Orgaos Sem Corpos - Slavoj Zizek

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rgos sem Corpos Gilles Deleuze

Traduo: Rodrigo Nunes Lopes Pereira

1. A Realidade do Virtual

A medida do verdadeiro amor por um filsofo que reconhecemos traos de seus conceitos por toda parte em nossa experincia diria. Recentemente, enquanto assistia novamente aIvan, o terrvel de Sergei Eisenstein, notei um maravilhoso detalhe na cena da coroao no incio da primeira parte: quando os dois amigos mais prximos (no momento) de Ivan derramam moedas de ouro de grandes baixelas em sua cabea recm ungida, essa verdadeira chuva no pode deixar de surpreender o espectador por seu carter magicamente excessivo mesmo depois de vermos as duas baixelas quase vazias, cortamos para a cabea de Ivan na qual moedas de ouro continuam irrealisticamente a ser derramadas em um fluxo contnuo. Esse excesso no extremamente deleuziano? No o excesso do puro fluxo de devir sobre sua causa corporal, do virtual sobre o efetivo? A primeira determinao que vem mente a propsito de Deleuze que ele o filsofo do Virtual e a primeira reao a isso deveria ser a de opor a noo de Deleuze do Virtual ao tpico onipresente da realidade virtual: o que importa para Deleuze no a realidade virtual, mas a realidade do virtual (que, em termos lacanianos, o Real. Realidade virtual , por melhor dizer, uma idia miservel, de imitar a realidade, de reproduzir sua experincia em um meio artificial). A realidade do Virtual, ao contrrio, representa a realidade do Virtual como tal, por seus reais efeitos e conseqncias. Vamos usar um atrator de matemtica: todos as linhas ou pontos positivos em sua esfera de atrao apenas se aproximam de maneira interminvel, nunca alcanando sua forma a existncia dessa forma puramente virtual, no sendo nada alm do modelo em direo ao qual as linhas e pontos tendem. Contudo, em si mesmo precisamente, o virtual o Real desse campo: o imvel campo focal em torno do qual todos os elementos circulam. O Virtual no , afinal, o Simblico como tal? Vamos considerar a autoridade simblica: para funcionar como uma efetiva autoridade, ela tem que permanecer no inteiramente realizada, uma ameaa eterna. Talvez a diferena ontolgica entre o Virtual e o Efetivo seja mais bem capturada pela mudana na maneira como a fsica quntica concebe as relaes entre as partculas e suas interaes: em um momento inicial, elas aparecem como se primeiro (ontologicamente, ao menos) as partculas interagissem sob a forma de ondas, oscilaes, etc.; ento, em um segundo momento, somos obrigados a representar uma radical mudana de perspectiva o fato ontolgico primordial que as prprias ondas (trajetrias, oscilaes), e partculas no so seno o ponto nodal no qual diferentes ondas intercedem.[1]Isso nos introduz ambigidade da relao entre o virtual e o efetivo: (1) O olho humano REDUZ a percepo da luz; ele percebe a luz de uma determinada maneira (percebendo certas cores, etc.), uma rosa de uma maneira, um morcego de outra... O feixe de luz em si mesmo no efetivo, mas, sobretudo, a pura virtualidade de infinitas possibilidades efetivadas de mltiplas maneiras; (2) por outro lado, o olho humano EXPANDE a percepo ele inscreve o que ele realmente v em uma intrincada rede de memrias e antecipaes (como Proust com o gosto damadeleine), podendo desenvolver novas percepes, etc.[2]

O gnio de Deleuze reside em sua noo de empirismo transcendental: em contraste com a noo padro do transcendental como a rede conceitual formal que estrutura o rico fluxo de dados empricos, o transcendental deleuziano infinitamente MAIS RICO do que a realidade ele o campo potencial infinito de virtualidades fora do qual a realidade efetivada. O termo transcendental aqui usado no estrito sentido filosfico de condies a priori de possibilidade de nossa experincia da realidade constituda. O acoplamento paradoxal de pontos opostos (transcendental + emprico) em direo a um campo de experincia alm da (ou, at mesmo, sob a) experincia da realidade constituda/percebida. Permanecemos aqui dentro do campo da conscincia Deleuze define o campo do empirismo transcendental como uma pura corrente a-subjetiva de conscincia, uma impessoal conscincia pr-reflexiva, uma durao qualitativa de conscincia semself.3No de admirar que (uma de) sua(s) referncia(s) aqui seja o Fitche tardio, que tentou pensar o processo absoluto de autoposicionamento como um fluxo de vida alm das oposies de sujeito e objeto:

Uma vida a imanncia da imanncia, imanncia absoluta: ela o puro poder, total beatitude. Na medida em que ela vence as aporias do sujeito e do objeto, Fitche, em sua ltima fase, apresenta o campo transcendental como uma vida que no tributria de um Ser e no est assujeitada a um Ato: uma conscincia absoluta imediata cuja mesma atividade no se refere mais de volta ao ser, mas posiciona-se incessantemente a si mesma em uma vida.4

Talvez Jason Pollock seja o derradeiro pintor deleuziano: seuaction-paintingno torna diretamente seu fluxo de puro devir, a vida-energia inconsciente-impessoal, o abrangente campo da virtualidade alm do que determinadas pinturas podem elas mesmas realizar, o campo das puras intensidades sem significado a ser trazido luz pela interpretao? O culto personalidade de Pollock (macho americano alcolatra) secundrio em relao a essa caracterstica fundamental: longe de expressar sua personalidade, seus trabalhos a negam/obliteram.5O primeiro exemplo que vem mente no campo do cinema Sergei Eisenstein: se seus filmes antigos mudos so lembrados primeiramente por causa de sua prtica da montagem em seus diferentes aspectos, da montagem de atraes montagem intelectual (i.e., se sua nfase nos cortes), ento seus filmes sonoros maduros deslocam o foco para a proliferao contnua do que Lacan chamou sinthomes, dos traos de intensidades afetivas. Relembremos, atravs de ambas as partes deIvan, o terrvel, o motivo da estrondosa exploso de raiva que continuamente metamorfoseado e ento assume diferentes formas, da prpria trovoada at exploses de fria incontrolada: ainda que possa a princpio parecer uma expresso da psique de Ivan, seu som se separa de Ivan e comea a pairar, passando de uma pessoa outra ou a um estado no atribuvel a qualquer pessoa diegtica. Este motivo NO deveria ser interpretado como uma alegoria com um significado profundo fixo, mas como uma pura intensidade mecnica alm do sentido (isto o que Eisenstein almejou em seu idiossincrtico uso do termo operacional). Outros semelhantes motivos ecoam e revogam um ao outro, ou, no que Eisenstein chamou de transferncia nua, salta de um meio expressivo a outro (quer dizer, quando uma intensidade torna-se muito forte no meio visual de meras formas, ele salta e explode em movimento conseqentemente em som, ou em cor...). Por exemplo, Kirstin Thompson assinala como o motivo de um olho emIvan um motivo flutuante, rigorosamente sem sentido em si mesmo, mas um elemento repetido que pode, de acordo com o contexto, adquirir um alcance de implicaes expressivas (alegria, suspeita, vigilncia, oniscincia quase divina).6E os momentos mais interessantes emIvanocorrem quando tais motivos parecem explodir em seu espao pr-ordenado: eles no apenas adquirem uma multido de sentidos ambguos no mais cobertos por uma temtica abrangente ou programa ideolgico; nos momentos mais excessivos, tal motivo parece no ter absolutamente qualquer sentido, em lugar de apenas flutuar como uma provocao, como um desafio a encontrar o sentido que domesticaria seu puro poder provocativo...Entre os cineastas contemporneos, aquele que se presta idealmente a uma leitura deleuziana Robert Altman, cujo universo, melhor exemplificado por sua obra primaShort Cuts, efetivamente este dos encontros contingentes entre uma infinidade de sries, um universo no qual diferentes sries se comunicam e ressoam correspondendo ao que o prprio Altman se refere como uma realidade subliminar (choques mecnicos sem sentido, encontros, e intensidades impessoais que precedem o nvel do sentido social).7Quando, ento, emNashville, a violncia explode no final (o assassinato de Barbara Jean no concerto), esta exploso, ainda que no preparada e no explicada pelo nvel da linha explcita narrativa, , contudo, experimentada como inteiramente justificada, na medida em que o solo para isso foi deixado no nvel dos signos circundantes na realidade subliminar do filme. E, no isso que, quando escutamos as canes emNashville, Altman mobiliza diretamente o que Brian Massumi chamou a autonomia do afeto?8Isto , interpretamos absolutamente malNashvillese situamos as canes dentro do horizonte global da descrio irnico-crtica da vacuidade e alienao comercial ritualizada do universo da msica country americana: ao contrrio, somos autorizados at seduzidos a desfrutar inteiramente a msica em si mesma, em sua intensidade afetiva, independentemente do bvio projeto crtico-ideolgico de Altman. (E, alis, o mesmo vale para as msicas das grandes peas de Brecht: seu prazer musical independente de sua mensagem ideolgica.) O que isso significa que dever-se-ia tambm evitar a tentao de reduzir Altman a um poeta da alienao americana, representando o desespero silencioso das vidas cotidianas: H outro Altman, aquele que se abre aos alegres encontros contingentes. Juntamente s linhas da leitura de Deleuze e Guattari do universo de Kafka da Ausncia do inacessvel e elusivo Centro transcendente (Castelo, Corte, Deus) como a Presena de mltiplas passagens e transformaes, fica-se tentado a ler o desespero e ansiedade altmaniano como o enganoso obverso da mais afirmativa imerso dentro da multido de intensidades subliminares. Este plano subjacente, claro, pode tambm conter o subtexto supereuico obsceno da mensagem ideolgica oficial relembremos o notrio pster de recrutamento para o exrcito do Tio Sam:

Esta uma imagem cujas demandas, seno desejos, parece absolutamente claro, enfocam um determinado objeto: ele quer voc, isto , o jovem com a idade apropriada para o servio militar. O alvo imediato da imagem se assemelha a uma verso do efeito medusa: isto , ele interpela o observador, verbalmente, e tenta magnetiza-lo com a franqueza de sua mirada e (sua mais maravilhosa caracterstica pictrica) a mo que parece projetar-se do quadro com o dedo apontando que distingue o observador, acusando, designando e comandando-o. Mas o desejo de magnetizar apenas um alvo transitrio e momentneo. O motivo maior incitar e mobilizar o observador, enviar aquele que contempla ao posto de recrutamento mais prximo, e finalmente para alm-mar para combater e possivelmente morrer pelo seu pas./.../ Aqui o contraste com os psteres italianos e alemes esclarecido. Estes so psteres nos quais jovens soldados sadam seus irmos, convocam-nos para a fraternidade honorvel da morte em batalha. Tio Sam, como seu nome indica, tem uma relao mais tnue, indireta com o potencial recruta. Ele um homem velho a quem falta o vigor da juventude para o combate, e talvez ainda mais importante, falta a conexo direta de sangue que a figura da ptria poderia evocar. Ele solicita os jovens para irem lutar e morrer em uma guerra na qual nem eles nem seus filhos participaro. No h filhos de Tio Sam /.../ Tio Sam estril, uma figura de papelo que no tem corpo, abstrata, sem sangue, mas que se faz passar pela nao e apela aos filhos de outros homens a doar seus corpos e seu sangue.Ento, o que esse quadro quer? Uma anlise completa poderia conduzir-nos a fundo no inconsciente poltico de uma nao que nomeadamente imaginada como uma abstrao incorprea, um regime poltico Iluminado de leis e no de homens, de princpios e no de relaes de sangue, e na realidade incorporado como um lugar onde velhos homens brancos enviam jovens homens e mulheres de todas as raas (contando com uma grande desproporo no nmero de pessoas de cor) para lutar suas guerras. O que essa nao real e imaginada necessita de carne corpos e sangue e o que ela designa para obt-los um homem oco, um fornecedor de carne, ou talvez apenas um artista.9

A primeira coisa a se fazer aqui adicionar a esta srie o famoso pster sovitico A me ptria est te chamando, no qual o interpelante uma forte mulher madura. Ns nos deslocamos ento do tio imperialista americano para os irmos europeus da me comunista... Aqui temos a diviso, constitutiva da interpelao, entre a lei e o superego (ou vontade e desejo). O que uma imagem como essa quer no equivalente ao que ela deseja: enquanto ela nos quer para participar da nobre luta pela liberdade, ela deseja sangue, a proverbial Pound of our flesh*(no de admirar que o idoso estril Tio (no pai) Sam possa ser decifrado como uma imagem judaica, correspondente leitura nazista das intervenes militares americanas: a plutocracia judaica quer o sangue de americanos inocentes para alimentar seus interesses). Em suma, seria ridculo dizer O Tio Sam deseja voc: Tio Sam quer voc, mas ele deseja o objeto parcial em voc, seu Pound of flesh**... Quando uma chamada do superego QUER (e ordena) que voc faa, se fortalea e seja bem sucedido, a mensagem secreta do DESEJO : Eu sei que voc no ser capaz de cumprir isso, ento eu desejo que voc falhe e triunfe em seu fracasso!!! Este carter do superego, confirmado pela associao com Yankee Doodle (lembremos o fato de que o superego ilustra um misto de ferocidade obscena com comdia clown), ainda sustentada pelo carter contraditrio de seu apelo: ele primeiro quer deter nosso movimento e fixar nosso olhar para que, surpresos, nos fixemos nele; em um segundo momento, ele quer que atendamos seu chamado e sigamos para o escritrio de recrutamento mais prximo como se, depois de nos deter, se dirige a ns com escrnio: Por que voc me olha fixamente assim como um idiota? No entendeu o que eu quis dizer? V ao posto de alistamento mais prximo! No tpico gesto arrogante de escrnio caracterstico do superego, ele ri de nosso mesmo ato de levarmos a srio seu primeiro chamado. Quando Erik Santner me contou a respeito da brincadeira que seu pai fazia com ele quando era um garoto (o pai mostrava, abrindo diante dele, sua palma, na qual havia em torno de uma dzia de moedas diferentes; o pai ento fechava a mo depois de alguns segundos e perguntava ao menino a quantia de dinheiro que havia se o pequeno Erik adivinhasse a soma exata, o pai lhe dava o dinheiro), esta anedota provoca em mim uma exploso de profunda e incontrolvel satisfao anti-semita exprimida em uma gargalhada selvagem: Viu s, esta a maneira como os judeus realmente ensinam suas crianas! No um caso perfeito de sua prpria teoria de uma proto-histria que acompanha a histria simblica explcita? No nvel da histria explcita, seu pai provavelmente lhe contava histrias nobres sobre o sofrimento dos judeus e o horizonte universal da humanidade, mas seu verdadeiro ensinamento secreto estava contido nessas anedotas de como fazer rapidamente transaes com dinheiro. O anti-semitismo efetivamente parte da base ideolgica obscena de muitos de ns. E pode-se encontrar um subtexto obsceno semelhante mesmo onde no se poderia esperar em alguns textos que so comumente percebidos como feministas. Com o intuito de confrontar esta obscena praga de fantasias que persiste no nvel da realidade subliminar em seu mais radical, suficiente (re)lerThe Handmaid's Talede Margaret Atwood, a distopia sobre a Repblica de Gilead, um novo estado na costa leste dos Estados Unidos que emergiu quando a Maioria Moral tomou posse. A ambigidade da novela radical: seu objetivo oficial , claro, apresentar como so efetivamente percebidas as sombrias tendncias conservadoras com o intuito de nos prevenir sobre as ameaas do fundamentalismo cristo a viso evocada espera causar horror em ns. No entanto, o que salta aos olhos a fascinao absoluta com este universo imaginado e suas regras inventadas. Mulheres frteis so distribudas a esses membros privilegiados da novanomenklatura cujas esposas no podem ter filhos proibidas de ler, desprovidas de seus nomes (elas so nomeadas de acordo com o homem que as possui: a herona Offred of Fred [de Fred, pertencente a Fred]) elas servem como receptculos de inseminao. Quanto mais ns lemos a novela, mais se esclarece que a fantasia que estamos lendo no a da maioria moral, mas a do prprio liberalismo feminista: um exato espelho-imagem das fantasias sobre a degenerao sexual em nossas megalpoles que assombram os membros da maioria moral. Ento, o que a novela exibe o desejo no o da maioria moral, mas o desejo oculto das prprias feministas liberais.

2. Devir versus Histria

A oposio ontolgica entre Ser e Devir que sustenta a noo de Deleuze do virtual uma noo radical desde que sua referncia final o puro devir sem ser (oposta noo metafsica do puro ser sem devir). Esse puro devir no um devir particular DE alguma entidade corporal, uma passagem dessa entidade de um estado a outro, mas um devir-em-si-mesmo, completamente extrado de sua base corporal. Visto que a temporalidade predominante do ser a do presente (com o passado e o futuro como seus modos deficientes), o puro devir-sem-ser significa que dever-se-ia evitar o presente ele nunca ocorre efetivamente, ele sempre iminente e j passou1Como tal, o puro devir suspende a seqencialidade e a direcionalidade: quer dizer, em um efetivo processo de devir, o ponto crtico de temperatura (0 grau Celsius) sempre tem uma direo (a gua ou congela ou derrete), enquanto que, considerado como puro devir extrado de sua corporeidade, esse ponto de passagem no um ponto de passagem de um estado a outro, mas uma pura passagem, neutra em relao a sua direcionalidade, perfeitamente simtrica por exemplo, uma coisa est simultaneamente aumentando (o que ela foi) e diminuindo (em relao ao que ele ser). E os poemas Zen no so o exemplo derradeiro da poesia do puro devir, os quais almejam meramente extrair a fragilidade do puro evento de seu contexto causal? O Foucault mais prximo de Deleuze talvez o Foucault deArqueologia do Saber, sua subestimada obra chave que delineia a ontologia das enunciaes como puros eventos de linguagem: no elementos de uma estrutura, no atributos de sujeitos que as proferem, mas como eventos que emergem, funcionam dentro de um campo, e desaparecem. Colocando em termos esticos, a anlise do discurso de Foucault estuda a lekta, enunciaes como puros eventos, enfocando as condies inerentes de sua emergncia [emergence] (como a concatenao dos prprios eventos) e no em sua incluso no contexto da realidade histrica. Este o motivo de o Foucault deArqueologia do Saberestar to longe quanto possvel de qualquer forma de historicismo, de eventos locais em seu contexto histrico ao contrrio, Foucault os ABSTRAI de sua realidade e de sua causalidade histrica, e estuda as regras IMANENTES de sua emergncia. O que deveramos ter em mente aqui que Deleuze NO um historicista evolucionista; sua oposio do Ser e do Devir no deve nos iludir. Ele no est simplesmente argumentando que todas as entidades estveis, fixas so apenas coagulaes do abrangente fluxo de vida Por que no? A referncia noo de TEMPO crucial aqui. Vamos lembrar como Deleuze (Com Guattari) em sua descrio do devir em/da filosofia, explicitamente ope devir e histria:

O tempo filosfico assim um grandioso tempo de coexistncia que no exclui o antes e o depois, mas os sobrepe em uma ordem estratigrfica. Este um infinito devir da filosofia que atravessa sua histria sem ser confundido com ela. A vida dos filsofos, e o que mais externo a seu trabalho, est de acordo com as leis comuns da sucesso; mas seus nomes prprios coexistem e brilham como pontos luminosos que nos levam atravs de componentes de um conceito novamente ou como pontos cardinais de um estrato ou plano que continuamente nos retornam, como estrelas mortas cujas luzes brilham mais do que nunca.2

O paradoxo ento que o devir transcendental inscreve-se a si mesmo na ordem positiva do ser, da realidade constituda, sob a capa de seu exato oposto, de uma superposio esttica, de um congelamento cristalizado do desenvolvimento histrico. Esta eternidade deleuziana est, claro, no simplesmente fora do tempo; por melhor dizer, na superposio estratigrfica, nesse momento de estase, o PRPRIO TEMPO que ns experienciamos, tempo oposto ao fluxo evolutivo das coisas DENTRO do tempo. Foi Schelling quem, seguindo Plato, escreveu que o tempo a imagem da eternidade uma declarao mais paradoxal do que pode parecer. O tempo, a existncia temporal, no o oposto mesmo da eternidade, no o domnio da deteriorao, gerao e corrupo? Como pode ento o tempo ser a imagem da eternidade? Isto no envolve duas declaraes contraditrias, quer dizer, que o tempo a queda da eternidade na corrupo E seu exato oposto, o esforo pela eternidade? A nica soluo conduzir este paradoxo a sua concluso radical: o tempo o esforo da eternidade para ALCANAR A SI MESMA. O que isso significa que a eternidade no est fora do tempo, mas a pura estrutura do tempo como tal: como colocou Deleuze, o momento da superposio estratigrfica que suspende a sucesso temporal o tempo como tal. Em suma, dever-se-ia aqui opor o desenvolvimento NO tempo exploso DO PRPRIO TEMPO: o prprio tempo (a virtualidade infinita do campo transcendental do Devir) aparece DENTRO da evoluo intratemporal sob o disfarce da ETERNIDADE. Os momentos de emergncia [emergence] do Novo so precisamente os momentos de Eternidade no tempo. A emergncia [emergence] do Novo ocorre quando um trabalho vence seu contexto histrico. E, do lado oposto, se h uma imagem da imobilidade fundamental ontolgica, a imagem evolucionista do universo como uma complexa rede de transformaes e desenvolvimentos interminveis nos quaisplus a change, plus a reste le mme:

Eu me tornei cada vez mais consciente da possibilidade de distino entre devir e histria. Foi Nietzsche quem disse que nada importante est livre de um vapor no-histrico. /.../ O que a histria compreende em um evento a maneira como ele atualizado em circunstncias particulares; o devir do evento est alm do escopo da histria./.../ O devir no parte da histria; a histria apenas rene conjuntos de precondies, recentes contudo, que so deixados para traz enquanto devir, ou seja, como criao de algo novo.3

Para designar esse processo, fica-se tentado a usar um termo estritamente proibido por Deleuze, que o de TRANSCENDNCIA: Deleuze no est aqui argumentando que um certo processo pode transcender suas condies histricas ao dar origem a um Evento? Era Sartre (um dos pontos de referncia secretos de Deleuze) quem j utilizava o termo nesse sentido, quando ele discutia como, no ato de sntese, o sujeito pode transcender suas condies. Abundam exemplos aqui do cinema (a referncia de Deleuze ao nascimento do neo-realismo italiano: claro que ele surgiu sem condies o choque da II Guerra Mundial, etc mas o Evento neo-realista no pode ser reduzido a essas causas histricas) poltica. Em poltica (e que, de certo modo, remete a Badiou), a base da reprovao de Deleuze aos crticos conservadores que denunciam os terrveis resultados reais de uma sublevao revolucionria, que eles permanecem cegos para a dimenso do devir:

Est na moda ultimamente condenar os horrores da revoluo. Isso no nada novo; o Romantismo Ingls permeado por reflexes de Cromwell muito semelhantes s reflexes de Stalin nos dias atuais. Eles dizem que as revolues terminam mal. Mas eles esto constantemente confundindo duas coisas diferentes, a maneira como as revolues se produzem historicamente e o devir revolucionrio das pessoas. Estes relacionam dois grupos diferentes de pessoas. A nica esperana dos homens reside em um devir revolucionrio: a nica maneira de se livrar de sua vergonha ou de responder ao que intolervel.4

O devir ento estritamente correlativo ao conceito de REPETIO: longe de se opor emergncia [emergence] do Novo, o prprio paradoxo deleuzianno que algo verdadeiramente Novo s pode emergir atravs da repetio. O que a repetio repete no a maneira como o passado efetivamente se deu, mas a virtualidade inerente ao passado e trada por sua atualizao anterior. Nesse preciso sentido, a emergncia [emergence] do Novo muda o prprio passado, quer dizer, ele muda retroativamente (no o passado real isso no fico-cientfica mas) o balano entre realidade e virtualidade no passado.5Recordemos o velho exemplo de Walter Benjamin: a Revoluo de Outubro repetiu a Revoluo Francesa, redimindo seu fracasso, desenterrando e repetindo o mesmo impulso. J para Kierkegaard, repetio memria invertida, um movimento para frente, a produo do Novo, e no a reproduo do Velho. No h nada de novo sob o sol o mais forte contraste com o movimento da repetio. Assim, no apenas que a repetio seja (um dos modos da) emergncia [emergence] do Novo o Novo S pode emergir atravs da repetio. A chave para esse paradoxo , claro, o que Deleuze designa como a diferena entre o Virtual e o Efetivo (e que pode ser por que no? tambm determinado como a diferena entre Esprito e Letra). Tomemos um grande filsofo como Kant h duas maneiras de repeti-lo: fixar-se em sua letra e ainda elaborar ou modificar seu sistema, como os neo-kantianos (como Habermas e Luc Ferry) esto fazendo; ou, tenta-se retomar o impulso criativo que o prprio Kant traiu na atualizao de seu sistema (i.e., conectar o que j estava em Kant mais do que no prprio Kant, mais do que seu sistema explcito, seu cerne excessivo). H, conseqentemente, dois modos de trair o passado. A verdadeira traio um ato tico-terico de mxima fidelidade: tem que se trair a letra de Kant no sentido de se permanecer fiel a (e repetir) o esprito de seu pensamento. precisamente quando se permanece fiel letra de Kant que se trai realmente o cerne de seu pensamento, o impulso criativo motivando-o. Dever-se-ia conduzir esse paradoxo sua concluso: no se trata apenas de que se pode permanecer realmente fiel a um autor traindo-o (a letra efetiva de seu pensamento); em um nvel mais radical, a declarao inversa comporta ainda mais pode-se apenas trair verdadeiramente um autor repetindo-o, permanecendo-se fiel ao cerne de seu pensamento. Se no se repete um autor (no autntico sentido kiekgaardiano do termo), mas meramente se o critica, deslocando-o, contornando-o, etc., isso significa, com efeito, que se permanece inadvertidamente dentro de seu horizonte, de seu campo conceitual.6Quando G. K. Chesterton descreve sua converso ao cristianismo, ele alega que tentou ficar uns dez minutos alm da verdade. E eu acho que fiquei dezoito anos atrs dela7. Isso no vale especialmente para aqueles que, hoje, tentam desesperadamente alcanar o Novo seguindo a ltima moda ps, ficando condenados a permanecer sempre dezoito anos atrs do verdadeiro Novo? E isso nos introduz ao complexo tpico da relao entre Hegel e Kierkegaard: contra a noo oficial de Kierkegaard como O anti-Hegel, algum poderia afirmar que Kierkegaard talvez aquele que, atravs de sua traio a Hegel, permaneceu fiel a ele. Ele efetivamente REPETIU Hegel, em contraste com os pupilos de Hegel, os quais desenvolveram seu sistema. Para Kiekegaard, oAufhebunghegeliano deve se opor repetio: Hegel o derradeiro filsofo socrtico da rememorao, do retornar reflexivamente ao que a coisa sempre-j foi, de maneira que, o que falta a Hegel , simultaneamente, a repetio e a emergncia [emergence] do Novo a emergncia do Novo COMO repetio. O processo/progresso da dialtica hegeliana , neste preciso sentido kierkegaardiano, o mesmo modelo de um pseudodesenvolvimento desenvolvimento no qual nada efetivamente Novo jamais emerge. Quer dizer, a reprovao kierkegaardiana padro a Hegel que seu sistema um crculo fechado de rememorao que no considera a emergncia de nada Novo: tudo o que acontece apenas uma passagem do em-si ao para-si, isto , ao longo do processo dialtico, as coisas apenas atualizam seu potencial, colocar explicitamente seu contedo explcito, tornar-se o que (em si mesmos) eles sempre-j so. O primeiro enigma a respeito dessa reprovao que ela comumente acompanhada pela reprovao OPOSTA: Hegel mostra como o Um se divide em Dois, a exploso de uma diviso, perda, negatividade, antagonismo, que afeta uma unidade orgnica; mas, ento, o reverso doAufhebungintervem como um tipo de deusex machina, sempre garantindo que o antagonismo ser magicamente resolvido, os opostos reconciliados em uma sntese mais elevada, a perda recuperada sem um resto, a ferida cicatrizada sem deixar cicatriz... As duas reprovaes, ento, assinalam direes opostas: a primeira reivindica que nada de novo emerge sob o sol hegeliano, enquanto que a segunda reivindica que o impasse resolvido por uma questo imposta que emerge como deus ex machina, de fora, no como o resultado da dinmica inerente da tenso precedente. O erro da segunda reprovao que ela perde a questo ou , at mesmo, a temporalidade da conciliao hegeliana. No que a tenso seja magicamente resolvida e os opostos reconciliados. O nico deslocamento que efetivamente ocorre subjetivo, o deslocamento de nossa perspectiva (i.e., subitamente, nos tornamos cientes de que o que anteriormente apareceu como conflito J a reconciliao). Este movimento temporal para trs crucial: a contradio no resolvida; ns apenas estabelecemos que ela sempre-j FOI resolvida. (Em termos teolgicos, a Redeno no segue a queda; ela ocorre quando nos tornamos conscientes de como o que anteriormente percebemos (mal) como a Queda em si j era a Redeno.)8E, paradoxalmente, mesmo que esta temporalidade parea confirmar a primeira reprovao (a de que nada de novo emerge no processo hegeliano), ela, efetivamente, nos permite refuta-la: o verdadeiro Novo no simplesmente um novo contedo, mas o prprio deslocamento de perspectiva atravs do qual o Velho aparece sob nova luz.Deleuze est certo em seu magnfico ataque contextualizao historicista: devir significa transcender o contexto das condies histricas fora das quais um fenmeno emerge. Isto o que se perde no multiculturalismo antiuniversalista historicista: a exploso do perpetuamente Novo em/como o processo do devir. A oposio padro entre Universal abstrato (ou seja, Direitos Humanos) e as identidades particulares deve ser substituda por uma nova tenso entre Singular e Universal: o acontecimento do Novo como uma singularidade universal.9O que Deleuze fornece aqui a ligao (propriamente hegeliana) entre historicidade factual e eternidade: um verdadeiramente Novo emerge como eternidade no tempo, transcendendo suas condies materiais. Para perceber um fenmeno passado em devir (como Kierkegaard poderia ter formulado) perceber o potencial virtual nele, a centelha de eternidade, a potencialidade virtual que sempre est a. Um verdadeiramente novo trabalho sempre fica novo sua novidade no esgotada quando passa sua capacidade de chocar. Por exemplo, em filosofia, as grandes rupturas (do transcendental de Kant at a inveno de Kripke do designador rgido) sempre mantm seu carter surpreendente de inveno.Ouve-se frequentemente que para se entender uma obra de arte preciso conhecer seu contexto histrico. Contra esse lugar-comum historicista, um contra-argumento deleuziano seria que, no apenas demasiado contexto histrico pode ofuscar o prprio contato com a obra de arte (i.e., que, para realizar esse contato, dever-se-ia abstrair o contexto histrico); mas, at mesmo, que a prpria obra de arte fornece um contexto, permitindo-nos propriamente entender uma situao histrica dada. Se hoje algum for visitar a Srvia, o contato direto com dados brutos poderia confundir. Se, contudo, a pessoa ler algumas obras literrias e assistir a alguns filmes representativos, eles poderiam definitivamente fornecer o contexto para situar os dados brutos de sua experincia. H, ento, uma inesperada verdade na velha cnica sabedoria da Unio Sovitica stalinista: ele mente como uma testemunha ocular!.

3. Devir-mquina

Talvez o cerne do conceito de repetio de Deleuze seja a idia de que, em contraste com a repetio mecnica (no maqunica!) da causalidade linear, em uma instncia prpria de repetio, o evento repetido seja recriado em um sentido radical: ele (re)surge a cada momento como Novo (ou seja, repetir Kant redescobrir a novidade radical de sua ruptura, de sua problemtica, no repetir os enunciados que oferecem suas solues). Fica-se tentado aqui a estabelecer uma conexo com a ontologia crist de Chesterton, na qual a repetio do mesmo o grande milagre: no h nada mecnico no fato de que o sol nasa de novo todas as manhs; este fato, ao contrrio, mostra o mais alto milagre da criatividade de Deus.1O que Deleuze chama de mquinas desejantes concerne apenas a algo completamente deferente do mecnico: o devir-mquina. Em que consiste esse devir? Para muitos neurticos obsessivos, o medo de voar tem uma imagem bastante concreta: fica-se assombrado pelo pensamento de quantas partes de tal mquina to imensamente complicada como o avio moderno tem que funcionar tranquilamente para que o avio se mantenha no ar uma pequena pea quebra em algum lugar, e o avio pode muito bem cair em espiral... Frequentemente fala-se da mesma maneira a respeito do prprio corpo: quantas pequenas coisas tm que funcionar tranquilamente para me manter vivo? um minsculo cogulo de sangue em uma veia, e eu morro. Quando se comea a pensar em quantas coisas podem dar errado, no se pode experimentar seno um pnico total e aterrador. A esquizo deleuziana, por outro lado, meramente se identifica com essa mquina infinitamente complexa que o nosso corpo: ela experimenta essa mquina impessoal como sua afirmao mxima, regozijando-se em seu constante estmulo. Como Deleuze enfatiza, o que temos aqui no est relacionado a uma metfora (o velho e tedioso tema das mquinas substituindo humanos), mas metamorfose, ao devir-mquina do homem. aqui que o projeto reducionista d errado: o problema no reduzir a mente ao processo material neuronal (substituir a linguagem da mente pela linguagem dos processos cerebrais, traduzir o primeiro no segundo), mas, sobretudo, compreender como a mente pode emergir apenas sendo encaixada na rede de relaes sociais e complementos materiais. Em outras palavras, o verdadeiro problema no Como, de qualquer maneira, as mquinas podem IMITAR a mente humana?, mas Como a prpria identidade da mente humana depende de suplementos mecnicos externos? Como ela incorpora as mquinas?.Em vez de lamentar a maneira como a externao progressiva de nossas capacidades mentais em instrumentos objetivos (desde escrever em um papel at depender de um computador) nos priva de potenciais humanos, poder-se-ia, portanto enfocar a dimenso libertadora dessa externao: quanto mais nossas capacidades so transpostas para mquinas externas, mais ns emergimos como sujeitos puros, na medida em que este esvaziamento corresponde ao surgimento da subjetividade dessubstancializada. Apenas quando ns pudermos contar inteiramente com mquinas pensantes que nos confrontaremos com o vazio da subjetividade. Em maro de 2002, a mdia noticiou que, em Londres, Kevin Warwick se tornou o primeiro homem ciberntico. Em um hospital em Oxford, seu sistema neuronal foi conectado diretamente a uma rede de computadores; ele assim o primeiro homem cujas informaes sero alimentados diretamente, contornando os cinco sentidos. ESTE o futuro: a combinao da mente humana com o computador (em vez da substituio do antigo pelo novo).Ns tivemos outra prova deste futuro em maio de 2002 quando foi noticiado que cientistas da Universidade de Nova York tinham conectado um chip de computador pronto para receber sinais diretamente no crebro de um rato, com o intuito de se poder control-lo (determinando-se a direo em que ele ir correr) por meio de um mecanismo de navegao (da mesma maneira que se faz correr um carro de brinquedo por controle remoto). Este no o primeiro caso de conexo direta entre o crebro humano e um sistema de computadores: j existem semelhantes mecanismos que permitem que pessoas cegas tenham informaes visuais elementares sobre o ambiente circundante, os quais alimentam diretamente o crebro, contornando o aparato de percepo visual (olhos, etc.). O que novo no caso do rato que, pela primeira vez, a vontade de um agente animal vivo, suas decises espontneas sobre os movimentos que ele ir fazer so tomadas por uma mquina externa. A grande questo filosfica aqui, claro, : como o desafortunado rato experimenta seu movimento, o qual foi, efetivamente, decidido de fora? Ele continua a experimenta-lo como algo espontneo (i.e., ele totalmente inconsciente de que seus movimentos so manipulados?), ou ele esta ciente de que algo est errado, de que outro poder externo est comandando seus movimentos? Ainda mais crucial aplicar o mesmo raciocnio a um experimento idntico realizado com humanos (que, apesar de questes ticas, no seria muito mais complicado, tecnicamente falando, do que em relao ao rato). No caso do rato, pode-se argumentar, no se poderia aplicar a essa experincia a categoria humana de experincia, como seria o caso se ela fosse feita com um ser humano. Ento, mais uma vez, um ser humano cujos movimentos so comandados de fora continua a vivenciar seus movimentos como algo espontneo? Ele permanecer totalmente inconsciente de que seus movimentos so manipulados, ou estar ciente de que alguma coisa est errada, de que um poder exterior est comandando seus movimentos? E como, precisamente, este poder externo aparecer como algo dentro de mim, uma inexorvel pulso interna, ou como uma simples coero externa?2Talvez a situao seja aquela descrita no famoso experimento de Benjamin Libet3; o ser humano comandado continuar a vivenciar o impulso para se mover como sua deciso espontnea, mas devido ao famoso meio segundo de defasagem ele conservar a liberdade mnima para BLOQUEAR essa deciso. tambm interessante que aplicaes desse mecanismo foram mencionadas pelos cientistas e reprteres: os primeiros artigos concerniam ao par ajuda humanitria e campanha antiterrorista (algum poderia usar os ratos ou outros animais manipulados para contactar vtimas de um terremoto sob os escombros, bem como para aproximar-se de terroristas sem arriscar vidas humanas). E o crucial que se deve ter em mente aqui que essa estranha experincia da mente humana diretamente integrada a uma mquina no a viso de um futuro ou de algo novo, mas o vislumbre de algo que sempre esteve em curso, que est aqui desde o comeo, na medida em que co-substancial ordem simblica. O que muda que, confrontada com a materializao direta da mquina, sua integrao direta rede neuronal, no se pode mais sustentar a iluso da autonomia da personalidade. notrio que os pacientes que necessitam de dilise no incio experimentam um devastador sentimento de desamparo: difcil aceitar o fato de que a prpria sobrevivncia depende de um dispositivo mecnico que eu vejo a fora, diante de mim. Todavia, o mesmo vale para todos ns: em termos um tanto exagerados, todos ns estamos na dependncia de um aparato simblico-mental de dilise.A tendncia no desenvolvimento dos computadores em direo sua invisibilidade. As grandes mquinas ruidosas com misteriosas luzes que piscam sero cada vez mais substitudas por minsculos bits encaixando-se imperceptivelmente em nossos ambientes normais, permitindo que eles funcionem mais facilmente. Os computadores se tornaro to pequenos que eles sero invisveis, em todos os lugares e em parte alguma to poderosos que iro sumir da vista. Poderamos to somente relembrar como so os carros de hoje, onde muitas funes ocorrem facilmente por causa dos pequenos computadores que ns frequentemente ignoramos (abertura de janelas, aquecimento...). Em um futuro prximo, teremos cozinhas computadorizadas, roupas, culos e sapatos. Longe de ser uma questo para um futuro distante, essa invisibilidade j est aqui: a Phillips planeja em breve colocar no mercado um fone e tocador de msica integrado a uma jaqueta de tal maneira que no apenas ser possvel vesti-la normalmente (sem preocupao com o que poder acontecer com o mecanismo digital), mas at mesmo lav-la sem dano ao equipamento eletrnico. Esta desapario do campo de nossa experincia sensria (visual) no to inocente quanto pode parecer: a mesma caracterstica que far a jaqueta da Phillips algo fcil de se lidar (no mais uma mquina frgil e incmoda, mas uma prtese quase orgnica de nosso corpo) ir conferir-lhe a qualidade de uma espcie de fantasma de um Mestre invisvel e onipotente. A prtese maqunica ser menos um aparato externo com quem interagimos, e mais parte de nossa direta experincia de ns mesmos como organismos vivos consequentemente, descentrando-nos a partir de dentro. Por essa razo, o paralelo entre o crescimento da invisibilidade dos computadores e o fato notrio de que quando as pessoas aprendem algo suficientemente bem elas deixam de ser conscientes disso, enganoso. O sinal de que aprendemos uma lngua que ns no precisamos mais enfocar suas regras: ns no apenas falamos-na espontaneamente, mas uma ateno ativa em suas regras at mesmo nos impede de falarmos fluentemente. Contudo, no caso da lngua, ns anteriormente temos que aprend-la (t-la em nossa mente), enquanto que computadores invisveis em nossos ambientes esto a fora, no atuando espontaneamente, mas simplesmente cegamente.Poder-se-ia aqui dar um passo a mais: Bo Dahlbom est certo, em sua crtica de Dennett4, onde ele insiste no carter SOCIAL da mente no apenas as teorias da mente so obviamente condicionadas por seu contexto social, histrico (a teoria de Dennett de mltiplos esquemas rivais no se mostra enraizada no capitalismo tardio ps-industrial, com seus motivos de competio, descentralizao, etc.? uma noo tambm desenvolvida por Fredric Jameson, que props uma leitura deConscincia Explicadacomo uma alegoria do capitalismo atual). De maneira muito mais importante, a insistncia de Dennett em como ferramentas inteligncia externalizada com as quais os humanos contam so parte inerente da identidade humana ( sem sentido imaginar como uma entidade biolgica SEM a complexa rede de suas ferramentas tal noo seria como, por exemplo, um ganso sem suas penas), abre uma via que poderia ir muito mais longe do que vai o prprio Dennett. Dado que, para colocar nos bons e velhos termos marxistas, o homem a totalidade de suas relaes sociais, por que Dennett no d o prximo passo lgico e analisa diretamente esta rede de relaes sociais? Este domnio da inteligncia externalizada, das ferramentas at a prpria linguagem, especialmente, forma um domnio prprio, que o que Hegel chamou de esprito objetivo, o domnio da substncia artificial como oposta substncia natural. A frmula proposta por Dahlbom ento : da Sociedade de Mentes (noo desenvolvida por Minsky, Dennett e outros) para Mentes da Sociedade (i.e., a mente humana como algo que pode emergir e funcionar apenas dentro de uma complexa rede de relaes sociais e suplementos artificiais mecnicos que objetivam a inteligncia).

4.le sicle empiriomoniste

As coordenadas elementares da ontologia de Deleuze so assim fornecidas pela oposio schellingiana entre o Virtual e o efetivo: o espao do efetivo (atos reais no presente, realidade experienciada, e sujeitos como pessoasquaindivduos formados) acompanhado por sua sombra virtual (o campo da proto-realidade, de singularidades mltiplas, elementos impessoais posteriormente sintetizados dentro de nossa experincia da realidade). Este o Deleuze do empirismo transcendental, o Deleuze que d ao transcendental de Kant sua nica virada: o prprio espao transcendental o espao virtual de potencialidades mltiplas singulares, de puros gestos impessoais singulares, afetos, e percepes que no so ainda os gestos-afetos-percepes DE um sujeito pr-existente, estvel, e auto-idntico. Este o motivo de que, por exemplo, Deleuze celebre a arte do cinema: ele liberta o olhar, imagens, movimentos, e, afinal, o prprio tempo de sua atribuio a um dado sujeito quando assistimos um filme, ns vemos o fluxo de imagens a partir da perspectiva da cmera mecnica, uma perspectiva que no pertence a nenhum sujeito; atravs da arte da montagem, o movimento tambm abstrado/libertado de sua atribuio a um sujeito ou objeto dado um movimento impessoal que apenas secundariamente, posteriormente, atribudo a algumas entidades positivas. Aqui, contudo, aparece a primeira rachadura nesse edifcio: em um movimento longe de ser evidente, Deleuze liga seu espao conceitual tradicional oposio entre produo e representao. O campo virtual (re)interpretado como o espao das foras produtoras, geradoras, oposto ao espao das representaes. Aqui temos todos os tpicos padro dos campos moleculares mltiplos de produo constrangidos pelas organizaes molares totalizadoras, e assim por diante. Sob a rubrica da oposio entre devir e ser, Deleuze ento parece identificar essas duas lgicas, ainda que elas sejam fundamentalmente incompatveis (fica-se tentado a atribuir a m influncia que o teria empurrado em direo segunda lgica a Flix Guattari)1. O campo prprio da produo NO o espao virtual como tal, mas, melhor dizendo, a passagem mesma desse campo para a realidade constituda, o colapso da multido e suas oscilaes dentro de uma realidade produo fundamentalmente uma limitao do espao aberto de virtualidades, a determinao/negao da multido virtual ( assim que Deleuze l o omni determinatio est negatio de Spinoza contra Hegel). A linha de Deleuze propriamente a das primeiras grandes monografias (as obras chave seriamDiferena e RepetioeA Lgica do Sentido) bem como os pequenos escritos introdutrios (comoProust e os Signose a introduo a Sacher-Masoch). Em seu trabalho mais recente, so dois livros de cinema que marcam o retorno aos tpicos deA lgica do Sentido. Esta srie deve ser distinguida dos livros de Deleuze e Guattari juntos, e pode-se apenas lamentar que a recepo anglo-sax de Deleuze (e, tambm, o impacto poltico de Deleuze) seja predominantemente a do Deleuze guattarizado. crucial notar que NENHUM TEXTO QUE SEJA APENAS DE Deleuze , em qualquer sentido, diretamente poltico; Deleuze em si mesmo um autor altamente elitista, indiferente em relao poltica. A nica questo sria filosfica, consequentemente, : que impasse inerente fez com que Deleuze se voltasse para Guattari?Anti-dipo, possivelmente o pior trabalho de Deleuze, no o resultado da fuga da total confrontao com um impasse atravs de uma soluo simplificada frouxa, homloga escapada de Schelling do impasse de seu projeto Weltalter atravs de sua mudana para a dualidade da filosofia positiva e negativa, ou Habermas escapando do impasse da Dialtica do Esclarecimento atravs de sua mudana para a dualidade da razo instrumental e comunicacional? Nossa tarefa confrontar novamente esse impasse. Deleuze, ento, no foi em direo a Guattari porque este ltimo apresentava um libi, uma sada fcil do impasse de sua posio anterior? O edifcio conceitual de Deleuze no se apia em DUAS lgicas, em DUAS oposies conceituais, as quais coexistem em seu trabalho? Esta percepo parece to bvia, essa declarao assemelha-se tanto ao que os franceses chamam delapalissade, que de surpreender que ela ainda no tenha sido amplamente percebida:

(1)por um lado, a lgica do sentido, do devir imaterial como o evento-sentido, como o EFEITO dos processos-causas corporais-materiais, a lgica da lacuna radical entre processo gerador e seu imaterial efeito-sentido: multiplicidades, enquanto efeitos incorpreos de causas materiais, so impassveis ou entidades de causalidade estril. O tempo do puro devir, sempre j passado e eternamente ainda por vir, forma a dimenso temporal desta impassibilidade ou esterilidade de multiplicidades.2E no o cinema o caso derradeiro do fluxo estril do devir superficial? A imagem do cinema inerentemente estril e impassvel, o puro efeito de causas corpreas, ainda que, contudo, adquirindo sua pseudo-autonomia.(2)por outro lado, a lgica do devir como PRODUO de seres: a emergncia [emergence] de propriedades mtricas ou extensivas deveriam ser tratadas como um processo nico no qual um espao-tempo virtual contnuo progressivamente diferencia-se dentro das estruturas espao-temporais descontnuas efetivas.3

Quer dizer, em suas anlises de filmes e literatura, Deleuze enfatiza a dessubstanciao de afetos: em uma obra de arte, um afeto (tdio, por exemplo) no mais atribuvel a pessoas efetivas, tornando-se um evento de livre flutuao. Como, ento, essa intensidade impessoal de um afeto-evento relaciona-se a corpos ou pessoas? Encontramos aqui a mesma ambiguidade: ou este afeto imaterial gerado por corpos interagindo como uma superfcie estril de puro devir, ou ele parte de intensidades virtuais fora das quais os corpos emergem atravs da atualizao (a passagem do Devir ao Ser).E essa oposio no , mais uma vez, aquela do materialismo versus idealismo? Em Deleuze, isso significa:A lgica do SentidoversusAnti-dipo. OU o Sentido-Evento, o fluxo do puro Devir, o efeito imaterial (neutro, nem ativo nem passivo) da intricao das causas materiais-corpreas, OU as entidades positivas corpreas so elas prprias o produto do puro fluxo de Devir. Ou o campo infinito de virtualidade um efeito imaterial da interao de corpos interagindo, ou os prprios corpos emergem, se atualizam a partir desse campo de virtualidade. EmA lgica do Sentido, o prprio Deleuze desenvolve esta oposio sob a forma de dois possveis modos de gnese da realidade: a gnese formal (a emergncia [emergence] da realidade fora da imanncia da conscincia impessoal como o puro fluxo de Devir) suplementada pela gnese real, a ltima explicao para a emergncia [emergence] do prprio evento-superfcie imaterial fora da interao corporal. s vezes, quando seguimos o primeiro caminho, Deleuze aproxima-se perigosamente das frmulas empiriocriticistas: o fato primordial que o puro fluxo da experincia, que no pode ser atribudo a nenhum sujeito, no nem subjetivo nem objetivo sujeito e objeto, como todas as entidades fixas, so simplesmente coagulaes deste fluxo. Esta a descrio tpica da posio filosfica bsica de Bogdanov, o principal representante do empiriocriticismo russo, mais conhecido como o alvo da crtica de Lnin em seuMaterialismo e Empiriocriticismode 1908:

Se /.../ ns assumimos que os elementos ltimos da experincia so as sensaes, bvio que o que ns comumente pensamos como o mundo da experincia no teria surgido sem um processo de organizao. /.../ o que ns consideramos como o mundo material, natureza, o mundo comum, o produto da experincia coletivamente organizada, tendo uma base social. Quer dizer, o mundo comum enquanto vivenciado tem sido progressivamente formado no curso da histria humana fora do curso da sensao material crua. /.../ alm do mundo que basicamente o mesmo para todos, existem, por assim dizer, mundos privados. Quer dizer, alm da experincia coletivamente organizada, h organizao na forma de idias ou conceitos que diferem de pessoa para pessoa, ou de um grupo para outro. Existem diferentes pontos de vista, diferentes teorias, diferentes ideologias.4

Bogdanov enfatizou que o fluxo de sensaes precede o sujeito: no um fluxo subjetivo, mas neutro em relao oposio entre sujeito e realidade objetiva ambos emergem fora deste fluxo (i.e., empiriomonismo, uma das auto-designaes dos empiriocriticistas esse termo no uma designao adequada tambm do empirismo transcendental de Deleuze?... sem mencionar o mecanismo de Bogdanov, sua noo de desenvolvimento maqunica...). Lacan versus Deleuze: mais uma vez materialismo dialtico versus empiriocriticismo? Deleuze um novo Bogdanov? De uma maneira protodeleuziana, Bogdanov acusou os defensores da Matria como uma Coisa-em-si existindo objetivamente de cometer o pecado capital metafsico de explicar o conhecido em termos do desconhecido, o experimentado em termos do no-experimentado exatamente como a rejeio de Deleuze de toda forma de transcendncia. Alm disso, Bogdanov foi tambm um esquerdista radical, adepto de experimentos maqunicos: sua atitude bsica foi precisamente a de unir o vitalismo do fluxo de sensaes com a combinatria maqunica. Ainda que Bogdanov apoiasse os Bolcheviques contra o reformismo oportunista, sua postura poltica foi a de um esquerdista radical lutando pelas organizaes que se formam de baixo, e no impostas de cima por alguma autoridade central.5Quando, emA Lgica do Sentido, Deleuze desdobra as duas gneses, transcendental e real, ele no segue, nesse sentido, os passos de Fitche e Schelling? O ponto de partida de Fitche que se pode praticar filosofia de duas maneiras bsicas, idealista e espinoziana: pode-se ou partir de uma realidade objetiva e tentar desenvolver a partir dela a gnese da subjetividade livre, ou partir da pura espontaneidade do Sujeito absoluto e tentar desenvolver a totalidade da realidade como o resultado do autoposicionamento do Sujeito. O Schelling dos primeiros trabalhos, doSistema do Idealismo Transcendentald um passo alm reivindicando que, nesta alternativa, ns no estamos lidando com uma escolha: as duas opes so complementares, no exclusivas. O idealismo absoluto, sua reivindicao da identidade entre Sujeito e Objeto (Esprito e Natureza) pode ser demonstrada de duas maneiras: ou se desenvolve a Natureza fora do Esprito (idealismo transcendental, maneira de Kant e Fitche), ou se desenvolve a emergncia [emergence] gradual fora do movimento imanente da Natureza (a prpriaNaturphllosophlede Schelling). Contudo, e o crucial novo avano alcanado por Schelling em seus fragmentosWeltalter, onde ele introduz um TERCEIRO termo dentro dessa alternativa, nomeadamente, o da gnese do Esprito (logos) no como tal fora da natureza como um domnio constitudo de realidade natural mas fora da natureza de/em Deus ele mesmo como aquele que est no prprio Deus no mais Deus, o abismo pr-ontolgico do Real em Deus, o movimento rotatrio cego das paixes irracionais? Como Schelling torna claro, este domnio no ainda ontolgico, mas, em um sentido, mais espiritual do que a realidade natural: um domnio obscuro de fantasmas obscenos que retornam repetidamente como mortos vivos porque eles FALHARAM em atualizar-se inteiramente na realidade.6Para arriscar um paralelo anacrnico, esta gnese, como a pr-histria do que se passou em Deus antes que ele se tornasse Deus inteiramente (o logos divino), no est, com efeito, prxima da noo da fsica quntica do estado da oscilao quntica virtual precedendo a realidade constituda?E, efetivamente, os resultados da fsica quntica? E se o que importa FOR apenas uma reificada oscilao de onda? E se, no lugar de conceber ondas como oscilaes entre elementos, os elementos forem apenas ns, pontos de contato, entre diferentes ondas e suas oscilaes? Isto no oferece um tipo de credibilidade cientfica ao projeto idealista de a realidade corprea ser gerada a partir das intensidades virtuais? H uma maneira de conceituar a emergncia [emergence] de Algo fora de Nada de uma maneira materialista: quando somos bem sucedidos em conceber esta emergncia [emergence] no como um excesso misterioso, mas como uma DESCARGA uma PERDA de energia. O notrio Campo de Higgs na fsica contempornea no aponta precisamente nesta direo? Geralmente, quando removemos alguma coisa de um dado sistema, ns diminumos sua energia. No entanto, a hiptese a de que h alguma substncia, alguma coisa que ns no podemos retirar de um dado sistema sem AUMENTAR essa energia do sistema: quando o campo de Higgs aparece em um espao vazio sua energia diminui mais.7A percepo biolgica de que esses sistemas vivos so talvez melhor caracterizados como sistemas que dinamicamente evitam atratores (i.e., de que processos de vida so mantidos em ou prximos de estgios de transio) no aponta na mesma direo, no sentido da pulso de morte freudiana em sua oposio radical a toda noo de que a tendncia de toda vida em direo ao nirvana? Pulso de morte significa precisamente que a mais radical tendncia de um organismo vivo manter um estado de tenso, evitar o relaxamento final na obteno de um estado de total homeostase. Pulso de morte como alm do princpio do prazer esta mesma insistncia de um organismo em repetir incessantemente o estado de tenso.Deveramos ento livrar-nos do medo de que, uma vez que constatemos que a realidade o infinitamente divisvel, vazio dessubstanciado dentro de um vazio, a matria desaparecer. O que a revoluo digital informacional, a revoluo biogentica, e a revoluo quntica na fsica compartilham e que todas elas marcam o ressurgimento do que, por falta de um termo melhor, poderamos chamar de um idealismo ps-metafsico. Isto como se a percepo de Chesterton de como a luta materialista pela total afirmao da realidade, contra sua subordinao a qualquer ordem metafsica elevada, culminando em uma perda da prpria realidade: o que comeou como a afirmao da realidade material termina como o domnio das puras frmulas de fsica quntica. No entanto, esta realidade uma forma de idealismo? Desde que a posio materialista afirma que no h Mundo, que o Mundo em sua totalidade Nada, o materialismo no tem nada a fazer com a presena da matria densa, mida suas prprias imagens so, antes, constelaes nas quais a matria parece desaparecer, como as puras oscilaes de super-cordas ou vibraes qunticas. Em contraste, se vemos na matria inerte, crua, mais que uma tela imaginria, ns sempre secretamente aprovamos algum tipo de espiritualismo, como emSolarisde Tarkovsky, no qual a densa matria plstica do planeta incorpora diretamente a Mente. Este materialismo espectral tem trs formas diferentes: na revoluo informacional, a matria reduzida ao meio da informao puramente digitalizada; em biogentica, o corpo biolgico reduzido ao meio de reproduo do cdigo gentico; em fsica quntica, a prpria realidade, a densidade da matria, reduzida ao colapso da virtualidade das oscilaes de onda (ou, na teoria geral da relatividade, a matria reduzida a um efeito da curvatura do espao). Aqui encontramos OUTRO aspecto crucial da oposio idealismo/materialismo: o materialismo no a afirmao da densidade material inerte em seu peso mido TAL materialismo pode sempre servir como um suporte para um obscurantismo espiritualista gnstico. Em contraste com este ltimo, um verdadeiro materialismo assume alegremente a desapario da matria, o fato de que h apenas vazio.Com a biogentica, o programa nietzschiano de afirmao enftica e exttica do corpo est, ento, concludo. Longe de servir como a referncia verdadeira, o corpo perde sua densidade impenetrvel misteriosa e torna-se algo tecnologicamente manejvel, algo que podemos gerar e transformar atravs da interveno em sua frmula gentica em suma, alguma coisa cuja verdade est nesta frmula gentica abstrata. E crucial conceber as duas aparentemente opostas redues discernveis na cincia atual (a reduo materialista de nossa experincia aos processos neurais nas neurocincias, e a virtualizao da prpria realidade em fsica quntica) como dois lados da mesma moeda, como duas redues ao mesmo terceiro nvel. A velha idia popperiana do Terceiro Mundo aqui levada ao seu extremo: o que temos no final no nem o materialismo objetivo nem a experincia subjetiva, mas a reduo de AMBOS ao Real cientfico do processo matematizado imaterial.A consequncia do materialismo versus idealismo torna-se ento mais complexa. Se aceitarmos a reivindicao da fsica quntica de que a realidade que vivenciamos como constituda emerge fora de um campo precedente de intensidades virtuais as quais so, em certo sentido, imateriais (oscilao quntica), ento a realidade corporificada o resultado da atualizao do puro evento-como virtualidades. E se, neste caso, tivermos aqui um duplo movimento?: primeiro, a prpria realidade positiva constituda atravs da atualizao do campo virtual de potencialidades imateriais; ento, em um segundo movimento, a emergncia [emergence] do pensamento e do sentido sinalizam o momento em que a realidade constituda, pode-se dizer, reconecta-se com sua gnese virtual. Schelling no perseguia algo similar quando ele reivindicou que, na exploso da conscincia, do pensamento humano, o abismo primordial de pura potencialidade explode, adquire existncia, em meio a realidade positiva criada o homem a nica criatura que est diretamente (re)conectada com o abismo primordial fora do qual todas as coisas emergem?8Talvez Roger Penrose esteja certo: h uma ligao entre as oscilaes qunticas e o pensamento humano.9

*A expresso alude pea de W. ShakespeareO Mercador de Veneza, em que o personagem Antonio contrai uma dvida com o agiota judeu Shylock, oferecendo como garantia uma libra de sua prpria carne (a Pound of his proper flesh); Credores que insistem em ter sua libra de carne so aqueles que cruelmente exigem o pagamento de uma dvida, no importando quanto sofrimento ir custar ao devedor(...). em The American Heritage New Dictionary of Cultural Literacy, Third Edition

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**Ver acima

[1]A genealogia dos conceitos de Deleuze freqentemente estranha e inesperada quer dizer, sua afirmao da noo anglo-sax de relaes externas claramente devida problemtica religiosa da graa. A conexo que falta aqui Alfred Hitchcock, o ingls catlico, em cujos filmes uma mudana nas relaes entre as pessoas, de maneira alguma baseada em seus personagens, totalmente externa a eles, muda tudo, afetando-as profundamente (ou seja, quando no incio deNorth by Northwest[Intriga Internacional], Thornhill erroneamente identificado como Kaplan). A leitura catlica de Hitchcock feita por Chabrol e Rohmer (em seuHitchcock,1954) influenciou profundamente Deleuze, visto que, na tradio jansenista, seu foco precisamente a graa como uma interveno divina contingente, que no tem nada a ver com as inerentes virtudes e qualidades dos personagens afetados.

[2]E essa ambigidade no homloga ao paradoxo ontolgico da fsica quntica? A mesma realidade dura que emerge da flutuao atravs do colapso da onda-funo, o resultado da observao, i.e., da interveno da conscincia. A conscincia no , ento, o domnio da potencialidade, opes mltiplas, etc., como oposta dura simples realidade a realidade PRECEDENTE sua percepo aberta-mltipla-fluida, e a percepo consciente reduz sua multiplicidade espectral, pr-ontolgica a uma realidade ontolgica inteiramente constituda.3Gilles Deleuze, "Immanence: une vie...," citado por John Marks,Gilles Deleuze, London: Pluto Press 1998, p. 29.

4Deleuze, op.cit.p.30. Fica-se tentado a opor a esta imanncia absoluta do fluxo de vida deleuziana, como a conscincia pr-subjetiva, ao sujeito inconsciente freudiano-lacaniano ($) como o agenciamento da pulso de morte.5E a oposio Pollock-Rothko? Ela no corresponde oposio Deleuze versus Freud-Lacan? O campo virtual das potencialidades versus a diferena mnima, a fissura entre fundo e figura?6Kirstin Thompson, Eisenstein's "Ivan the Terrible":A Neoformalist Analysis, Princeton: Princeton University Press 1981.

7Robert T. Self,Robert Altman's Subliminal Reality, Minneapolis: Minnesota University Press 2002.

8Brian Massumi, "The Autonomy of Affect," inDeleuze: A Critical Reader, edited by Paul Patton, Oxford: Blackwell 1996.9Tom Mitchell, "What Do Pictures Really Want?" inOctober77 (Summer 1996), p. 64-66.

10Gilles Deleuze,The Logic of Sense, New York: Columbia University Press 1990, p. 80.

11Gilles Deleuze and Felix Guattari,What is Philosophy?, New York: Columbia University Press 1994, p. 59.

12Gilles Deleuze,Negotiations, New York: Columbia University Press 1995, p. 170-171.

13Deleuze, op.cit., p. 171.

14Quando, em 1953, Chou Em Lai, o primeiro ministro chins, foi a Genebra para as negociaes de paz para por fim guerra da Coria, um jornalista francs lhe perguntou o que achava da Revoluo Francesa, ento Chou respondeu: muito cedo ainda para dizer. Em um certo sentido, ele estava certo: com a desintegrao dos estados socialistas, a luta para o lugar histrico da Revoluo Francesa desencadeou-se novamente. Os revisionistas direitistas liberais tentam impor a noo de que a extino do Comunismo em 1989 ocorreu exatamente no momento certo: ela marcou o fim da era que comeou em 1789. Em suma, o que desapareceu efetivamente da histria foi o modelo revolucionrio que entrou em cena pela primeira vez com os jacobinos. Franois Furet e outros tentaram assim destituir a Revoluo Francesa de seu status como o acontecimento fundador da democracia moderna, relegando-a uma anomalia histrica.15A fidelidade autntica a fidelidade ao prprio vazio ao prprio ato mesmo de perda, de abandonar/apagar o objeto. Por que a morte seria o objeto de apego em primeiro lugar? O nome para essa fidelidade pulso de morte. Em relao a lidar com a morte, dever-se-ia, talvez, contra o trabalho do luto, bem como contra o apego melanclico morte que retorna como fantasmas afirmar a mxima crist deixe a morte enterrar seu morto. A bvia reprovao a essa mxima : o que fazemos quando, precisamente, a morte no aceita ficar morta, mas continua viva em ns, assombrando-nos com sua presena espectral? Fica-se, aqui, tentado a reivindicar que, a dimenso mais radical da pulso de morte freudiana fornece a chave de como lermos o deixe a morte enterrar seu morto cristo: o que a pulso de morte tenta obliterar no a vida biolgica, mas a prpria vida aps a morte - ela tenta matar o objeto perdido uma segunda vez, no no sentido do luto (aceitando a perda atravs da simbolizao), mas em um sentido mais radical, de obliterar a prpria textura simblica, a letra na qual o esprito do morto sobrevive.

16G.K.Chesterton,Orthodoxy, San Francisco: Ignatius Press 1995, p. 16.

17Para uma descrio mais detalhada desse movimento, ver captulo 3 ddde Slavoj Zizek,The Puppet and the Dwarf, Cambridge: MIT Press 2003.

18Isto serve mesmo se ns reformularmos o Universal no sentido laclauniano do significante vazio tomado na luta pela hegemonia: a singularidade universal no o significante universal vazio preenchido homogeneizado por algum contedo particular. Ele quase seu obverso: uma singularidade que explode o contorno dado da universalidade em questo abrindo-o para um contedo radicalmente novo.19G.K.Chesterton,Orthodoxy, San Francisco: Ignatius Press 1995, p. 65.

20Cognitivistas diversas vezes nos advertiram para levar em conta uma evidncia de senso comum: claro que podemos nos entregar a especulaes sobre como ns no somos os agentes causais de nossos atos, de como nossos movimentos corporais so comandados por um misterioso esprito mau, no sentido em que apenas aparentemente decidimos livremente o que nossos movimentos fazem. Na falta de boas razes, tal cinismo , no entanto, simplesmente injustificado. No obstante, o experimento com o rato no oferece uma razo pertinente para considerar tal hiptese?

21Benjamin Libet, "Unconscious Cerebral Initiative and the Role of Conscious Will in Voluntary Action," inThe Behavioral and Brain Sciences, 1985, Vol. 8, p. 529- 539, and Benjamin Libet, "Do We Have Free Will?", inJournal of Consciousness Studies, 1999, Vol. 1, p. 47-57.

22Bo Dahlbom, "Mind is Artificial," inDennett and His Critics, ed. by Bo Dahlbom, Oxford: Blackwell 1993.

23Eu sigo aqui Alain Badiou, em cuja leitura de Deleuze eu me apoio extensivamente; Badiou,Deleuze:The Clamour of Being, Minneapolis: University of Minnesota Press 2000.

24Manuel DeLanda,Intensive Science and Virtual Philosophy, New York: Continuum 2002, pp. 107-108.

25Manuel DeLanda,op.cit., p. 102.

26Frederick Copleston,Philosophy In Russia, Notre Dame: University of Notre Dame Press 1986, p. 286.

27 fcil ridicularizarMaterialismo e Empiriocriticismode Lnin, sua total irrelevncia filosfica, ainda que o instinto poltico do livro para a luta de classes teoricamente seja inequvoco e 100% correta. Todos ns lembramos as observaes de Lnin no que tange a Lgica de Hegel, a propsito dos enunciados de Hegel tais como o desdobramento imanente da riqueza concreta do universal como o autodesenvolvimento da Idia eterna divina, no estilo de a primeira linha, profunda e verdadeira, a segunda linha, lixo teolgico! fica-se tentado a anotar uma observao similar na crtica aMaterialismo e Empiriocriticismo: o desdobramento da sobredeterminao poltica da filosofia profunda e verdadeira, o inerente valor filosfico do livro lixo!.

28F.W.J. Schelling,The Ages of the World, Albany: SUNY Press 2000.

29Para uma referncia mais detalhada ao Campo de Higgs, ver o captulo 3 de meu livroThe Puppet and the Dwarf, Cambridge. MIT Press 2003. Para uma popular explanao cientfica, Gordon Kane,5upersymmetry, Cambridge: Helix Books 2001.

30F.W.J. Schelling,op.cit.

31 Roger Penrose, Shadows of the Mind, Oxford: Oxford. University Press 1994.Roger Penrose,Shadows of the Mind, Oxford: Oxford. University Press 1994.