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ORIENTAÇÕES PARA O ENSINO DO CONCEITO DE NÚMERO EM MANUAIS PEDAGÓGICOS BRASILEIROS (1890-1930) Viviane Barros Maciel 1 Este estudo tem por objetivo analisar mudanças e permanências nas orientações aos professores relativas ao ensino do conceito de número, em manuais pedagógicos do final do século XIX e primeiras décadas do século XX. Ele integra uma pesquisa de doutorado em andamento a qual buscará estender esta análise até o ano de 1970, priorizando alguns temas aritméticos propícios ao estudo destas transformações. Este período cronológico foi elencado por fornecer uma maior visibilidade às vagas pedagógicas que emergiram neste intervalo, importantes na análise das orientações. Assim, este estudo busca responder a seguinte questão, quais transformações podem ser observadas nas orientações aos professores, nos manuais pedagógicos, relativas ao ensino do conceito de número no período compreendido entre 1890 a 1930? Para esta análise a pesquisa se vale de referências teórico-metodológicas da História Cultural, História da Educação e História da Educação Matemática, que conduz o pesquisador na compreensão de conceitos como representação, cultura escolar, saberes do ensino e da formação e ainda de estudos sobre os saberes elementares matemáticos em circulação no Brasil. As análises das orientações aos professores do ensino primário mostraram que, ora nelas se ressaltavam características de um ensino intuitivo para o ensino do conceito de número, ora a permanência de elementos de um ensino dito tradicional prevalecia. Também se verificou em alguns manuais a conformação com os ideários da Escola Nova. De modo mais amplo, a análise dos manuais permite pensá-los como campo fértil para o estudo dos saberes como instrumentos para o trabalho do professor, ou seja, dos saberes requisitados aos professores para ensinar conteúdos aritméticos que, gradualmente, poderão configurar uma didática para o ensino de matemática. O estudo coloca relevo na potencialidade deste tipo de fonte para o estudo da história da educação matemática no Brasil e, num sentido mais amplo, da História da Educação e História das Ciências. TRÊS AUTORES, TRÊS MANUAIS, TRÊS MOVIMENTOS EDUCACIONAIS Este texto apresenta análises parciais de uma pesquisa de doutorado em andamento referente às orientações didáticas de alguns manuais pedagógicos, dadas ao professor do ensino primário de como ensinar conceito ou noção de número no início do século XX. 1 Doutoranda do Programa de Educação e Saúde na Infância e na Adolescência, Unifesp/Câmpus Guarulhos, sob a orientação do professor Dr. Wagner Rodrigues Valente; Professora do curso de Pedagogia, UFG/Regional Jataí; líder do grupo GPHEM, cadastrado no CNPq.

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ORIENTAÇÕES PARA O ENSINO DO CONCEITO DE NÚMERO EM MANUAIS

PEDAGÓGICOS BRASILEIROS (1890-1930)

Viviane Barros Maciel 1

Este estudo tem por objetivo analisar mudanças e permanências nas orientações aos professores

relativas ao ensino do conceito de número, em manuais pedagógicos do final do século XIX e

primeiras décadas do século XX. Ele integra uma pesquisa de doutorado em andamento a qual

buscará estender esta análise até o ano de 1970, priorizando alguns temas aritméticos propícios ao

estudo destas transformações. Este período cronológico foi elencado por fornecer uma maior

visibilidade às vagas pedagógicas que emergiram neste intervalo, importantes na análise das

orientações. Assim, este estudo busca responder a seguinte questão, quais transformações podem

ser observadas nas orientações aos professores, nos manuais pedagógicos, relativas ao ensino do

conceito de número no período compreendido entre 1890 a 1930? Para esta análise a pesquisa se

vale de referências teórico-metodológicas da História Cultural, História da Educação e História da

Educação Matemática, que conduz o pesquisador na compreensão de conceitos como

representação, cultura escolar, saberes do ensino e da formação e ainda de estudos sobre os saberes

elementares matemáticos em circulação no Brasil. As análises das orientações aos professores do

ensino primário mostraram que, ora nelas se ressaltavam características de um ensino intuitivo para

o ensino do conceito de número, ora a permanência de elementos de um ensino dito tradicional

prevalecia. Também se verificou em alguns manuais a conformação com os ideários da Escola

Nova. De modo mais amplo, a análise dos manuais permite pensá-los como campo fértil para o

estudo dos saberes como instrumentos para o trabalho do professor, ou seja, dos saberes

requisitados aos professores para ensinar conteúdos aritméticos que, gradualmente, poderão

configurar uma didática para o ensino de matemática. O estudo coloca relevo na potencialidade

deste tipo de fonte para o estudo da história da educação matemática no Brasil e, num sentido mais

amplo, da História da Educação e História das Ciências.

TRÊS AUTORES, TRÊS MANUAIS, TRÊS MOVIMENTOS EDUCACIONAIS

Este texto apresenta análises parciais de uma pesquisa de doutorado em andamento

referente às orientações didáticas de alguns manuais pedagógicos, dadas ao professor do

ensino primário de como ensinar conceito ou noção de número no início do século XX.

1 Doutoranda do Programa de Educação e Saúde na Infância e na Adolescência, Unifesp/Câmpus Guarulhos,

sob a orientação do professor Dr. Wagner Rodrigues Valente; Professora do curso de Pedagogia,

UFG/Regional Jataí; líder do grupo GPHEM, cadastrado no CNPq.

Tais manuais se encontram no repositório virtual da Universidade Federal de Santa

Catarina, no Centro de Educação, no espaço reservado à História da educação matemática.

Ao tomar para análise os manuais pedagógicos, que representam objetos e modelos

em circulação (CHARTIER, 1990), elaborados diferentes autores, estes se constituem

fontes propícias para a comparação, pois representam palavras que vem e vão, trazendo e

levando elementos de outros espaços, culturas pedagógicas, tendências educacionais, ou

ainda, “palavras viajeiras” como Valdemarin (2013) denomina ao escrever sobre a

circulação de manuais escolares Brasil/Portugal, entre 1850 a 1950.

Temos então três manuais a analisar: Arithmética Primária de Cézar Pinheiro

(1902); o manual Série Graduada de Mathemática Elementar (1912) de René Barreto; e o

manual A Aritmética na ‘Escola Nova’ (1933) de Everardo Backheuser .

O autor de Arithmética Primária é Cézar Augusto de Andrade Pinheiro. Segundo a

Folhinha Laemmert2, nº 72, 1911, p. 61, impressa no Rio de Janeiro, este autor esteve à

frente de Quatipurú, município pertencente à comarca de Bragança, no Estado do Pará,

entre 1901 a 1912. Neste município, havia mais de 300 crianças que percorriam longas

distâncias, no caso iam até Bragança em busca de instrução. À frente do município, entre

1883 a 1885, estava Rufino de Andrade Pinheiro, irmão de Cézar Pinheiro, a administração

foi passada ao seu irmão, o paraense, coronel Cézar Augusto de Andrade Pinheiro, que o

jornal afirmava ser ele “infatigável, ilustrado e amigo desta terra”, que inaugurou a vila de

Miraselvas, naquela região, em 1909, mais tarde município de Capanema, permanecendo à

frente até 1912.

O manual Série Graduada de Mathemática Elementar é de autoria de René Barreto.

Barreto ocupou importantes posições em editoras de Revistas importantes como “A

Eschola Pública” 3. As autoras Valdemarin e Pinto (2010) afirmam que o autor que se

diplomou na Escola Normal Caetano Campos em São Paulo, em 1895, e ocupou cargos

importantes de professor, inspetor escolar e lente de Pedagogia e Psicologia na Escola

Normal da Praça da República. René Barreto, assim como seu irmão Arnaldo Barreto,

2 Almanark Laemmert (1891 – 1940), disponível em http://memoria.bn.br. Publicada na edição online do

jornal, B00067, p.742. 3 Leme da Silva et al (2016) afirma que esta revista circulou entre 1893 a 1897 e que foi uma publicação

emblemática para o seu período. A autora cita Pinto (2008).

também participaram em edições da “Revista de Ensino” 4. Barreto ainda atuou como

vice-presidente (1904) e redator em (1911) ocupando importantes cargos, como inspetor

oficial, entre 1907 e 1911. Também foi membro da Comissão de Redação do Anuário do

Ensino entre 1907 e 1908. Infere-se que a autoria de trabalhos como a Cartilha Analytica5,

de seu irmão Arnaldo Barreto, em 1909, de expressiva circulação, possa ter colaborado

com a publicação de seus manuais. Assim como o manual de Aritmética de Cézar Pinheiro

o manual de Barreto precisou passar por aprovação da Diretoria da Instrução Pública, e

fora adotado pelo Governo Federal nas Escolas de Aprendizes Marinheiros.

O autor do manual A Aritmética na ‘Escola Nova’, Everardo Backheuser, anos

antes, em 1912 presidiu o Congresso de ensino primário e secundário que ocorreu no

Estado de Minas Gerais, na cidade de Belo Horizonte, Mais tarde, assumiu cargo de

professor de diferentes disciplinas em importantes instituições como no Colégio Pedro II,

na Escola Politécnica, etc. Também foi geólogo, engenheiro, jornalista e pedagogo. Como

pedagogo, escreveu várias obras, dentre elas, os manuais A Aritmética na “Escola Nova”

(1933) e Como se Ensina a Aritmética (1946), uma reedição da primeira com novo título.

Segundo Valdemarin (2010) conhecer quem foi o autor de um manual é muito

importante. As referências apresentadas vão ao encontro com o que Valdemarin defende.

Segundo a autora escreve que as profissões destes autores os qualificam. Geralmente

ocupam cargos ou já ocuparam cargos na hierarquia escolar, são pessoas conhecidas cuja

experiência lhes habilita a escrever os manuais. Como leitores, muitas vezes, têm uma

leitura no campo sobre o qual defendem. São pessoas que vão e vêm, conhecedoras de

diferentes ideias e concepções, dedicando-se principalmente aquilo que defendem, ficando

conhecidos por esta ou aquela concepção, geralmente estampando-as de alguma forma na

capa de seus manuais.

Por meio dos manuais, os autores divulgam orientações, geralmente advindas de

autores internacionais em voga, ou teorias que repercutem no exterior, utilizando por vezes

palavras-chaves que representam algumas concepções, para serem mais referenciados ou

marcarem uma tendência. Apresentam interpretações destas concepções e teorias,

4 Um periódico criado pela Associação Beneficente do Professorado de São Paulo, que circulou no período

1902-1918, conforme Valente (2011). 5 Cartilha Analytica, publicada pela editora Francisco Alves (RJ), com 1ª. edição presumivelmente em 1909 e

a última, a 74ª, em 1967. Há indícios de que a revista teve ampla circulação em Minas Gerais.

(BERNARDES, 2013, p.01)

reelaborando significados, fornecendo novos sentidos, conformando novas práticas. Assim,

os autores configuram-se como importantes sujeitos no cenário educativo e, portanto,

viajantes no tempo e no espaço. Devemos conceber o trânsito destes sujeitos como a

produção do empoderamento destes autores, sujeitos experientes (professores, delegados

de ensino, instrutores, editores) na relação que constrói o saber. (VALDEMARIN, 2010)

A escolha dos manuais foi aleatória até certo ponto. Buscou-se neste texto tomar

três manuais com características de movimentos educacionais distintos. O primeiro

manual, de Pinheiro (1902) insere-se na vaga conhecida como ensino tradicional, o

segundo na vaga de ensino intuitivo, Barreto (1912) e o terceiro de Backheuser (1933) na

vaga conhecida como Escola Nova.

Valente (2012) realiza um estudo do conceito de número verificando as

características deste ensino conforme as vagas pedagógicas. Segundo este autor, foi com a

chegada do ensino intuitivo que a representação do ensino tradicional foi constituída.

Diante do “novo” com foco na intuição, o “velho”, o anterior, ganhava forma e era

denominado de “tradicional”. Este ensino dito tradicional tinha por representações um

ensino livresco, a repetição e memorização como processos mecânicos (VALENTE, 2012).

Dos três manuais analisados o primeiro tem características deste ensino dito

tradicional. O autor deixa claro, em seu prefácio, que o livro é para uso do público, mas

especialmente à “nobre classe do professorado” que “reune o necessario para o menino

aprender sem difficuldade ou fadiga” [sic] (PINHEIRO, 1902, Prefácio). De acordo com o

autor, embasado na sua prática, afirma que seu compêndio é resumido em suas definições

cabendo ao professor explicá-las.

Logo após o autor apresenta as recomendações de sua obra pelos representantes da

instrução pública, datada de 1886. O livro é composto por definições iniciais. Como nosso

foco é o conceito de número nestes manuais, a definição de número neste manual é que o

número é o resultado da comparação da quantidade com a unidade (unidade como

quantidade tomada para termo de comparação de outra de igual espécie). Na sequência o

autor apresenta a definição de diversas classificações de números, números inteiros, fração

ou quebrados, número misto, número dígito simples, número composto, número par,

número ímpar, número concreto e número abstrato. Somente então define numeração como

enunciação e representação dos números, forma escrita ou falada, a primeira forma, por

meio dos algarismos, sendo que de 1 a 9 denominados de significativos. No caso do

número zero o autor o denomina zero ou cifra, que segundo a definição não tem valor

próprio. O zero preencheria dois fins, assinalar ordens de unidades que faltam em um

número e dar aos algarismos que ficam à esquerda um valor 10 vezes maior do que teriam

se os mesmos estivessem sós. Somente então explica valor absoluto e relativo de um

número e o sistema de numeração decimal. A partir dessas definições primordiais ao

ensino da aritmética, o autor apresenta os demais conteúdos como regras, regra pra

escrever um número; regra pra se ler um número, etc.

O segundo manual Série Graduada de Matemática de Barreto, é exemplo claro da

vaga do ensino intuitivo. Segundo Valente (2012), o ensino intuitivo deu ao ensino da

Aritmética anterior, dito tradicional, uma imagem negativa. De acordo com este autor, a

Aritmética com esta nova roupagem deveria passar por transformações, de forma a mostrar

um ensino concreto. Ensinar intuitivamente a numeração colocava em foco a Lição de

Coisas, de modo que os números eram associados às coisas. Já na vaga conhecida como

Escola Nova, o conceito de número se relacionava à quantidade, assim como no ensino

dito tradicional, mas agora a quantidade ganhava nova roupagem: de memorizada passaria

à quantidade vivida.

Valdemarin (2004) destaca que o método intuitivo incluiria três tendências: estar

diante de um objeto concreto, isto levaria o aluno a obter uma idéia abstrata; estar diante

do objeto e usar seus cinco sentidos; mostrar que conhecia o objeto dizendo seu nome ou

um fato a ele relacionado. Ou seja, o concreto dava o suporte didático, mas por meio do

adestramento dos sentidos é que haveria a possibilidade da produção de conhecimento, o

caminho do concreto ao abstrato.

Barreto, nas páginas iniciais dá uma gama de exemplos de “coisas” para se

trabalhar com o aluno: tornos, varinhas, cubos, moedas, etc., cartões recortados em formas

geométricas, etc. Sugere que os objetos tenham tamanhos exatos, para educar a vista do

aluno, permitindo medidas e comparações, o professor deve possuir os principais

instrumentos de medida, fita-metro, pesos, balança, etc. Barreto provavelmente via no

ensino de medidas algo que aproximava o aluno do fato numérico. O autor aconselhava

ainda que os professores, colocassem as crianças, durante os exercícios, ,de pé em torno de

uma mesa, para facilitar o manuseio dos objetos.

Pode-se dizer que no ensino dos números, deveria primeiro utilizar objetos para

representá-los seguido da ideia de número, seu significado, as representações práticas

deste, sua análise. Depois de ensiná-los dando acento ao fato numérico (significado) é que

viria o ensino do algarismo e sua abstração. Para Barreto, não bastava contar os números

em sequência, isto não significava que o aluno estivesse compreendendo o significado de

número. O aluno deveria ser levado a pensar e a dar exemplos. Aí uma nova postura do

aluno, o qual passa a ser mais participativo. Mesmo assim, o autor aconselhava a repetição

de lições anteriores para que o aluno se familiarizasse com o número. Isto mostra que por

mais que um novo movimento se instaure, vestígios do anterior permanecem, nem tudo do

“velho” é descartado, mas visto de outra forma. Agora a repetição seria utilizada para dar

sentido.

O terceiro manual analisado o de Backheuser (1933), está em conformação com os

ideários do movimento educacional conhecido como Escola Nova. De acordo com Valente

(2016),

Entra-se num período de dar ao processo educativo novas bases, novos

paradigmas., Prossegue a renovação pedagógicas e o desafio de romper com os

modos considerados tradicionais. Há necessidade de novos métodos e

programas. Emerge um novo modo de pensar o papel do professor no processo

educativo: a criança deve continuar a ser o centro do ensino. O saber psicológico

consolida-se como condutor da pedagogia. Mais que especificamente, ganha

terreno a psicologia experimental de base estatística.

(VALENTE, 2016, p.20)

Segundo Valente (2016) seria Lourenço Filho que faria a distinção entre o ensino

intuitivo e os novos métodos da Escola Nova. Anos antes da publicação do manual de

Backheuser, Fernando de Azevedo, Diretor Geral da Instrução Pública do Distrito Federal,

buscando levantar os problemas enfrentados pela instrução instaurou um inquérito (1926)

sobre a educação Pública, divulgado no jornal O Estado de São Paulo. A conclusão desta

avaliação é estendida para o país, mostrando haver necessidade de democratização do

ensino, de um sistema educacional articulado e integração do projeto educacional ao

projeto político e social do país (VALDEMARIN, 2010, p. 112-213). Um dos professores

consultados no Inquérito foi Lourenço Filho que em 1930 publica “Introdução ao estudo da

Escola Nova” e assume de 30 a 31 a Diretoria de Ensino, depois o gabinete do Ministério

da Educação e Saúde e em 1932, o Instituto de Educação do Distrito Federal, ano em que

publica o Manifesto dos Pioneiros, Na Direção da Instrução Pública passou para Anísio

Teixeira, que em 1928, após uma viagem ao s Estados Unidos, publica Aspectos

americanos da educação. Neste pequeno trecho Valdemarin mostra a constante circulação

de pessoas e ideias. Segundo Pinto (2006), Lourenço Filho valorizava a pesquisa no seu

caráter investigativo, a experimentação seria necessária para aprimorar o ensino. Já para

Anísio Teixeira, importava o caráter de experimentação da pesquisa, pois somente por este,

os processos de aprendizagem se aperfeiçoariam. (Pinto apud Valdemarin, 2010, p.119).

Estes dois documentos, Inquérito e Manifesto, foram irradiadores das novas pretensões

educacionais. De acordo com este último documento a democratização da sociedade se

daria por meio da escola maternal, jardins de infância e escola primária.

Assim, o manual de Backheuser (1933) está inserido neste movimento. Em que se

há um equilíbrio do raciocínio e da aritmética para vida prática, do individual com o social,

como afirma o autor. Agora, não bastava sentir as coisas, o autor defendia o ensino dos

números em situações vividas, como nos exercícios de compra e venda, de feiras, mas que

mesmo assim, sugere que um pouco de repetição seria necessária a fim de despertar o

interesse do aluno para o “número”. Com relação aos métodos o autor se apoia nos tipos

psicológicos do aluno. O aluno visual poderia relacionar o objeto com o número

visualizando-o. O aluno auditivo poderia relacionar o número contando-o em voz alta ou

com o barulho de palmas. Já o aluno motor, precisaria contar com os dedos, utilizando

traços ou formas. Para o autor, apenas quando se aprendesse de fato a noção de número,

passaria a noção de algarismo.

Muito importante são as relações da aritmética com o que o autor denomina outras

disciplinas primárias desenho , música, geografia, ginástica, economia doméstica, história

e linguagem. A aritmética ainda se encontra presente no desenvolvimento dos centros de

interesse e realização de projetos.

SABERES PARA ENSINAR EM PINHEIRO, BARRETO E BACKHEUSER

Dois tipos constituintes de saberes ligados às profissões do ensino e da formação

são definidos pelos pesquisadores suíços Rita Hofstetter e Bernard Schneuwly (2009): os

saberes a ensinar que são objetos do trabalho do formador e os saberes para ensinar,

ferramentas de seu trabalho. Quem ensina, ensina saberes (no sentido amplo do termo),

saberes aos quais formar. O que o professor deve ensinar, geralmente exposto nos planos

de estudos, nos currículos e nos manuais é o que os autores denominam saberes a ensinar.

Para estes autores, ensinar saberes num sentido amplo engloba o saber

propriamente dito, aqui representado pelo saber matemático e o savoir-faire, no caso, o

saber ensinar, saber ensinar matemática. Desse modo, caberá ao professor-formador

escolher os saberes e transformá-los em saberes a ensinar, “resultado de processos

complexos que transformam fundamentalmente os saberes a fim de torná-los ensináveis”

(HOFSTETTER E SCHNEUWLY, 2009, p. 18, tradução nossa), com “enunciados

comunicáveis e socialmente reconhecidos, ou ainda: através de saberes didatizados”

(idem), também denominados pelos autores como saberes objetivados, organizados em

matérias, ou disciplinas. Estes saberes são aqueles que especificam a instituição de

formação ou de ensino.

Por outro lado, para formar, de acordo com os autores, o formador precisa dispor de

saberes. Os saberes neste caso são instrumentos, ferramentas de seu trabalho, saberes para

formar, que os autores denominam saberes para ensinar. Para estes autores estes saberes

englobam os seguintes saberes: sobre o objeto de trabalho de ensino e de formação (ligados

aos sujeitos que aprendem, se adulto, se jovem, seus modo de aprender, seu

desenvolvimento, etc); sobre as práticas (quais métodos, recursos, dispositivos, saberes a

ensinar, aos modos de organização e gestão irei escolher); e sobre a instituição que define o

seu campo de atividade profissional (o que prescrevem os planos, as finalidades, os

regimentos, etc.) (HOFSTETTER E SCHNEUWLY, 2009, p.19, tradução nossa). Estes

saberes são construídos pela profissão.

Relativo a estes saberes, o que dizem estes manuais sobre o perfil do aluno ou do

professor que vai ensinar, em relação aos métodos, aos dispositivos, procedimentos, às

finalidades de ensino, aos planos e regimentos, às instituições de ensino?

Analisando os manuais, observa-se que em todos, o conceito de número está

relacionado a quantidade, conforme já observou Valente (2012) com relação ao conceito

de número e sua conformação com as vagas pedagógicas. Assim, no primeiro manual tal

quantidade não estava ligada nem às coisas e nem à situação cotidiana, mas sim ao

número, à repetição e à memorização, método tradicional. No segundo livro, de Barreto, a

quantidade estava ligada aos objetos, às coisas, características do método intuitivo. Já no

terceiro, em Backheuser, a quantidade se expressava nas situações vividas. Isto traduz em

parte os saberes sobre a prática, que compõem os saberes para ensinar.

No caso os saberes sobre o objeto de trabalho, no primeiro manual o aluno é visto

como alguém que aprende por si só deve utilizar o raciocínio, é individualista. No método

intuitivo, ocorre uma pedagogia social, o concreto, a relação com o objeto, o “número”

precisa ser sentido. No manual com características de um ensino escolanovista, há um

maior equilíbrio entre o social e o individual, agora a quantidade tem que fazer sentido. O

aluno do ensino escolanovista, deve relacionar a quantidade às situações do cotidiano,

vivida.

No livro de Pinheiro (1902) um dos dispositivos para o aprendizado do número era

a repetição e a memorização, que poderia ser feito por meio do ditado, da recitação, etc..

Diferentemente, no livro de Barreto (1912) o autor cita as Cartas de Parker. Em Portela

(2014), encontra-se que o uso das Cartas de Parker, um dispositivo didático, representou a

quebra da forma tradicional de ensinar cálculo, se configurando dispositivo representante

do ensino intuitivo. Segundo Portela, “o material era constituído por um conjunto de

gravuras que tinha por objetivo auxiliar o professor a conduzir de maneira metódica o

ensino, sobretudo, das quatro operações fundamentais”(PORTELA, 2014, p.94). No

terceiro livro analisado, Backheuser, o autor cita pauzinhos, torninhos, varas, varinhas, no

ensino dos números, além de problemas envolvendo números e operações. Ainda assim ao

usar a “feira” como um dispositivo, o autor afirma que seria precisa trabalhar algumas

repetições para que o aluno se interessasse no número.

A respeito das finalidades de ensino, verifica-se que os autores dos manuais

estavam geralmente em consonância com os planos de estudos e vagas pedagógicas de seu

tempo. Talvez por isto sinalizassem características tão peculiares dos respectivos

movimentos que representavam.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao olhar para três manuais pedagógicos brasileiros, não significa dizer que estes

ficaram restritos à circulação em nosso território. Assim, a fronteira geográfica como

passagem, lugar de trocas, de contatos, de porosidade, e não como limite.

Como a comparação e a circulação são intrínsecas, não há como pensar em

circulação destes manuais e não pensar a comparação dos mesmos. No entanto, a intenção

nestes manuais não foi a de caracterizar semelhanças e diferenças na composição dos

saberes, mas a de tentar construir um território epistemológico capaz de proporcionar tal

comparação. Este território é o que Hofstetter e Schneuwly (2009), denominam saberes em

(trans)formação. Nesta pesquisa o desafio seria olhar para as orientações didáticas nos

manuais com relação aos saberes para ensinar o conceito de número.

Ao analisar manuais, as escalas de comparação mudam. Para Chartier (2009)

dependendo do que o historiador queira ver, seu olhar poderá ser micro ou macro, global

ou local, no entanto deverá escolher um marco de estudo, um acontecimento que evidencie

as histórias conectadas (Subrahmanyam, 1994).

Neste sentido, as fronteiras (no sentido do que separa um manual do outro ou o

manual que foi impresso aqui e ali) não são tomadas, considerando-as como quadros

confortáveis de comparação, mas de com o intuito de estabelecer identidades. Organizar a

forma de pensar nestas identidades é reorganizar a forma de construir e de constituir

objetos, no caso desta pesquisa saberes, construindo novas formas de pensar os saberes

escolares, analisando como um saber vai se “transformando” em outro.

Como comparar um fenômeno que acontece aqui, mas não acontece em outro

lugar? Compreender isto é o grande desafio da fronteira historiográfica. Alguns

fenômenos acontecem de maneira diferente em cada lugar, ou de modo parecido, porém

com uma nomenclatura diferente. Como o exemplo discutido em sala, da Escola Nova.

Escola Nova não é a mesma em todo lugar, Escola Nova no Brasil é bem diferente de

Escola Nova na Argentina. Quando pensamos nas traduções, por exemplo, teria École

Nouvelle, na França, o mesmo sentido e significado que Escola Nova tem no Brasil? Para

isto deve ter clareza das tradições historiográficas dos países, de lugares alhures para tentar

compreender e construir o território para a comparação.

Ao tentar construir este território epistemológico, é Detienne (2004) que dá o seu

aporte na construção de comparáveis. Como manuais de diferentes épocas, impressos em

diferentes locais, podem se relacionar. É neste sentido que a pesquisa maior caminha, no

sentido de tentar atribuir sentido ao passado analisando os saberes para ensinar nestes

manuais, e num sentido mais amplo, compreender a transformação destes saberes.

Assim, para analisar as fontes e suas relações o objeto de pesquisa em construção,

deve se ter clareza de que pesquisar manuais pedagógicos se trata de um trabalho difícil,

repleto de minuciosidades, sutilezas. Pois nem sempre você consegue dar encontrar e

provar todas as fontes e para dar legitimidade à pesquisa comparada em educação (VIDAL,

2010), ou seja, uma maior ancoragem das fontes e dos objetos para dar visibilidade nas

análises.

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