmera atriz dos meus sonhospequeninospercorrer com seus dedos finosmeus cabelosenxugar com seu lenço perfumadominhas lágrimaspela manhãmeretrizmera atriz no meu divãeu que nada possuoalém do obscuro desejode que você me façafeliz

Achilles de Borborema é o pseudônimo de Aluizio Rezende, engenheiro civil. Tem cinco livros publicados, entre romances, contos e poesias. Belo Horizonte, MG, e-mail: [email protected]

Poemas(selecionados pelo I Concurso Literário Orfel Transborda – edição 2011)

(sem título)Renan Moreira

Aqui de baixonunca saberei o tamanho do céuE aí de cimasabe-se lá quem sou eu

Quando acontecer de eu ir,irei correndoe você vem descendo.

E no meio do caminho a gente se esbarraVira nuvem dessas que trovoaE no meio da noite a gente ecoae some numa trova, só de farra.

Renan Moreira é músico e escritor amador. Começou a escrever por puro prazer de dar vazão às suas criações literárias. Mantém o blog radikateudispor.blogspot.com. Poços de Caldas, MG, e-mail: [email protected]

TrânsitoHugo Lima

Pessoas que vêm de dentroPessoas que vêm de foraPessoas que me atravessam.

Hugo Lima é pesquisador nas áreas da arte, educação e tecnologia. É mineiro, de Belo Horizonte, e-mail: [email protected]

Co-autoriaFranceline Rodrigues Silva

Para inscrever-me,retiro a caneta do acasoe início a escrita Sou autora,Fundadora,Causa primáriaCo-autora Num primeiro instante,como umacompositora inexperiente,levanto-me com freqüência, atenta aos detalhesaos quais deverei narrar É perturbante:avistar esses intranqüilos maresmovendo-seem minha direção Não obstante, persistoe dirijo-meao papel Folhas fibrosasdificultosas de aderência As palavras são frouxas e tênuesmas incoerentemente são faceirasembream-se

Decidida!Apressadamente como em uma caçadapasso a persegui-lase contraditoriamente,Elas a mim

Franceline Rodrigues Silva, de Sacramento, estuda pedagogia na UEMG. Belo Horizonte, MG, e-mail: [email protected]

A ImaginaçãoDyoli Vieira

As bolinhas de gude são planetas,o pião é a terra a girar.O papagaio com seu rabo é um cometae a linha é um raio pelo ar.

Faz um giz de um pedaço de carvão,ensinando o ofício de viver.O quadro negro imenso é o chãoe o garoto começa a escrever.

Uma poça de água é um oceanoonde o moleque se põe a navegar.Seu barquinho é um navio transatlântico,pode ter tudo que imaginar.

Cada sonho é um plano bem traçadoda criança pensando no futuro.A esperança caminha bem do ladoo horizonte é ali depois do muro.

rabiscando com firmeza seu destinosó precisa de lápis e papel,sabe tudo da vida, bom menino,o mundo a colorir com seu pincel.

Dyoli Vieira é o pseudônimo de Saulo de Oliveira Cam-pos, autor de O eco da araponga (1984), Fortes mu-ralhas (1985) e Rastros de sangue (2011). Itabira, MG, e-amil: [email protected]

4 | OrFEL - Transborda na cidade - edição 2011 | “Sometimes I feel like my only friend is the city I live in, the city of angels; lonely as I am, together we cry” (“Under the Bridge”, Red Hot Chili Peppers)

| OrFEL - Transborda na cidade - edição 2011 | 5A cidade apresenta suas armas: meninos nos sinais, mendigos pelos cantos e o espanto está nos olhos de quem vê o grande monstro a se criar” (“Selvagem”, Os Paralamas do Sucesso)

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Contos (selecionados pelo I Concurso Literário Orfel Transborda – edição 2011)

Estranho comum amorRodolfo Gullar

O amor fez dos meus dias atordoados algo simples e fantástico, tão mágico que devorou minha sanidade. Me fez pensar em eternidade e destruiu meu medo.

O meu amor nasceu de tudo que era estranho, do teu olhar torto para o chão, da tua calça amassada. Nasceu do teu jeito simples de mastigar o doce, da poeira da tua sandália, da cor areia da tua blusa.

O meu amor nasceu muitos dias após te ver, muitas horas após te beijar e cresceu a ponto de arrancar de minha boca algumas palavras puras. Nasceu dos versos pobres do seu dia a dia, da sua raiva do fim da tarde, do teu cheiro seco e sem perfume.

O meu amor nasceu do mau humor da manhã, do teu copo de café com muito açúcar, da tua luta com o teu corpo. Nasceu da tua pouca vaidade, dos tons fracos de tuas unhas, do teu cabelo sem penteado, do drama, do filme, do romance risonho.

Nasceu como uma flor doente de tanta sombra, como uma crise solitária de um cão, como um fim de tarde longe de casa. Com uma sede de vingar por querer sempre mais, como um vício ilógico e fatal.

O meu amor nasceu, adoeceu como uma parte do meu corpo longe de mim e matou todo o meu equilíbrio, a minha sobriedade e minha vida eterna.

Pensão dispensadaIsabel de Assis Fonseca

Sentada na poltrona de couro marrom descascado, Donana assiste à TV com as pernas apoiadas numa cadeira para descansar as varizes, os braços estirados no encosto. Vez ou outra a cabeça cai pra frente por causa do pescoço mole. Suspende a cabeça e pensa nas coisas que tem para fazer. Elas sempre chamaram o Rachid de mão de vaca, mas hoje sou eu que vou buscar o primeiro mês de pensão. Será que dessa vez o governo liberou mesmo esse miserê?

Donana, cara azeda, como quem tem nojo da comida, foi a única das seis irmãs que casou. A Terezinha teve três pretendentes, mas um deles falava menas, o outro tirava meleca do nariz na sua frente e o terceiro queria ser artista. É bem verdade que Rachid de Donana não era bom amante. Nunca a beijou de língua, tinha a boca frouxa, nem mesmo um filho nela conseguiu fazer. Mas nunca lhe fez mal. Vou logo preparar o angu pros gatos, daqui a pouco terei que enfrentar fila de banco. Será que vou mesmo retirar aquele miserê?

A velha leva a panela quente de angu até o quintal e o distribui entre os potes de comida dos gatos roçando suas pernas. Volta para dentro arrastando as chinelas, toma banho, veste seu vestido florido de tricoline, guarda a carteira de tecido com um trocado e a identidade dentro do sutiã, esses pivetes pensam que eu sou besta, calça as alpargatas, põe a sacola de feira debaixo do braço e sai para a rua.

Donana sobe no ônibus que a levará até sua agência no centro da cidade. Ela solta uns resmungos de canto de boca enferrujada para um rapaz, que libera o lugar dos velhos para ela sentar. O sacolejo do ônibus é o estalo para seus pensamentos tristes. Os olhos vagam o percurso, o corpo cansado balança pra lá e pra cá. E então o ônibus para no sinal vermelho bem próximo ao banco de Donana. Para encurtar caminho, pede ao motor-ista que a deixe descer ali mesmo. O motorista abre a porta, ela desce, passa pela frente do ônibus para atravessar a pista e TABLEFE! Seu corpo é levado por uma caminhonete e cai esparramado cinco metros adiante. Donana não vai mais usufruir daquele miserê deixado por Rachid.

Isabel de Assis Fonseca formou-se em jornalismo e fez especializações na área em “Jornalismo Literário”, “Processos Criativos em Palavra e Imagem” e “Imagens e Culturas Midiáticas”. Belo Horizonte, MG, e-mail: [email protected]

6 | OrFEL - Transborda na cidade - edição 2011 | “Don’t lean on me man, cause you can’t afford the ticket. I’m back to Suffragette City” (“Suffragette City”, David Bowie)

| OrFEL - Transborda na cidade - edição 2011 | 7Eu vou ficar nessa cidade, não vou voltar pro sertão, pois vejo vir vindo no vento o cheiro da nova estação” (“Como nossos pais”, Belchior)

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TraduçãoPoema de Mario Benedetti, Cada Ciudad puede ser otra

Tradução Colaborativa: Junia Mortimer (Pegada / Fora das Bordas)

Ricardo Sangiovanni (O Purgatório)Ricardo Viel (O Purgatório)

Cada ciudad puede ser otra

Los amorosos son los que abandonan,son los que cambian, los que olvidan.Jaime Sabines

Cada ciudad puede ser otra cuando el amor la transfiguracada ciudad puede ser tantascomo amorosos la recorren

el amor pasa por los parquescasi sin verlos amándolosentre la fiesta de los pájarosy la homilía de los pinos

cada ciudad puede ser otracuando el amor pinta los murosy de los rostros que atardecenunos es el rostro del amor

y el amor viene y va y regresay la ciudad es el testigode sus abrazos y crepúsculosde sus bonanzas y aguaceros

y si el amor se va y no vuelvela ciudad carga con su otoñoya que le quedan sólo el dueloy las estatuas del amor

Cada cidade pode ser outra

Os amorosos são os que abandonam,São os que mudam, os que esquecem.Jaime Sabines

Cada cidade pode ser outraquando o amor a transfiguracada cidade pode ser tantasconforme amorosos a percorrem

o amor passa pelos parquesquase sem os ver, amando-osentre a festa dos pássarose a homilia dos pinhos

cada cidade pode ser outraquando o amor pinta os murose dentre os rostos que entardecemum é o rosto do amor

e o amor vem e vai e regressae a cidade é testemunhade seus abraços e crepúsculosde suas bonanças e aguaceiros

e se o amor vai e não voltaa cidade segue com seu outonojá que lhe sobram só o lamentoe as estátuas do amor

| OrFEL - Transborda na cidade - edição 2011 | 98 | OrFEL - Transborda na cidade - edição 2011 | “Nos barracos da cidade, ninguém mais tem ilusão no poder da autoridade de tomar a decisão” (“Nos Barracos da Cidade”, Gilberto Gil)

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Durante o Festival Transborda 2011, o coletivo Fora das Bordas propõe a intervenção Digitalambe - vulgo Lambança. Trata-se de uma proposta inspirada nos antigos retratistas ambulantes que percorriam as ruas das cidades com suas enormes câmeras de fole, popularmente conhecidas como lambe-lambe. Os fotógrafos do Fora das Bordas percorreram alguns lu-

Fernando Pessoa, Ode TriunfalNeste texto, o eu-lírico celebra o urbano a ponto de (con)fundir-se com ele. Contudo, permeando as estrofes, persiste a desconfiança crítica para com o homem-máquina que o poeta sugere em delírios. No sussurro persistente do homem que busca reconhecimento, seja num mundo público ou privado – sussurro que percorre todo o poema, Álvaro de Campos oscila sobre o fino fio de sua memória, pendendo para o quintal da infância. No entanto, a “raiva mecânica” arranca-o de suas tentativas de encontro com suas referências, formação de sua identidade. Sem o encontro consigo, o poeta é lançado de novo em seu delírio que o funde cada vez mais à massa das grandes cidades de maquinarias, afogado na ressaca da modernidade. Vale a pena conferir!

John dos Passos, Manhattan TransferEm Manhattan Transfer John Dos Passos faz uso de uma série de símbolos para representar a Nova York do começo do século XX. De acordo com a imagem de cidade que John dos Passos cria ao longo do romance, Nova York é uma metrópole constituída na soleira entre a lei e o crime, a ordem e a desordem, o dia e a noite. Desde o início da narrativa, o autor constrói a definição de metrópole como um sistema complexo constituído de aspectos diversos e inclusive confrontantes. Dos Pas-sos explora esses aspectos variando-os de conotações diurnas a conotações bem mais noturnas, tão sedutoras quanto transgressoras e arriscadamente deliciosas. Lambuzem-se!

Orfel recomenda Sobre a cidade na literatura:

gares da cidade com a Lambança, uma falsa câmera lambe-lambe feita com caixas de papelão, canos de pvc e tnt, registrando o grito das pessoas. O resultado dessa deriva fotográfica poderá ser visto em cartazes lambe-lambe que serão colados em postes de áreas descuidadas ou subutilizadas da cidade, numa alusão ao grito do lugar.

| OrFEL - Transborda na cidade - edição 2011 | 11“There are places I remember all my life, though some have changed. Some forever, not for better, some have gone and some remain.” (“In my life”, Lennon/McCartney)

10 | OrFEL - Transborda na cidade - edição 2011 | “Deve ter alamedas verdes a cidade dos meus amores. E, quem dera, os moradores e o prefeito e os varredores fossem somente crianças” (“Cidade Ideal”, Enriquez/Bardotti/Chico Buarque)

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Rubem Braga, A cidade e a roçaCronista do cotidiano, talvez o mais notável do gênero no país, Rubem Braga ilumina, com uma ternura que não o abandona nunca, maravilhas e vícios da vida ordinária no Brasil - do rural que encontrou, em 1913, ao urbano que deixou, em 1990. Contraste que dá inclusive título a um de seus livros: “A Cidade e a Roça” (1964). No volume está o triste e delicado “Recado ao Senhor do 903”, pedido de desculpas de um morador festeiro de um edifício da capital a seu vizinho do andar de baixo, por causa do barulho alegre que não o contagia (como talvez acontecesse no interior) mas, infelizmente, o perturba. Aqui e ali em seus relatos, o Velho Braga nos mapeia uma cidade feita das alegrias e das desilusões, das tragédias e das solidões, das amizades e dos amores que viveu e que viu passar. Eis o trecho final da crônica “O homem e a Cidade”, de outro volume, “Ai de Ti Copacabana” (1960), que não nos deixa mentir: “Quieto, vou repetindo sem voz, para mim mesmo, teu nome, Lenora - perdida, para sempre perdida, mas tão viva, tão linda, batendo seus sapatos na calçada, andando de cabelos ao vento dentro de minha cidade e de minha saudade, Lenora.”

Bernardo de Carvalho, O sol se põe em São PauloLabiríntica é a cidade imaginária que Bernardo Carvalho nos propõe ao provocar um entrecu-zamento de histórias entre o Tokyo e São Paulo: com nos alerta Borges, “bastam dois espelhos opostos para se construir um labirinto.” Por aproximações e distanciamentos, as duas cidades se espelham, mas as imagens se traem, e a multiplicação de uma na outra gera essa cidade terceira, cidade labirinto. Nesse labirinto sino-paulistano, “não é só que esteja tudo fora do lugar. Está tudo fora do tempo também.” A cidade labirinto, construída dentro de uma trama que se fia entre a nar-radora e seu ouvinte, presentifica uma forma de construção ou de recriação, por meio da escrita, de um tempo outro, passado ou futuro; de uma cidade outra, nem Tokyo nem São Paulo; de uma nação outra, nem Brasil nem Japão, que por vezes desconfiamos sem nome e sem lugar, talvez por englobar em sua atualização arquetípica todas as outras. É a maneira pela qual narrador e ouvinte encontram para reconstruirem-se: “cada um reconstrói o mundo como pode”.

Paul Auster, New York Trilogie Em New York Trilogie, Paul Auster explora questões essenciais à discussão da ideia de cidade que se tem hoje. Uma dessas imagens é aquela da cidade de vidro, o lugar da fragmentação, onde existe a separação entre palavra e coisa: “Havia chegado a uma terra de fragmentos, perdida, um lugar de coisas para as quais não havia palavras e também um lugar de palavras que não corre-spondiam a coisa nenhuma.” Essa fragmentação ou esse esfacelamento da face sólida das coisas nos remete imediatamente aos aspectos da liquidez característica da sociedade moderna, con-forme elucidado por Zigmunt Bauman. À semelhança de uma sociedade líquida, onde inclusive os amores são líquidos, uma cidade líquida seria a cidade puramente das impressões, do transitório, da impermanência, do fugidio, da privação de compromisso. Nessa cidade, “não se deixe apanhar. Evite abraços muito apertados. Lembre-se de que, quanto mais profundas e densas suas ligações, compromissos e engajamentos, maiores os seus riscos.”

12 | OrFEL - Transborda na cidade - edição 2011 | “Chove chove chuva fria. Chove na Cidade Alta. Chove sobre a Mouraria. Chove na Cidade Baixa” (“Loa de Lisboa”, Alceu Va-lença)

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