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ORIGENS DA HABITAÇÃOSOCIAL NO BRASIL:ARQUITETURA MODERNA,LEI DO INQUILINATO EDIFUSÃO DA CASA PRÓPRIANabil BondukiSão Paulo: Estação Liberdade, 1998.

Luiz César de Queiroz Ribeiro

É possível alcançar a função social da moradia pe-lo mercado ou ela deve ser produzida e distribuída co-mo um bem de interesse social, pela intervenção doEstado? É possível promover o amplo acesso à moradiasem sacrificar as qualidades arquitetônica e urbanísticados espaços populares?

Eis perguntas que estão implicitamente formula-das na tese de doutoramento defendida por NabilBonduki, agora transformada em livro. São questõesque derivam do duplo engajamento deste doublé depesquisador e militante que retira da análise da políti-ca habitacional pré-BNH reflexões sobre os desafios co-locados hoje àqueles que se propõem pensar e agir so-bre os destinos das nossas grandes cidades, quando seafirma como verdade pretensamente universal e incon-testável a primazia da lógica do mercado na resoluçãoda questão social. É como ele mesmo expressa o seucompromisso: “o estudo da história só tem sentido seservir para compreender o presente e interferir naconstrução do futuro”.

O livro é um rico relato dos resultados do longotrabalho de pesquisa empreendido desde 1979 sobre opapel da moradia na formação dos espaços populares eperiféricos das nossas grandes cidades. Foi analisando aorganização da metrópole paulista, com efeito, que Na-bil iniciou a sua trajetória acadêmica, propondo o ter-mo “padrão perférico” para a compreensão do tripé daexpansão urbana brasileira – casa-pópria/loteamento/autoconstrução. Padrão prenhe de contradições, pois aomesmo tempo que espoliou o trabalhador, permitindoa vigência de baixos salários urbanos pela ausência docusto da moradia, propiciou-lhe também a integração à sociedade urbana via o acesso aos serviços coletivos, àestabilidade de laços sociais e familiares e à proteçãoeconômica oferecidos pelo patrimônio imobiliário.

Este tema é aqui retomado em uma perspectivahistórica, na qual Nabil vai buscar as origens ao anali-

sar os efeitos das políticas habitacionais inauguradas na“Era Vargas”. A periodização que organiza os capítulospode ser resumida em três momentos, que se diferen-ciam pela lógica que preside as formas de produção edistribuição da moradia, pela qualidade da moradia co-mo objeto arquitetônico e urbanístico e, sobretudo, pe-los consensos que se estabelecem quanto à necessidadee à modalidade de intervenção pública. O desenrolardesta história, tal qual Nabil nos conta, parece desenharuma irônica parábola, na qual crenças, diagnósticos esituações de um passado aparentemente ultrapassado,por ele denominado como “os primórdios”, resurgemnão como farsa, mas como retrocesso histórico.

Entre o final do século XIX e os primeiros anos doXX, a moradia torna-se mercadoria pelas mãos de inves-tidores “rentistas”, que produzem os cortiços, as vilas eos “correres de casa”, ao mesmo tempo que emerge oprimeiro “problema habitacional” brasileiro, formula-do na época por médicos e engenheiros como uma“questão sanitária” decorrente do congestionamento eda precariedade física das construções. Ante a impossi-bilidade de estabelecer cordões sanitários, em razão domodelo espacial ainda pouco segregado das nossas ci-dades (vale dizer, Rio de Janeiro e São Paulo), as elitesbuscaram soluções mediante a concessão pelo Estadode incentivos à constituição de empresas que se interes-sassem em construir moradias higiênicas para alugaraos “pobres” e pela intervenção autoritária na reformados espaços populares. Na “Era Vargas” um outro diag-nóstico e um novo consenso são elaborados. O altocusto dos aluguéis e as preocupações do Estado empromover a integração dos operários à ordem social epolítica, peça fundamental do populismo, incentivaum intenso debate entre vários intelectuais e técnicosem torno da função social da moradia. Constrói-se anoção da habitação como um serviço público a ser pro-vido pelo Estado na forma da promoção da casa pró-pria em lugar do aluguel. Vários são os relatos transcri-tos por Nabil mostrando com clareza a intenção emutilizar a moradia “moralizada”, “confortável” e “eco-nômica” como veículo da construção da ética do traba-lho, necessária ao regime industrial, e da educação cí-vica e social do operariado para ingressar na ordemburguesa. Os arquitetos modernistas são importantesprotagonistas deste projeto, chamados que são, comopessoas e como corporação, para traduzir tais objetivosem soluções arquitetônicas inovadoras e baratas e em

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desenhos urbanísticos que incentivassem a mais amplasocialização do operário. Por conseqüência, segundoNabil, este momento é singular na história da moradiapopular, pois nele foi possível promover o acesso à ha-bitação sem minimizar a sua qualidade. A habitaçãocomo serviço público é, contudo, derrotada. Primeiroem razão dos limites da própria política que a susten-tava, incapaz de atender ao vasto contigente popula-cional que chega à grande cidade após a SegundaGuerra Mundial. Cresceram então as periferias de ca-sas autoconstruídas pelos próprios moradores, que nafalta de recursos de toda ordem sacrificaram a qualida-de arquitetônica. Derrotada também pela concepçãoprodutivista que passa a imperar na política habitacio-nal após 1964, caracterizada por um grande volume demoradia produzida (cinco milhões), mas com o rebai-xamento da qualidade da moradia, sobretudo no seuaspecto urbanístico, deixando em Nabil “saudades daqualidade dos conjuntos habitacionais dos IAP’s”.

Resultado: transformou-se a população urbanabrasileira em proprietários imobiliários, já que cerca de70% mora hoje em casa própria, invertendo literalmen-te a situação vigente no início desta história. Estamos,contudo, diante de problemas semelhantes aos dos “pri-mórdios”, como atestam as estatísticas sobre a crise sa-nitária-ambiental das cidades brasileiras. A parábola secompleta quando se constata que uma das mais fortesvertentes do debate social de hoje postula a solução daquestão habitacional mediante incentivos à constitui-ção de um sistema de financiamento imobiliário orga-nizado integralmente sob condições de mercado.

Em contraposição a esta alternativa e como cami-nho para a retomada de uma política que promova oacesso da moradia com qualidade, Nabil propõe a solu-ção da intervenção fundada na noção de “esfera públi-ca não-estatal”, pela qual “as organizações não-governa-mentais podem gerenciar programas sociais commelhores resultados que o poder público, muitas vezesineficiente e sujeito ao clientelismo, ou o setor privado,que se orienta basicamente em função do lucro”.

A riqueza do livro encontra-se na minuciosa re-construção destas políticas, oferecendo ao leitor infor-mações sobre os debates públicos que contribuíram emcada momento para produzir as políticas habitacionaise nas interessantes ilustrações iconográficas.

A noção de “habitação social” com a qual Nabilrealiza sua pesquisa é ampla, compreendendo a inter-

venção pública na produção e financiamento da mora-dia, na regulamentação dos aluguéis e na complemen-tação urbana da periferia gerada pelo loteamento. Es-tas três facetas sempre estiveram presentes nos debatespromovidos pelo Estado e por seus intelectuais acercado “problema da moradia”, embora seja verdade que aescassez relativa e absoluta das periferias das grandes ci-dades em matéria de bens e serviços urbanos nunca te-nha merecido importância semelhante aos incentivos àconstrução habitacional. Mas, a noção de “habitaçãosocial” poderia ser ampliada para além das representa-ções produzidas pelo próprio Estado sobre a sua inter-venção e incorporar a permissividade e a tolerânciacom o desrespeito aos códigos de posturas e de edifica-ção e com os loteamentos irregulares e clandestinos co-mo uma outra importante faceta da política habitacio-nal do período, não obstante as primeiras leis decontrole datarem da década de 1930.

A extensão e a importância da ilegalidade urbanaforam examinadas por Ermínia Maricato (Metrópole naperiferia do capitalismo: ilegalidade, desigualdade e vio-lência, São Paulo: Hucitec, 1996) para o caso de SãoPaulo, onde existem cerca de 30 mil ruas ilegais e 24milhões de pessoas moram em loteamentos irregularese clandestinos. A manutenção da dualidade cidade le-gal versus cidade ilegal fez – e ainda faz – parte do mo-do de regulação do conflito social muito apropriado aque Wanderley Guilherme dos Santos chamou de “cida-dania regulada”. A administração “criteriosa” da ordemlegal da cidade tem sido, com efeito, um dos pilares desustentação política do nosso modelo de capitalismo,baseado na extrema concentração de renda e da riquezae na inclusão subordinada das camadas populares à or-dem poliárquica, sustentada por um mixed de autorita-rismo, clientelismo e cartorialismo. O mecanismo fun-ciona da seguinte maneira: a produção de leis, códigose posturas extremamente detalhistas e reguladores dosmínimos pormenores e uma aplicação seletiva, geridasegundo a conveniência da cidadania da tolerância e dapolítica permissiva. Assim, tolerar que a cidade cresces-se à margem da lei e permitir que os capitais especula-tivos retalhassem as periferias fora das regras instituídas,inclusive em propriedades grilhadas, pode ser entendidocomo uma das importantes modalidades da política ha-bitacional no Brasil. Suspeito que este mecanismo este-ja em transformação em razão das mudanças econômi-cas, sociais e políticas em curso na sociedade brasileira,

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e uma nova ordem na cidade esteja sendo construídasob inspiração dos novos interesses presentes na acu-mulação urbana. A tolerância e a permissividade estãosendo substituídas pela delimitação, estigmatização eexclusão dos espaços populares, crescentemente identi-ficados como razão e fonte das ameaças à “boa ordemdo mercado e da cidade competitiva”. Indícios? – a di-fusão da “cultura do medo”, a adoção da “linguagemdos riscos” e a hegemonia do “discurso da ordem”, te-mas recorrentes nos noticiários sobre a violência dita“urbana”, as enchentes e os desmoronamentos, e nosdocumentos que apresentam as novas estratégias desalvação da cidade, brandidas pelos agentes que se que-rem estratégicos.

Luiz César de Queiroz Ribeiro é professor do Instituto de Pesqui-sa e Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Riode Janeiro.

O ESPAÇO DE EXCEÇÃOFrederico de HolandaBrasília: Editora Universidade de Brasília, 1999.

Claudia Loureiro

Brasília é um espaço de exceção. Esta é a tese de-monstrada por Frederico de Holanda em seu trabalho.Aparentemente esta é uma afirmação óbvia. Ninguémcontesta que Brasília seja um espaço excepcional e deexceção e muitos outros trabalhos demonstram esta ca-racterística. É excepcional por ser única, singular, porser grandiosa, por ser monumental. É de exceção por serum destes espaços burocráticos, desenhados para ser cenário de rituais e cerimoniais do poder que diri-ge a nação, ou seja, desenhado para ser usado por pre-sidentes, ministros, legisladores, militares, visitantesilustres como primeiros-ministros, reis, príncipes, em-baixadores e diplomatas para o exercício do poder. As-sim, tem um significado político distintivo – um espa-ço desenhado para o desempenho de rituais políticosperante uma audiência. Esta é a definição de espaço cí-vico dada por Goodsell, referindo-se a todo espaço fe-chado, como câmaras ou salas de audiência, onde ri-tuais políticos acontecem.1 Neste sentido, Brasília é

excepcional por estender esta característica para alémdo espaço fechado da sala cerimonial dos palácios,abrangendo todo o espaço público de uma cidade, epara uma audiência que é formada por toda a popula-ção de uma nação.

O trabalho de Frederico de Holanda é tambémexcepcional. Ele foge do lugar-comum da descriçãodos aspectos superficiais deste espaço de exceção, dosignificado simbólico de seus edifícios, desenhados pa-ra comunicar e revelar noções nem sempre bem-aceitasde autoridade política, para mostrar como o espaço deexceção é um problema particular da relação entre atri-butos sociais e atributos espaciais e que a semânticadeste tipo de espaço – o que ele significa – está, emgrande medida, contida na sua sintaxe.

Sintaxe é a palavra chave de toda a demonstraçãoda tese de Holanda. Sintaxe espacial significa a confi-guração espacial – um sistema relacional que estruturapadrões físico-espaciais e expectativas sociais de diver-sos tipos. Configuração, mais que relações puramenteespaciais, representa relações entre relações.

Holanda demonstra como este fenômeno socio-espacial, a construção de lugares especiais, fisicamenteisolados e que incorporam dimensões superestruturaisde ordem social, é recorrente na história dos assenta-mentos humanos, e, neste sentido, semelhanças estru-turais entre Brasília e outros exemplos de espaços deexceção, como centros cerimoniais pré-colombianos,assentamentos reais-militares africanos e castelos feu-dais franceses, são exploradas.

O estudo comparativo entre estes espaços de ex-ceção permite ao autor, apoiado numa teoria descriti-va do espaço (Teoria da Sintaxe Espacial), definir asvariáveis de análise de forma objetiva e sistemática,permitindo o estabelecimento de categorias própriasde um campo de conhecimento específico – a Arqui-tetura. Categorias assim definidas são utilizadas parademonstrar a tese por oposição ao que não é. Um mes-mo conjunto de variáveis é utilizado para determinaros atributos arquitetônicos que permitem assentar di-ferenças e semelhanças entre manifestações e estabele-cer relações.

Assim, Holanda despe-se das asas de Dédalos,abandona a visão de Dédalos para se colocar no lugarde Teseu que, com a ajuda do novelo de Ariadne,desvela os mistérios do labirinto. Dédalos representa o arquiteto do rei, responsável pela ordem somente

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1 Goodsell, C. The Social Meaning of Civic Space: Studying Political Au-thority through Architecture. Kansas: The University Press of Kansas,1988.