Origem divina e fonte humana do poder civil em … · Na verdade, se a separação política entre...

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www.lusosofia.net Origem divina e fonte humana do poder civil em Guilherme de Ockham: Emergência da Liberdade António Rocha Martins 2011

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Origem divina e fontehumana do poder civil emGuilherme de Ockham:

Emergência da Liberdade

António Rocha Martins

2011

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Covilhã, 2011

FICHA TÉCNICA

Título: Origem divina e fonte humana do poder civilem Guilherme de Ockham: Emergência da LiberdadeAutor: António Rocha MartinsColecção: Artigos LUSOSOFIA

Design da Capa: António Rodrigues ToméComposição & Paginação: Filomena S. MatosUniversidade da Beira InteriorCovilhã, 2011

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Origem divina e fonte humana dopoder civil em Guilherme de

Ockham:Emergência da Liberdade

António Rocha Martins∗

«If there are no new truths to be discovered,there are old truths to be rediscovered.»1

Ao filósofo não é permitido pensar passando por cima do seu mundocontemporâneo: o «presente» revela-se-lhe indeclinável exigênciaa e do pensar2. «O que é» entra no pensamento, constituindo-se como tal mas também configurando o próprio pensamento. Averdade é filha do tempo. Pensar o tempo a esse nível essen-cial faz o pensamento criar raízes na história e traduz o «espírito»da filosofia medieval3. Tal dimensão histórica, imprescindível ao

∗Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa1P. F. Strawson, Individuals. An Essay

in Descriptive Metaphysics, London-New York, 1993, p. 10.2 O filósofo é filho do seu tempo, como recorda, pertinentemente, Manuel J.

Carmo FERREIRA, «O tema da revolução em Hegel», Brotéria, 102 (1076), p.37.

3 Cf. Carlos STEEL, «La philosophie comme expression de son époque»,in J. Follon – J. Mcevoy, (eds): Actualité de la pensée medieval, Louvain-Paris,1994, pp. 79-93.

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desenvolvimento da cultura, encontra naturalmente a questão dopoder político (dimensão material da vida humana)4, sendo aí odireito humano menos expressão de aspectos negativos (pecado)do que de aspectos positivos (viver bem e politicamente)5.

A filosofia política de Guilherme de Ockham é de actualidadebem exemplo, pela sua íntima ligação às vicissitudes históricas eu-ropeias da primeira metade de Trezentos; mas não é por isso umsimples resultado das circunstâncias, sendo antes fruto de um in-terventor comprometido face a acontecimentos que interpreta, oralegitimando ora rejeitando. Em dois acontecimentos o filósofo me-dieval se envolveu particularmente: na questão acerca «PobrezaEvangélica e Franciscana»6 e nos conflitos entre o Papado e o Im-perador; aí chamado, constituiu o seu pensamento político – ori-ginando, entre os seus intérpretes, a discussão sobre a fractura oucontinuidade do «político» e do «filósofo»7.

4 A questão que se coloca não é a de se o poder é uma categoria medieval,mas, sim, se ele aparece mais cedo ou mais tarde: o poder constituir-se-á aindano interior da medievalidade. Liga se com a separação entre âmbitos comoo secular e o religioso-moral; explicitamente, aparece nos primeiros anos doséculo XIV; viera, no entanto, já desenhando-se, pela alteração de condiçõessociopolíticas, com reflexo nas relações entre a Igreja e o Império. Para umaperspectiva de conjunto sobre a emergência do poder na Idade Média, veja-se:D. Boutet – J. Verger (dir), Penser le pouvoir au Moyen Âge, Rue d’Ulm, Paris,2000; Jürgen MIETHKE, Las ideas políticas de la Edad Media (trad. esp. deFrancisco Bertelloni), Buenos Aires, Editorial Biblos, 1993. No mesmo sentidovai a investigação de Esteban Peña EGUREN, La filosofia política de Guillermode Ockham, Madrid, Encuentro Editiones, 2005, pp. 19-40. (Obra que muitonos deu que pensar).

5 Veremos que poder sobre os bens materiais, instituído por direito humano,tem a função de prever (e não promover) a corrupção (onde não há governadoro povo corrompe-se).

6 Sobre a controvérsia entre o Papa João XXII e a Ordem Franciscana nosinícios do século XIV, tenha-se presente a obra de Virpi MÄKINEN, Propertyrights in late medieval discussion on franciscan poverty, Peeters, 2000, pp. 141-190.

7 Os aspectos de continuidade têm sido mais relevados. Entre muitos pos-síveis, vejam-se: Marino DAMIATA, Guglielmo d’Ockham: Poverta’ e Poter.

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O nome de Ockham assumirá particular relevo no dealbar doséculo XIV, não só por ter reivindicado o primado do indivíduo emrelação ao género e à espécie, mas também pelo equilíbrio mantidoentre o poder religioso e o poder civil, conciliando as especifici-dades de ambos.

Na verdade, se a separação política entre o espiritual/religiosoe o temporal é hoje inquestionável, os termos desta separação en-contram as suas primeiras determinações na Idade Média, explici-tamente nos primeiros decénios do século XIV. Historicamente fa-lando, é frequente ver-se na reacção ao religioso uma das primeirasexpressões da filosofia política moderna, cujo aparecimento, as-sim, se entende determinado negativamente pelo elemento reli-gioso. A autonomia do político dar-se-ia somente com a desagre-gação do religioso, facto tardo-medievo. Importa, no entanto, dizerque há nessa perspectiva um quadro de compreensão demasiada-mente unívoco e simplista acerca da medievalidade, época em que,justamente, nada é simples e tudo é complexo8.

Il problema della povertà evangelica e franciscana nel sec. XIII e XIV. Ori-gine del pensiero politico di G. d’Ockham, vol. I, Firenze, 1978, pp, 391ss;Georges de LAGARDE, La naissance de l’esprit laïque au déclin de MoyenÂge. V. Guillaume d’Ockham: Critique des structures ecclésiales, Louvain-Paris, Nauwlaerts, 1963, pp, 281-289ss; Alessandro GHISALBERTI, Gugliemodi Ockham, Vita e Pensiero, Milano, 1972.

8 A filosofia moderna, que muitas vezes se pretende originária, tem no séculoXIV, ainda medieval, indeclináveis expressões. Veja-se: André de MURALT,L’unité de la philosophie politique. De Scot, Occam et Suarez au libéralismecontemporain, Paris, Vrin, 2002, pp. 7ss. O autor reage à obra de Pierre Mes-nard, L’essor de la philosophie politique au XVIe siècle, Vrin, Paris, 1969, o qualdefende a ideia de que a filosofia política moderna surge apenas com o fim daIdade Média. Sublinha Muralt (pp. 7 8): «La philosophie politique moderne estbien celle qui fleurit dans les siècles classiques. Elle a connu un développementdivers et contrasté. Elle présente les théories de l’absolutisme monarchique toutaussi bien que les idéaux civils qui continuent d’animer, sous des formes im-prégnées du libéralisme anglais, les sociétés démocratiques occidentales. Maiselle n’est pas le fruit éclosion originale qui marquerait brusqument l’arrêt d’untemps et la naissance d’un autre. Elle plonge ses racines dans la réflexion poli-

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Pode dizer-se, com efeito, que já nos inícios do Baixo Medievosurgem esforços que manifesta e politicamente reflectem uma con-corrência e um equilíbrio entre os distintos âmbitos do humano,indo o sentido de desenvolvimento dessa experiência medieval nu-ma crescente participação de elementos naturais e não teológicos(secularização) na fundamentação da organização política (juridi-zação)9. Mas nenhum dos termos que aí entra em questão seráencarado com significado restritivo. Guilherme de Ockham é fa-vorável a tal orientação, acentuando os factores que possibilitam, apartir do homem, a afirmação do político (em oposição à tradiçãocurialista). É preciso, contudo, não cair em simplismos, que opróprio Venerabilis Inceptor, aliás, denunciaria10. Nem o espir-itual se confunde com a Igreja, nem o temporal coincide com asociedade civil: os «clérigos» e os «laicos» não são dois géneros

tique et ecclésio-politique des siècles précédents. Elle est partie intégrante, par-ticulièrement féconde, d’un mouvement foisonnant, dont les pionniers les plusimportants sont Jean Duns Scot et Guillaume d’Occam». Sublinha o autor que,excepto Hegel («abandonou a modo de pensar moderno»), a filosofia modernaprolonga e complementa, respondendo de um modo novo às mesmas dificul-dades, o pensamento ockhaminiano (pp. 154ss).

9 Jürgen MIETHKE, Las ideas políticas de la Edad Media, pp. 49ss. Nodizer do autor, o século XII significa um novo momento no desenvolvimento dateoria política (tradicionalmente, uma separação efectiva do espiritual e do tem-poral parecia impossível), pois os prolongados e renascentes esforços que entãovão surgindo, na Alemanha, por exemplo (Concordata de Worms, 1122), cons-tituem uma nova base de futuros desenvolvimentos. Nesses anos transforma-se asituação que actuava como ponto de partida, acrescendo que, transformações dascondições gerais de vida (crescimento, mobilidade, movimentos populacionais,surgimento de novas cidades, aparecimento de novas estruturas), afectaram aordem política e a constituição social, adquirindo as condições de vida uma pe-culiar plasticidade. Novas formas coexistirão com as antigas.

10 Ockham censurará a manifesta «ligeireza» das fórmulas de distinção,muitas vezes admitidas sem discussão. O que significa «espiritual»? Esta ouaquela pessoa é espiritual porque pertence à Igreja ou porque vive segundo o es-pírito e a lei divina? Cf. Georges de LAGARDE, La naissance de l’esprit laïqueau déclin de Moyen Âge. V. Guillaume d’Ockham: Critique dês structures ec-clésiales, Louvain Paris, Nauwlaerts, 1963, 204ss.

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da espécie humana; como tal, essa oposição não pode servir comocritério de demarcação entre o natural e o teológico. Evidencia-seuma direcção à suficiente autonomia do poder real, mas a fonte hu-mana (independência do poder) não rejeita a origem divina (potes-tas a deo). O mesmo pode dizer-se de conceitos como seculariza-ção (laicidade), racionalidade, diferenciação, soberania, e outros,os quais comportam indeclináveis expressões medievais11.

Efectivamente, se é verdade que a Idade Média não produz pro-priamente uma teoria política (no sentido moderno do termo)12,é também verdade que a partir de um certo momento (especial-mente a partir do século XI), as questões crescentes relativas àsrelações concretas da Igreja com o mundo vão repercutindo umâmbito político (mesmo negativamente), estranho/exterior à Igreja,a partir do qual era muito difícil compreender as exigências dodireito divino13. E, portanto, embora de modo negativo (i. e., a

11 Só uma reflexão geral e abrangente de toda a história medieval poderá de-terminar com rigor o alcance e limites de tais conceitos. Sobre isso, veja-se:Jürgen MIETHKE, Las ideas políticas de la Edad Media, pp. 211-212; PhilippeNEMO, Histoire des idées politiques dans l’Antiquité at au Moyen Âge, Paris,Puf, 1998, pp. 974ss. P. Nemo recorda ter sido em França que primeiramente sefez sentir a necessidade de justificar a independência política do Estado nacionalface ao Império universal («o rei de França é imperador do seu reino»): Ockhamteria descuidado a soberania a favor da laicidade.

12 Cf. João Morais BARBOSA, «Introdução», in Álvaro Pais, Estado e Prantoda Igreja (Status et Planctus Ecclesiae), vol. 1, Lisboa, INIC, 1988, p. 25.

13 O século XI não foi uma simples continuação da tradição, sem solução decontinuidade. Agora há a ideia de uma reforma geral da Igreja, que irá corporizarum programa apoiado por movimentos monásticos de renovação, visando não sólibertar a Igreja de manipulações e abusos mas também reformular as relaçõesentre o espiritual e o temporal. O lema era a «liberdade» da Igreja ante quais-quer intromissões externas. Sobre tal exigência de libertação da Igreja (libertasecclesiae), acompanhada da reformulação das relações entre os poderes, vejam-se: Jürgen MIETHKE, Las ideas políticas de la Edad Media, pp. 38ss. EvelynePATLAGEAN; A. Paravicini BAGLIANI (et alii), «Les raports du Spirituel etdu Temporel. Évolution et remise en cause (1054-1122), in AA.VV, Histoiredu Christianisme, vol. 5: Apogée de la papauté et expansion de la chrétienté

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libertação por parte da Igreja de influências estranhas/temporais),prevê-se aí uma alteração de relações entre o poder espiritual eo poder temporal. O facto de a política não integrar as artes li-berales não significa, pois, que o medieval desconheça a sua im-portância14. Recorde-se que a jurisprudência é uma das ciênciasde melhor aplicação prática quotidiana15. O direito, e sobretudoo direito canónico, deveria plasmar as relações jurídicas que, den-tro da Igreja, se verificavam entre os seus diferentes membros. Si-multaneamente, o crescendo das decretais pontifícias requeria cadavez melhores especialistas, de tal modo que o estudo do direitocanónico abrira enormes possibilidades de carreira16, que a con-frontação entre o papado e o poder temporal (representado primei-ramente pelo imperador e mais tarde pelos reis e príncipes da cris-tandade) bem salientaria, reportando uma concepção acerca da for-ma e estrutura jurídica da Igreja. Assim se impôs a doutrina se-gundo a qual o Papa constituía a cúspide e o eixo de todo o sistemada organização eclesiástica, que o conceito de plenitude de poder

(1054-1274), Paris, Desclée, 1993, pp. 25-175; Harold J. Berman, Law andRevolution. The Formation of the Western Legal Tradition, Harvard UniversityPress, 1983, pp. 49-119.

14 Concluir que a universidade medieval careceria de significação para a teoriapolítica, em virtude da ausência da política – como disciplina autónoma – dotrivium e do quadrivium, seria, de facto, um erro muito grave. São abundantesos textos que podem ser considerados políticos. Ademais, o público e os autorestambém se transformaram; e com essa transformação transformou-se igualmenteo lugar da teoria política. Vd. Jürgen MIETHKE, Las ideas políticas de la EdadMedia, pp. 54ss.

15 O Direito – principalmente – e a Medicina são as ciências consideradascomo lucrativas (scientiae lucrativae); os juristas encontram espaço nos sistemasde domínio dos prelados da Igreja e dos governantes temporais. Vd. JürgenMIETHKE, Las ideas políticas de la Edad Media, p. 56ss.

16 Repare-se que uma quinta parte de todas as decretais conhecidas, desde aIgreja primitiva até finais do século XII, foram sancionadas por Alexandre III(1159-1181). Cf. Jürgen MIETHKE, Las ideas políticas de la Edad Media, p.70ss.

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(plenitudo potestatis) pretende designar, que fora difundido peloscanonistas do século XII17.

Ora, é justamente essa teoria da plenitude de poder, elaboradapelos hierocratas, a partir dos últimos decénios do século XII18,que, acrescentando-se à questão da pobreza evangélica e francis-cana, constituem os pólos de chamada e de reposta do pensamentopolítico de Guilherme de Ockham.

A questão acerca da pobreza franciscana reabrira-se na Prima-vera de 1322 (30 de Maio a 7 de Junho), com a declaração (De-claratio), por parte de um grupo de Menoritas (contra João XXII),de que Cristo e os Apóstolos haviam renunciado a quaisquer di-reitos de propriedade e domínio sobre os bens materiais, recla-mando, nessa apreciação, o promulgado por Nicolau III (bula Exiitqui seminat, de 14 de Agosto de 1279), o qual confirma (recor-

17 Foi com Inocêncio III que o conceito de plenitudo potestatis se tornouum termo técnico, servindo para designar a soberania pontifícia. As origensda fórmula remontam a Leão I (século V). Mas é apenas nos últimos decéniosséculo XII que o papado passa a aplicá-la para indicar a legitimidade de inter-venção nas questões seculares. Em 1198 entrou decisivamente na linguagemda chancelaria pontifica. Os canonistas adoptá-la-ão também (tradicionalmente,definia-se a autoridade papal como plena potestas, plena auctoritas, pelnariapotestas, plena et libera administratio). O sucesso da fórmula ficou asseguradopelo entusiasmo com que Bernardo de Claraval também a acolheu, e pelo apro-fundamento jurídico e doutrinal de Huguccio, cuja definição veio a tornar-seclássica: «A autoridade plena existe quando contém ordem (preceptum), vali-dade e necessidade; estes três elementos encontram-se no papa, ao passo que osrestantes bispos reúnem apenas o primeiro e o terceiro». Sobre os canonistasdo século XII, veja-se: A. Paravicini BAGLIANI, «La suprématie pontificale(1198-1274)», in AA.VV, Histoire du Christianisme, vol. 5: Apogée de la pa-pauté et expansion de la chrétienté (1054-1274), pp. 577ss. Note-se, ainda, quefoi no gozo da plenitude de poder que, no decurso do concílio de Lyon, em 13de Julho de 1245, o papa Inocêncio IV destituiu o imperador Frederico II, bemcomo o rei português Sancho II.

18 Entre os defensores dessa forma de absolutismo eclesiástico, encontravam-se juristas e teólogos; cabe mencionar, pela relevância das obras, Tiago deViterbo (autor do «mais antigo tratado da Igreja»), Egídio Romano (De eccle-siastica potestate) e Álvaro Pais, Bispo de Silves, (De statu et planctu ecclesiae).

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dando os argumentos de São Boaventura) a observância da Regraao Evangelho19. Com efeito, tal como o Doutor Seráfico20, Nico-lau III distinguira os conceitos de propriedade, possessão, usufruto,direito de uso e simples uso de facto, sendo o único direito a nãoderrogar o que diz respeito ao simples uso de facto21. Ou seja,a esta luz seria possível e juridicamente legítimo servir-se de umdado objecto sem do mesmo reclamar algum direito legal. O usode um bem não implicaria, pois, a sua propriedade.

Tal distinção conceptual-jurídica, que garante a possibilidade –legal – da vida franciscana em pobreza, tornar-se-á – cerca de doisanos mais tarde – pomo de discórdia entre João XXII e Guilhermede Ockham. O sumo pontífice, que reagira de imediato ao ma-nifesto de Perugia (bula Ad conditorem canonum, de 2 de Dezem-

19 Sobre isso, pode ver-se: Marino DAMIATA, Guglielmo d’Ockham:Poverta’ e Poter. . . , vol. I, 337ss; Virpi MÄKINEN, Property Rigths in LateMedieval. . . , p. 154ss.

20 Eis como São Boaventura interpreta a pobreza: «Ut igitur praefatis et hissimilibus cavillationibus malignis et subdolis imponatur silentium, intelligen-dum est, quod cum circa res temporales quatuor sit considerare, scilicet proprie-tatem, possessionem, usumfructum et simplicem usum; et primis quidem tribusvita mortalium possit carere, ultimo vero tanquam necessario egeat: nulla pror-sus potest esse professio omnino temporalium rerum abdicans usum. Verum eiprofessioni, quae sponte devovit Christum in extrema paupertate sectari, conde-cens fuit universaliter rerum abdicare dominium arctoque rerum alienarum et sibiconcessarum usu esse contentam. Unde et ipsorum Regula continetur: “Fratresnihil sibi approprient, nec domum nec locum nec aliquam rem”.» (Apologia pau-perum, XI, 5; VIII 312a). Note-se que o texto bonaventuriano é de 1269, por-tanto muito anterior ao reavivar da controvérsia (daí também a sua importância).

21 Non autem talem abdicationem proprietatis omnimode renuntiationem ususrerum cuiquam videatur inducere; nam cum in rebus temporalibus sit conside-rare precipuum proprietatem, possessionem, usum fructum, jus utendi et sim-plicem facti usum, et ultimo tanquam necessario egeat, licet primis carere possitvita mortalium, nulla prorsus potest esse professio, que a se usum necessariesustentationis excludat, verum condescens fui ei professioni, que sponte devovitChristum pauperem in tanta paupertate securi, omnium abdicare dominium etrerum sibi concessarum necessário usu fore contentam.» (Bullarium Francis-canum III, 408b). Itálico nosso.

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bro de 1322), afirma que o uso de um bem é inseparável da pro-priedade22; nas coisas fungíveis isso seria evidente, nas que não osão o uso acabaria por levar a um certo direito – o usus iuris; ora,quem tem direito é proprietário23. Assim, para João XXII, dizerque Cristo e os Apóstolos nada possuíram era o mesmo que ne-gar o seu direito a servir-se de alguma coisa; e visto tal ir contraa Escritura, deveria reprovar-se e condenar-se como heresia (bulaCum inter nonnulos, 12 de Novembro de 1323)24. Numa terceiraintervenção oficial (bula Quia quorumdam, 10 de Novembro de1324)25, o sumo pontífice reprova a opinião dos detractores, quepresumiram impugnar as suas duas constituições precedentes; re-cusa, sobretudo, a distinção dos frades Menores entre o que o Papaafirma per clavem scientiae in fide ac moribus (ex cathedra) e osimplesmente dito per clavem potestatis (questões administrati-vas). Para João XXII, tudo o que o Papa declara é verdade imutável(infalível). Pretendia o sumo pontífice pôr termo à controvérsia.Entretanto, as circunstâncias vão reunindo outros interlocutores,de entre os quais sobressai justamente Guilherme de Ockham.

Eis por que, não fora essa questão acerca da pobreza, legitima-mente se poderia presumir que Ockham regressaria a Oxford, findoo processo de acusação em que se vira envolvido. O filósofo me-dieval encontrava-se Avinhão desde 1324, a fim de se defender dadenúncia de J. Lutterell. Impelido a tomar a pena a respeito dessaquestão, «lê e estuda diligentemente» as três constituições ponti-fícias (Ad conditorem canonum; Cum inter nonnulos; Quia quo-rumdam), apelidando-as de destitutiones haereticales (mais do que

22 «Ex hoc patet quod nullum eidem ecclesiae temporalis advenerit hactenuscommodum nec speratur.» (Bullarium Franciscanum V, 236b-237a).

23 «Quod, in talibus rebus, usus iuris vel facti separatus a proprietate seudomino possit constitui, repugnat iuri et obviat rationi.» (Bullarium Francis-canum V, 237a).

24 Bullarium Franciscanum V, 256-259.25 Bullarium Franciscanum V, 271-280.

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constitutiones),26 insurgindo-se explicitamente contra João XXII, eassim principiando a sua carreira de polemista, o chamado períodopolítico da sua vida.

Tal não quer dizer, contudo, que o pensamento político do nos-so Autor se explique exclusivamente a partir da sua posição face àquestão da pobreza. Sempre optimista e confiante nos valores ra-cionais, adoptará uma via media, distanciando-se tanto do radica-lismo dos espirituais como das tentações joquimitas de colapso edesarticulação apocalíptica27.

Mas foi justamente a bula Quia via reprobus, promulgada porJoão XXII, em 16 de Novembro de 132928, para responder aos es-critos e apelações de Miguel de Cesena, entretanto refugiado emMunique (juntamente com Ockham e demais companheiros)29, que

26 «Quia nolens leviter credere quod persona in tanto officio constituta haere-ses definiret esse tenendas, constitutiones haereticales ipsius nec legere nechabere curavi. Postmodum vero ex occasione data, superiore mandante, tresconstitutiones seu potius destitutiones haereticales, videlicet Ad conditorem,Cum inter et Quia quorundam, legi et studui diligenter. In quibus quamplurahaereticalia, errónea, stulta, ridiculosa, fantastica, insana et diffamatoria, fideiorthodoxae, bonis moribus, rationi naturali, experientiae certae et caritati frater-nae contraria pariter et adversa patenter inveni: de quibus nonnulla duxi prae-sentibus inserenda.» (Epistola ad fratres minores, OP III, 6).

27 Pouco propício a extremismos, Ockham revela-se tão longe dos apologistasda cúria pontifícia como do laicismo radical de um Marsílio de Pádua, e mesmodos partidários de uma distinção rigorosa entre o espiritual e o temporal. Sobrea via media ockhaminiana, veja-se: Marino DAMIATA, Gugliemo d’Ockham:Povertà e Potere. Il Potere come servizio dal principatus dominativus al princi-patus ministativus, vol II, Firenze, 1979, pp. 149ss; Esteban Peña EGUREN, Lafilosofia política de Guillermo de Ockham, pp. 196 e 428-438.

28 Bullarium Franciscanum, V 408-449.29 Miguel de Cesena, Bonagrazia de Bérgamo, Francisco de Ascoli e Gui-

lherme de Ockham fogem de Avinhão em 26 de Maio de 1328 (vd. Bullar-ium Franciscanum, t. V, nos. 711 e 714.) Depois de uma breve passagem porGénova, chegam a Pisa em 9 de Junho. Encontram-se com o imperador (Luísde Baviera) apenas em 21 de Setembro; é então que a lenda põe na boca deOckham as seguintes palavras: O imperador defende me gladio et ego defendamte verbo. João XXII excomungá-los-á em Junho do mesmo ano, e embora per-

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proporcionou a ocasião imediata, não só para discutir o problemada «pobreza evangélica» mas também as suas implicações refe-rentes aos poderes espiritual e secular30.

Verdadeiramente, Ockham vai acelerar a noção de laicidade doEstado, atenuando a autoridade papal ao mesmo tempo que, na re-lação entre os seres humanos, acentua o positivismo da lei, privile-giando a convenção e o pacto31, isto é, o que a todos se deve imporpor defeito de cada um.

Assim, entre finais de 1332 e inícios de 133332, escreveu asua primeira obra polémica, intitulada Opus nonaginta dierum, naqual, sempre partindo de Quia vir reprobus, refuta as teses de JoãoXXII, expressas nas suas últimas bulas. Suceder-se-ão as obraspropriamente políticas, já que a natureza do poder (tanto religiosocomo civil) permanece aí como questão decisiva, quase sempre li-gada à pergunta sobre a plenitudo potestatis, isto é, sobre a pre-tensão de poder ilimitado por parte do Papa e, por consequência,aos limites entre o poder religioso e o poder civil, poderes essesque, personificados na época nas figuras do sumo pontífice e doimperador, haviam entrado em rota de colisão, pelo que se tornaranecessário averiguar quer um quer outro, bem como a relação entreambos.

maneçam ainda algum tempo em Itália cerca de dois anos mais tarde já se en-contram na Alemanha. Sobre a vida e obra de Guilherme de Ockham, veja-se:L. BAUDRY, Guillaume d’Occam. Sa vie, ses ouvres, ses idées sociales et poli-tiques. I: L’homme et les oeuvres, Paris, Vrin, 1950; Esteban Peña EGUREN,La filosofia política de Guillermo de Ockham, pp. 91-119.

30 Cf. José António de SOUSA, «Fundamentos éticos da teoria Ockhamistaacerca da origem do poder secular», Revista Portuguesa de Filosofia, 41 (1985),p. 142.

31 Cf. Philippe NEMO, Histoire des idées politiques. . . ., pp. 93-94.32 Já em Munique, aonde chegara há cerca de dois anos (1330), na companhia

do próprio Luís de Baviera.

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Na economia do presente estudo, centrar-nos-emos principal-mente no Livro III do Breviloquium33, dedicado precisamente àorigem divina mediata do poder, isto é, à fonte humana do podercivil. Vamos ver que o discurso de Ockham é cheio de consequên-cias para a filosofia política34.

Voltando, por conseguinte, de novo a João XXII (Quia vir re-probus), eis o que importa saber: fora da Igreja existe ou exis-tiu poder legítimo? Que direito introduz o direito de propriedadeou de domínio, o direito divino ou o direito civil? A resposta dopontífice reporta a palavras de Santo Agostinho, segundo as quaisnada poderia possuir se de temporal senão por direito divino, di-reito pelo qual todas as coisas são dos justos35, pelo que fora da

33 Utilizaremos a edição de Baudry, L., Breviloquium de potestate papae,Paris, 1937. Não obstante algumas dúvidas, sabe-se hoje que o Breviloquium foiescrito por volta de 1339-1341 (antes de 25 de Abril de 1341, data da morte deBento XII). Nas obras que precedem o Breviloquium Ockham não havia aindaexplicitado claramente uma teoria da autoridade, referira apenas a sua origemdivina mediata. É então agora o momento de formular uma teoria mais elabo-rada, que justamente desenvolverá em obras posteriores (Octo questiones). So-bre isso, veja-se: Georges de LAGARDE, La naissance de l’esprit laïque audéclin de Moyen Âge. IV . . . , pp. 217ss.

34 A filosofia política ockhaminiana apresenta-se como uma história, de-screvendo o devir político do ser humano segundo os diversos «estados», deter-minados pela ruptura radical do pecado original. É fácil pressentir coincidênciasna filosofia política moderna com o discurso de Ockham. Por exemplo, o estadode natureza de Hobbes é manifestamente uma laicização do estado da naturezahumana após o pecado, tal como a noção de jus omnium in omnia («direito detodos sobre todas as coisas») deriva da noção de dominium commune («domíniocomum», i.e, o mesmo é comum a todos). A ganância, inveja, ciúme, destrói odomínio comum: eis por que doravante, ainda no pecado, é necessário ao homemorganizar racionalmente a divisão das coisas e a repartição dos cargos públicos,escapando assim à guerra de todos contra todos e assegurando a continuação davida comum através de uma justa propriedade e uma justa sociedade civil. (Cf.André de MURALT, L’unité de la philosophie politique. . . , pp. 148ss).

35 AGOSTINHO, «Et quamvis res quaeque terrena non recte a quoquam pos-sideri possit, nisi vere jure divino, quo cuncta justorum sunt (. . . )» (Epist., 93,PL, 33, 345, c. XII).

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Igreja não haveria propriedade nem jurisdição36. O poder não seestenderia aos «laicos». Identificando, desse modo, os «justos» – aIgreja – com os «fiéis» – o Estado –, nota Ockham, facilmente seprovaria que fora da Igreja não poderia existir verdadeiro domíniodas coisas temporais, nem sequer algum poder «ordenado ou con-cedido», mas apenas um poder por «permissão». Tudo aí seria pordireito divino, uma vez que fora do âmbito eclesiástico não restariasenão a perdição37. Mas isso é um erro que vários dos chama-dos bispos romanos cometem, afirmando que o império romano –poder civil – vem do Papa (plenitudo potestatis); e, de um tal erro,salienta o Autor, resultam muitos outros e intoleráveis, quer paraimperadores, reis e demais príncipes, quer para todos os mortais38.Urge pois refutá-lo, e justamente começando por provar a origemdo poder político39. Dever-se-á ir às Sagradas Escrituras e a todosos documentos não depreciáveis; vendo, pois, que já no AntigoTestamento existiu fora do Povo de Deus e fora da Igreja católicaum verdadeiro domínio das coisas temporais e uma verdadeira ju-

36 «Primo autem inquiram na papa ex ordinacione Christi aliquam super im-perium habeat potestam. Et quidem sunt non nulli dicentes quod imperium est apapa ita ut nullus possit esse verus imperator nisi qui a papa fuerit confirmatusvel electus. Et quidam istam assercionem suam in hoc fundare nituntur quod,secundum ipsos, extra ecclesiam nullum est verum dominium quod, secundumipsos, extra ecclesiam nullum est verum dominium temporalium rerum nec extraeam aliqua vera jurisdiccio temporalis.» (Breviloquium, III, 1).

37 Breviloquium, III, 1.38 «Verum, quia in isto errore quidam vocati romani episcopi, asserentes quod

romanum imperium est a papa, se principaliter fundaverunt et ex eodem errorealii innumerati in intolerabile et nullmodo ferendum prejudicium imperatorumet regum aliorumque principium secularium, ymmo cunctorum mortalium infe-runtur, ipsum, antequam aggrediar alia, clarissime confutare conabor.» (Brevi-loquium, III, 2).

39 Breviloquium, III, 2. A confusão da Igreja e da Cristandade impede nadistinção das sociedades a base de uma oposição do espiritual ao temporal. ParaOckham, o poder político tem origem em Deus, mas não é nem uma dependêncianem anexo do poder espiritual. Veja-se: Georges de LAGARDE, La naissancede l’esprit laïque au déclin de Moyen Âge. IV . . . , pp. 193ss.

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risdição temporal – não apenas permitidas mas também concedidase ordenadas –, Ockham atribui legitimidade própria aos infiéis, osquais devem assim ser considerados como também dignos de pro-priedade, sendo mesmo um prejuízo geral (i.e., para fiéis e infiéis,o «género humano») não reconhecer essa dignidade aos laicos40.

Tudo isto significa, vinca Ockham, que as palavras de Agosti-nho foram interpretadas «irracional», «errónea» e «hereticamen-te»41. De facto, provar-se-ia facilmente que também os fiéis, nãoobstante a rectidão da fé, vivem sujeitos do pecado, e assim porigual razão não teriam verdadeiro domínio sobre as coisas tem-porais: ou seja, qualquer cristão, fora rei ou imperador, perderiatudo o que até então possuíra se pecasse mortalmente. Isso seriaabsurdo, e prova-se abundantemente nas Escrituras42.

As palavras de Agostinho poderiam ainda ser interpretadas deoutro modo, igualmente pernicioso. Entender-se-ia, neste caso,«justos» por oposição a «injustos», identificando os primeiros comos cristãos e os segundos com os que estariam fora da Igreja. As-sim, tudo é sempre por direito divino, mas apenas no que diz res-peito à «dignidade de possuir, ter e usar», não no que respeita ao«domínio e propriedade». Nenhum injusto, fiel ou infiel, é dignode domínio sobre as coisas temporais. O cristão que sem se afas-tar da fé peca mortalmente torna-se imediatamente indigno do quepossuía ou possui, podendo, contudo, por bondade divina, rece-

40 «Primo itaque probandum est per scripturas sacras et alias non spernandasquod verum dominium temporalium rerum et vera jurisdiccio temporalis, nonsolummodo permissa sed eciam concessa et ordinata a Deo, fuit extra populumDei et extra catholicam ecclesiam.» (Breviloquium, III, 2).

41 «Superset nunc videre irracionabiliter, erronee et hereticaliter domini, seuproprietatis temporalium rerum fuerit locutus Jo 22us.» (Breviloquium, III, 14).

42 «(. . . ) faciliter probaretur quod apud fideles, qui cum fide recta peccatoaliquo mortali tenentur, non est verum dominium temporalium rerum et quilibetchristianus, sive imperator sive rex sive alius quicumque, si peccaret mortaliter,omne verum dominium temporalium rerum quod prius habeat amitteret, quodquam sit absurdum, ymmo heresim sapiens manifestam, per scripturas sacrasposset copiose probari.» (Breviloquium, III, 12).

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ber um benefício temporal, não só permitido mas verdadeiramenteconcedido e ordenado por Deus. E assim, embora sejam indignos,os infiéis e pecadores podem possuir um verdadeiro domínio e umajurisdição autêntica sobre as coisas temporais43.

Guilherme de Ockham, porém, que não se conforma com aidentidade entre os justos (i.e., os que estariam dentro da Igreja)e o espiritual, não aceita tal interpretação, sublinhando que ela pro-longa o erro, que já denunciara, de que fora da Igreja tudo levaà perdição – e isto não é verdade. Fora da Igreja não só não hánecessária perdição como também existe uma jurisdição temporalautêntica. Como dissera Agostinho, nem a maldade de um tiranose torna louvável por tratar os seus súbditos com clemência, nema ordem do poder real deve ser injuriada se o rei maltratar comcrueldade tirânica. Uma coisa é querer usar justamente um poderinjusto, outra coisa é querer usar injustamente um poder justo44.Nem um poder ilegítimo é legitimável mediante o bom uso, nem oabuso de um poder legítimo anula a sua legitimidade.

O filósofo medieval, constantemente debruçado sobre o con-creto, não se predispõe, pois, a aceitar a equivalência entre fiéis ejustos, por um lado, e entre infiéis e pecadores, por outro, por elaser demasiadamente genérica e artificial. Nem os infiéis são sempreinjustos (não pecam sempre), nem os justos são imunes ao pecado(também são pecadores). Pode-se, assim, copiosamente provar queos Judeus – os infiéis – possuem um verdadeiro domínio e umaverdadeira jurisdição das coisas temporais. Admitir a falsidadecontrária implicaria atribuir um prejuízo ao género humano, pois,desse modo, seria impossível qualquer reivindicação de posse, ain-da por direito de hereditariedade, de bens ou direitos dos progeni-

43 Breviloquium, III, 12.44 Santo AGOSTINHO, De bono conjugali, PL, 40, 384-385: «Nec tyran-

nicae factionis perversitas laudabilis erit, sic regia clementia tirannos subditostractet. Nec vituperbalis ordo regiae potestatis, si rex crudelitate tyrannica sae-viat. Aliud est namque injusta potestate iuste velle uti, et aliud iujsta potestatein iujste velle uti.»

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tores infiéis, já que a propriedade, sendo ilegítima, não comportariadireitos. E como o que se não pode possuir não pode prescrever,jamais os filhos e sucessores fiéis poderiam alegar para si os bense direitos dos seus pais e antecessores infiéis45.

Com efeito, a bondade divina dirige-se a todos os seres hu-manos, concedendo também aos infiéis a «possibilidade» de domí-nio e jurisdição sobre as coisas seculares, bem como de qualqueroutro direito46.

Ou seja, em Guilherme de Ockham os factores que explicam,a partir do homem, o poder de apropriação e divisão das coisastemporais (potestas appropriandi et dividendi res) são os mesmosque explicam o poder de constituir universalmente/autonomamenteuma jurisdição temporal, por meio de «governadores» (potestasinstituendi rectores habentes jurisdictionem). Um e outro, isto é, aorganização da propriedade privada e a instituição da sociedadecivil têm origem em Deus, mas ambos se constituem historica-mente mediante fonte humana, sem interferência divina directa. EOckham insistirá, aliás, neste ponto, pois se a causalidade divinafora igualmente a fonte do poder civil, tal significaria que Deus

45 «Sequitur nunc videre quomodo dicere apud infideles non fuisse verumdominium temporalium rerum neque veram jurisdiccionem temporalium pre-judicet cunctis mortalibus. Et quidem tam fidelibus quam infidelibus prejudi-cium inferre enorme dinoscitur. Reges enim fideles et principes ac alii inferioreshereditario jure de bonis et juribus progenitorum suorum infidelium nichil pe-nitus vendicare valerent, si progenitores sui infideles verum dominium et veramjurisdiccionem temporalem minime habuerunt, quia filii illa vendicare non pos-sunt que patres nullo jure, sed solummodo illicite tenuerunt, presertim si sciantvel teneantur scire quod patres sui in hujusmodi nullum jus penitus habuerunt;nec possunt se prescripcione juvare quia possessor male fidei ullo tempore nonprescribit, extra de re.» (Breviloquium, III, 5).

46 «(. . . ) si Deus infidelibus sensum salutis corporis super quem non est sen-sus, racionem variarum rerum noticiam, uxorem, prolem aliaque innumeratabona tribuit, non est dicendum quod Deus eos omni dominio temporalium re-rum et jurisdiccione temporali omnique alio jure privavit.» (Breviloquium, III,6).

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poderia introduzir modificações no direito humano. Mas o podercivil não é um direito do homem crente, mas, sim, um direito na-tural do ser humano47. A sociedade civil é permitida (possibilitas)por Deus, mas é instituída pelo homem. «O poder é dos homens»,ou seja, é à universitas mortalium, como imperium, que cabe opoder absoluto (summa potestas) de exercício efectivo (a «orde-nação humana») desse mesmo poder «permitido e concedido» porDeus (a «possibilidade» do poder humano).

A acção humana é, assim, determinante. Se os homens fos-sem como deveriam ser, não haveria esse problema político strictosensu. Mas sendo tal como é, o homem necessita de «pactos» e«convenções», modificando-se e adaptando se às condições con-cretas/históricas.

O que é, afinal, o poder em Guilherme de Ockham?Homem do seu tempo, com o qual dialogou, ele devia, por uma

lado, salvar a independência do poder secular da pressão exercidapelas tendências hierocratas (curialistas, papistas), e, por outro, de-via opor a certas soluções superficiais (imperialistas, legalistas, re-galistas), a origem divina de todo o poder, discernindo tanto o reli-gioso como o civil48.

Não é extremamente difícil pressentir a inspiração de DunsEscoto no discurso do Venerabilis Inceptor49. O Autor recorre a

47 A César o que é de César: Ockham sublinha as presentes palavras de Cristo,salientando que o Novo Testamento (Paulo, Lucas, João. . . ) as reitera explícitae abundantemente. (Cf. Breviloquium, III, 3).

48 Aos que dizem que o império vem do papa, Ockham não responde que elevem dos romanos ou dos germanos, mas, sim, que vem imediatamente de Deus.Como é que o Autor articula esta posição com a ideia da origem puramente hu-mana dos direitos de propriedade? Afirmando que Imperium a Deo per homines(«O império vem de Deus por meio dos homens»). Cf. Georges de LAGARDE,La naissance de l’esprit laïque au déclin de Moyen Âge. IV . . . , p. 204.

49 Isso mesmo o observa Muralt: «Pour Occam en effet, comme pour DunsScot, la cause divine et la cause humaine créée concourent comme deux causespartielles subordonées au même effet, telle opération humaine de l’âme par e-xemple, mais la causalité divine jamais ne cause la causalité de la cause créée,

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uma concepção antiga sobre o concurso da causalidade divina eda causalidade criada, que reporta a João Damasceno, e que dis-tingue na vontade divina uma vontade antecedente e uma vontadeconsequente50. Deus, por meio da vontade antecedente, determinao sentido global das coisas, e, mediante a vontade consequente,assegura a liberdade da operação humana, não influindo no seu e-xercício autónomo. Desse modo, Deus concede ao homem o poderde poder ser livre, poder este que se concretiza na instituição dedirigentes, com jurisdição temporal.

O poder civil, isto é, a «instituição do principado político»,carece de fundamento humano; se não fora assim, em que se cifra-ria a liberdade?

Uma coisa é, pois, a possibilidade do poder (ainda de direitodivino), outra coisa é a constituição efectiva ou uso desse mesmopoder (apropriação das coisas temporais, propriamente dita, já dedireito humano). Mas nem o direito divino exclui o direito humanonem o direito humano anula o direito divino, ambos concorrem par-cialmente (como dois absolutos heterogéneos, o Absoluto divino eo absoluto finito), em recíproca independência.

Tal é o ponto de partida que permite ao Autor a analogia histó-rica entre a origem da propriedade e a origem do poder político(«irmãs gémeas»51): quer o direito à propriedade privada, quer odireito à organização política aparecem com o pecado, mas não porcausa do pecado. Se o homem fosse como deveria ser tudo estariabem. Há um domínio divino (sobre o qual o Autor não se detém,«por ora») e um domínio humano, que é comum a todo o género

et chacune de ceux causes dans leur concours opère de manière absolument in-dépendante l’une de l‘autre». (André de MURALT, L’unité de la philosophiepolitique. . . , p. 150). A presença de Escoto em Ockham, no tocante à origem dapropriedade e da propriedade privada, é igualmente sublinhada por José Antóniode SOUSA, «Fundamentos éticos da teoria Ockhamista. . . », pp. 144ss.

50 Cf. André de MURALT, L’unité de la philosophie politique. . . , p. 152.51 Cf. Georges de LAGARDE, La naissance de l’esprit laïque au déclin de

Moyen Âge. IV . . . , p. 204.

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humano, e próprio. Neste exacto contexto, Ockham estabelece adiferenciação que favorece a noção de «história» no devir políticodo ser humano: a natureza humana antes e depois do pecado – eque subsistirá como estrato metafísico do seu pensamento político.No estado de inocência tudo pertencia a todos, não havia avarezaou concupiscência de possuir ou usar as coisas temporais contraa razão, e assim também não era necessário nem útil o domíniosobre as coisas materiais. Entretanto, sucedeu uma transformaçãoradical, gerando-se e proliferando esse poder de apropriação dosbens temporais52. Como poderão, no presente estado, viver bem eordenadamente os homens, sem que as suas decisões sejam condi-cionadas por factores de ordem infra-humana, senão acentuando anatureza moral/individual da formação política?53

Para Ockham, tal como para Duns Escoto, a criação de um serfinito não requer forçosamente a intervenção de um Ser infinito.Politicamente falando, por motivo de estado – não por necessi-dade de natureza –, a causalidade divina outorga absolutamenteà causalidade humana «o poder de instituir governadores com ju-

52 Propter hoc enim quod in eis nulla fuisset avaricia, vel contra racionem rec-tam cupiditas possidendi vel utendi quamcumque re temporali, nulla fuisset tuncnecessitas vel utilitas habendi proprietatem cujuscumque rei temporalis. Postpeccatum autem, quia in hominibus pullulavit avaricia et cupiditas possidendiet utendi non recte temporalibus rebus, utile fuit et expediens propter pravorumimmoderatum appetitum habendi temporalia refrenandum et excuciendam ne-gligenciam circa debitam disposicionem et procuracionem temporalium rerum,quia res communes a malis communiter negliguntur ut res temporales appro-prianrentur et non essent omnes communes.» (Breviloquium, III, 7).

53 Política e moral estão em perfeita relação. O puramente moral obriga eabriga todos. Constitui preceito moral reconhecer aos infiéis o poder sobre osbens materiais e o de eleger governantes possuindo jurisdição: «Duplex potes-tas predicta scilicet appropriandi res temporales et instituendi rectores jurisdic-cionem habentes data est a Deo immediate non tantum fidelibus sed eciam in-fidelibus sic quod cadit sub precepto et inter moralia computatur, propter quodomnes obligat tam fideles quam eciam infideles.» (Breviloquium, III, 8)

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risdição»54, razão por que esse poder vem «imediatamente» doshomens e só «mediatamente» de Deus (a deo et tamen ab ho-minibus)55.

Com efeito, o poder de domínio próprio é o que juridicamentese designa por «propriedade» (proprietas), e não existia antes dadesobediência original. Trata-se do poder político, por excelên-cia: «poder principal de dispor das coisas temporais, poder que éapropriado a uma só pessoa, a um conjunto de pessoas ou a umcolégio especial»56; certamente que tal poder pode ser maior oumenor, mas saliente-se que ele é sempre imprescindível ao génerohumano, a fim de bem viver politicamente nesta vida (o bem vivermanifesta-se indissociável do viver político).

Quer isto dizer que o rumo da filosofia política de Guilhermede Ockham continua a ser (a exemplo do período de Oxford) aliberdade absoluta da vontade57.

Negativamente (naturalmente privado), o poder é necessárioporque o homem tem o título de pecador. No estado de inocêncianem a inteligência nem a vontade haviam sido corrompidas pelomal, nem estavam respectivamente condicionadas ao engano e àspaixões desregradas. Não havia, pois, qualquer razão que justi-ficasse a existência da propriedade privada e jamais esta teria e-xistido se os nossos progenitores não houvessem pecado. Após opecado, os homens tornaram-se ambiciosos, prepotentes, avaren-

54 «(. . . ) potestas instituendi rectores habentes jurisdiccionem temporalem(. . . ).» (Breviloquium, III, 7).

55 Breviloquium, IV, 3.56 Breviloquium, III, 7.57 Cf. André de MURALT, L’unité de la philosophie politique. . . , p. 154.

Muralt, contra os que apontam o «pouco vigor do fundamento filosófico do pen-samento político de Ockham», defende que a filosofia política ockhaminiana seinscreve manifestamente na lógica de todo o seu sistema. A filosofia políticamoderna está na linha da doutrina de Ockham da vontade absoluta de toda a de-terminação objectiva, formal e final (remetendo para Duns Escoto, de potentiaabsoluta dei).

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tos58: como poderiam então viver bem e em conjunto? Foi, porisso, necessário útil e que as coisas temporais cessassem de ser co-muns, tornando-se apropriadas, a fim de não só se refrear essa von-tade imoderada mas também atenuar a negligência da devida dis-posição e procuração dos bens materiais, habitualmente cometidapelos homens que desprezam as coisas comuns, e que egoistica-mente não zelam nem cuidam daquilo que pertence a todos59. Po-sitivamente (racionalmente provido) o homem aparece como umser capaz de autonomia, mediante o direito de apropriação sobre osbens temporais, valor insubstituível do poder civil, o qual deve pre-sidir à organização da propriedade e da sociedade civil. É por issoque o império é um direito, isto é, o exercício de um poder positivohumano. São os homens – naturalmente privados mas racional-mente providos – que, de acordo com as suas conveniências e ne-cessidades, instituem governadores revestidos de jurisdição tempo-ral, imprescindíveis ao bem viver e ao viver político60.

O poder civil não é, pois, uma última determinação da causa-lidade divina, pela qual seria este e não aquele. O homem possuios meios necessários ao exercício da «recta razão»61. Aos que de-fendem que o poder vem de Deus é preciso dizer que o poder vemtambém de outro distinto de Deus62. O Ser divino obriga sempre,mas não para sempre (semper sed non pro semper). Com a liber-dade na causa está garantida a liberdade nos efeitos. A liberdade

58 Cf. José António de SOUZA, «Fundamentos éticos da teoria Ock-hamista. . . », p. 155.

59 Breviloquium, III, 7.60 «(. . . ) dedit ei potestatem pro se et posteris suis disponendi de terrenis que

racio recta dictaverit esse necessaria, expediencia, decencia vel utilia non solumad vivendum sed eciam ad bene vivendum.» (Breviloquium, III, 7)

61 «Propter quod subjungitur: Consilium et linguam et oculos et aures et cordedit illis exocogitandi que scilicet necessaria sunt et utilia ad bene vivere tamsolitarie quam politice et in communitate perfecta. Potestas autem appropiandires temporales tam racionales, sicut uxores et natos, quam alias est inter neces-saria et utilia humano generi ad bene vivere (. . . ).» (Breviloquium, III, 7).

62 Breviloquium, III, 11.

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humana, por ser o que é, não obedece a determinação prévia (con-curso praevius). O Autor abriu caminhos de irrecusáveis reper-cussões no futuro (Lutero, Suárez, Hobbes. . . )63; restará saber se anoção de poder, tematizada por Ockham, se encontra, ou não, on-tologicamente enraizada, porque, se não estiver, os perigos de umademasiada fixação no homem/indivíduo persistem, gerando-se, porvia disso, a dificuldade/impossibilidade de se poder identificar oseu verdadeiro plano metafísico.

63 Cf. André de MURALT, L’unité de la philosophie politique. . . , p. 146:«C’est chez Guillaume d’Occam qu’il faut chercher, non seulement le principedes alternances contrairement extrêmes de la philosophie politique moderne,mais aussi l’origine de la notion d’aliénation. Guillaume d’Occam en donnela théorie explicite en la définissant à tous les niveaux auxquels elle peut seréaliser, métaphysique, moral et politique».

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