Ortodoxia g. k. chesterton (completo)

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ATENÇÃO A violação dos direitos de tradução dessa obra é expressamente proibida pela Lei nº 9610/98, sendo vedada a sua reprodução total ou parcial de qualquer forma ou por qualquer meio. O texto original (em inglês) é de domínio público e pode ser obtido através do site Domínio Público .

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ATENÇÃO

A violação dos direitos de tradução dessa obra é expressamente proibida pela Lei

nº 9610/98, sendo vedada a sua reprodução total ou parcial de qualquer

forma ou por qualquer meio.

O texto original (em inglês) é de domínio público e pode ser obtido através do site

Domínio Público.

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Copyright © 2007 por Editora Mundo Cristão

Os textos das referências bíblicas foram extraídos da Nova Versão Internacional(Sociedade Bíblica Brasileira), salvo indicação específica.

Todos os direitos reservados e protegidos pela Lei 9.610, de 19/02/1998.É expressamente proibida a reprodução total ou parcial deste livro, porquaisquer meios (eletrônicos, mecânicos, fotográficos, gravação e outros),sem prévia autorização, por escrito, da editora.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Chesterton, G. K., 1874–1936

Ortodoxia / Gilbert K. Chesterton ; traduzido por Almiro Pisetta. — São

Paulo: Mundo Cristão, 2008.

Título original: Orthodoxy

ISBN 978-85-7325-505-8

1. Apologética 2. Chesterton, Gilbert Keith, 1874-1936 3. Conversão I.

Título.

07-9420 CDD —239

Índice para catálogo sistemático:1. Apologética: Doutrina cristã 2392. Escritos polêmicos: Doutrina cristã 239

Categoria: Espiritualidade/Inspiração

Publicado no Brasil com todos os direitos reservados pela:Editora Mundo CristãoRua Antônio Carlos Tacconi, 79, São Paulo, SP, Brasil, CEP 04810-020Telefone: (11) 2127-4147Home page: www.mundocristao.com.br

1ª edição: janeiro de 2008

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Prefácio à edição comemorativa em português 7Prefácio do autor 15

I. Introdução em defesa de tudo o mais 17II. O maníaco 25

III. O suicídio do pensamento 51IV. A ética da Elfolândia 77V. A bandeira do mundo 109

VI. Paradoxos do cristianismo 135VII. A eterna revolução 169

VIII. O romance da ortodoxia 205IX. A autoridade e o aventureiro 231

SUMÁRIO

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CERTA VEZ UM JORNALISTA PERGUNTOU A

G. K. Chesterton qual o único livro que gostaria de ter casofosse parar numa ilha deserta. Depois de uma pequenapausa, Chesterton respondeu: “Já sei: Guia prático para aconstrução de navios”.

Fora a Bíblia, se eu tivesse de escolher um único livro emsituação semelhante, é bem provável que seria Ortodoxia, aautobiografia espiritual de Chesterton. Fiquei encantadoao descobrir que a Mundo Cristão decidira celebrar o cen-tenário desta grande obra lançando uma nova edição.

Não entendo como os leitores se deixam atrair por umtítulo tão imperscrutável, mas um dia foi exatamente o quefiz, e minha fé nunca mais foi a mesma. Na época eu pas-sava por um período de aridez espiritual; tudo pareciaestar velho, desgastado e sem vida. A leitura de Ortodoxiame trouxe novo refrigério e, acima de tudo, novo espíritode aventura. “Sou o homem que — com grande ousadia —descobriu apenas o que havia sido descoberto antes”, disseChesterton. “Tentei criar uma nova heresia; mas, quandojá lhe aplicava os últimos remates, descobri que era apenasa ortodoxia.”

Guiado por Chesterton, cheguei ao mesmo lugar, à mes-ma conclusão, e o percurso foi estimulante e inesquecível.

PREFÁCIO À EDIÇÃO

COMEMORATIVA EM PORTUGUÊS

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A analogia da ilha deserta aparece com freqüência naobra de Chesterton, pois ele enxergava o mundo como umaespécie de naufrágio cósmico. Na busca por significado,somos como um marinheiro que acorda de um sono pro-fundo e descobre, espalhadas por todo lado, peças e relí-quias de um tesouro procedente de alguma civilizaçãoesquecida. Uma por uma ele apanha as relíquias — moe-das de ouro, bússola, roupas finas — e tenta discernir o seusignificado. Chesterton afirma que a humanidade vive essacondição. As coisas boas da terra — o mundo natural, abeleza, o amor, a alegria — ainda apresentam traços deseu propósito original, mas cada uma delas pode ser in-compreendida ou mal utilizada por causa de nossa natu-reza decaída e amnésica.

Após uma longa odisséia de dúvidas e ceticismo, Ches-terton retornou à fé porque entendeu que somente o cris-tianismo fornecia as pistas para solucionar o mistério sobreessas relíquias.

Em primeiro lugar, intuí que este mundo é incapaz de expli-car-se. Segundo, passei a acreditar que o sobrenatural deve

ter algum significado, e que isso pressupõe a existência dealguém que lhe empresta sentido. Havia algo de muito pes-soal no mundo, como se fosse uma obra de arte. Terceiro,

considerei bela a antiga forma desse propósito, apesar deseus defeitos, assim como são belos os dragões. Quarto, con-cluí que a maneira mais apropriada de expressar gratidão a

essa entidade é cultivar humildade e discrição, assim comodevemos agradecer a Deus por cerveja e por vinho Burgundy,evitando beber em excesso. Por último, estranhamente me

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veio à mente uma impressão vaga e vasta de que, de algummodo, todo bem é um vestígio que deve ser guardado econsagrado, devido à sua procedência de alguma ruína pri-

mordial.

Finalmente entendi que o desespero que eu sentira, a sen-sação de monotonia que me incomodava como uma dorpersistente, era um sintoma normal da humanidade decaí-da. Chesterton compara nosso estado de espírito com o deDeus, um ser “forte o suficiente para exultar-se em meio àmonotonia. É possível que Deus fale todas as manhãs parao sol: ‘Brilhe de novo’; e todas as noites, à lua: ‘Saia maisuma vez’... É possível que ele tenha o apetite insaciável deuma criança; pois nós humanos pecamos e envelhecemos,enquanto nosso Pai é mais jovem que nós”. Passo a passo,Chesterton ajudou-me a rejuvenescer o apetite pela vida.

Depois de descobrir Ortodoxia, li muitas outras obras deChesterton. (Ele escreveu mais de 100 livros, e morri deinveja quando ouvi que ele ditava quase tudo para suasecretária, e que praticamente não precisava revisar o quehavia criado.) Adquiri de Chesterton muito mais que me-ros fatos ou argumentos intelectuais; ganhei dele uma pers-pectiva nova, uma maneira “romântica” de enxergar minhafé. Ele afirmou que as virtudes pagãs, como justiça e tem-perança, são virtudes tristes. As virtudes cristãs — fé, es-perança e amor — são virtudes alegres e exuberantes. Elaspossuem certa aura de audácia:

O amor perdoa o imperdoável, senão deixa de ser virtude. A

esperança não desiste, mesmo em face do desespero, senão

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deixa de ser virtude. E a fé acredita no inacreditável, senãodeixa de ser virtude.

Percebi que minha fé se reduzira a um exercício lacônicoe severo de disciplinas espirituais, uma mescla triste de as-cetismo e racionalismo. Minha alegria se desvanecera. Ches-terton restaurou em mim um sentido romântico, uma sedepelas virtudes alegres e exuberantes: “O desespero não estáem cansar-se do sofrimento, mas em cansar-se da alegria”.

O estereótipo do “gordo alegre” o descrevia perfeitamen-te. Chesterton pesava em torno de 140 quilos. Seu peso eseu fragilizado estado de saúde o desqualificaram para oserviço militar. Esse fato levou-o a trocar palavras ríspidascom uma patriota desconhecida durante a Segunda Guer-ra Mundial. Vendo Chesterton perambular pelas ruas deLondres, longe da guerra, essa senhora indagou, indigna-da: “Por que você não está na frente?” Chesterton, olhan-do para seu abdômen, respondeu-lhe friamente: “Caramadame, se a senhora der uma rápida olhada deste lado,vai ver que já estou.”

Chesterton apelava para o humor quando debatia empúblico com os agnósticos e ateus da época, mais notavel-mente com o dramaturgo George Bernard Shaw. (Imagineque nessa época um debate sobre fé era capaz de encherum auditório.) Chesterton normalmente chegava atrasa-do, ajustava os óculos pincenê para perscrutar suas anota-ções rabiscadas num punhado de papéis e passava aentreter o público, rindo alto das próprias graças e piadas.Bufando sob o amplo bigode, com os olhos cintilantes, de-fendia conceitos “reacionários” como o pecado original e o

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julgamento final. Quase sempre ganhava o público com seucharme arrasador e celebrava levando o oponente vencidoao pub mais próximo. Certa vez seu contemporâneo FranzKafka comentou: “Ele é tão alegre que parece ter encon-trado o próprio Deus!”.

Um jornal londrino promoveu extenso debate entreChesterton e Robert Blatchford, editor de um periódicosocialista. O resultado desse embate foi a publicação deOrtodoxia e de várias outras obras de apologética cristã.Quando Blatchford citava as razões pelas quais não con-seguia aceitar o cristianismo, Chesterton sempre respon-dia com uma refutação vigorosa e bem-humorada, queacabava virando de ponta cabeça os argumentos do opo-nente: “Se eu oferecesse todas as minhas razões para sercristão, a grande maioria seria exatamente as razões que osenhor Blatchford daria para não o ser”.

Chesterton reconhecia que a igreja não representavabem o evangelho. Dizia que o comportamento lamentáveldos cristãos gerava de fato o argumento mais forte contrao cristianismo. Os cristãos são prova cabal daquilo que aBíblia ensina sobre a Queda. Certa vez o jornal London Ti-mes pediu a alguns escritores que respondessem à pergun-ta: “O que há de errado com o mundo?”. Chesterton envioua resposta mais sucinta:

Prezados Senhores:

Eu.

Atenciosamente,

G. K. Chesterton

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Chesterton parecia perceber instintivamente que numasociedade cheia de gente sofisticada que desprezava a reli-gião, um profeta sisudo teria muito menos impacto do queum bobo da corte. Descreveu desta forma o seu método:“Para responder ao cético arrogante, não adianta insistirque deixe de duvidar. É melhor estimulá-lo a continuar aduvidar, para duvidar um pouco mais, para duvidar cadadia mais das coisas novas e loucas do universo, até que,enfim, por alguma estranha iluminação, ele venha a duvi-dar de si próprio”.

Acredito que carecemos de um novo Chesterton. Numlugar como os Estados Unidos, precisamos de seu humor,de sua hilaridade e de sua humildade para trazer certoequilíbrio à igreja cristã, que se leva muito a sério e quehoje funciona como uma grande corporação. Num lugarcomo o Brasil, precisamos de sua sabedoria ao tratar dosexcessos da igreja, e de sua genialidade para enfrentar aque-les que enxergam a religião como inimiga. Quando viajo, per-gunto às vezes às pessoas: “O que lhe vem à mente quandoouve a palavra cristão?”. Normalmente elas respondem ne-gativamente, descrevendo atitudes depreciativas, legalismoou políticas ultraconservadoras. Como seria ótimo se nes-sa hora as pessoas se lembrassem de gente como Chester-ton, pois ele não tinha nada disso. Para ele, o evangelho erade fato as boas-novas.

Nos dias atuais em que a cisão entre cultura e fé se abreainda mais do que na época de Chesterton, poderíamosmuito bem nos valer de sua mente brilhante, de seu estilodivertido e, acima de tudo, de seu espírito generoso e bem-

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humorado. Quando a sociedade se polariza, é como se asduas alas se posicionassem dos dois lados de um abismopara gritar desaforos uma para a outra. A abordagem deChesterton era diferente: ele caminhava até o centro daponte pênsil, esbravejava um desafio a qualquer guerreiromais ousado e, então, levava todos às gargalhadas.

G. K. Chesterton conseguia apresentar a fé cristã commais humor, bom ânimo e força intelectual do que qual-quer outro no século passado. Com o mesmo zelo de umsoldado em defesa do último reduto, ele encarava ferascomo Shaw, H. G. Wells, Sigmund Freud, Karl Marx e qual-quer outro que ousasse explicar o mundo sem considerarDeus e sua Encarnação. T. S. Eliot julgou que Chesterton“fez mais — penso eu — que qualquer de seus contempo-râneos para sustentar a existência dessa minoria importantepara o mundo moderno”.

Foi o que ele fez por mim. Sempre que percebo que mi-nha fé volta a correr o risco de tornar-se árida, vou atéminha estante e apanho um livro de G. K. Chesterton. Eassim começa de novo a aventura.

PH I L I P YA N C E Y

Especial para a Editora Mundo Cristão

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ESTE LIVRO FOI ESCRITO para ser lido comocomplemento a Heretics [Hereges] e mostrar o lado positi-vo além do negativo. Muitos críticos se queixaram daquelelivro dizendo que ele simplesmente criticava as filosofiascorrentes sem oferecer nenhuma filosofia alternativa. Estelivro é uma tentativa de responder a esse desafio. Ele é ine-vitavelmente afirmativo e, por isso mesmo, inevitavelmen-te autobiográfico. O autor foi levado a recuar e enfrentarmais ou menos a mesma dificuldade que afligiu Newmanao escrever a sua Apologia; foi forçado a ser egoísta só paraser sincero. Embora todos os outros aspectos possam diferir,o motivo nos dois casos é o mesmo. O autor tem o propósi-to de tentar explicar não se a fé cristã pode ser abraçada,mas como ele pessoalmente passou a abraçá-la.

Este livro, portanto, está organizado com base no prin-cípio positivo de um enigma e sua solução. Trata primeirode todas as solitárias e sinceras especulações pessoais doautor e depois do dramático estilo em que elas são de súbi-to respondidas a contento pela teologia cristã. O autor vêisso como algo que leva a um credo convincente. Mas senão chegar a tanto, trata-se no mínimo de uma repetida esurpreendente coincidência.

GI L B E RT K. CHESTERTON

PREFÁCIO DO AUTOR

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I

INTRODUÇÃO EM DEFESA

DE TUDO O MAIS

A ÚNICA DESCULPA POSSÍVEL para este livro éque se trata de uma resposta a um desafio. Mesmo um maudisparo tem sua dignidade quando se aceita um duelo.Quando há algum tempo publiquei uma série de artigos es-critos às pressas, porém honestos, sob o título de “Heretics”,vários críticos cuja inteligência tem meu sincero respeito(menção especial pode ser feita ao sr. G. S. Street) disse-ram que não viam problema algum no fato de eu dizer atodos que afirmassem a sua teoria cósmica, mas que eucuidadosamente me havia furtado a sustentar os meus pre-ceitos com exemplos. “Começarei a preocupar-me com aminha filosofia”, disse o sr. Street, “depois que o sr. Ches-terton tiver apresentado a dele.”

Talvez tenha sido uma sugestão incauta, dirigida comofoi a alguém sempre mais que disposto a escrever um livrodiante da mais ligeira provocação. Mas, no fim das contas,embora o sr. Street tenha inspirado e criado este livro, elenão precisa lê-lo. Se de fato o ler, descobrirá que em suaspáginas eu tentei, de forma vaga e pessoal, num conjuntode quadros mentais mais do que numa série de deduções,

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expor a filosofia em que passei a acreditar. Não a chamareide minha filosofia, uma vez que não a criei. Deus e a hu-manidade a criaram; e ela me criou.

Muitas vezes alimentei a fantasia de escrever um ro-mance sobre um navegador inglês que cometeu um peque-no erro ao calcular sua rota e descobriu a Inglaterra, tendoa impressão de estar numa nova ilha dos Mares do Sul.Sempre me vejo, porém, com ocupações ou preguiça de-mais para escrever essa bela obra, portanto é melhor queeu o ofereça com o objetivo de apresentar uma ilustraçãofilosófica. Provavelmente a impressão geral será a de que ohomem que desembarcou (armado até os dentes e falandopor sinais) para fincar a bandeira britânica naquele templobárbaro que no fim das contas era o Pavilhão de Brighton,sentiu-se um perfeito idiota.

Não estou aqui preocupado em negar que ele pareciaidiota. Mas se você imagina que ele se sentiu idiota, ou queem todo o caso a sensação de tolice era sua emoção únicaou dominante, então você não estudou com a delicadezaexigida a rica natureza romântica do herói dessa história.Seu erro foi de fato um erro altamente invejável; e ele sabiadisso, se é que era o homem que eu imaginei. O que poderiaser mais prazeroso do que provar em poucos minutos todosos fascinantes terrores de ir para o exterior combinadoscom toda a confortável segurança de voltar novamente paracasa? O que poderia haver de melhor do que ter toda aemoção de descobrir a África do Sul sem a repugnante ne-cessidade de lá desembarcar? O que poderia ser mais ma-ravilhoso do que preparar-se para descobrir a Nova Gales

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INTRODUÇÃO EM DEFESA DE TUDO O MAIS 19

do Sul e depois perceber, com uma efusão de lágrimas, queera apenas a velha Gales do Sul?

Esse pelo menos me parece ser o principal problema dosfilósofos e, de certo modo, é o principal problema deste li-vro. Como podemos imaginar ficarmos ao mesmo tempoassombrados com o mundo e, mesmo assim, nele nos sen-tirmos em casa? Como pode esta estranha cidade cósmica,com seus cidadãos de muitas pernas, com suas monstruo-sas e antigas lâmpadas, como pode este mundo provocarem nós ao mesmo tempo o fascínio de uma cidade estra-nha e o conforto e a honra de ser a nossa cidade?

Mostrar que uma crença ou uma filosofia é verdadeirade todos os pontos de vista seria uma tarefa demasiadogrande mesmo para um livro muito maior do que este. Énecessário seguir uma linha de raciocínio, e esta é a linhaque me proponho seguir aqui: quero apresentar a minhacrença como uma resposta específica a essa dupla necessi-dade espiritual, a necessidade da mistura do conhecido como desconhecido que a cristandade corretamente chamoude romance. Pois até mesmo a palavra “romance” tem emsi o mistério e o antigo significado de Roma.

Quem quer que se disponha a discutir o que quer queseja deveria sempre começar dizendo o que não está emdiscussão. Além de declarar o que se quer provar é precisodeclarar o que não se quer provar. O que eu não me propo-nho provar, o que proponho que se tome como terreno co-mum entre mim e o leitor médio, é essa atração de umavida ativa e imaginativa, pitoresca e cheia de curiosidadepoética, uma vida como a que em todo o caso o homem

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ocidental sempre parece ter desejado. Se um homem dizque a extinção é melhor do que a existência, ou que umavida insossa é melhor que a variedade e a aventura, entãoesse homem não é uma das pessoas comuns com quem es-tou falando. Se alguém prefere o nada, nada lhe posso dar.Mas quase todas as pessoas que conheço nesta sociedadeocidental no seio da qual vivo concordam com a proposi-ção geral de que precisamos dessa vida de romance práti-co; a combinação de alguma coisa que é estranha comalguma coisa que é segura. Precisamos ver o mundo de talmodo que nele se combine uma idéia de deslumbramentocom uma idéia de acolhimento. Precisamos nos sentir feli-zes nessa terra deslumbrante sem nunca nos sentir mera-mente confortáveis. É ESSA realização do meu credo quevou principalmente perseguir nestas páginas.

Mas tenho uma razão peculiar para aludir ao navega-dor que descobriu a Inglaterra. Aquele navegador sou eu.Eu descobri a Inglaterra. Não consigo imaginar como estelivro pode conseguir não ser egoísta; e, para dizer a verda-de, não consigo absolutamente imaginar como ele podeconseguir não ser chato. A chatice, todavia, me livra daacusação que mais lamento; a acusação de ser superficial.Mera sofisticação superficial é o que desprezo acima detudo, e talvez seja um fato salutar que é disso que geral-mente sou acusado.

Não conheço nada tão desprezível como o mero para-doxo; uma defesa meramente engenhosa do indefensável.Se fosse verdade, como se afirmou, que o sr. Bernard Shawvivia de paradoxos, então ele deveria ser um mero milioná-

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rio; pois um homem de sua atividade mental poderia in-ventar um sofisma a cada seis minutos. É tão fácil comomentir, pois é mentir. A verdade é, naturalmente, que osr. Shaw enfrenta o cruel estorvo de não conseguir dizeruma mentira se não pensar que é uma verdade. Perceboque estou sob a mesma intolerável escravidão. Nunca emminha vida eu disse coisa alguma simplesmente por pensarque era engraçada; embora, naturalmente, eu tenha ali-mentado a vanglória humana e possa ter considerado algoengraçado por tê-lo dito. Uma coisa é descrever uma en-trevista com uma górgona ou um grifo, uma criatura quenão existe; outra coisa é descobrir que o rinoceronte existee depois sentir prazer pelo fato de que ele parece um ani-mal que não existe.

A gente procura a verdade, mas pode acontecer que agente procure instintivamente as verdades mais extraordi-nárias. E apresento este livro com os mais sinceros senti-mentos a todos os bons sujeitos que odeiam o que escrevoe o consideram (com muita justiça, segundo tudo o que eusei) como um exemplo de uma cena burlesca inferior ouuma brincadeira cansativa.

Pois se este livro é uma brincadeira, ele é uma brincadei-ra contra mim mesmo. Eu sou o homem que com a máximaousadia descobriu o que já fora descoberto antes. Se naspáginas que seguem há um elemento de farsa, a farsa é àsminhas custas; pois este livro explica como eu fantasiei queera o primeiro a pôr os pés em Brighton e depois descobrique era o último. Ele relata as minhas obtusas aventurasem busca do óbvio. Ninguém pode considerar o meu caso

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mais ridículo do que eu mesmo o considero; nenhum leitorpode aqui acusar-me de tentar fazê-lo de bobo: o bobo destahistória sou eu, e nenhum rebelde pode roubar-me o trono.

Confesso francamente todas as ambições idiotas do fimdo século XIX. Como todos os outros menininhos pompo-sos, tentei colocar-me à frente de meu tempo; e descobrique estava 1800 anos atrás. Forcei minha voz com penosoexagero juvenil ao proferir minhas verdades. E fui punidoda maneira mais adequada e engraçada, pois mantive asverdades: mas descobri, não que não eram verdades, massimplesmente que não eram minhas. Quando imaginei queestava sozinho encontrei-me de fato na ridícula posição dereceber o apoio de toda a cristandade. Deus me perdoe,mas talvez eu tenha tentado ser original; mas só conseguiinventar por minha própria iniciativa uma cópia inferiordas tradições existentes da religião civilizada. O navegadorpensou ser o primeiro a descobrir a Inglaterra; eu julgueiser o primeiro a descobrir a Europa. Tentei fundar umaheresia só minha; e quando lhe dei o último acabamentodescobri que era a ortodoxia.

Talvez alguém se divirta com o relato deste feliz fiasco.Talvez um amigo ou inimigo se divirta ao ler como eu gra-dativamente aprendi, da verdade de alguma lenda perdi-da ou da falsidade de alguma filosofia dominante, verdadesque eu poderia ter aprendido do meu catecismo — se otivesse estudado. Pode haver ou não algum entretenimen-to na leitura de como finalmente descobri num clube anar-quista ou templo babilônico o que poderia ter descobertona paróquia mais próxima. Se alguém se diverte aprenden-

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do como as flores do campo ou as palavras escritas numônibus, os acidentes de políticos ou os sofrimentos da ju-ventude se juntaram numa certa ordem para produzir umcerto convencimento de ortodoxia cristã, essa pessoa podemuito bem ler este livro. Mas há em tudo uma sensata di-visão de trabalho. Eu escrevi o livro, e nada neste mundome induziria a lê-lo.

Acrescento uma nota meramente pedante que aparece,como uma nota naturalmente deveria aparecer, no iníciodo livro. Estes ensaios pretendem apenas discutir o fatoreal de que a teologia cristã central (suficientemente resu-mida no Credo dos Apóstolos) é a melhor raiz de energia eética sólida. Eles não pretendem discutir a questão muitofascinante, mas totalmente outra, de qual é o atual cetrode autoridade para a proclamação desse credo. Quando apalavra “ortodoxia” é usada aqui, ela significa o Credo dosApóstolos, como era entendido por todos os que se chama-vam cristãos até pouco tempo atrás e a conduta históricadaqueles que adotavam esse credo.

Fui forçado pelo mero espaço a restringir-me ao que re-cebi desse credo; não toco a questão muito discutida entreos cristãos modernos de onde nós mesmos o recebemos.Este não é um tratado eclesiástico, mas uma espécie deautobiografia desconjuntada. Mas, se alguém quiser mi-nhas opiniões sobre a verdadeira natureza da autoridade,o sr. G. S. Street só precisa me lançar outro desafio, e euvou escrever outro livro.

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II

O MANÍACO

PESSOAS COMPLETAMENTE mundanas nun-ca entendem sequer o mundo; elas confiam plenamentenumas poucas máximas cínicas não verdadeiras. Lembro-me de que, certa vez, fiz um passeio com um editor de su-cesso, e ele fez uma observação que eu ouvira muitasvezes antes; é, na verdade, quase um lema do mundomoderno. Todavia, eu ouvi essa máxima cínica mais umavez e não me contive: de repente vi que ela não dizia nada.Referindo-se a alguém, disse o editor: “Aquele homem vaiprogredir; ele acredita em si mesmo”.

Lembro-me de que, quando levantei a cabeça para es-cutar, meus olhos se fixaram num ônibus no qual estavaescrito “Hanwell”.1 Disse-lhe eu então: “Quer saber ondeficam os homens que acreditam em si mesmos? Eu sei. Seide homens que acreditam em si mesmos com uma confian-ça mais colossal do que a de Napoleão ou César. Sei ondearde a estrela fixa da certeza e do sucesso. Posso conduzi-lo

1Nome de um asilo para loucos, como será verificado mais à frente.

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aos tronos dos super-homens. Os homens que realmenteacreditam em si mesmos estão todos em asilos de lunáticos”.

Ele disse calmamente que, no fim das contas, havia umbom número de homens que acreditavam em si mesmos eque não eram lunáticos internados em asilos. “Sim, certa-mente”, retruquei, “e você mais do que ninguém deve co-nhecê-los. Aquele poeta bêbado de quem você não quisaceitar uma lamentável tragédia, ele acreditava em si mes-mo. Aquele velho ministro com um poema épico de quemvocê se escondia num quarto dos fundos, ele acreditavaem si mesmo. Se você consultasse sua experiência profissio-nal em vez de sua horrível filosofia individualista, saberiaque acreditar em si mesmo é uma das marcas mais comunsde um patife. Atores que não sabem representar acredi-tam em si mesmos; e os devedores que não vão pagar. Seriamuito mais verdadeiro dizer que um homem certamentefracassará por acreditar em si mesmo. Total autoconfian-ça não é simplesmente um pecado; total autoconfiança éuma fraqueza. Acreditar absolutamente em si mesmo é umacrença tão histérica e supersticiosa como acreditar emJoanna Southcote:2 quem o faz traz o nome “Hanwell”escrito no rosto com a mesma clareza com que ele está es-crito naquele ônibus.”

A tudo isso meu amigo editor deu esta profunda e eficazresposta: “Bem, se um homem não acredita em si mesmo,em que vai acreditar?” Depois de uma longa pausa eu res-

2Ela (1750-1814) se dizia virgem e grávida do novo Messias, e che-gou a ter muitos seguidores.

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pondi: “Vou para casa escrever um livro em resposta a essapergunta”. Este é o livro que escrevi para responder-lhe.

Mas acho que este livro bem pode começar onde come-çou a nossa discussão — na vizinhança de um manicômio.Os modernos mestres da ciência muito se impressionamcom a necessidade de iniciar todas as investigações comum fato. Os antigos mestres da religião igualmente se im-pressionavam com essa necessidade. Começavam com ofato do pecado — fato tão prático como as batatas. Pudes-se ou não o homem ser lavado em águas milagrosas, nãopairaria nenhuma dúvida de que ele desejava lavar-se. Mascertos líderes religiosos de Londres, não somente os mate-rialistas, começaram a negar nos dias de hoje não a alta-mente questionável água, mas sim a inquestionável sujeira.

Certos novos teólogos questionam o pecado original, queconstitui a única parte da teologia cristã que pode real-mente ser provada. Alguns seguidores do rev. R. J. Campbell,em sua espiritualidade quase exigente demais, admitem aausência de pecado em Deus, que não podem ver nem emsonhos. Mas eles essencialmente negam o pecado humano,que eles podem ver na rua. Os santos mais poderosos, as-sim como os mais poderosos céticos, tomaram o mal positi-vo como ponto de partida de sua argumentação. Se forverdade (como certamente é) que o homem pode sentiruma felicidade extraordinária em esfolar um gato, então ofilósofo religioso só pode fazer uma dentre duas deduções.Ou ele deve negar a existência de Deus, como fazem todosos ateus; ou deve negar a presente união entre Deus e ohomem, como fazem todos os cristãos. Os novos teólogos

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parecem pensar que uma solução altamente racionalista énegar o gato.

Nessa notável situação agora é simplesmente impossí-vel (alimentando alguma esperança de apelo universal)começar, como faziam nossos pais, pelo fato do pecado.Esse fato, que para eles (e para mim) está mais na cara doque nariz, é exatamente o que foi diluído ou negado demodo especial. Mas embora os modernos neguem a exis-tência do pecado, eu acho que eles ainda não negaram aexistência do asilo para lunáticos. Todos concordamos quehá um colapso intelectual tão inconfundível como o desa-bamento de uma casa. Os homens negam o inferno, masnão, por enquanto, Hanwell. Para o objetivo do nosso ar-gumento fundamental, este último pode muito bem estaronde aquele estava. Quero dizer que, assim como todos osnossos pensamentos e teorias eram outrora julgados porsua tendência a levar ou não o homem a perder sua alma,assim para o nosso objetivo presente, todos os pensamen-tos e teorias podem ser julgados por sua tendência a levarou não o homem a perder a cabeça.

É verdade que alguns falam, de modo superficial e levia-no, da insanidade como sendo em si mesma atraente. Masum momento de reflexão mostrará que, se uma enfermida-de é atraente, trata-se em regra da enfermidade dos ou-tros. Um cego pode ser um quadro pitoresco; mas exige-seum par de olhos para ver o quadro. De modo semelhanteaté mesmo a poesia mais louca da insanidade só pode serapreciada por quem é sensato. Para o insano a insanidadeé totalmente prosaica, porque é totalmente verdadeira.

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Um homem que imagina ser uma galinha é para si mesmotão comum como uma galinha. Um homem que imaginaser um caco de vidro é para si mesmo tão sem graça comoum caco de vidro. A homogeneidade de sua mente é o queo torna sem graça, e o que o torna louco. É somente pelofato de percebermos a ironia de sua idéia que nós o acha-mos até engraçado; é somente pelo fato de ele não ver aironia de sua idéia que ele é internado em Hanwell, nãopor outro motivo.

Em resumo, as esquisitices chocam apenas as pessoascomuns. É por isso que as pessoas comuns têm uma vidamuito mais instigante; enquanto as pessoas esquisitas sem-pre estão se queixando da chatice da vida. É por isso tam-bém que os novos romances desaparecem tão rapidamente,ao passo que os velhos contos de fada duram para sempre.Os velhos contos de fada fazem do herói um ser humanonormal; suas aventuras é que são surpreendentes. Elas osurpreendem porque ele é normal. Mas no romance psico-lógico moderno o herói é anormal; o centro não é central.Conseqüentemente, as mais loucas aventuras não conse-guem afetá-lo de forma adequada, e o livro é monótono.Pode-se criar uma história a partir de um herói entre dra-gões, mas não a partir de um dragão entre dragões. O con-to de fadas discute o que o homem sensato fará num mundode loucura. O romance realista sóbrio de hoje discute o queum completo lunático fará num mundo sem graça.

Comecemos, então, com um manicômio. Dessa estala-gem fantástica e perversa vamos partir para a nossa jorna-da intelectual. Ora, se devemos examinar rapidamente a

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filosofia da sanidade, a primeira coisa a fazer no caso éapagar um enorme erro comum. Por toda parte existe anoção de que a imaginação, especialmente a imaginaçãomística, é perigosa para o equilíbrio mental do homem.Geralmente se diz que os poetas não são confiáveis do pontode vista psicológico, e geralmente faz-se uma vaga associa-ção entre cingir a cabeça com uma coroa de louros e fazerloucuras. Os fatos e a história contradizem totalmente essavisão. A maioria dos poetas realmente grandes não só foide gente sensata, mas também extremamente prática. SeShakespeare um dia dominou cavalos, isso se deu por serele o homem mais indicado para fazê-lo.

A imaginação não gera a insanidade. O que gera a insa-nidade é exatamente a razão. Os poetas não enlouquecem;mas os jogadores de xadrez sim. Os matemáticos enlou-quecem, e os caixas; mas isso raramente acontece com ar-tistas criadores. Como se verá, não estou aqui, em nenhumsentido, atacando a lógica: só afirmo que esse perigo estána lógica, não na imaginação. A paternidade artística é tãosadia quanto a paternidade física. Além disso, vale a penaobservar que, quando um poeta foi realmente mórbido, ofato geralmente se deu porque ele tinha um ponto fraco deracionalidade no cérebro. Poe, por exemplo, foi realmentemórbido; não porque era poético, mas porque era especial-mente analítico. Para ele até o jogo de xadrez era poéticodemais; ele não gostava de xadrez porque era um jogo cheiode peões e castelos, como um poema. Declaradamente,preferia as casas brancas do jogo de damas, por se parece-rem mais com os meros pontos pretos num gráfico.

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Talvez o caso mais convincente seja este: apenas umgrande poeta inglês enlouqueceu, Cowper. E ele foi defini-tivamente levado à loucura pela lógica, pela repulsiva e es-tranha lógica da predestinação. A poesia não foi seu mal,foi seu remédio. A poesia preservou-lhe em parte a saúde.Às vezes ele podia esquecer-se do rubro e sequioso inferno,para o qual seu hediondo determinismo o arrastava emmeio às águas caudalosas e as grandes e achatadas floresaquáticas do rio Ouse. Ele foi condenado por João Calvino;e quase foi salvo por John Gilpin.

Em todas as partes vemos que os homens não enlou-quecem sonhando. Os críticos são muito mais loucos queos poetas. Homero é completo e bastante calmo; os críticosé que o rasgam em trapos extravagantes. Shakespeare éexatamente Shakespeare; apenas alguns de seus críticosé que descobriram que ele era alguma outra pessoa. E em-bora João, o evangelista, tenha visto monstros estranhosem sua visão, ele não viu nenhuma criatura tão louca comoum de seus comentadores. O fato geral é simples. A poesiamantém a sanidade porque flutua facilmente num marinfinito; a razão procura atravessar o mar infinito, e assimtorná-lo finito. O resultado é a exaustão mental, como aexaustão física do sr. Holbein.

Aceitar tudo é um exercício, entender tudo é uma ten-são. O poeta apenas deseja a exaltação e a expansão, ummundo em que ele possa se expandir. O poeta apenas pedepara pôr a cabeça nos céus. O lógico é que procura pôr oscéus dentro de sua cabeça. E é a cabeça que se estilhaça.

É uma questão menor, mas não irrelevante, o fato deesse contundente erro ser em geral sustentado por outro

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contundente erro de citação. Todos ouvimos citação do fa-moso verso de Dryden: “O grande gênio é da loucura alia-do íntimo”.3 Mas Dryden não disse que o grande gênio eraaliado íntimo da loucura. O próprio Dryden era um gran-de gênio e tinha uma noção mais exata. Seria difícil acharum homem mais romântico que ele, ou mais sensato. O queDryden disse foi o seguinte: “Grandes inteligências muitasvezes são aliadas íntimas da loucura”, o que é verdade. É amera presteza do intelecto que corre perigo de colapso.

Também se poderia lembrar de que tipo de homemDryden estava falando. Falava não de algum visionáriolunático como Vaughn ou George Herbert. Falava de umhomem cínico do mundo, um cético, um diplomata, umgrande político pragmático. Um homem assim é de fatoum íntimo aliado da loucura. Os incessantes cálculos desua mente e da mente de outras pessoas são uma ocupa-ção perigosa. É sempre perigoso para a mente investigarmuito outra mente. Uma pessoa irreverente perguntou-mepor que dizemos em inglês “as mad as a hatter” (louco comoum chapeleiro). Alguém ainda mais irreverente poderiaresponder que um chapeleiro é louco porque ele tem demedir a cabeça humana.

E se os grandes argumentadores muitas vezes são ma-níacos, é igualmente verdade que os maníacos são em geralgrandes argumentadores. Quando me envolvi numa polê-mica com o CLARION sobre a questão do livre-arbítrio, aquelecompetente escritor, o sr. R. B. Suthers, disse que o livre-

3“Great genius is to madness near allied.”

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arbítrio era uma demência, porque implicava ações semcausa, e as ações de um lunático seriam sem causa. Nãome debruço aqui sobre o desastroso lapso de lógica deter-minista. Obviamente, se alguma ação, mesmo a de um lu-nático, pode ser sem causa, o determinismo está acabado.

Se a cadeia da causação pode ser quebrada em benefí-cio de um lunático, ela pode ser quebrada em benefício deum homem comum. Mas meu propósito é sublinhar algomais prático. Seria natural, talvez, que um socialista mar-xista moderno nada soubesse sobre o livre-arbítrio. Masseria certamente notável que um socialista marxista mo-derno nada soubesse sobre lunáticos. O sr. Suthers eviden-temente não sabe nada sobre lunáticos. A última coisa quese pode dizer de um lunático é que suas ações são sem cau-sa. Se algum ato humano qualquer pode grosso modo ser cha-mado de sem causa, trata-se de um ato menor de umhomem sensato: assobiar andando por aí, golpear o capimcom uma bengala, bater os calcanhares no chão ou esfre-gar as mãos. O homem feliz é que faz coisas inúteis; o ho-mem doente não dispõe de força suficiente para ficar semfazer nada.

São exatamente essas ações despreocupadas e sem cau-sa que o louco jamais saberia entender; pois o louco (comoo determinista) em geral vê causa demais em tudo. O loucoveria um significado de conspiração nessas atividades va-zias. Ele pensaria que o golpe no capim era um ataque con-tra a propriedade privada. Pensaria que as batidas doscalcanhares eram um sinal para um cúmplice. Se o loucopudesse, por exemplo, ficar despreocupado, ele ficaria são.

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Todos os que tiveram a infelicidade de conversar com gen-te à beira ou no meio da desordem mental sabem que aqualidade mais sinistra dessa gente é uma clareza enormede detalhes; a conexão de uma coisa a outra num mapamais elaborado que um labirinto.

Se você discutir com um louco, é extremamente prová-vel que leve a pior; pois sob muitos aspectos a mente delese move muito mais rápido por não se atrapalhar com coi-sas que costumam acompanhar o bom juízo. Ele não éembaraçado pelo senso de humor ou pela caridade, ou pe-las tolas certezas da experiência. Ele é muito mais lógicopor perder certos afetos da sanidade. De fato, a explicaçãocomum para a insanidade nesse respeito é enganadora. Olouco não é um homem que perdeu a razão. O louco é umhomem que perdeu tudo exceto a razão.

A explicação oferecida por um louco é sempre exaustivae muitas vezes, num sentido puramente racional, é satisfa-tória. Ou, para falar com mais rigor, a explicação insana, senão for conclusiva, é pelo menos incontestável. É o que sepode observar especialmente nos dois ou três tipos maiscomuns de loucura. Se um homem disser, por exemplo, queos homens estão conspirando contra ele, você não podediscutir esse ponto, a não ser dizendo que todos os homensnegam que são conspiradores; o que é exatamente o que osconspiradores fariam. A explicação dele dá conta dos fatostanto quanto a sua. Ou se um homem disser que ele é, dedireito, o rei da Inglaterra, não é uma resposta completadizer que as autoridades existentes o chamam de louco;pois, se ele fosse o rei da Inglaterra, essa poderia ser a ma-

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neira mais sábia de agir para as autoridades existentes.Ou se um homem disser que ele é Jesus Cristo, não é umaresposta dizer-lhe que o mundo nega a sua divindade; poiso mundo negou a de Cristo.

Apesar de tudo, ele está errado. Mas se tentarmos des-crever seu erro em termos exatos, não acharemos a tarefatão fácil como havíamos imaginado. Talvez a maneira denos aproximarmos ao máximo dessa descrição é dizer o se-guinte: que a mente dele se move num círculo perfeito, po-rém reduzido. Um círculo pequeno é exatamente tão infinitoquando um círculo grande; mas, embora seja exatamentetão infinito, não é tão grande. Da mesma forma a explica-ção insana é exatamente tão completa como a do sensato,mas não tão abrangente. Uma bala é exatamente tão re-donda como o mundo, mas não é o mundo.

Existe o que chamamos de universalidade reduzida; exis-te o que chamamos de eternidade pequena e restrita; vocêpode vê-la em muitas religiões modernas. Agora, falandocomo quem vê a realidade inteiramente de fora e de modoempírico, podemos dizer que a MARCA da loucura mais fortee inconfundível é a combinação entre a completude lógicae a concentração espiritual. A teoria do lunático explicamuitas coisas, mas não as explica de um modo amplo.

Quero dizer que se você ou eu estivesse lidando comuma mente no processo de tornar-se mórbida, nossa prin-cipal preocupação não deveria ser oferecer-lhe argumen-tos, mas sim ar; convencê-la de que existe algo mais limpo emais arejado fora do sufoco de um único argumento. Su-ponhamos, por exemplo, que se tratasse do primeiro caso

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que tomei como típico; suponhamos que fosse o caso deum homem acusando a todos de conspiração contra ele.Se pudéssemos expressar nossos mais profundos sentimen-tos de protesto e apelo contra essa obsessão, suponho quedeveríamos dizer algo assim: “Certo, admito que você temseus argumentos e os sabe de cor, e que muitas coisas se en-caixam em outras coisas, como diz você. Admito que a suaexplicação esclarece muitos fatos; mas quantos outros ficamde fora! Não há no mundo outras histórias além da sua?Todos os homens estão ocupados com a sua ocupação?

“Vamos supor que os detalhes estejam corretos; talvezquando o homem da rua causou-lhe a impressão de nãover você, só o tenha feito por astúcia; talvez quando o po-licial lhe perguntou seu nome, só o tenha feito porque já osabia. Mas você se sentiria muito mais feliz se simplesmen-te soubesse que essas pessoas não lhe deram a menor aten-ção! Muito mais ampla seria a sua vida se o seu eu pudessetornar-se menor dentro dela; se você pudesse realmenteolhar para os outros homens com uma curiosidade e umprazer comuns; se você pudesse vê-los caminhando taisquais eles são em seu radiante egoísmo e viril indiferença!Você começaria a interessar-se por eles porque eles não es-tão interessados em você. Você fugiria desse pequeno eespalhafatoso teatro no qual o seu pequeno enredo é con-tinuamente representado, e você iria perceber-se sob umcéu mais livre, numa rua cheia de maravilhosos estranhos.”

Ou suponhamos que se tratasse do segundo caso de lou-cura, aquele do homem que reivindica a coroa, o seu im-pulso seria responder: “Tudo bem! Talvez você saiba que é

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o rei da Inglaterra; mas por que preocupar-se com isso?Faça um magnífico esforço e você será um ser humano edesprezará todos os reis da terra.”

Ou poderia tratar-se do terceiro caso, o do louco quechamava a si mesmo de Cristo. Se nós expressássemos onosso sentimento, deveríamos dizer: “Então você é o Cria-dor e Redentor do mundo: mas como deve ser pequenoesse seu mundo! Que céu reduzido você deve habitar, comanjos do tamanho de borboletas! Como deve ser triste serDeus; e um Deus incompetente! Será que de fato não exis-te nenhuma vida mais plena, nenhum amor mais maravi-lhoso do que o seu? E será que é mesmo na sua pequena epenosa compaixão que toda a humanidade deve depositarsua fé? Muito mais feliz seria você, haveria muito mais devocê se o martelo de outro Deus pudesse destruir o seupequeno cosmos, esparramando as estrelas como lantejou-las, e deixando você no espaço aberto, livre como os outroshomens para olhar para cima e também para baixo!”.

E é preciso lembrar que a ciência mais genuinamenteprática adota essa visão do mal mental; ela não procuradiscutir com ele como se fosse uma heresia, mas simples-mente quebrá-lo como se fosse um encantamento. Nem aciência moderna, nem a religião antiga acreditam no pen-samento completamente livre. A teologia desaprova certospensamentos chamando-os de blasfemos. A ciência desa-prova certos pensamentos chamando-os de mórbidos. Porexemplo, algumas sociedades religiosas, mais ou menos, es-timularam os homens a não pensar em sexo. A nova socie-dade científica definitivamente estimula os homens a não

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pensar na morte; trata-se de um fato, mas é considerado umfato mórbido. E ao lidar com aqueles cuja morbidez temum toque de mania, a ciência moderna se preocupa muitomenos com a lógica pura do que um dervixe dançando.

Nesses casos não é suficiente que o pobre infeliz desejea verdade; ele precisa desejar a saúde. Nada pode salvá-loa não ser uma fome cega de normalidade, como a fome deuma fera. Um homem não consegue sair do mal mental sópor meio de seu pensamento; pois é exatamente o órgão dopensamento que se tornou doentio, ingovernável e, por as-sim dizer, independente. Ele só pode ser salvo pela vonta-de ou a fé. No momento em que a mera razão entra emmovimento, ela se move no velho sulco circular; ele darávoltas e mais voltas em seu círculo lógico, exatamente comoum homem num vagão de terceira classe do Inner Circle4

ficará girando à toa nessa linha, a não ser que execute ovoluntário, vigoroso e místico ato de descer na Rua Gower.

A decisão nesse caso é tudo; há uma porta que precisaser fechada para sempre. Todos os remédios são remédiosdesesperados. Todas as curas são curas milagrosas. Curarum louco não é discutir com um filósofo; é expulsar umdemônio. E por mais sóbrio que seja o procedimento demédicos e psicólogos neste assunto, a atitude deles é pro-fundamente intolerante — tão intolerante quanto a deMaria I, a sanguinária. A atitude deles é de fato a seguinte:que o louco deve parar de pensar, se quiser continuar a

4Inner Circle Line, também chamada de “linha virtual”, porque nãotem nenhuma estação de uso exclusivo. A Circle Line foi construídapara ligar duas outras linhas.

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viver. O conselho deles é a amputação intelectual. Se a suaCABEÇA o ofende, corte-a; pois é melhor, não só entrar noreino do céu como uma criança, mas entrar como um im-becil, em vez de, com todo o seu intelecto, ser lançado noinferno — ou no sanatório Hanwell.

Assim é a experiência do louco; ele em geral é um argu-mentador, muitas vezes um argumentador bem-sucedido.Sem dúvida ele poderia ser derrotado no mero raciocínio, eos argumentos contra ele poderiam ser colocados de ma-neira lógica. Mas podem ser colocados de maneira muitomais precisa em termos mais gerais e até mesmo mais esté-ticos. O louco está na limpa e bem iluminada prisão deuma idéia só: é afiado num só doloroso ponto. Está despro-vido da sadia hesitação e sadia complexidade.

Agora, como expliquei na introdução, estabeleci apre-sentar nestes primeiros capítulos não tanto um diagramade uma doutrina, mas alguns quadros de um ponto de vis-ta. E descrevi detalhadamente minha visão do maníaco poreste motivo: que exatamente como eu sou afetado pelo ma-níaco, também sou afetado pela maioria dos pensadoresmodernos. Aquele inconfundível estado de espírito, ou tom,que ouço provindo de Hanwell hoje em dia, também o ouçoprovindo da metade das cadeiras de ciência e cátedras deensino da atualidade; e a maioria dos doutores da loucurasão doutores da loucura em mais de um sentido. Todosapresentam exatamente aquela combinação que já obser-vamos: a combinação de um raciocínio expansivo e exaus-tivo com um reduzido bom senso. São universais apenasno sentido de que tomam uma explicação superficial e alevam muito longe.

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Mas o padrão pode estender-se infinitamente e aindaser um padrão pequeno. Eles vêem um tabuleiro de xadrezcomo branco sobre preto, e se o universo fosse pavimenta-do com ele, ainda seria branco sobre preto. Como o lunáti-co, eles não conseguem alterar seu ponto de vista; nãoconseguem fazer um esforço mental e de repente vê-lo comopreto sobre branco.

Tome o primeiro e mais óbvio caso de materialismo.Como uma explicação do mundo, o materialismo tem umaespécie de simplicidade insana. Ele tem exatamente a qua-lidade do argumento do louco; temos simultaneamente asensação de que ele cobre tudo e a sensação que deixa tudode fora. Contemple algum materialista capaz e sincero como,por exemplo, o sr. McCabe, e você terá exatamente essasensação única. Ele entende tudo, e nada parece digno deentendimento. O cosmos dele é completo em todos os rebi-tes e engrenagens, mas mesmo assim seu cosmos é menorque o nosso mundo. De certo modo o esquema dele, comoo lúcido esquema do louco, parece não ter consciência dasenergias alheias e da grande indiferença da terra; ele nãopensa nas realidades da terra, nas pessoas em luta, ou nasmães orgulhosas, ou no primeiro amor, ou no medo no mar.A terra é muito grande, e o cosmos é muito pequeno. Ocosmos é praticamente o menor buraco em que um ho-mem pode esconder a cabeça.

É preciso entender que não estou discutindo a relaçãodesses credos com a verdade; mas, no momento presente,apenas a sua relação com a saúde. Mais adiante na discussãoespero atacar a questão da verdade objetiva. Aqui falo

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apenas de um fenômeno de psicologia. Não tento nestemomento provar a Haeckel que o materialismo é falso, comotambém não tentei provar ao homem que se julgava Cristoque ele padecia as conseqüência de um erro. Aqui simples-mente comento o fato de os dois casos terem a mesma es-pécie de completude e a mesma espécie de incompletude.

Pode-se explicar a detenção de um homem em Hanwellpor um público indiferente dizendo que é a crucificação deum deus do qual o mundo não é digno. A explicação real-mente explica. Da mesma forma, pode-se explicar a ordemdo universo dizendo que todas as coisas, mesmo as almasdos homens, são folhas desabrochando de modo inevitávelnuma árvore absolutamente inconsciente — o destino cegoda matéria. A explicação realmente explica, embora não,naturalmente, de uma forma tão completa como a do louco.

Mas o ponto principal aqui é que a mente humana nor-mal não se opõe às duas explicações, mas sente em relaçãoa ambas a mesma objeção. Sua formulação aproximada éque se o homem em Hanwell for o Deus real, esse deus nãoé grande coisa. E, de modo semelhante, se o cosmos domaterialista for o cosmos real, esse cosmos não é grandecoisa. A realidade se encolheu. A divindade é menos divinaque muitos homens; e (segundo Haeckel) a vida no seu todoé algo muito mais cinza, estreito e trivial do que muitos deseus aspectos. As partes parecem maiores que o todo.

De fato devemos lembrar que, seja verdadeira ou não, afilosofia materialista é com certeza mais limitante do quequalquer religião. Num sentido, naturalmente, todas as idéiasinteligentes são estreitas. Não podem ser mais amplas do

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que elas mesmas. Um cristão só é limitado no mesmo sen-tido em que um ateu é limitado. Ele não pode pensar que ocristianismo é falso e continuar sendo cristão; e o ateu nãopode considerar que o ateísmo é falso e continuar sendoateu. Mas, na prática, há um sentido muito especial emque o materialismo tem mais restrições que o espiritualismo.

O sr. McCabe acha que sou escravo porque não me é per-mitido acreditar no determinismo. Eu acho que o sr. McCabeé escravo porque não lhe é permitido acreditar em fadas.Mas se examinarmos os dois vetos veremos que o dele érealmente um veto mais puro que o meu. O cristão temperfeita liberdade para acreditar que existe uma considerá-vel quantidade de ordem estabelecida e desenvolvimentoinevitável no universo. Mas ao materialista não é permiti-do admitir em sua imaculada máquina a menor manchade espiritualismo ou milagre. Ao coitado do sr. McCabenão é permitido reter nem sequer o menor diabrete, embo-ra este possa estar escondido em algum jardim.

Os cristãos admitem que o universo é complexo e atémisturado, exatamente da mesma forma que um homemsadio sabe que é complexo. O homem sadio sabe que nelehá um vestígio da fera, um vestígio do demônio, um vestí-gio do santo, um vestígio do cidadão. Mais que isso, o ho-mem realmente sadio sabe que nele há um vestígio do louco.Mas o mundo do materialista é totalmente simples e sóli-do, exatamente como o louco tem plena certeza de que eleé sadio. O materialista tem certeza de que a história temsido simples e unicamente uma cadeia de causação, exata-mente como a pessoa interessante mencionada acima tem

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plena certeza de que é simples e unicamente uma galinha.Os materialistas e os loucos nunca têm dúvidas.

As doutrinas espirituais na verdade não limitam a men-te como fazem as negações materialistas. Mesmo acredi-tando na imortalidade, eu não preciso pensar nela. Mas sea desacredito, nela não devo pensar. No primeiro caso, aestrada está aberta e posso ir adiante até onde quiser; nosegundo caso, a estrada está fechada. Mas o argumento éainda mais forte, e o paralelo com a loucura é ainda maisestranho. Pois o nosso argumento contra a teoria lógica eexaustiva do lunático foi que, certa ou errada, ela aos pou-cos destruía sua humanidade.

Agora a acusação contra as principais deduções do ma-terialista é que, certas ou erradas, elas aos poucos destroema sua humanidade. Não estou me referindo apenas à bon-dade; estou me referindo a esperança, coragem, poesia, ini-ciativa, tudo o que é humano. Por exemplo, quando omaterialismo leva os homens a um fatalismo completo(como em geral acontece), é totalmente inútil fingir queele, nalgum sentido, é uma força libertadora. É absurdodizer que se está promovendo especialmente a liberdadequando só se usa o livre-pensar para destruir o livre-arbí-trio. Os deterministas vieram para amarrar, não para soltar.Podem muito bem chamar sua lei de “corrente” de causa-ção. É a pior corrente que já prendeu um ser humano.

Se você quiser, pode usar a linguagem da liberdadepara falar do ensinamento materialista, mas é óbvio queessa linguagem é exatamente tão inaplicável a esse ensina-mento como um todo quanto o é para falar de um homem

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trancafiado num hospício.Você pode dizer, se quiser, que ohomem é livre para considerar-se um ovo cozido. Mas comcerteza um fato muito mais sólido e importante é que, se elefor um ovo cozido, não está livre para comer, beber, dormir,caminhar ou fumar um cigarro. De modo semelhante vocêpode dizer, se quiser, que o corajoso especulador determi-nista é livre para não acreditar na realidade da vontade.Mas um fato muito mais sólido importante é que ele nãoestá livre para levantar da cama, xingar, agradecer, justifi-car, instar, punir, resistir a tentações, incitar multidões, to-mar resoluções de Ano Novo, perdoar pecadores, censurartiranos ou até mesmo dizer “obrigado” pela mostarda.

Antes de passar para outro assunto, permito-me obser-var que existe uma estranha falácia afirmando que o fata-lismo materialista de certo modo favorece a misericórdia, aabolição de castigos cruéis ou de qualquer espécie. O cho-cante é que isso é o oposto da verdade. É perfeitamentedefensável dizer que a doutrina da necessidade não esta-belece diferença alguma; que ela deixa o espancador es-pancar e o bom amigo aconselhar como antes. Mas é óbvioque se ela tiver de interromper uma dessas duas ativida-des, o aconselhamento é que é interrompido. O fato de queos pecados são inevitáveis não impede o castigo; se impedealguma coisa impede a persuasão.

É provável que o determinismo leve à crueldade comocertamente levará à covardia. O determinismo não é incom-patível com o tratamento cruel dispensado aos criminosos.É (talvez) inconsistente com o tratamento generoso; comqualquer apelo a seus melhores sentimentos ou qualquer

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encorajamento em sua luta moral. O determinista não acre-dita em apelos à vontade, mas acredita na mudança de am-biente. Ele não deve dizer ao pecador: “Vá e não pequemais”, porque o pecador não pode evitar o pecado. Mas elepode mergulhar o pecador em óleo fervente, pois esse óleoé um ambiente. Portanto, considerado como uma figura, omaterialista tem o fantástico perfil da figura de um louco.Os dois assumem uma posição simultaneamente incontes-tável e intolerável.

É óbvio que tudo isso não é verdade apenas em relaçãoao materialista. O mesmo se aplica ao outro extremo dalógica especulativa. Há um cético muito mais terrível doque aquele que acredita que tudo começou na matéria. Épossível identificar o cético que acredita que tudo come-çou nele mesmo. Ele não duvida da existência de anjos edemônios, mas da existência de homens e vacas. Para ele,seus próprios amigos são uma mitologia criada por ele mes-mo. Ele criou seu próprio pai e sua própria mãe.

Essa fantasia horrível tem em si algo incontestavelmen-te atrativo para o egoísmo um tanto místico de nossa épo-ca. O editor que pensava que os homens progrediriam seacreditassem em si mesmos, aqueles seguidores do super-homem que estão sempre tentando encontrá-lo no espelho,aqueles escritores que falam em registrar sua personalida-de em vez de criar vida para o mundo, apenas alguns cen-tímetros separam toda essa gente desse terrível vazio.Depois, quando este bondoso mundo que nos cerca tiversido denegrido como uma mentira; quando amigos desa-parecerem transformados em fantasmas, e os fundamentos

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do mundo falharem; depois, quando o homem, não acredi-tando mais em nada e em ninguém, estiver sozinho em seupesadelo, então o grande lema individualista será escritosobre ele em vingadora ironia. As estrelas serão apenaspontos na escuridão de seu cérebro; o rosto de sua mãeserá apenas o esboço de seu próprio pincel insano nas pa-redes de sua cela. Mas sobre sua cela estará escrito, comassustadora verdade: “Ele acredita em si mesmo”.

Tudo o que nos interessa aqui, porém, é observar queesse pensamento extremo totalmente egoísta exibe o mes-mo paradoxo que exibe outro extremo do materialismo. Éigualmente completo em teoria e igualmente mutilado naprática. Em nome da simplicidade, é mais fácil afirmar essaidéia dizendo que o homem pode acreditar que está sem-pre num sonho. Ora, obviamente não pode haver nenhu-ma prova positiva de que ele não está num sonho, pelasimples razão de que não se pode apresentar nenhumaprova que não se pudesse igualmente apresentar num sonho.

Mas se o homem começasse a incendiar Londres e a di-zer que a sua governanta logo o acordaria para tomar ocafé da manhã, nós deveríamos prendê-lo e colocá-lo comoutros lógicos naquele lugar ao qual aludimos várias vezesno decorrer deste capítulo. O homem que não consegueacreditar nos seus sentidos, e o homem que não conse-gue acreditar em nada além de seus sentidos, os dois sãoinsanos, porém, a insanidade deles não é provada por al-gum erro na sua argumentação, mas pelo erro evidente desua vida. Os dois se trancaram em duas caixas, em cujointerior estão pintados o sol e as estrelas; os dois estão in-

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capacitados de sair, um para entrar na saúde e felicidadedo céu; o outro nem sequer para entrar na saúde e felicida-de da terra. A posição deles é bastante razoável; mais queisso, num sentido é infinitamente razoável, exatamentecomo uma moeda de dez centavos é infinitamente cir-cular. Mas existe isso que conhecemos como uma infinida-de mesquinha, uma eternidade vil e escrava.

É engraçado notar que muitos dentre os modernos, céti-cos ou místicos, tomaram como seu distintivo um certo sím-bolo oriental, que é exatamente o símbolo dessa nulidadeextrema. Quando querem representar a eternidade, eles arepresentam usando uma serpente com seu rabo na boca.Há um chocante sarcasmo na imagem dessa refeição nadaagradável. A eternidade dos fatalistas do materialismo, aeternidade dos pessimistas orientais, a eternidade dos ar-rogantes teosofistas e cientistas mais altos de hoje está, defato, muito bem representada pela serpente comendo o pró-prio rabo, um animal aviltado que destrói até a si mesmo.

Este capítulo é puramente prático e diz respeito àquiloque constitui a marca e o elemento principal da insanida-de; podemos dizer, em resumo, que é a razão usada semraízes, a razão no vazio. O homem que começa a pensarsem os apropriados primeiros princípios fica louco; começaa pensar do lado errado. Nas páginas restantes deste livrodevemos tentar descobrir qual é o lado certo. Mas, se isso éo que leva os homens à loucura, podemos perguntar, paraconcluir, o que é que os mantém sadios.

No final do livro espero dar uma resposta definitiva, quealguns vão achar definitiva demais. Mas por enquanto é

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possível da mesma maneira unicamente prática dar umaresposta geral sobre o que na história da humanidade con-creta mantém a sanidade humana. Enquanto se tem ummistério se tem saúde; quando se destrói o mistério se criaa morbidez. O homem comum sempre foi sadio porque ohomem comum sempre foi um místico. Ele aceitou a pe-numbra. Ele sempre teve um pé na terra e outro num paísencantado. Ele sempre se manteve livre para duvidar deseus deuses; mas, ao contrário do agnóstico de hoje, livretambém para acreditar neles. Ele sempre cuidou mais daverdade do que da coerência. Se via duas verdades quepareciam contradizer-se, ele tomava as duas juntamentecom a contradição. Sua visão espiritual é estereoscópica,como a visão física: ele vê duas imagens simultâneas dife-rentes e, contudo, enxerga muito melhor por isso mesmo.

Assim, ele sempre acreditou que existia isso que se cha-ma de destino, mas também isso que se chama de livre-arbítrio. Assim, ele acreditava que as crianças eram de fatoo reino do céu, mas, apesar disso, deviam obedecer ao rei-no da terra. Ele admirava a juventude por ela ser jovem e avelhice por não o ser. É exatamente esse equilíbrio de apa-rentes contradições que tem sido a causa de toda a vivaci-dade do homem sadio. Todo o segredo do misticismo é este:que o homem pode compreender tudo com a ajuda daqui-lo que não compreende. O lógico mórbido procura tornartudo lúcido e consegue tornar tudo misterioso. O místicopermite que uma coisa seja mística, e todo o resto se tornalúcido. O determinista torna a teoria da causação total-mente clara, e depois descobre que não pode dizer “por

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favor” à empregada. O cristão permite que o livre-arbítriocontinue sendo um mistério sagrado; mas, por causa disso,sua relação com a empregada assume uma claridade cinti-lante e cristalina. Ele coloca a semente do dogma numaescuridão central; mas o dogma se ramifica em todas asdireções com abundante saúde natural. Sendo que toma-mos o círculo como o símbolo da razão e da loucura, pode-mos muito bem tomar a cruz como o símbolo ao mesmotempo do mistério e da saúde.

O budismo é centrípeto, mas o cristianismo é centrífu-go: ele se propaga. Pois o círculo é perfeito e infinito em suanatureza; mas é fixo para sempre em seu tamanho; ele nun-ca pode ser maior ou menor. Mas a cruz, embora tendo noseu centro uma colisão e contradição, pode estender seusquatro braços eternamente sem alterar sua forma. Por terum paradoxo no seu centro ela pode crescer sem mudar. Ocírculo retorna sobre si mesmo e está encarcerado. A cruzabre seus braços aos quatro ventos; é o poste de sinaliza-ção dos viajantes livres.

Somente os símbolos têm valor, embora obnubilado,quando se fala dessa questão profunda. E outro símboloda natureza física expressa bastante bem o lugar real domisticismo perante a humanidade. A única coisa criada paraa qual não podemos olhar é a única coisa em cuja luz olha-mos para tudo. (Como o sol ao meio-dia, o misticismo ex-plica todas as outras coisas por meio da luz ofuscante desua vitoriosa invisibilidade.) O intelectualismo independen-te é (no sentido exato da frase popular) só brilho de lua;pois é luz sem calor, e é luz secundária, refletida por um

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mundo morto. Mas os gregos estavam certos quando fize-ram de Apolo o deus tanto da imaginação quanto da sani-dade; pois ele era ao mesmo tempo o patrono da poesia e opatrono da cura.

De dogmas necessários e de uma crença especial falareiadiante. Mas aquele transcendentalismo pelo qual todosos homens vivem ocupa primeiramente a posição semelhan-te à do sol no céu. Temos consciência dele como uma espé-cie de esplêndida confusão; é algo brilhante e informe, aomesmo tempo fulgor e borrão. Mas o círculo da lua é tãoclaro e inconfundível, tão recorrente e inevitável, como ocírculo de Euclides sobre um quadro-negro. Pois a lua é ab-solutamente razoável; e a lua é a mãe dos lunáticos: eladeu a todos eles o seu nome.

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III

O SUICÍDIO DO PENSAMENTO

AS EXPRESSÕES DA RUA não são apenas con-vincentes, são também sutis: pois uma figura de linguagempode muitas vezes penetrar numa fenda pequena demaispara uma definição. Expressões como “put out” (apagado)ou “off colour” (pálido, sem cor) poderiam ter sido cunha-das pelo sr. Henry James num supremo esforço de precisãoverbal. E não há verdade mais sutil do que a expressão dodia-a-dia referindo-se a alguém que tem “o coração no lu-gar certo”. Ela envolve a idéia de proporção normal; nãoapenas existe determinada função, mas ela também estácorretamente relacionada às outras funções.

De fato, a negação dessa frase descreveria com peculiarprecisão a compaixão um tanto mórbida e a ternura per-versa dos modernos mais representativos. Se, por exemplo,eu tivesse de descrever com justiça o caráter do sr. BernardShaw, não poderia expressar-me com mais exatidão do quedizendo que ele tem um coração heroicamente grande egeneroso; mas não um coração no lugar certo. E isso valepara a sociedade típica de nosso tempo.

O mundo moderno não é mau. Sob alguns aspectos, omundo moderno é bom demais. Está cheio de virtudes

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insensatas e desperdiçadas. Quando um sistema religioso éestilhaçado (como foi estilhaçado o cristianismo na Refor-ma), não são apenas os vícios que são liberados. Os víciossão, de fato, liberados, e eles circulam e causam dano. Masas virtudes também são liberadas; e as virtudes circulammuito mais loucamente, e elas causam um dano mais terrí-vel. O mundo moderno está cheio de velhas virtudes cristãsenlouquecidas. As virtudes enlouqueceram porque foramisoladas uma da outra e estão circulando sozinhas.

Assim alguns cientistas se preocupam com a verdade, ea verdade deles é impiedosa. Assim alguns humanitários sepreocupam apenas com a piedade, e a piedade deles (la-mento dizê-lo) é muitas vezes falsa. Por exemplo, o sr. Blatch-ford ataca o cristianismo porque ele está louco e se fixanuma única virtude cristã: a meramente mística e quaseirracional virtude da caridade. Ele tem a estranha idéia deque tornará mais fácil o perdão dos pecados dizendo quenão há pecados a perdoar. O sr. Blatchford não é apenasum cristão primitivo, ele é o único cristão primitivo quedeveria ter sido devorado pelos leões. Pois no seu caso aacusação pagã é realmente verdadeira: a sua misericórdiasignificaria mera anarquia. Ele é realmente o inimigo daraça humana — por ser tão humano.

No outro extremo, podemos tomar o azedo realista, quedeliberadamente matou dentro de si todos os prazereshumanos obtidos com histórias felizes ou com a cura docoração. Torquemada torturava as pessoas fisicamente emprol da verdade moral. Zola torturava as pessoas moral-mente em prol da verdade física. Mas na época de Torque-

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mada pelo menos havia um sistema que podia, até certoponto, fazer que a justiça e a paz se beijassem. Agora elasnem sequer se cumprimentam. Mas um caso muito maiscontundente do que o dessa dupla da verdade e piedadepode ser identificado no caso excepcional do deslocamentoda humildade.

É apenas em um único aspecto da humildade que esta-mos interessados aqui. A humildade foi em grande parteentendida como uma restrição imposta à arrogância e àinfinidade do apetite do ser humano. Ele sempre estavasuperando a sua misericórdia com a invenção de novas ne-cessidades. O seu próprio poder de desfrute destruiu meta-de de suas alegrias. Buscando o prazer, o ser humano perdeuo prazer principal; pois o prazer principal é a surpresa. Porisso ficou evidente que se alguém quisesse ampliar seumundo, precisaria estar sempre diminuindo a si mesmo.

Mesmo visões altivas, cidades altaneiras e pináculosvacilantes são criações da humildade. Os gigantes que pi-sam florestas como se pisassem relva são criações da hu-mildade. Torres que desaparecem nas alturas acima daestrela mais solitária são criações da humildade. Pois ne-nhuma torre é altaneira se não olharmos para elas nas al-turas; e nenhum gigante é gigante se não for maior do quenós. Todavia, toda essa gigantesca imaginação, que talvezseja o mais poderoso prazer do ser humano, é no fundointeiramente humilde. É impossível, sem a humildade, des-frutar qualquer coisa que seja —– mesmo o orgulho.

Mas o mal de que sofremos hoje em dia é a humildade nolugar errado. A modéstia deslocou-se do órgão da ambição.

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A modéstia se fixou no órgão da convicção, onde ela nuncadeveria estar. O homem foi concebido para duvidar de simesmo, mas não duvidar da verdade, e isso foi exatamenteinvertido. Hoje em dia a parte humana que o homem afir-ma é exatamente a parte que não deveria afirmar. A partede que ele duvida é exatamente a parte de que não deveriaduvidar —– a razão divina. Huxley pregou um conteúdo dehumildade ensinado pela natureza. Mas o novo cético é tãohumilde que duvida até de sua capacidade de aprender.Assim, estaríamos errados se precipitadamente disséssemosque não há nenhuma humildade típica de nossa época.

A verdade é que há uma humildade real típica de nossaépoca; mas acontece que praticamente se trata de umahumildade mais venenosa do que as mais loucas prostra-ções do asceta. A antiga humildade era uma espora quenão deixava o homem parar; não um prego na bota que oimpedia de ir em frente. Pois a antiga humildade fazia ohomem duvidar de seus esforços, o que possivelmente o le-vava a trabalhar com mais afinco. Mas a nova humildadefaz o homem duvidar de seus objetivos, e isso o fará pararde trabalhar pura e simplesmente.

Em qualquer esquina podemos encontrar alguém queprofere a desvairada e blasfema afirmação de que ele podeestar errado. É claro que a sua visão deve ser a certa, ouentão não é a sua visão. Todos os dias encontra-se alguémdizendo que, obviamente, o seu ponto de vista pode nãoser o certo. Estamos em vias de produzir uma raça de ho-mens mentalmente modestos demais para acreditar natabuada. Corremos o risco de ver filósofos que duvidam da

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lei da gravidade como se ela fosse uma simples fantasiapessoal. Os zombadores de antigamente eram demasiadoorgulhosos para serem convencidos; mas os de hoje são de-masiado humildes para serem convencidos. Os pacíficosherdarão a terra; mas os ascetas modernos são pacíficos de-mais até mesmo para reivindicar a sua herança. É exata-mente esse desamparo intelectual que constitui o nossosegundo problema.

O capítulo anterior ocupou-se apenas de um fato obser-vado: o de que se o homem incorre em algum risco de mor-bidez, esse risco deriva mais de sua razão do que de suaimaginação. Não se pretendeu atacar a autoridade da ra-zão; em vez disso, o objetivo final é defendê-la. Pois ela pre-cisa de defesa. Todo o mundo moderno está em guerracontra a razão; e a torre já oscila.

Com freqüência se diz que os sábios não conseguem vernenhuma resposta para o enigma da religião. Mas o pro-blema dos nossos sábios não é que eles não consigam ver aresposta; é que eles não conseguem sequer ver o enigma.Como crianças, eles são tão obtusos que nada notam deparadoxal na jocosa afirmação de que uma porta não éuma porta. Os latitudinaristas modernos falam, por exem-plo, acerca da autoridade na religião não apenas como senão houvesse nenhuma razão nela, mas como se nuncahouvesse existido razão alguma para essa autoridade. Nãovendo a base filosófica da religião, eles não conseguem versua causa histórica.

A autoridade religiosa sem dúvida foi muitas vezesopressora e exorbitante, exatamente como todos os sistemas

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legais (e especialmente o nosso sistema atual) têm sido in-sensíveis e cruelmente apáticos. É racional atacar a polí-cia. Mais que isso, é maravilhoso. Mas os críticos modernosda autoridade religiosa são como homens que atacariam apolícia sem jamais ter ouvido falar de ladrões. Pois a mentehumana corre um grande perigo concreto: um perigo tãoprático como o latrocínio. Contra esse perigo a autoridadereligiosa foi erigida, certo ou errado, como uma barreira. Econtra ele algo certamente deve ser erguido como uma bar-reira, se quisermos evitar a destruição de nossa raça.

O perigo é que o intelecto humano é livre para destruir-se. Da mesma forma que uma geração poderia impedir aprópria existência da geração seguinte com todo o mundoentrando no convento ou pulando no mar, assim um gru-po de pensadores pode, até certo ponto, impedir a expan-são do pensamento ensinando à geração seguinte quenenhum pensamento humano tem validade alguma. É inú-til falar sempre da alternativa de razão e fé. A própria ra-zão é uma questão de fé. É um ato de fé afirmar que nossospensamentos têm alguma relação com a realidade por mí-nima que seja.

Se você for simplesmente um cético, mais cedo ou maistarde precisará perguntar-se o seguinte: “Por que ALGUMA

COISA deveria dar certo, mesmo que se trate de observaçãoou dedução? Por que a boa lógica não seria tão enganado-ra quanto a lógica ruim? Ambas são movimentos no cé-rebro de um macaco perplexo”. O jovem cético diz: “Eutenho direito de pensar por mim mesmo”. Mas o velho cé-tico, o cético total, diz: “Eu não tenho direito de pensar pormim mesmo. Não tenho absolutamente direito de pensar”.

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Há um pensamento que bloqueia o pensamento. Esse éo único pensamento que deveria ser bloqueado. É o malsupremo contra o qual toda autoridade religiosa se voltou.Ele só aparece no final de épocas decadentes como a nossa;e o sr. H. G. Wells já desfraldou a sua desastrosa bandeira.Ele escreveu uma delicada obra de ceticismo intitulada“Doubts of the Instrument” [Dúvidas do instrumento].Nela questiona o próprio cérebro, e se esforça para elimi-nar toda a realidade de todas as suas afirmações pessoais,passadas, presentes e por vir. Mas foi contra essa remotadestruição que todos os sistemas militares da religião fo-ram originariamente enfileirados e comandados.

Os credos e as cruzadas, as hierarquias e as horríveisperseguições não foram organizados, como dizem os igno-rantes, para suprimir a razão. Foram organizados para a di-fícil defesa da razão. O homem, por instinto cego, sabiaque, se uma única vez as coisas fossem loucamente questio-nadas, a razão poderia ser questionada primeiro. A autori-dade dos sacerdotes para absolver, a autoridade dos papaspara definir a autoridade, e até mesmo a autoridade dosinquisidores para aterrorizar: essas são todas sombrias de-fesas erigidas em volta de uma autoridade central, maisindemonstrável, mais sobrenatural de todas — a autorida-de do homem de pensar.

Sabemos agora que isso é assim mesmo; não temos des-culpa para não sabê-lo. Pois podemos ouvir o ceticismo in-vadir violentamente o antigo espaço das autoridades, e aomesmo tempo podemos ver a razão oscilando em seu tro-no. Na medida em que a religião já desapareceu, a razão

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vai desaparecendo. Pois ambas têm a mesma natureza pri-mária e autoritária. Ambas são métodos de comprovaçãoque não podem elas mesmas ser comprovadas. E no ato dedestruir a idéia da autoridade divina nós já destruímos emboa parte a idéia daquela autoridade humana pela qualefetuamos uma longa conta de dividir. Com um puxão de-morado e constante, tentamos tirar a mitra da cabeça dopontífice; e a cabeça dele veio junto com a mitra.

Para que isto não receba o rótulo de afirmação descone-xa, talvez seja desejável, embora tedioso, repassar rapida-mente as principais correntes modernas de pensamento queexercem esse efeito de bloquear o pensar em si. O materia-lismo e a visão de que tudo é uma ilusão pessoal produzemum pouco esse efeito; pois se a mente é mecânica, o pensa-mento não pode ser muito estimulante, e se o cosmos éirreal, não há nada sobre o que pensar. Mas nesses casos oefeito é indireto e duvidoso. Em alguns casos ele é direto eclaro; notadamente no caso do que geralmente se denomi-na evolução.

A evolução é um bom exemplo daquela inteligênciamoderna que destrói a si mesma, se é que destrói algumacoisa. A evolução ou é uma descrição científica inocente decomo certas coisas terrenas aconteceram; ou então, se foralgo mais que isso, é um ataque contra o próprio pensa-mento. Se há uma coisa que a evolução destrói, essa coisanão é a religião, mas sim o racionalismo. Se evolução sim-plesmente significa que algo positivo chamado macacotransformou-se lentamente em algo positivo chamado ho-mem, então ela é inofensiva para o mais ortodoxo; pois um

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Deus pessoal poderia muito bem criar coisas de modolento ou rápido, especialmente se, como no caso do Deuscristão, ele estivesse situado fora do tempo.

Mas se evolução significa algo mais que isso, então querdizer que não existe algo como o macaco para mudar, enão existe algo como o homem no qual ele possa se trans-formar. Significa que não existe algo como uma coisa. Namelhor das hipóteses, só existe uma coisa, que é um fluxode tudo e qualquer coisa. Isso constitui um ataque nãocontra a fé, mas contra a mente humana; você não podepensar se não existem coisas sobre as quais pensar. Vocênão pode pensar se não está separado do assunto do pen-samento. Descartes disse: “Penso; logo, existo”. O filósofoevolucionista inverte e negativiza o epigrama e diz: “Nãoexisto; portanto, não posso pensar”.

Há depois o ataque oposto contra o pensamento: aque-le frisado pelo sr. H. G. Wells quando ele insiste que todasas coisas separadas são “únicas”, e não há em absoluto ca-tegorias. Isso também é meramente destrutivo. Pensar sig-nifica conectar coisas, e o pensar é bloqueado se elas nãopuderem ser conectadas. Nem é preciso dizer que esse ceti-cismo que impede o pensamento necessariamente impedea fala; ninguém pode abrir a boca sem contradizê-lo. As-sim, quando o sr. Wells diz (como o fez nalgum lugar) que“Todas as cadeiras são completamente diferentes”, ele nãoprofere apenas uma afirmação falsa, mas uma contradiçãoem termos. Se todas as cadeiras fossem completamente dife-rentes, você não poderia chamá-las de “todas as cadeiras”.

Semelhante a essas correntes de pensamento é a falsateoria do progresso, que sustenta que alteramos o teste em

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vez de tentar passar nele. Muitas vezes, por exemplo, ou-vimos dizer: “O que é certo numa época é errado noutra”.Isso é bastante razoável, se significa que há um objetivofixo, e certos métodos são bons em certas épocas e não emoutras. Se, digamos, as mulheres desejam ser elegantes, podeser que elas numa certa época melhorem tornando-se maisgordas e numa outra tornando-se mais magras. Mas nãose pode dizer que elas melhorem deixando de desejar serelegantes e começando a desejar ser oblongas. Se o pa-drão muda, como pode haver melhora, o que pressupõeum padrão?

Nietzsche começou essa idéia absurda de que os homensbuscaram como bem o que agora chamamos de mal. Sefosse assim, não poderíamos falar em ir além ou até mesmoem ficar aquém do bem e do mal. Como você pode ultra-passar o Silva se você estiver caminhando na direção con-trária? Você não pode discutir se um povo obteve mais êxitoem sentir-se infeliz do que outro em sentir-se feliz. Seriacomo discutir se Milton era mais puritano do que um por-co é gordo.

É verdade que alguém (alguém tonto) poderia fazer damudança em si seu objetivo ou ideal. Mas, como um ideal,a mudança em si se torna imutável. Se o adorador da mu-dança deseja estimar o seu próprio progresso, ele precisaser rigorosamente leal ao ideal da mudança; não pode co-meçar a cortejar levianamente o ideal da monotonia. Oprogresso em si não pode progredir. Vale a pena observar,de passagem, que quando Tennyson, de um modo aloucadoe bastante fraco, acolheu a idéia da infinita alteração na

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sociedade, instintivamente usou uma metáfora que sugereum tédio cativo. Ele escreveu:

Que o grande mundo gire eternamente pelos retumbantessulcos da mudança.1

Ele pensou na mudança em si como um sulco imutável; eassim é. A mudança é possivelmente o mais estreito e maisdifícil sulco em que o homem pode se meter.

O ponto principal aqui, todavia, é que a idéia de umaalteração fundamental no padrão é uma das coisas quetornam impossível o pensamento sobre o passado ou futu-ro. A teoria de uma completa mudança de padrões na his-tória humana não apenas nos priva do prazer de honrarnossos pais; priva-nos até mesmo do prazer mais modernoe aristocrático de desprezá-los.

Este resumo irrisório das forças de nossa época que des-troem o pensamento não seria completo sem alguma refe-rência ao pragmatismo; pois embora eu tenha aqui usadoo método pragmático como um guia preliminar à verdadee devesse sempre defendê-lo, há uma aplicação extremadesse método que envolve a ausência de toda e qualquerverdade. O que eu quero dizer pode ser brevemente colo-cado da seguinte maneira: eu concordo com os pragmatistasque a verdade objetiva aparente não é tudo; que há umanecessidade dominante de acreditar naquilo que é neces-sário para a mente humana. Mas eu digo que uma dessasnecessidades é precisamente a crença na verdade objetiva.

1Let the great world spin for ever down the ringing grooves ofchange.

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O pragmatista diz ao homem para pensar o que ele devepensar e nunca dar atenção ao Absoluto. Mas o Absolutoé precisamente uma das coisas em que ele deve pensar. Essafilosofia, de fato, é uma espécie de paradoxo verbal. Opragmatismo é uma questão de necessidades humanas; euma dessas primeiras necessidades é ser algo mais que umpragmatista. O pragmatismo extremo é simplesmente tãodesumano quanto o determinismo que ele ataca com tan-ta veemência. O determinista (que, para lhe fazermos jus-tiça, não pretende ser humano) transforma em absurdo osentido humano da escolha real. O pragmatista, que pro-fessa ser especialmente humano, transforma em absurdo osentido humano do fato real.

Para resumir a nossa contenda até aqui, podemos dizerque as filosofias correntes mais características apresentamnão apenas um toque de mania, mas um toque de maniasuicida. O mero indagador bateu a cabeça contra os limi-tes do pensamento humano; e a rachou. É isso que tornatão fúteis as advertências do ortodoxo e os alardes dos avan-çados a respeito da juventude do livre-pensamento. O queestamos contemplando não é a juventude do livre-pensa-mento; é a velhice e a dissolução final desse pensamento. Éinútil que bispos e celebridades religiosas discutam o quede horrível acontecerá se o ceticismo desregrado seguir seucurso natural. Ele já o fez.

É inútil que eloqüentes ateus falem das grandes verda-des que serão reveladas se algum dia testemunharmos oinício do livre-pensamento. Já testemunhamos o seu fim.Ele já não tem perguntas a fazer; já se questionou. Você

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não pode evocar nenhuma visão mais insensata do que umacidade na qual os homens se perguntam se têm algumaidentidade. Você não pode imaginar um mundo mais céti-co do que aquele em que se duvida se existe um mundo.Ele poderia com certeza ter chegado à falência de modomais rápido e completo se não houvesse sido debilmenteatrapalhado pela aplicação de leis insustentáveis de blas-fêmia ou pela absurda falsa aparência de que a modernaInglaterra é cristã. Mas teria chegado à falência de qual-quer jeito.

Os ateus militantes são ainda injustamente perseguidos;mais, porém, por serem uma velha minoria do que por se-rem uma minoria nova. O livre-pensamento exauriu a pró-pria liberdade. Está cansado de seu próprio sucesso. Sealgum ávido livre-pensador atualmente saúda a liberdadefilosófica como a aurora, ele é apenas como aquele sujeitode Mark Twain que saiu envolto em cobertores para ver onascer do Sol e chegou apenas a tempo de vê-lo descer. Sealgum assustado vigário coadjutor ainda diz que será ter-rível se as trevas do livre-pensamento se espalharem, sópodemos responder-lhe com as solenes e poderosas pala-vras do sr. Belloc: “Não se atormente, eu lhe imploro, como aumento de forças que já estão em dissolução. Você con-fundiu a hora da noite; já é de manhã”.

Não nos sobram perguntas a fazer. Procuramos pergun-tas nos cantos mais escuros e nos picos mais agrestes. En-contramos todas as perguntas que se podem encontrar. Estána hora de abandonar a busca de perguntas e empreendera busca de respostas.

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Mas é preciso acrescentar uma palavra. No início desteesboço negativo preliminar eu disse que nossa ruína men-tal tem sido causada pela razão tresloucada, não pelas lou-curas da imaginação. Nenhum homem enlouquece por criaruma estátua de um quilômetro de altura, mas alguém podeenlouquecer ao calcular os centímetros quadrados dessaestátua. Ora, há uma escola de pensadores que percebeuesse fato e agarrou-o vendo nele um jeito de renovar a saú-de pagã do mundo. Eles percebem que a razão destrói; masa vontade, dizem eles, é criadora. A autoridade suprema,dizem eles, está na vontade, não na razão.

O ponto supremo não é saber por que alguém buscadeterminada coisa, mas o fato de buscá-la. Não disponhoaqui de espaço para traçar ou explicar essa filosofia da Von-tade. Surgiu, suponho, por intermédio de Nietzsche, quepregou algo chamado de egoísmo. Isso, de fato, era bastan-te simplório; pois Nietzsche negava o egoísmo pregando-o.Pregar alguma coisa é entregá-la. Primeiro, o egoísta cha-ma a vida de guerra sem compaixão, depois despende o má-ximo esforço possível para treinar seus inimigos na guerra.Pregar o egoísmo é praticar o altruísmo. Mas como querque tenha começado, a visão é bastante comum na litera-tura atual.

A principal defesa desses pensadores é que eles não sãopensadores; são criadores. Dizem que a escolha em si é queé divina. Assim, o sr. Bernard Shaw atacou a antiga idéiade que os atos dos homens devem ser julgados pelos pa-drões do desejo da felicidade. Ele diz que o homem não agepara a sua felicidade, mas motivado pela vontade. Ele não

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diz: “A geléia me fará feliz”, mas sim: “Eu quero geléia”. Emtudo isso outros o seguem com entusiasmo ainda maior.

O sr. John Davidson, poeta notável, está tão apaixona-damente entusiasmado com isso que se vê obrigado a es-crever prosa. Ele publica uma peça curta com váriosprefácios longos. O que é muito natural no sr. Shaw, umavez que todas as suas peças são prefácios: suspeito de queo sr. Shaw seja o único homem sobre a terra que nuncaescreveu poesia. Mas o fato de que o sr. Davidson (quesabe lavrar excelentes versos) prefira escrever penosametafísica em defesa dessa doutrina da vontade de fatoprova que essa doutrina se apoderou dos homens.

Até o sr. H. G. Wells de certo modo fala na sua lingua-gem; diz ele que a gente não deveria julgar os atos comoum pensador, mas como um artista, afirmando: “Eu SINTO

que esta curva está certa”, ou “esta linha DEVE ser assim”.Todos eles estão entusiasmados; e têm bons motivos paraisso. Pois com essa doutrina da divina autoridade da von-tade, eles acham que podem libertar-se da fatídica fortale-za do racionalismo. Eles acham que podem escapar.

Mas não podem. Esse elogio puro e simples da voliçãotermina no mesmo esfacelamento e vazio obtido pela bus-ca pura e simples da lógica. Exatamente como o pensamen-to completamente livre envolve a dúvida acerca do própriopensamento, assim a aceitação do mero “querer” de fatoparalisa a vontade. O sr. Bernard Shaw não percebeu averdadeira diferença entre o velho teste do prazer do utili-tarismo (tosco, é claro, e facilmente mal formulado) e aqui-lo que ele apresenta.

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A real diferença entre o teste da felicidade e o teste davontade é apenas esta: o teste da felicidade é um teste e ooutro não é. Pode-se discutir se o ato de um homem que seprecipitou de um rochedo visava à busca da felicidade; nãose pode discutir se ele derivou da vontade. É claro que de-rivou. Você só pode elogiar uma ação dizendo que ela foiconcebida para causar prazer ou dor, para descobrir a ver-dade ou para a salvação da alma. Mas você não pode elo-giar uma ação porque ela mostra vontade; pois dizer isso ésimplesmente dizer que é uma ação.

Com esse elogio da vontade não se pode realmente esco-lher um determinado caminho como sendo melhor queoutro. No entanto, escolher um caminho como sendo me-lhor que outro é a própria definição da vontade que vocêestá elogiando.

A adoração da vontade é a negação dessa mesma von-tade. Admirar a simples escolha é recusar-se a escolher. Seo sr. Bernard Shaw aparecer e me disser: “Queira algumacoisa”, isso equivale a dizer: “Não me importa o que vocêquer”, o que equivale a dizer: “Nessa questão a minha von-tade não entra”. Não se pode admirar a vontade em geral,porque a essência da vontade é que ela é particular.

Um brilhante anarquista como o sr. John Davidson sentecerta irritação contra a moralidade ordinária, e por isso eleinvoca a vontade — vontade de qualquer coisa. Ele ape-nas quer que a humanidade queira alguma coisa. Mas háalguma coisa que a humanidade de fato quer: ela quer amoralidade comum. Ele se rebela contra a lei e nos pedepara querer alguma coisa, ou qualquer coisa. Mas nós já

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quisemos alguma coisa. Já expressamos nossa vontade pelalei contra a qual ele se rebela.

Todos os adoradores da vontade, de Nietzsche ao sr. Da-vidson, estão na realidade completamente vazios de voli-ção. Eles não podem querer; eles mal podem aspirar. E sealguém precisa de uma prova disso, ela pode ser achadamuito facilmente no seguinte fato: eles sempre falam davontade como algo que se expande e se liberta. Mas é exa-tamente o contrário. Cada ato de vontade é um ato deautolimitação. Desejar uma ação é desejar uma limitação.Nesse sentido todas as ações são ações de sacrifício de simesmo. Quando você escolhe uma coisa qualquer, você re-jeita tudo o mais.

Aquela objeção que os homens dessa escola costuma-vam levantar contra o ato do casamento é realmente umaobjeção contra todos os atos. Todos os atos são uma irre-vogável exclusão por seleção. Exatamente como quandovocê se casa com uma mulher desiste de todas as outras,assim também quando você toma um caminho de açãodesiste de todos os outros caminhos. Se você se torna reida Inglaterra, desiste do posto de bedel em Brompton. Sevocê vai a Roma, sacrifica uma vida rica e sugestiva emWimbledon.

É a existência desse lado negativo ou limitador da von-tade que faz a maior parte da conversa dos anárquicosadoradores da vontade não passar muito de uma boba-gem. Por exemplo, o sr. John Davidson nos pede para igno-rar completamente o “Não” dos mandamentos bíblicos.Mas é óbvio, com certeza, que o “Não” é apenas um dos

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corolários inescapáveis de “Eu quero”. “Eu quero ver odesfile do prefeito de Londres,2 e você não me impedirá.”

O anarquismo nos estimula a ser artistas criativos arro-jados e a não dar atenção alguma a leis e limites. Mas éimpossível ser artista e não dar atenção a leis e limites. Aarte é limitação; a essência de todos os quadros é a moldu-ra. Se você desenha uma girafa, deve desenhá-la de pesco-ço comprido. Se, dentro do seu método criativo arrojado,você se julgar livre para desenhar uma girafa de pescoçocurto, de fato descobrirá que não está livre para desenharuma girafa. No momento em que se entra no mundo dosfatos, entra-se no mundo dos limites. Pode-se libertar ascoisas de leis externas ou acidentais, mas não das leis dasua própria natureza. Você pode, se quiser, libertar um ti-gre da jaula; mas não pode libertá-lo de suas listras. Nãoliberte o camelo do fardo de sua corcova: você o estarialibertando de ser um camelo. Não saia por aí feito um de-magogo, estimulando triângulos a libertar-se da prisão deseus três lados. Se um triângulo se libertar de seus três la-dos, sua vida chega a um desfecho lamentável.

Alguém escreveu uma obra intitulada “The Loves of theTriangles” (“Os amores dos triângulos”). Nunca a li, mastenho certeza de que se triângulos alguma vez foram ama-dos, eles o foram por serem triangulares. Esse é certamenteo caso de toda criação artística, que, sob algum aspecto, éo exemplo mais decisivo da vontade pura. O artista ama

2The Lord Mayor’s Show, uma festa pública em que o prefeito deLondres desfila pelas ruas da cidade numa carruagem dourada.

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suas limitações: elas constituem a COISA que ele está fazen-do. O pintor se sente satisfeito por ser plana a sua tela. Oescultor se sente satisfeito por ser incolor a argila.

Caso a explicação não tenha ficado clara, um exemplohistórico pode servir de ilustração. A Revolução Francesafoi realmente um fato heróico e decisivo, porque os jacobinosquiseram algo definido e limitado. Desejaram as liberda-des da democracia, mas também todos os vetos democrá-ticos. Desejaram ter votos e NÃO títulos.

O republicanismo teve um lado ascético em Franklin ouRobespierre bem como um lado expansivo em Danton eWilkes. Por isso eles criaram algo com substância e formasólidas, a igualdade social completa e a riqueza campesinada França. Mas desde aquele tempo a mente revolucioná-ria ou especulativa da Europa se enfraqueceu pelo seudistanciamento de qualquer proposta por causa dos limi-tes inerentes ao que se propunha. O liberalismo degradou-se em liberalidade. Os homens tentaram transformar overbo “revolucionar” de transitivo em intransitivo. Os ja-cobinos não apenas sabiam dizer contra que sistema se re-belariam, mas também (o que é mais importante) contra quesistema NÃO se rebelariam, o sistema em que confiariam.

Mas o novo rebelde é um cético, e não confia inteira-mente em nada. Não tem nenhuma lealdade; portanto, elenunca poderá ser de verdade um revolucionário. E o fatode que ele duvida de tudo realmente o atrapalha quandoquer fazer alguma denúncia. Pois toda denúncia implicaalguma espécie de doutrina moral; e o revolucionário mo-derno duvida não apenas da instituição que denuncia, mas

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também da doutrina pela qual faz a denúncia. Assim, eleescreve um livro queixando-se de que a opressão imperia-lista insulta a pureza das mulheres; e depois escreve outro(sobre o problema do sexo) no qual ele mesmo a insulta.Ele amaldiçoa o sultão pela perda da virgindade de garo-tas cristãs; e depois amaldiçoa a sra. Grundy pela preser-vação dela. Como político, ele grita que toda guerra é umdesperdício de vida; e depois, como filósofo, grita que todavida é um desperdício de tempo.

Um pessimista russo denunciará um político por matarum camponês; e depois, pelos mais elevados princípios filo-sóficos, provará que o camponês deveria ter-se suicidado.Alguém denuncia o casamento como uma mentira; e de-pois denuncia os libertinos aristocráticos por tratarem essamesma instituição como uma mentira. Alguém chama abandeira de bugiganga; e depois acusa os opressores daPolônia ou da Irlanda de terem suprimido aquela bugigan-ga. O adepto dessa escola primeiro participa de uma reu-nião política, na qual se queixa de que os selvagens sãotratados como se fossem animais; depois apanha o chapéue o guarda-chuva e vai para uma reunião científica, na qualprova que eles são praticamente animais.

Em resumo, o revolucionário moderno, sendo um céticosem limites, está sempre ocupado em minar suas própriasminas. No seu livro sobre política ele ataca os homens porespezinharem a moralidade; no seu livro sobre ética eleataca a moralidade por espezinhar os homens. Portanto, ohomem moderno em estado de revolta tornou-se pratica-mente inútil para qualquer propósito da revolta. Rebelan-

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do-se contra tudo, ele perdeu o direito de rebelar-se contraqualquer coisa específica.

Pode-se acrescentar que é possível observar o mesmovazio e falência em todos os tipos ferozes e terríveis de lite-ratura, especialmente na sátira. A sátira pode ser maluca eanárquica, mas ela pressupõe a aceitação da autoridadede certas coisas sobre outras; pressupõe um padrão. Quan-do criancinhas da rua riem-se da obesidade de algum dis-tinto jornalista, elas estão inconscientemente adotando umpadrão de escultura grega. Estão apelando para o Apolode mármore. E o curioso desaparecimento da sátira de nossaliteratura é um exemplo das coisas cruéis que estão desa-parecendo pela falta de qualquer princípio contra o qualse possa ser cruel.

Nietzsche tinha algum talento natural para o sarcas-mo: ele sabia escarnecer, embora não soubesse rir; mas hásempre algo incorpóreo e sem peso na sua sátira, simples-mente porque ela não tem nenhum peso de moralidadecomum em que se apoiar. O próprio Nietzsche é mais ab-surdo que qualquer coisa por ele denunciada. Mas, de fato,ele se sustenta muito bem como exemplo típico de todoesse fracasso da violência abstrata. O amolecimento docérebro que no fim o atingiu não foi um acidente físico. SeNietzsche não houvesse acabado na imbecilidade, onietzscheanismo o teria feito. Pensar no isolamento e comorgulho acaba na idiotice. Todos os homens que não pas-sam por um amolecimento do coração devem no mínimopassar pelo amolecimento do cérebro.

Essa última tentativa de evitar o intelectualismo acabaem intelectualismo e, portanto, em morte. A surtida falhou.

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A insensata adoração do desregramento e adoração mate-rialista da lei acaba no mesmo vazio. Nietzsche escala mon-tanhas assustadoras, mas no fim acaba chegando ao Tibete.Senta-se ao lado de Tolstoi na terra do nada e do Nirvana.Eles estão desolados — um porque não pode agarrar nada,o outro porque nada pode largar. A vontade tolstoiana écongelada pelo instinto budista de que todas as ações es-peciais são más. Mas a vontade do seguidor de Nietzsche éigualmente congelada por sua visão de que todas as açõesespeciais são boas; pois, se todas as ações especiais são boas,nenhuma delas é especial. Ambos se encontram numa en-cruzilhada: um deles odeia todas as estradas e o outro gos-ta de todas elas. O resultado é... bem, há coisas que não sãodifíceis de imaginar. Eles ficam parados na encruzilhada.

Aqui termino (graças a Deus) a primeira e mais monó-tona tarefa deste livro — a tosca resenha do pensamentorecente. Depois disso, começo a esboçar uma visão da vidaque talvez não interesse ao meu leitor, mas que, de qual-quer modo, muito me interessa. Diante de mim, quandofecho esta página, está um monte de livros modernos queestive manuseando para o meu objetivo — um monte deingenuidade, um monte de futilidades.

Dada a circunstância do meu distanciamento nestemomento, posso ver a inevitável colisão das filosofias deSchopenhauer e Tolstoi, Nietzsche e Shaw, com a mesmaclareza com que se observa uma inevitável colisão de umajangada a partir de um balão. Eles estão todos no caminhoque leva ao vazio do manicômio. Pois a loucura pode serdefinida como o uso da atividade mental de modo a atingir

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o desamparo mental; eles já quase chegaram lá. Aquele quepensa que é feito de vidro, pensa visando à destruição dopensamento; pois vidro não pode pensar. Assim tambémaquele que não quer rejeitar nada, quer a destruição davontade; pois a vontade não é apenas a escolha de algumacoisa, mas também a rejeição de quase tudo.

Quando manuseio e derrubo esses astutos, maravilho-sos, cansativos e inúteis livros modernos, a lombada de umdeles prende meu olhar. Intitula-se “Jeanne d’Arc” e seuautor é Anatole France. Apenas examinei essa obra de re-lance, mas mesmo o relance foi suficiente para me trazer àlembrança a “Vie de Jesus” [Vida de Jesus] de Renan. Temo mesmo estranho método do cético reverente. Lança des-crédito sobre histórias sobrenaturais que têm algum funda-mento, simplesmente contando histórias naturais que nãotêm fundamento algum. Pelo fato de não conseguirmos acre-ditar no que um santo fez, devemos fingir que sabemosexatamente o que ele sentiu.

Mas não estou mencionando nenhum desses dois livrospara criticá-los; só o faço porque a combinação acidentaldos nomes evocou duas surpreendentes imagens de Sani-dade que implodiram todos os livros diante de mim. Joanad’Arc não ficou parada na encruzilhada, nem rejeitandotodos os caminhos como Tolstoi, nem aceitando-os a todoscomo Nietzsche. Ela escolheu um caminho e o percorreufeito um raio. No entanto, pensando bem no caso dela,Joana tinha tudo o que era verdadeiro em Tolstoi ou emNietzsche, tudo o que era até suportável nos dois.

Pensei em tudo o que é nobre em Tolstoi, o prazer nascoisas simples, especialmente na simples compaixão, as

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realidades da terra, a reverência pelos pobres, a dignidadedas costas curvadas. Joana d’Arc tinha tudo aquilo e comgrande vantagem: ela suportou a pobreza além de admirá-la; ao passo que Tolstoi é apenas um típico aristocrata ten-tando descobrir o segredo da pobreza. Depois pensei emtudo aquilo que foi corajoso, orgulhoso e patético no pobreNietzsche, e na sua revolta contra o vazio e a timidez denosso tempo. Pensei no seu grito pelo equilíbrio estático doperigo, seu apetite pela disparada de grandes cavalos, seugrito conclamando às armas.

Bem, Joana d’Arc tinha tudo aquilo, e mais uma vezcom uma diferença: ela não elogiou a luta, mas lutou. SABE-MOS que ela não temia um exército, enquanto Nietzsche,por tudo o que sabemos, tinha medo de uma vaca. Tolstoielogiou os camponeses; ela foi a camponesa. Nietzsche ape-nas elogiou o guerreiro; ela foi a guerreira. Ela superou osdois nos seus ideais antagônicos: foi mais gentil que o pri-meiro; mais violenta que o segundo. No entanto, ela foi umapessoa extremamente prática que realizou alguma coisa,enquanto eles são tresloucados especuladores que nadafazem. Seria impossível que não me passasse pela cabeça opensamento de que ela e sua fé talvez tivessem algum se-gredo de unidade e utilidade moral que se perdeu. E comesse pensamento ocorreu-me um maior, e a figura colossaldo seu Mestre também atravessou o palco de meus pensa-mentos.

A mesma dificuldade moderna que obscureceu o temade Anatole France também obscureceu o de Renan. Estetambém separou a compaixão de seu herói da pugnacidade

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dele. Renan até representou a justa ira contra Jerusalémcomo um simples colapso nervoso depois das idílicas ex-pectativas do Galileu. Como se houvesse alguma incoerên-cia entre sentir amor pela humanidade e sentir ódio peladesumanidade! Altruístas, de vozes finas e fracas, denun-ciam a Cristo como egoísta. Egoístas (de vozes ainda maisfinas e mais fracas) denunciam-no como altruísta. Em nos-sa atmosfera atual essas cavilações são bastante compreen-síveis.

O amor de um herói é mais terrível do que o amor deum tirano. O ódio de um herói é mais generoso do que oódio de um filantropo. Há uma imensa e heróica sanidadeda qual os modernos só podem coletar fragmentos. Há umgigante do qual nós só conseguimos ver os braços caídos eas pernas que caminham por aí. Eles rasgaram a alma deCristo em tiras tolas, rotuladas de egoísmo e altruísmo; eeles estão igualmente intrigados com sua insana magnifi-cência e sua insana mansidão. Eles repartiram entre si osseus vestidos, e sobre sua túnica lançaram sortes; emboraa túnica fosse inconsútil de alto a baixo.

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IV

A ÉTICA DA ELFOLÂNDIA

QUANDO O HOMEM de negócios censura oidealismo de seu office-boy, geralmente o faz numa fala maisou menos assim: “Sim, claro, quando a gente é jovem temesses ideais abstratos, e constrói castelos no ar. Mas na meia-idade todos eles se desfazem como nuvens, e a gente passaa acreditar na política prática, a usar as máquinas que teme a conviver com o mundo como ele é”. Assim, pelo menoscostumavam me falar na juventude senhores veneráveis efilantrópicos que agora ocupam honradas tumbas.

Mas desde aquela época eu cresci e descobri que aquelesvelhos filantrópicos estavam dizendo mentiras. O que defato aconteceu é exatamente o contrário do que eles previ-ram. Diziam que eu perderia meus ideais e começaria a acredi-tar nos métodos da prática política. Ora, eu não perdi meusideais nem um pouco; minha fé nas verdades fundamentais éexatamente a que sempre foi. O que perdi é minha antiga féinfantil na política prática. Ainda estou muito preocupado,como sempre, com a Batalha do Armagedom; mas não mepreocupam muito as eleições gerais. Quando bebê eu pula-va no colo de minha mãe ante a simples menção dela.

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Não, a visão é sempre sólida e confiável. A realidade é quemuitas vezes é uma fraude. Como sempre fiz, mais do quenunca o fiz, eu acredito no liberalismo. Mas houve um róseotempo de inocência em que eu acreditava nos liberais.

Tomo esse exemplo de uma fé duradoura porque, tendoagora que identificar as raízes da minha especulação prá-tica, esse fato pode ser classificado, julgo eu, como o únicoviés positivo. Fui criado como liberal e sempre acreditei nademocracia, na doutrina liberal elementar de uma huma-nidade que governa a si mesma. Se alguém considerar afrase vaga e surrada, só posso parar por um momento a fimde explicar que o princípio da democracia, no meu modode entendê-la, pode ser declarado em duas proposições.

A primeira é esta: as coisas comuns a todos os homenssão mais importantes que as coisas peculiares a qualquerhomem. As coisas ordinárias são mais valiosas que as ex-traordinárias; ou melhor, são mais extraordinárias. O ho-mem é algo mais terrível que os homens; algo mais estranho.O senso do milagre da humanidade em si deveria ser paranós sempre mais intenso do que quaisquer maravilhas depoder, intelecto, arte ou civilização. O simples homem so-bre duas pernas, como tal, deveria ser sentido como algomais emocionante do que qualquer música e mais alarman-te do que qualquer caricatura. A morte é trágica, até maistrágica do que a morte por inanição. Ter um nariz é cômi-co, até mais cômico do que ter um nariz normando.

Este é o primeiro princípio da democracia: as coisas es-senciais nos homens são as coisas que eles têm em comum,não as que eles têm em separado. O segundo princípio é

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A ÉTICA DA ELFOLÂNDIA 79

simplesmente este: o instinto ou desejo político é uma des-sas coisas que eles têm em comum. Apaixonar-se por al-guém é mais poético do que se apaixonar pela poesia. Acrença democrática é de que o governo (ajudando a gover-nar a tribo) é algo como apaixonar-se por alguém, e nãoalgo como apaixonar-se pela poesia. Não se trata de algosemelhante a tocar órgão na igreja, pintar sobre velino,descobrir o Pólo Norte (esse hábito insidioso), fazer acro-bacias no ar, ser Astrônomo Real e assim por diante. Poisessas coisas desejamos que o cidadão nem sequer as prati-que se não as fizer bem feitas. Trata-se, pelo contrário, dealgo semelhante a escrever as próprias cartas de amor ouassoar o próprio nariz. Essas coisas queremos que alguémas pratique para si mesmo, ainda que as faça mal feitas.

Não estou discutindo a verdade de nenhum desses con-ceitos. Sei que alguns modernos estão pedindo que suasesposas sejam escolhidas por cientistas, e é possível que logopeçam, por tudo o que sei, que seus narizes sejam assoadospor babás. Simplesmente digo que a humanidade reconheceessas funções humanas universais; que a democracia incluio governo entre elas. Em resumo, a fé democrática é esta:as coisas mais tremendamente importantes devem ser dei-xadas para os próprios homens ordinários — a união dossexos, a criação dos filhos, as leis do estado. Isso é democra-cia; e nisso eu sempre acreditei.

Mas há uma coisa que nunca consegui entender desdea minha juventude. Nunca consegui entender onde as pes-soas foram buscar a idéia de que a democracia de algummodo se opunha à tradição. É óbvio que tradição é apenas

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democracia estendida ao longo do tempo. É confiar numconsenso de vozes humanas comuns em vez de confiarnalgum registro isolado ou arbitrário. Quem, por exemplo,cita algum historiador alemão contra a tradição da IgrejaCatólica está rigorosamente apelando para a aristocracia;está apelando para a superioridade de um perito contra atremenda autoridade de uma multidão.

É muito fácil ver por que uma lenda é tratada, e assimdeve ser, mais respeitosamente do que um livro de história.A lenda geralmente é criada pela maioria do povo da al-deia, gente equilibrada. O livro geralmente é escrito peloúnico homem da aldeia que é louco. Aqueles que comba-tem a tradição dizendo que os homens do passado eramignorantes podem fazê-lo no Carlton Club, declarando tam-bém que os eleitores das favelas são ignorantes. Para nósisso não funciona. Se damos muita importância à opiniãode homens comuns que mostram grande unanimidadequando lidamos com questões do dia-a-dia, não há razãopara não a respeitarmos quando lidamos com a história oucom fábulas.

A tradição pode ser definida como uma extensão dosdireitos civis. Tradição significa dar votos à mais obscurade todas as classes, os nossos antepassados. É a democra-cia dos mortos. A tradição se recusa a submeter-se à peque-na e arrogante oligarquia dos que simplesmente por acasoestão andando por aí. Todos os democratas objetam a des-qualificação pelo acidente do nascimento; a tradição obje-ta a desqualificação pelo acidente da morte. A democracianos pede para não ignorar a opinião de um homem bom,

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mesmo que ele seja nosso criado; a tradição nos pede paranão ignorar a opinião de um homem bom, mesmo que eleseja nosso pai.

Eu, de qualquer modo, não consigo separar as duas idéiasda democracia e da tradição; parece-me evidente que sãoa mesma idéia. Teremos os mortos nos nossos conselhos.Os antigos gregos votavam com pedras; nossos conselhosvotarão com pedras tumulares. É tudo muito regular e ofi-cial, pois a maioria das pedras tumulares, como a maioriadas cédulas de votação, é marcada com uma cruz.

Assim, devo primeiramente dizer que, se eu tive um viés,sempre foi em favor da democracia e, portanto, da tradição.Antes de tratar de qualquer fundamento lógico ou teórico,fico satisfeito em aceitar essa equação pessoal; sempre fuimais inclinado a crer na multidão do povo trabalhador doque a crer naquela classe especial e complicada de literatosà qual pertenço. Para mim, as fantasias e preconceitos dequem vê a vida de dentro são até preferíveis às mais clarasdemonstrações de quem vê a vida de fora. Eu sempre con-fiaria nas fábulas das velhas comadres em detrimento dosfatos das velhas solteironas. Desde que a inteligência seja in-teligência materna, ela pode cometer as loucuras que quiser.

Agora, preciso alinhavar uma posição geral e não alegoter treinamento algum nessas coisas. Portanto, proponho-me fazê-lo escrevendo uma depois da outra as três ou qua-tro idéias que descobri sozinho, seguindo de perto o modocomo as descobri. Depois vou sintetizá-las grosso modo, re-sumindo minha filosofia pessoal ou religião natural. Em se-guida vou descrever minha alarmante descoberta de que

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tudo isso já fora descoberto antes. Era uma descoberta docristianismo. Mas dentre essas profundas persuasões quetenho de apresentar em ordem, a primeira teve a ver comesse elemento da tradição popular. E sem a explicação an-terior no tocante à tradição e à democracia eu dificilmentepoderia esclarecer minha experiência mental. Nas condi-ções presentes, não sei se consigo esclarecê-la, mas propo-nho-me tentar.

Minha primeira e última filosofia, aquela na qual acredi-to com certeza absoluta, eu a aprendi na creche. Geral-mente a aprendi de uma babá; isto é, daquela solenesacerdotisa ao mesmo tempo da democracia e da tradição,indicada pelos astros. Aquilo em que eu mais acreditavanaquela época, aquilo em que mais acredito atualmente,são coisas que chamamos de contos de fadas. Eles me pa-recem inteiramente razoáveis. Não são fantasias: compa-radas com eles, outras coisas são fantásticas. Comparadoscom eles, a religião e o racionalismo são ambos anormais,embora a religião esteja anormalmente certa e o racionalis-mo anormalmente errado.

O país das fadas nada mais é do que o país ensolaradodo bom senso. Não é a terra que julga o céu, mas o céu quejulga a terra; assim, para mim pelo menos, não era a terraque criticava a Elfolândia, mas a Elfolândia que criticavaa terra. Conheci o pé de feijão mágico antes de provar fei-jão; tive certeza sobre o homem na Lua antes de ter certe-za sobre a Lua. Isso está em harmonia com a tradiçãopopular. Os obscuros poetas modernos são naturalistas efalam de arbustos e riachos; mas os cantores dos poemas

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épicos e fábulas da antiguidade eram sobrenaturalistas efalavam dos deuses dos riachos e arbustos. É isso que osmodernos querem dizer quando afirmam que os antigosnão “apreciavam a natureza”, porque diziam que ela eradivina. As antigas babás não falavam às crianças sobre arelva, mas sobre fadas que dançam sobre a relva; e os anti-gos gregos não conseguiam ver as árvores devido às dríades.

Mas aqui trato da ética e da filosofia que resultam deuma dieta de contos de fadas. Se as estivesse descrevendoem detalhes, poderia anotar muitos princípios nobres e sa-dios que deles derivam. Há a lição cavalheiresca de “Jack,o matador de gigantes”, dizendo que os gigantes deveriamser mortos por serem gigantescos. É uma revolta viril con-tra o orgulho como tal. Pois o rebelde é mais antigo do quetodos os reinos, e os jacobinos têm mais tradição que osjacobitas.

Há a lição de “Cinderela”, que é a mesma do Magnificat— EXALTAVIT HUMILES. Há a grande lição de “A Bela e a Fera”,dizendo que uma criatura precisa ser amada ANTES de seramável. Há a terrível alegoria de “A Bela Adormecida”, di-zendo como a criatura humana foi abençoada com todosos seus dons recebidos ao nascer, e, no entanto, amaldiçoa-da com a morte; e como a morte pode ser suavizada emsono.

Mas não estou preocupado com nenhum dos estatutosda elfolândia em separado, mas sim com o espírito total desua lei, que aprendi antes de saber falar e hei de reter quan-do não mais puder escrever. Estou preocupado com certomodo de olhar para a vida, que foi criado em mim pelos

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contos de fada, mas foi desde aquela época humildementeratificado pelos simples fatos.

O argumento poderia ser exposto da seguinte forma: hácertas seqüências ou desenvolvimentos (casos de uma coi-sa seguindo outra) que são, no verdadeiro sentido da pala-vra, razoáveis. Eles são, no verdadeiro sentido da palavra,necessários. Assim são as seqüências matemáticas e mera-mente lógicas. Nós do país das fadas (que somos as maisrazoáveis de todas as criaturas) admitimos essa razão eessa necessidade. Por exemplo, se as Irmãs Feias são maisvelhas que a Cinderela, então é (num sentido irônico e ter-rível) NECESSÁRIO que a Cinderela seja mais jovem do que asIrmãs Feias. Não há como fugir disso.

Haeckel pode falar quanto quiser do fatalismo acercadesse fato: realmente tem de ser. Se Jack é filho de ummoleiro, um moleiro é o pai de Jack. A razão fria o decretade seu terrível trono: e nós do país das fadas nos submete-mos. Se todos os três irmãos andam a cavalo, há seis ani-mais e dezoito pernas envolvidos: isso é racionalismoverdadeiro, e o país das fadas está cheio dele.

Mas quando ergui a cabeça acima da cerca dos elfos ecomecei a notar o mundo natural, observei um fato extra-ordinário. Observei que homens eruditos de óculos esta-vam conversando das coisas reais que aconteciam —nascimento e morte e coisas assim — como se ELAS fossemracionais e inevitáveis. Falavam como se o fato de as árvo-res darem frutos fosse tão NECESSÁRIO quanto o fato de queuma mais duas árvores são três. Mas não é. Há uma enor-me diferença pelo teste do país das fadas, que é o teste da

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imaginação. Não podemos IMAGINAR dois mais um não so-mando três. Mas pode-se facilmente imaginar árvores quenão produzem frutos; pode-se imaginá-las produzindo can-delabros ou tigres pendurados pelo rabo.

Esses homens de óculos falavam muito de um homemchamado Newton, que foi atingido por uma maçã e desco-briu uma lei. Mas não era possível levá-los a ver a distin-ção entre uma lei verdadeira, uma lei da razão, e o simplesfato de maçãs caírem. Se a maçã atingiu o nariz de Newton,o nariz de Newton atingiu a maçã. Essa é uma verdadeiranecessidade: pois não podemos conceber uma coisa ocor-rendo sem a outra. Mas podemos muito bem imaginar amaçã não caindo sobre seu nariz; podemos imaginá-la vo-ando fogosa pelos ares para atingir algum outro nariz, peloqual ela sentia uma aversão mais clara.

Sempre fizemos em nossos contos de fadas essa distin-ção nítida entre a ciência das relações mentais, na qual háde fato leis, e a ciência dos fatos físicos, nos quais não hánenhuma lei, mas apenas estranhas repetições. Acredita-mos em milagres corporais, mas não em impossibilidadesmentais. Acreditamos que o pé de feijão subiu até o céu;mas isso em nada confunde nossas convicções acerca daquestão filosófica de quantos feijões são cinco.

Aqui reside a perfeição peculiar de tom e verdade doscontos infantis. O cientista diz: “Corte o pedúnculo, e a maçãcairá”; mas diz isso calmamente, como se uma idéia de fatolevasse à outra. A bruxa dos contos de fada diz: “Toque acorneta, e o castelo do ogro cairá”; mas ela não diz issocomo se fosse alguma coisa em que o efeito obviamente

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surgisse da causa. Sem dúvida ela já deu esse conselho amuitos heróis e viu muitos castelos caírem, mas ela nãoperde nem o espanto nem a razão. Sua cabeça não se per-turba tentando imaginar uma conexão mental necessáriaentre uma corneta e a queda de uma torre.

Mas os cientistas quebram a cabeça até conseguiremimaginar uma conexão mental necessária entre uma maçãque deixa o galho e uma maçã atingindo o chão. Eles real-mente falam como se tivessem descoberto não apenas umconjunto de fatos maravilhosos, mas também uma verda-de ligando esses fatos. Falam como se a ligação de duascoisas fisicamente estranhas as conectasse filosoficamente.Sentem que, pelo fato de uma coisa incompreensível sem-pre vir depois de outra coisa incompreensível, as duas decerto modo constituem uma coisa compreensível. Dois enig-mas negros constituem uma resposta branca.

No país das fadas nós evitamos a palavra “lei”; mas naterra da ciência eles são especialmente apaixonados por ela.Assim, uma conjectura interessante sobre como povos es-quecidos pronunciavam o alfabeto recebe o nome de Leide Grimm. Mas a Lei de Grimm é muito menos intelectualdo que os Contos de Grimm. Os contos, de qualquer ma-neira, são contos; ao passo que a lei não é uma lei. Uma leiimplica que conhecemos a natureza da generalização e daexecução; não simplesmente que notamos alguns dos efei-tos. Se há uma lei dizendo que os batedores de carteiradevem ser presos, isso implica que há uma ligação mentalimaginável entre a idéia da prisão e a idéia de bater cartei-ras. E sabemos qual é essa idéia.

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Podemos dizer por que tomamos a liberdade de alguémque toma liberdades. Mas não podemos dizer por que umovo pode transformar-se num pinto, assim como não pode-mos dizer por que um urso poderia transformar-se numpríncipe encantado. Como IDÉIAS, o ovo e o pinto estão muitomais distantes entre si do que o urso e o príncipe; pois ne-nhum ovo por si só sugere um pinto, ao passo que algunspríncipes realmente sugerem ursos. Aceitando-se então quecertas transformações de fato acontecem, é essencial que asconsideremos da maneira filosófica dos contos de fada, nãoda maneira filosófica da ciência e das “Leis da Natureza”.

Quando nos perguntam por que os ovos se transformamem pássaros ou por que as frutas caem no outono, deve-mos responder exatamente como a fada madrinha respon-deria se Cinderela lhe perguntasse por que os ratos setransformaram em cavalos ou por que as roupas dela de-sapareceram depois da meia-noite. Devemos responder queé MÁGICA. Não é uma “lei”, pois não entendemos sua fór-mula geral. Não é uma necessidade, pois, embora conte-mos com esse tipo de acontecimento na prática, não temoso direito de dizer que ele deve sempre acontecer.

Não constitui nenhum argumento em defesa de uma leiinalterável (como Huxley imaginou) o fato de que conta-mos com o curso comum das coisas. Não contamos comisso; apostamos nisso. Arriscamos a remota possibilidadede um milagre como arriscamos a possibilidade de umapanqueca envenenada ou de um cometa que vai destruir omundo. Não contamos com isso, não porque se trata deum milagre, e, portanto, uma impossibilidade, mas porqueé um milagre, e, portanto, uma exceção.

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Todos os termos usados nos livros de ciência, “lei”, “ne-cessidade”, “ordem” e assim por diante, são realmente não-intelectuais, porque pressupõem uma síntese interior, quenós não possuímos. As únicas palavras que sempre mesatisfizeram como descrições da natureza são os termosusados nos contos de fada, “sortilégio”, “feitiço”, “encan-tamento”. Eles expressam a arbitrariedade do fato e domistério. Uma árvore dá frutos porque é uma árvore MÁGI-CA. A água corre morro abaixo porque está enfeitiçada. Osol brilha porque está enfeitiçado.

Eu nego totalmente que isso seja fantástico ou mesmomístico. Podemos incluir um pouco de misticismo mais adi-ante; mas essa linguagem dos contos de fada sobre as coi-sas é simplesmente racional e agnóstica. É a única maneirade expressar com palavras minha percepção clara e defini-da de que uma coisa é totalmente distinta de outra; de quenão há nenhuma ligação lógica entre voar e botar ovos. É ohomem que fala de “uma lei” que nunca viu que é místico.Ou melhor, o cientista ordinário é estritamente um senti-mental. Um sentimental no sentido essencial, de estar mer-gulhado em meras associações que o vão carregando. Eleviu tantas vezes pássaros voando e botando ovos que sen-te como se devesse existir alguma fantástica, delicada liga-ção entre as duas idéias, quando não há nenhuma.

Um amante desamparado talvez não seja capaz dedissociar a lua de seu amor perdido; assim o materialista éincapaz de dissociar a lua da maré. Nos dois casos não háconexão, excetuando-se o fato de que alguém viu essas coi-sas juntas. Um sentimentalista talvez derramasse lágrimas

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ante o perfume de uma macieira em flor, porque, por umaobscura associação pessoal, ela lhe traz à memória os tem-pos de criança. Assim também o professor materialista(embora esconda as lágrimas) é, todavia, um sentimental,porque, por uma obscura associação pessoal, a macieiraem flor lhe traz à memória as maçãs. Mas o frio racionalistado país das fadas não vê razão por que, em abstrato, amacieira não deva dar tulipas encarnadas; isso às vezesacontece no país dele.

Esse assombro elementar, porém, não é mera fantasiaproveniente de contos de fadas; pelo contrário, todo o fogodos contos de fadas deriva dele. Exatamente como todosnós gostamos de histórias de amor porque há nelas um ins-tinto sexual, todos nós gostamos de contos assombrososporque eles tocam o ponto nevrálgico do antigo instinto doassombro. Isso se comprova com o fato de que quando so-mos criancinhas não precisamos de contos de fadas: só pre-cisamos de contos.

A vida pura e simples é suficientemente interessante.Uma criança de sete anos se impressiona quando lhe con-tam que Tommy abriu a porta e viu um dragão. Mas umacriança de três anos se impressiona quando lhe contam queTommy abriu a porta. Os meninos gostam de histórias ro-mânticas; mas as criancinhas gostam de histórias realistas— porque as acham românticas. De fato, um bebê é prati-camente a única pessoa, na minha opinião, para quem sepode ler um romance realista sem entediá-la. Isso provaque até os contos infantis apenas ecoam um salto quasepré-natal de interesse e espanto.

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Esses contos dizem que as maçãs eram douradas ape-nas para relembrar o momento esquecido em que desco-brimos que elas eram verdes. Fazem os rios correr cheiosde vinho só para que nos lembremos, por um momentoirrefletido, de que eles correm cheios de água. Eu disse queisso é totalmente razoável e até agnóstico. E, de fato, nesteponto sou absolutamente em favor do agnosticismo maisalto; seu nome mais adequado é Ignorância.

Todos lemos em livros científicos e, na verdade, em to-dos os romances, a história do homem que esqueceu seunome. Esse homem caminha pelas ruas e pode ver e apre-ciar tudo; só que não se lembra de quem ele é. Bem, todosos homens são esse sujeito da história. Todos os homens seesqueceram de quem são. Alguém pode entender o cosmos,mas jamais o ego; o eu mais distante do que qualquer es-trela. Amarás ao Senhor teu Deus; mas não conhecerás ati mesmo.

Todos padecemos sob a mesma calamidade mental; to-dos nos esquecemos de nosso nome. Todos nos esquecemosdo que realmente somos. Tudo aquilo que chamamos debom senso, racionalidade, espírito prático e positivismoapenas significa que em certos níveis cegos da vida nos es-quecemos de que esquecemos. Tudo o que chamamos deespírito, arte e êxtase significa apenas que por um terrívelinstante nos lembramos de que esquecemos.

Mas embora (como o homem sem memória do roman-ce) caminhemos pelas ruas com uma espécie de admiraçãoidiota, ainda assim trata-se de admiração. O espanto temum elemento positivo de louvor. Esse é o próximo marco

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milhar a ser definitivamente fincado em nosso caminho pelopaís das fadas.

No capítulo seguinte vou falar sobre otimistas e pessi-mistas no seu aspecto intelectual, na medida em que issoexiste. Aqui estou apenas tentando descrever as enormesemoções que são indescritíveis. E a emoção mais forte foique a vida era tão preciosa quanto intrigante. Era um êx-tase porque era uma aventura; era uma aventura porqueera uma oportunidade. O bom dos contos de fada não eraafetado pelo fato de que poderia haver mais dragões doque princesas; era bom estar num conto de fadas.

O teste de toda felicidade é a gratidão; e eu me sentiagrato, embora mal soubesse a quem. As crianças ficam agra-decidas quando o Papai Noel enche suas meias com pre-sentes de brinquedos e doces. Não poderia eu ser agradecidoa Papai Noel quando ele deixou em minhas meias o presen-te de duas pernas milagrosas? Agradecemos às pessoas ospresentes de charutos e meias que recebemos no nosso dianatalício. Não posso agradecer a alguém, no meu dia nata-lício, o presente de ter nascido?

Havia, então, esses dois primeiros sentimentos, imutá-veis e indiscutíveis. O mundo era um choque, mas não erasimplesmente chocante; a existência era uma surpresa, masuma surpresa agradável. De fato, todas as minhas primei-ras visões foram exatamente formuladas num enigma quedesde a infância não me sai da cabeça. A pergunta era:“Que foi que disse a primeira rã?” E a resposta: “Senhor,como tu me fizeste pular!” Isso resume tudo o que venhodizendo. Deus fez a rã pular; mas a rã prefere pular. E

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quando essas coisas são resolvidas surge o segundo grandeprincípio da filosofia dos contos de fada.

Qualquer leitor dos “Contos de Fadas de Grimm” oudas belas coleções do sr. Andrew Lang pode constatar issoque, para gáudio dos pedantes, vou chamar de Doutrinada Alegria Condicional. Touchstone falou de muita virtu-de presente num “se”; de acordo com a ética élfica, todavirtude está num “se”. O lembrete no falar das fadas é sem-pre este: “Você pode morar num palácio de ouro e safira,se não disser a palavra ‘vaca’” ; ou então: “Você pode viverfeliz com a filha do rei, se não lhe mostrar uma cebola.” Avisão depende sempre de um veto. Todas as coisas eston-teantes e colossais concedidas dependem de uma coisinharetida. Todas as coisas loucas e esfuziantes liberadas de-pendem de uma coisa proibida. O sr. W. B. Yeats, em suarequintada e penetrante poesia élfica, descreve os elfoscomo sendo sem lei; eles mergulham numa inocente anar-quia cavalgando cavalos sem brida pelo ar...

Na crista vão das desgrenhadas ondas,E como chamas dançam nas montanhas.1

É algo terrível dizer que o sr. W. B. Yeats não entende opaís das fadas. Mas eu digo. Ele é um irlandês irônico, re-pleto de reações intelectuais. Não é bobo o suficiente paraentender o país das fadas. As fadas preferem gente rústicacomo eu; gente que fica de boca aberta e ri e faz o que lhe

1“Ride on the crest of the dishevelled tide, / And dance upon themountains like a flame.”

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mandam. O sr. Yeats atribui à elfolândia todas as insurrei-ções justas de sua raça. Mas o desregramento da Irlanda éum desregramento cristão, que investe contra a razão e ajustiça. O feniano rebela-se contra algo que ele entendemuito bem; mas o verdadeiro cidadão do país das fadasobedece a algo que absolutamente não entende. No contode fadas há uma felicidade incompreensível que se apóianuma condição incompreensível. Abre-se uma caixa, e to-dos os males saem voando. Esquece-se uma palavra, e cida-des são destruídas. Acende-se uma lâmpada, e o amor voaembora. Colhe-se uma flor, e vidas humanas são perdidas.Come-se uma maçã, e a esperança de Deus desaparece.

Esse é o tom dos contos de fadas, e certamente não setrata de desregramento ou mesmo de liberdade, emboraalguém sob a mesquinha tirania moderna possa achar, porcomparação, que seja liberdade. Gente que sai da Prisãode Portland poderia pensar que a prisão da Rua Fleet élivre; mas uma análise mais cuidadosa vai provar que tan-to as fadas como os jornalistas são escravos do dever.

As fadas madrinhas parecem no mínimo tão rigoro-sas quanto as outras madrinhas. A Cinderela recebeuuma carruagem proveniente do País das Maravilhas e umcocheiro que saiu do nada, mas ela recebeu uma ordem— que poderia ter sido expedida do subúrbio de Brixton —que deveria estar de volta às doze horas. Além disso, tinhasapatos de vidro; e não pode ser coincidência que o vidroseja uma substância tão comum no folclore. Esta princesamora num castelo de vidro, aquela numa colina de vidro;esta aqui enxerga tudo num espelho; elas todas podem

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morar em casa de vidro, se não atirarem pedras. Pois essatênue cintilação de vidro em toda parte é a expressão dofato de que a felicidade brilha, mas é frágil, como a subs-tância mais facilmente quebrada por uma doméstica ouum gato.

Esse sentimento dos contos de fada também calou fun-do em mim e tornou-se um sentimento em relação ao mun-do inteiro. Eu sentia e sinto que a vida em si brilha comoum diamante, mas é frágil como uma vidraça; e quando oscéus eram comparados ao terrível cristal, eu ainda possolembrar-me do calafrio. Tinha medo de que Deus deixasseo cosmos cair e ele se espatifasse.

Lembre-se, porém, que ser quebrável não é o mesmo queser perecível. Golpeie um vidro, e ele não vai resistir um ins-tante; simplesmente não o golpeie, e ele vai resistir mil anos.Assim me parecia que era a alegria do ser humano, na elfo-lândia ou na terra; a felicidade dependia de NÃO FAZER ALGO

que você poderia fazer a qualquer momento e, muitas ve-zes, não era óbvio o motivo por que não deveria fazê-lo.

Ora, o ponto principal nesse caso é que, para MIM, issonão parecia injusto. Se o terceiro filho do moleiro dissesse àfada: “Explique-me por que não devo plantar bananeirano palácio das fadas”, a fada poderia responder-lhe: “Bem,se é disso que se trata, explique o palácio das fadas”. Se aCinderela disser: “Por que razão devo deixar o baile à meia-noite?”, sua fada madrinha poderia responder: “Por querazão você vai ficar lá até meia-noite?”.

Se eu, no meu testamento, deixar a um fulano dez pa-quidermes falantes e cem cavalos alados, ele não poderá

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lamentar se as condições tiverem algo da natureza estra-nha do presente. De cavalo alado não se deve olhar os den-tes. Parecia-me que a própria existência era um legado tãoexcêntrico que eu não poderia me queixar por não enten-der as limitações da visão quando não entendia a visãoque elas limitavam. A moldura não era mais estranha doque o quadro. O veto poderia muito bem ser tão malucocomo a visão; poderia ser tão alarmante como o sol, tãoevasivo como a água, tão fantástico e terrível como as enor-mes árvores.

Por essa razão (podemos chamar isso de filosofia da fadamadrinha) nunca consegui associar-me aos jovens do meutempo no que eles chamavam de sentimento geral de RE-VOLTA. Eu teria oposto resistência, é de esperar, a quaisquerregras que fossem perversas, e delas e de sua definição heide tratar noutro capítulo. Mas não me sentia disposto aresistir a alguma regra simplesmente porque era misterio-sa. Bens imóveis às vezes são obtidos por meio de formali-dades tolas: a quebra de uma vareta ou o pagamento deuma bagatela. Eu estava disposto a obter a imensa pro-priedade da terra e do céu por meio de qualquer fantasiafeudal semelhante. Ela não poderia ser mais louca do queo fato de que simplesmente me era permitido obtê-la.

Neste ponto só vou apresentar um exemplo ético paramostrar o que pretendo dizer. Eu nunca consegui envol-ver-me no burburinho geral daquela nova geração contraa monogamia, porque nenhuma restrição imposta ao sexoparecia-me tão estranha e inesperada quanto o sexo em si.Para mim (criado nos contos de fadas como ele) obter

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permissão, como Endímion, de fazer amor com a lua e de-pois queixar-se de que Júpiter mantinha as suas própriasluas num harém parecia anticlimático e vulgar. Restringir-se a uma única mulher é um preço pequeno diante do sim-ples fato da visita a uma única mulher. Queixar-me de queeu só poderia casar-me uma vez era como queixar-me de ternascido uma só vez. Era algo desproporcionado em rela-ção à terrível emoção de que se estava falando. Aquilo mos-trava, não uma sensibilidade exagerada, mas sim umacuriosa insensibilidade ao sexo. Louco é quem se queixa denão poder entrar no Éden por cinco portas ao mesmo tempo.

A poligamia é a falta da realização do sexo; é como quemapanha cinco pêras de uma só vez num mero gesto de insa-nidade. Os estetas tocaram os limites extremos da loucuralingüística em seus encômios às coisas belas. O cardo oslevou às lágrimas; um besouro lustroso os fez cair de joe-lhos. No entanto, a emoção deles nunca me impressionousequer por um instante pela razão seguinte: nunca lhesocorreu pagar pelo prazer sentido com alguma espécie desacrifício simbólico.

Os homens (eu sentia) poderiam jejuar quarenta diaspara ouvir o canto de um melro. Os homens poderiam pas-sar pelo fogo para encontrar uma prímula. No entanto, essesamantes da beleza não conseguiam sequer manter-se só-brios pelo melro. Eles não passariam pelo casamento cris-tão comum como forma de recompensa pela prímula. Comcerteza a gente poderia pagar pelo extraordinário prazerda moral ordinária. Oscar Wilde disse que o pôr-do-sol eraum espetáculo não valorizado porque não poderíamos pa-

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gar por ele. Mas ele estava errado; nós podemos pagar pelopôr-do-sol. Paga-se não sendo um Oscar Wilde.

Bem, deixei os contos de fadas sobre o chão da creche, edesde aquele tempo não encontrei nenhum livro sensatocomo eles. Deixei a babá, guardiã da tradição e democra-cia, e depois não encontrei nenhum tipo moderno tão sen-satamente radical ou conservador como ela. Mas o assuntopara um importante comentário era o seguinte: que quan-do, no início, eu me expus à atmosfera mental do mundomoderno, descobri que ele se opunha claramente em doispontos à minha babá e seus contos infantis. Levei muitotempo para descobrir que o mundo moderno está errado ea babá estava certa. O fato realmente curioso era este: opensamento moderno contradizia essa crença básica daminha infância nas suas duas doutrinas mais essenciais.

Já expliquei que os contos de fadas sedimentaram emmim duas convicções: primeiro, de que o mundo é um lugarfantástico e supreendente; segundo, de que diante dessaloucura e prazer nós deveríamos ser modestos e submeter-nos às estranhas limitações de uma bondade tão estranha.Mas descobri que todo o mundo moderno corria feito maréalta contra esses meus dois sentimentos de ternura; e o cho-que da colisão criou dois súbitos e espontâneos sentimen-tos, que acalento desde aquela época e que, por mais toscosque fossem, solidificaram-se em convicções.

Primeiro, descobri que todo o mundo moderno usa alinguagem científica do fatalismo; diz que tudo é como sem-pre deve ter sido, desdobrando-se sem falhas desde o iní-cio. A folha na árvore é verde porque nunca poderia ter

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sido de outra cor. Ora, o filósofo dos contos de fadas sealegra com o fato de a folha ser verde precisamente porqueela poderia ter sido escarlate. Ele sente como se ela tivesseficado verde um instante antes de olhar para ela. Ele sesatisfaz pelo fato de a neve ser branca pelo simples motivorazoável de que poderia ter sido preta.

Todas as cores têm em si uma arrojada qualidade a par-tir da escolha; o vermelho das rosas do jardim não é ape-nas decisivo, mas dramático, como sangue subitamentederramado. Ele sente que algo FOI FEITO. Mas os grandesdeterministas do século XIX opunham-se fortemente a esseinato sentimento de que alguma coisa havia acontecidono instante anterior. De fato, na opinião deles, nada ja-mais realmente aconteceu desde o começo do mundo. Nadahavia ocorrido desde o acontecimento da existência; emesmo sobre a data desse acontecimento eles não tinhamcerteza.

O mundo moderno que encontrei era sólido, para o cal-vinismo moderno, devido à necessidade de as coisas seremcomo são. Mas, quando os questionei, descobri que osmodernos realmente não tinham provas dessa inevitávelrepetição das coisas, excetuando-se o fato de que elas serepetiam. Ora, a mera repetição tornava tudo, para mim,antes mais misterioso que racional. Era como se, depois dever um nariz com um formato curioso na rua e descartá-locomo um acidente, eu tivesse visto seis outros narizes como mesmo assombroso formato. Eu teria imaginado por ummomento que devia tratar-se de alguma sociedade secretalocal. Assim, um elefante ter uma tromba era esquisito; mastodos os elefantes terem tromba parecia uma trama.

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Falo aqui apenas de uma emoção, e de uma emoção aomesmo tempo persistente e sutil. Mas a repetição na natu-reza às vezes parecia-me uma repetição acalorada, como ade uma professora repetindo sempre a mesma coisa. A gra-ma parecia acenar-me simultaneamente com todos os de-dos; as estrelas apinhadas pareciam dispostas a fazer-seentender. O sol me fazia vê-lo como se surgisse mil vezes.As recorrências do universo atingiam o ritmo alucinantede um encantamento, e eu comecei a ver uma idéia.

Todo o intenso materialismo que domina a mente mo-derna apóia-se, em última análise, numa suposição; umasuposição falsa. Supõe-se que se uma coisa vai se repetin-do ela provavelmente está morta; uma peça numa engre-nagem. As pessoas sentem que se o universo fosse pessoalele variaria; se o sol estivesse vivo ele dançaria. O que éuma falácia até em relação a fatos conhecidos. Pois a varia-ção nas atividades humanas é geralmente causada não pelavida, mas sim pela morte; pelo esmorecimento ou pela rup-tura de sua força ou desejo.

Um homem varia seus movimentos por algum leve ele-mento de incapacidade ou fadiga. Ele toma um ônibus porestar cansado de caminhar; ou caminha por estar cansa-do de ficar sentado imóvel. Mas se sua vida e alegria fos-sem tão gigantescas que ele nunca se cansasse de ir paraIslington, ele poderia ir para Islington com a mesma regu-laridade com que o Tâmisa vai para Sheerness. A própriavelocidade e êxtase de sua vida teria a imobilidade da mor-te. O sol se levanta todas as manhãs. Eu não me levantotodas as manhãs; mas a variação se deve não à minha ativi-dade, mas à minha inação.

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Ora, para expressar o caso numa linguagem popular, po-deria ser verdade que o sol se levanta regularmente pornunca se cansar de levantar-se. Sua rotina talvez se devanão à ausência de vida, mas a uma vida exuberante. O quequero dizer pode ser observado, por exemplo, nas crianças,quando elas descobrem algum jogo ou brincadeira com quese divertem de modo especial. Uma criança balança as per-nas ritmicamente por excesso de vida, não pela ausênciadela. Pelo fato de as crianças terem uma vitalidade abun-dante, elas são espiritualmente impetuosas e livres; por issoquerem coisas repetidas, inalteradas. Elas sempre dizem:“Vamos de novo”; e o adulto faz de novo até quase morrerde cansaço. Pois os adultos não são fortes o suficiente paraexultar na monotonia.

Mas talvez Deus seja forte o suficiente para exultar namonotonia. É possível que Deus todas as manhãs diga aosol: “Vamos de novo”; e todas as noites à lua: “Vamos denovo”. Talvez não seja uma necessidade automática quetorna todas as margaridas iguais; pode ser que Deus crietodas as margaridas separadamente, mas nunca se cansede criá-las. Pode ser que ele tenha um eterno apetite decriança; pois nós pecamos e ficamos velhos, e nosso Pai émais jovem do que nós. A repetição na natureza pode nãoser mera recorrência; pode ser um BIS teatral. O céu talvezpeça BIS ao passarinho que botou um ovo.

Se o ser humano concebe e dá à luz uma criança e nãoum peixe, ou morcego, ou grifo, a razão talvez não seja ofato de estarmos presos num destino animal sem vida oupropósito. Pode ser que nossa pequena tragédia tenha emo-

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cionado os deuses; pode ser que eles a apreciem de seuscamarotes estrelados; pode ser que no fim de cada dramahumano o homem seja chamado repetidas vezes a voltarao palco. A repetição pode continuar por milhões de anos,por mera escolha, e a qualquer instante pode parar. O ho-mem pode permanecer sobre a terra geração após geração,e, no entanto, cada nascimento pode definitivamente sersua última aparição.

Essa foi minha primeira convicção; criada pelo choquede minhas emoções infantis com o credo moderno, sendoeu já veterano. Vagamente eu sempre sentira que os fatoseram milagres no sentido de que eram maravilhosos: agoracomeçava a considerá-los milagres no sentido mais estritode que eram VOLUNTÁRIOS. Quero dizer que eram, ou pode-riam ser, exercícios repetidos de alguma vontade. Em resu-mo, eu sempre acreditara que o mundo envolvia umamágica: agora achava que talvez ele envolvesse um mági-co. E isso apontava para uma emoção profunda semprepresente e subconsciente; de que este nosso mundo temalgum propósito; e se há um propósito, há uma pessoa. Eusempre sentira a vida primeiro como uma história; e se háuma história há um contador da história.

Mas o pensamento moderno também atingiu a minhasegunda tradição humana. Ele foi contra o sentimentomágico acerca dos rigorosos limites e condições. A únicacoisa de que ele gostava de falar era de expansão e grande-za. Herbert Spencer teria ficado muito chateado se alguémo tivesse chamado de imperialista, e, por isso mesmo, émuito lamentável que ninguém o tenha feito. Mas ele era

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um imperialista do tipo mais baixo. Divulgou a desprezívelidéia de que o tamanho do sistema solar deveria infundirmais respeito do que o dogma espiritual do ser humano.Por que alguém deveria entregar a sua dignidade ao siste-ma solar em vez de entregá-lo a uma baleia?

Se o simples tamanho prova que o homem não é a ima-gem de Deus, então a baleia poderia ser a imagem divina;uma imagem um tanto disforme; o que se poderia chamarde um retrato impressionista. É totalmente inútil argumen-tar que o homem é pequeno se for comparado ao cosmos;pois o homem sempre foi pequeno comparado à árvore maispróxima.

Mas Herbert Spencer, em seu impetuoso imperialismo,insistia que nós, de algum modo, havíamos sido conquista-dos e anexados pelo astronômico universo. Falava dos ho-mens e de seus ideais exatamente como o mais insolenteunionista fala dos irlandeses e dos ideais deles. Transfor-mou a humanidade numa pequena nacionalidade. E pode-se verificar sua perversa influência até nos mais vigorosos edistintos autores científicos dos últimos tempos; notada-mente nos primeiros romances do sr. H. G. Wells. Muitosromancistas, de forma exagerada, representaram a terracomo sendo perversa. Mas o sr. Wells e sua escola torna-ram perversos o céus. Nós deveríamos elevar os olhos àsestrelas de onde provém a nossa destruição.

Mas a expansão de que estou falando era muito maisperversa do que tudo isso. Observei que o materialista,como o louco, está numa prisão; na prisão de um só pensa-mento. Essas pessoas pareciam pensar que era particular-

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mente animador ficar repetindo que a prisão era muitoampla. O tamanho desse universo científico não oferecianovidade, nem alívio. O cosmos continuava eternamente,mas nem na sua mais fantástica constelação seria possívelencontrar alguma coisa realmente interessante; nada, como,por exemplo, perdão ou livre-arbítrio. A grandeza ou infi-nidade do segredo do seu cosmos nada lhe acrescentava.Era como dizer a um prisioneiro do cárcere de Reading queele teria o prazer de saber que a prisão agora ocupava me-tade do país. O carcereiro não teria nada para mostrar-lhea não ser mais e mais longos corredores de pedra com ilu-minação horripilante e sem nada do que é humano. Da mes-ma forma, esses expansores do universo nada tinham paranos mostrar a não ser mais e mais infinitos corredores ilu-minados por sóis horripilantes e sem nada do que é divino.

No país das fadas existira uma lei real; uma lei que po-dia ser violada, pois uma lei é, por definição, algo que podeser violado. Mas o mecanismo dessa prisão cósmica era algoque não podia ser violado; pois nós mesmos éramos apenasuma parte de seu mecanismo. Ou não tínhamos capacida-de para fazer alguma coisa, ou estávamos fadados a fazê-la. A idéia da condição mística desapareceu totalmente;não se pode ter a firmeza de obedecer às leis nem o prazerde as violar. A vastidão desse universo nada tinha do fres-cor e da arejada expansão que nós exaltamos no universodo poeta. Esse universo moderno é literalmente um impé-rio; isto é, era vasto, mas não livre. Entrava-se em salascada vez mais amplas e sem janelas, salas grandes com suaperspectiva babilônica; mas a gente nunca encontrava amenor janela ou um sopro de ar vindo de fora.

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Seus paralelos infernais pareciam expandir-se com a dis-tância; mas para mim todas as coisas boas atingem umponto — as espadas, por exemplo. Assim, julgando o orgu-lho do grande cosmos tão insatisfatório para as minhasemoções, comecei a discutir um pouco esse ponto; e logodescobri que toda a atitude era ainda mais rasa do que sepoderia esperar. Segundo essa gente, o cosmos era uma coisasó porque tinha uma regra uniforme. Só que (diriam eles),mesmo sendo uma coisa só, ele é também a única coisa queexiste. Por que, nesse caso, alguém deveria preocupar-setanto em chamá-lo de grande? Não existe nada que possa-mos comparar com ele.

Será igualmente sensato chamá-lo de pequeno. Alguémpode dizer: “Eu gosto deste vasto cosmos, com sua multi-dão de estrelas e inúmeras variedades de criaturas.” Mas,se esse é o ponto, por que alguém não deveria dizer: “Eugosto deste pequeno e aconchegante cosmos, com seu de-cente número de estrelas e essa elegante provisão de vidaque é do meu agrado”? Uma apreciação é tão boa quantoa outra; as duas são meros sentimentos. É um mero senti-mento alegrar-se porque o Sol é maior do que a Terra; é umsentimento tão sensato como alegrar-se pelo fato de que oSol não é maior do que é. Alguém escolhe ter uma emoçãoacerca da grandeza do mundo; por que ele não deveria es-colher ter uma emoção acerca de sua pequenez?

Aconteceu que eu tinha aquela emoção. Quando alguémama alguma coisa refere-se a ela por diminutivos, mesmoque se trate de um elefante ou de um guarda-costas. A ra-zão é que qualquer coisa, mesmo sendo enorme, que possa

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ser concebida como completa, pode ser concebida comopequena. Se bigodes militares não sugerissem uma espada,ou se presas não sugerissem uma cauda, então o objeto se-ria vasto porque seria imensurável. Mas no momento emque você consegue imaginar um guarda-costas grandes, vocêconsegue imaginar um guarda-costas pequeno. No momen-to em que você realmente vê um elefante, você pode chamá-lo de “Miúdo”. Se você pode fazer uma estátua de algumacoisa, você também pode fazer daquilo uma estatueta.

Essa gente professava que o universo era uma coisacoerente; mas eles não gostavam dele. Eu, porém, estavaassustadoramente apaixonado pelo universo e queria diri-gir-me a ele por um diminutivo. Muitas vezes o fiz; e pelovisto ele nunca se ofendeu. De fato e de verdade eu sentiaque esses obscuros dogmas da vitalidade eram expressosmais adequadamente quando eu chamava o mundo de pe-queno do que quando o chamava de grande. Pois em tornoda infinidade havia uma espécie de desleixo que era o opostodo intenso e piedoso cuidado que eu sentia ao tocar a pre-ciosidade infinita e o perigo da vida. Eles mostravam ape-nas uma vastidão desolada; mas eu sentia uma espécie detesouro sagrado. Pois a economia é muito mais românticado que a extravagância. Para eles as estrelas eram uma rendainfinita de tostões; mas eu me sentia, em relação ao sol deouro e à lua de prata, como se sente o escolar que tem umamoeda de mil réis e outra de quinhentos.

Essas convicções subconscientes são mais bem descritasna cor e no tom de certos contos. Por isso eu disse que só ashistórias de mágica podem expressar a minha consciência

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de que a vida não é apenas um prazer, mas uma espécie deexcêntrico privilégio. Posso expressar este outro sentimen-to do aconchego cósmico com uma alusão a outro livro sem-pre lido na meninice, Robinson Crusoé, que li mais ou menosnessa época, e que deve sua eterna vivacidade ao fato decelebrar a poesia dos limites, ou melhor, até mesmo o bár-baro romance da prudência. Crusoé é um ser humano numapequena rocha com uns poucos confortos que acabam deser arrancados do mar; a melhor coisa no livro é simples-mente a lista dos objetos resgatados do naufrágio. O maiordos poemas é um inventário. Cada utensílio de cozinhatorna-se ideal porque Crusoé poderia tê-lo deixado cairno mar.

É um bom exercício, em horas vazias e desagradáveis dodia, olhar para qualquer coisa, a caixa para carvão ou aestante de livros, e pensar que alguém poderia sentir-se fe-liz por ter tirado aquilo de um navio a pique numa ilhasolitária. Mas é um exercício ainda melhor lembrar-se decomo todas as coisas passaram por esse salvamento porum triz: tudo foi salvo de um naufrágio. Todos os homenspassaram por uma horrível aventura: como criança abor-tada, como um bebê que nunca viu a luz do dia.2 Na mi-nha infância falava-se muito de limitados ou arruinadosgênios: e era muito comum classificar alguém como um “Po-deria-Ter-Sido”. Para mim há um fato mais concreto e as-sustador: qualquer transeunte que vai pela rua é um“Poderia-Não-Ter-Sido”.

2Ver Jó 3:16.

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Mas eu realmente sentia (a fantasia pode parecer boba)como se toda ordem e número de coisas fossem as sobrasromânticas do navio de Crusoé. O fato de existirem doissexos e um sol era igual ao fato de existirem duas armas defogo e um machado. Era extremamente indispensável quenada se perdesse; mas de alguma forma era divertido o fatode não se poder acrescentar nada. As árvores e os planetaspareciam coisas salvas de um naufrágio: e quando vi o monteMatterhorn, senti prazer por ele não ter sido esquecido naconfusão. Eu me sentia econômico em relação às estrelascomo se elas fossem safiras (assim são chamadas no Paraí-so de Milton): eu guardava as colinas. Pois o universo éuma única jóia, e embora seja uma expressão natural falarde uma jóia como sendo sem par e sem preço, dessa jóiaisso é literalmente verdadeiro. Este cosmos é de fato sempar e sem preço: pois não pode haver outro.

Assim termina, de uma forma inevitavelmente inade-quada, a tentativa de dizer coisas indizíveis. Essas são asminhas atitudes extremas em relação à vida; os solos fér-teis para as sementes da doutrina. De alguma forma obs-cura, essas coisas eu pensava antes de saber escrever e sentiaantes de saber pensar: para que possamos avançar maisfacilmente em seguida, vou grosso modo fazer aqui uma re-capitulação.

Eu sentia na alma: primeiro, que o mundo não se expli-ca a si mesmo. Pode tratar-se de um milagre com uma ex-plicação sobrenatural; pode ser um truque de mágica comuma explicação natural. Mas a explicação do truque demágica, para eu considerá-la satisfatória, terá de ser melhor

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do que as explicações naturais que ouvi. A coisa é mágica,verdadeira ou falsa.

Segundo, comecei a sentir que a mágica deve ter um sen-tido, e o sentido deve ter alguém que lhe dê origem. Haviano mundo algo pessoal, como numa obra de arte; o quequer que significasse, o significado era violento. Terceiro,considerei esse propósito belo em seu plano antigo, apesarde seus defeitos, como os dragões. Quarto, considerei que aforma apropriada de agradecer a ele é alguma forma de hu-mildade e limitação: deveríamos agradecer a Deus pelacerveja e o vinho francês não os bebendo em excesso. Devía-mos também obediência ao que quer que nos tenha criado.

E por fim o sentimento mais forte: entrara na minhacabeça uma vaga e vasta impressão de que, de algum modo,todo bem era uma sobra a ser guardada e tida como sagra-da proveniente de alguma destruição primordial. O homemsalvara seu bem como Crusoé salvara seus bens: ele os sal-vara de um naufrágio. Tudo isso eu sentia e a época não meoferecia estímulo algum para senti-lo. E durante todo essetempo eu nem sequer havia pensado na teologia cristã.

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V

A BANDEIRA DO MUNDO

QUANDO EU ERA MENINO havia dois homenscuriosos correndo por aí chamados o otimista e o pessimis-ta. Eu mesmo sempre usava esses termos, mas com prazerconfesso que nunca tive uma idéia clara do que significas-sem. A única coisa que poderia ser considerada evidenteera que eles não poderiam querer dizer o que diziam; poisa explicação verbal comum era que o otimista pensava queo mundo era o melhor possível, ao passo que o pessimistapensava que era o pior possível. Mas, sendo que essas afir-mações eram obviamente uma delirante tolice, a gente ti-nha de procurar outras explicações. Um otimista não podiaser um homem que achava que tudo estava certo e nadaerrado. Pois isso não significava nada; é como dizer quetudo é direito e nada esquerdo.

De modo geral, cheguei à conclusão de que o otimistapensava que tudo era bom, exceto o pessimista; e o pessi-mista achava que tudo era ruim, exceto ele mesmo. Seriainjusto omitir completamente da lista a misteriosa massugestiva definição atribuída a uma menininha: “Um oti-mista é alguém que procura os seus olhos, e um pessimista

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é alguém que procura os seus pés”. Não sei se essa não é amelhor definição. Há nela até mesmo uma espécie de ver-dade alegórica, pois talvez fosse possível estabelecer umadistinção útil entre aquele pensador mais sombrio que pen-sa simplesmente em nosso contato contínuo com a terra, eaquele pensador mais feliz que prefere considerar nossopoder primário de visão e escolha de caminho.

Mas aqui está um grave erro nessa alternativa do oti-mista e o pessimista. Seu pressuposto é de que o homemcritica este mundo como se estivesse procurando uma casa,como se lhe estivessem mostrando um novo apartamento.Se alguém viesse a este planeta provindo de outro mundocom posse total de suas forças, esse alguém poderia discu-tir se a vantagem dos bosques no verão compensava a des-vantagem de haver cães com raiva, exatamente comoalguém procurando uma casa poderia compensar a pre-sença de um telefone com a ausência de uma vista para omar. Mas homem nenhum está nessa posição.

O ser humano pertence a este mundo antes de começara perguntar se isso é agradável. Ele lutou pela bandeira, emuitas vezes conquistou heróicas vitórias por ela muitoantes de estar sequer alistado. Para resumir o que pareceser a questão essencial, ele tem um dever de lealdade mui-to antes de ter qualquer admiração.

No capítulo anterior dissemos que o sentimento primá-rio de que este mundo é estranho e, no entanto, atraenteencontra sua melhor expressão nos contos de fadas. O lei-tor pode, se quiser, atribuir o estágio seguinte àquela beli-cosa e até chauvinista literatura que geralmente se vê na

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história de um menino. Devemos boa parte da moral sóli-da às publicações sensacionalistas baratas. Por alguma ra-zão, parecia-me e ainda me parece que a nossa atitudediante da vida pode ser expressa mais adequadamente emtermos de uma espécie de lealdade militar do que em ter-mos de crítica ou aprovação. Minha aceitação do universonão é otimismo, mais se parece com patriotismo. É uma ques-tão de lealdade primária.

O mundo não é uma pensão em Brighton, que temos deabandonar por ser péssima. É a fortaleza de nossa família,com a bandeira tremulando no torreão, e quanto pior elafor tanto menos razão para a deixarmos. A questão não éque este mundo é triste demais para ser amado ou alegredemais para não o ser; a questão é que, quando se amaalguma coisa, a sua alegria é a razão para amá-la, e a suatristeza é a razão para amá-la ainda mais. Todos os pensa-mentos otimistas sobre a Inglaterra e todos os pensamen-tos pessimistas sobre ela são igualmente boas razões parao patriota inglês. De modo semelhante, otimismo e pessi-mismo são igualmente argumentos para o patriota cósmico.

Suponhamos que temos diante de nós um caso desespe-rador — Pimlico1, por exemplo. Se pensarmos no que é real-mente melhor para Pimlico, vamos descobrir que o fio dopensamento nos leva ao trono, ou ao mítico, ou ao arbitrá-rio. Não basta alguém desaprovar Pimlico: nesse caso essealguém simplesmente cortará a garganta ou se mudará paraChelsea. Certamente também não basta alguém aprovar

1Área de Londres.

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Pimlico: pois nesse caso Pimlico continua sendo Pimlico, oque seria terrível.

Ao que parece, a única saída é alguém amar Pimlico:amá-la com um laço transcendente e sem uma razão terre-na. Se surgisse alguém capaz de amar Pimlico, então Pimlicose ergueria com torres de marfim e pináculos dourados;Pimlico se enfeitaria como faz a mulher amada. Pois a de-coração não se destina a esconder coisas horríveis; mas aenfeitar coisas já adoráveis. A mãe não dá a seu filho umagravata borboleta azul porque, sem ela, ele é muito feio.Um amante não dá um colar a sua garota para esconder-lhe o pescoço. Se os homens amassem Pimlico como as mãesamam os filhos, arbitrariamente, por ser DELAS, Pimlico numou dois anos poderia ser mais bela que Florença.

Alguns leitores dirão que isso é mera fantasia. Eu res-pondo que isso é a história real da humanidade. Isso mos-tra, de fato, como as cidades se tornaram grandes. Volte àsmais sombrias raízes da civilização, e você descobrirá queelas estão presas em volta de alguma pedra sagrada ou emtorno de algum poço sagrado. As pessoas primeiro presta-ram homenagem a um local e depois conquistaram a glóriapara ele. Roma não foi amada por ser grande. Ela foi gran-de por ter sido amada.

As teorias do contrato social do século XVIII foram alvode muitas críticas grosseiras em nosso tempo; na medidaem que essas teorias significavam que há, por trás de todosos governos históricos, uma idéia de satisfação e coopera-ção, elas estavam demonstravelmente certas. Mas estavamrealmente erradas na medida em que sugeriam que os ho-

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mens em algum momento haviam aspirado diretamente àordem ou à ética por meio de uma negociação conscientede interesses.

A moralidade não começou com um homem dizendo aoutro: “Eu não vou bater em você se você não bater emmim”; não há vestígio de uma transação semelhante. HÁ,sim, um vestígio de que ambos disseram: “Nós não deve-mos bater um no outro no lugar sagrado”. Eles conquista-ram a moralidade vivendo a religião. Eles não cultivaram acoragem. Lutaram pelo santuário e descobriram que se ha-viam tornado corajosos. Eles não cultivaram o asseio. Purifi-caram-se para o altar e descobriram que estavam asseados.

A história dos judeus é o único documento primitivoque a maioria dos ingleses conhece, e os fatos podem serjulgados a contento a partir dela. Os Dez Mandamentos,que foram considerados substancialmente comuns a todaa humanidade, eram meras ordens militares; um código deregras regimentais expedidas para proteger uma determi-nada arca através de um determinado deserto. A anarquiaera um mal porque punha a santidade em risco. E foi so-mente quando eles criaram um dia santo para Deus queeles descobriram que criaram um feriado para os homens.

Se concedermos que essa devoção primária a um localou coisa é fonte de energia criativa, podemos prosseguircom um fato muito peculiar. Vamos reiterar por um ins-tante que o único otimismo certo é uma espécie de patrio-tismo universal. Qual é o problema do pessimista? Achoque ele pode ser exposto dizendo que se trata de um anti-patriota cósmico. E qual é o problema do antipatriota? Acho

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que ele pode ser expresso, sem indevida causticidade, di-zendo que se trata de um amigo sincero. E qual é o proble-ma do amigo ingênuo? Nesse ponto atingimos a rocha davida real e da imutável natureza humana.

Ouso dizer que o ponto negativo do amigo sincero é sim-plesmente que ele não é sincero. Sempre esconde algumacoisa — seu prazer sombrio em dizer algo desagradável.Ele alimenta um desejo secreto de ferir, não apenas de aju-dar. É certamente isso, na minha opinião, que torna deter-minado tipo de antipatriota irritante aos olhos de cidadãossadios. Não falo, naturalmente, do antipatriotismo que ape-nas irrita febris corretores da bolsa e atrizes sentimentais;aquilo é apenas patriotismo no sentido superficial. Alguémque diz que nenhum patriota deveria condenar a Guerrados Bôeres2 antes de seu final não é digno de receber umaresposta inteligente; ele está dizendo que nenhum bom fi-lho deveria convencer sua mãe a abandonar o penhascoantes de ela cair de lá.

Mas existe um antipatriota que definitivamente enfu-rece homens honestos, e, na minha opinião, a explicaçãopara ele é o que sugeri: “Lamento dizer que estamos arru-inados”, mas ele de fato não lamenta nada. E pode-se di-zer, sem retórica, que se trata de um traidor; pois ele estáusando aquele conhecimento perigoso que lhe foi concedi-do para fortalecer o exército, a fim de dissuadir as pessoasde se alistarem. Pelo fato de ele ter permissão para ser um

2Conflito entre o Reino Unido e a população bôer (1899-1902),descendente de colonizadores holandeses e fundadores das repúblicasindependentes de Transvaal e Orange na atual África do Sul.

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pessimista como militar, ele adota um comportamento pes-simista como sargento de recrutamento.

Exatamente da mesma forma o pessimista (que é o an-tipatriota cósmico) usa a liberdade que a vida confere aosconselheiros de sua nação para aliciar e afastar as pessoasda bandeira dela. Admitindo-se que ele apenas declare fa-tos, é ainda essencial saber quais são suas emoções, qual ésua motivação. Pode ser que mil e duzentos cidadãos emTottenham tenham sido afetados pela varíola; mas nósqueremos saber se isso está sendo afirmado por algum gran-de filósofo que deseja amaldiçoar os deuses, ou simples-mente por algum clérigo comum que deseja ajudar oshomens.

O pecado do pessimista não é, então, que ele pune osdeuses e os homens, mas que não ama o que pune — elenão tem essa lealdade primária e sobrenatural às coisas.Qual é o pecado do homem geralmente chamado de oti-mista? Obviamente, percebe-se que o otimista, no intuitode defender a honra deste mundo, defenderá o indefensável.Ele é o chauvinista do universo; dirá: “O meu cosmos, cer-to ou errado”. Sentir-se-á menos inclinado a reformas; maisinclinado a uma espécie de resposta oficial ministerial atodos os ataques, acalmando a todos com certezas. Ele nãovai lavar o mundo, mas vai caiá-lo. Tudo isso (que é verda-deiro a respeito de um tipo de otimista) conduz a um pon-to realmente interessante de psicologia, que sem isso nãose poderia explicar.

Dizemos que deve haver uma lealdade fundamental àvida; a única questão é a seguinte: deve ser uma lealdade

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natural ou sobrenatural? Ou, se você preferir esta outracolocação, deve ser uma lealdade sensata ou insensata? Ora,a coisa extraordinária é que o otimismo ruim (a caiação, adefesa fraca de tudo) aparece com o otimismo razoável. Ootimismo racional leva à estagnação; o otimismo irracionalé que leva à reforma.

Deixe-me explicar usando mais uma vez o paralelo dopatriotismo. O homem mais capaz de destruir o lugar queama é exatamente aquele que o ama por uma razão. Ohomem que vai melhorar o lugar é aquele que o ama semuma razão. Se um homem ama alguma característica dePimlico (o que parece improvável), ele pode acabar defen-dendo aquela característica até mesmo contra Pimlico. Masse ele simplesmente ama Pimlico em si, pode acabar arra-sando o lugar para transformá-lo numa Nova Jerusalém.

Eu não nego que uma reforma possa ser excessiva; ape-nas digo que é o patriota místico que reforma. Mera satis-fação pessoal chauvinista é algo extremamente comumentre aqueles que têm alguma razão pedante para o seupatriotismo. Os piores chauvinistas não amam a Inglater-ra, mas sim uma Inglaterra teórica. Se amamos a Inglaterrapor ela ser um império, podemos superestimar o sucessocom que governamos os hindus. Mas se a amamos apenaspor ser uma nação, somos capazes de enfrentar qualquercircunstância: pois ela seria uma nação mesmo se os hindusnos governassem.

Assim também apenas aqueles cujo patriotismo depen-de da história permitirão que seu patriotismo falsifique ahistória. Um homem que ama a Inglaterra por ser inglês

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não se preocupará em saber como ela se formou. Mas ohomem que ama a Inglaterra por ela ser anglo-saxã poderáopor-se aos fatos para defender sua fantasia. Ele pode aca-bar (como Carlyle e Freeman) afirmando que a conquistanormanda foi uma conquista saxônica. Ele pode acabarnuma total insensatez — porque tem uma razão. Um ho-mem que ama a França por suas atividades militares des-culpará o exército de 1870. Mas um homem que ama aFrança por ser ela a França vai melhorar o exército de 1870.Foi exatamente isso que fez a França, e ela é um bom exem-plo de um paradoxo em ação. Em nenhuma outra parte domundo o patriotismo é mais puramente abstrato e arbi-trário; e em nenhuma outra parte a reforma é mais drásti-ca e abrangente. Quanto mais transcendente for o seupatriotismo, tanto mais práticas serão suas políticas.

Talvez o exemplo mais vulgar desse ponto seja o casodas mulheres com sua estranha e forte lealdade. Algumaspessoas estúpidas lançaram a idéia de que as mulheresobviamente apóiam os seus queridos em qualquer circuns-tância; por isso mesmo as mulheres são cegas e nada enxer-gam. Essas mulheres não devem ter conhecido mulhernenhuma. As mesmas mulheres que estão dispostas a de-fender os seus homens nas fases mais duras e nos momen-tos de maior fragilidade são (em seu trato pessoal com oshomens) quase morbidamente lúcidas acerca da fragilida-de das desculpas deles ou da cabeça dura deles. O amigode um homem gosta dele como ele é; sua mulher o ama eestá sempre tentando transformá-lo em outra pessoa.

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As mulheres são totalmente místicas em seu credo e to-talmente cínicas em suas críticas. Thackeray expressou issomuito bem quando fez a mãe de Pendennis imaginar queele não iria dar certo como homem, apesar de adorá-lo comoum deus. Ela subestimou a virtude dele, embora lhe supe-restimasse o valor. Quem é devotado tem total liberdadepara criticar; o fanático pode prudentemente ser um céti-co. O amor não é cego; essa é a última coisa que ele é. Oamor é vinculado; e quanto mais vinculado for tanto me-nos cego será.

Essa pelo menos passara a ser a minha posição acercade tudo o que se chamava de otimismo, pessimismo e aper-feiçoamento. Antes de qualquer ato cósmico de reformadevemos prestar um juramento cósmico de fidelidade. Ohomem deve estar interessado na vida; depois poderia de-sinteressar-se de suas maneiras de vê-la. “Meu filho, dê-meseu coração”; o coração deve estar preso à coisa certa; apartir do momento em que temos o coração preso temosliberdade para as mãos.

Preciso fazer uma pausa para antecipar uma críticaóbvia. Dirão que uma pessoa racional aceita o mundo comouma mistura de bem e de mal com uma satisfação adequa-da e uma paciência adequada. Mas essa é exatamente aatitude que afirmo ser falha. Eu sei que ela é muito comumnesta época; ela encontrou sua expressão perfeita naque-les serenos versos de Matthew Arnold que são mais aguda-mente blasfemos que os gritos agudos de Schopenhauer:

Vivemos bastante — se esta vida,De estrondosos sucessos desprovida,

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Suportável, indigna parecerDa pompa do mundo e a dor de nascer.3

Eu sei que esse sentimento ocupa a nossa época e, naminha opinião, a congela. Para os nossos titânicos propósi-tos de fé e revolução, não precisamos de uma fria aceitaçãodo mundo como um compromisso, mas sim de alguma for-ma de odiá-lo intensamente e amá-lo intensamente. Nãoqueremos que a alegria e a raiva se neutralizem entre si eproduzam um contentamento mal-humorado; queremosum deleite mais feroz e uma insatisfação mais feroz. Preci-samos sentir o universo ao mesmo tempo como o castelode um ogro, que dever ser tomado de assalto, e, no entanto,como a nossa própria casinha, para a qual voltamos aoanoitecer.

Ninguém duvida de que o homem comum possa avan-çar neste mundo; mas não buscamos a força para avançarnele, mas sim a força para fazê-lo avançar. Será que o ho-mem comum é capaz de odiar o mundo o bastante paramudá-lo, e, no entanto, amá-lo o bastante para achar quea mudança vale a pena? Será que ele é capaz de admirarseu bem colossal sem ao mesmo tempo sentir submissão?Será que ele é capaz de admirar sua colossal perversão semjamais sentir desespero? Será capaz, em suma, de ser ao mes-mo tempo não apenas um pessimista e um otimista, mastambém um fanático pessimista e um fanático otimista?

3Enough we live – and if a life, / With large results so little rife, /Though bearable, seem hardly worth / This pomp of worlds, this painof birth.

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Ele é pagão o suficiente a ponto de morrer pelo mundo ecristão o suficiente a ponto de morrer para o mundo?

Nessa combinação, afirmo eu, o otimista racional é quefalha; o otimista irracional obtém êxito. Ele está disposto aagredir violentamente o universo inteiro em benefício dopróprio universo.

Estou apresentando essas coisas não em sua seqüêncialógica madura, mas como elas me ocorreram; essa visãoficou mais clara e nítida devido a um acidente de nossaépoca. Sob a sombra crescente de Ibsen, surgiu uma dis-cussão para saber se não era belo assassinar-se. Pondera-dos modernos disseram-nos que não devemos dizer “pobrecoitado” ao falar de alguém que explodiu os próprios mio-los, pois se trata de uma pessoa invejável, que apenas ex-plodiu os miolos devido à excepcional excelência deles. Osr. William Archer até sugeriu que na idade dourada have-ria máquinas automáticas cuja utilização permitiria quealguém se matasse por um centavo.

Em tudo isso eu percebi que sou totalmente hostil amuitos que se consideram liberais e humanitários. O suicí-dio não só constitui um pecado, ele é o pecado. É o malextremo e absoluto; a recusa de interessar-se pela existên-cia; a recusa de fazer um juramento de lealdade à vida. Ohomem que mata um homem, mata um homem. O homemque se mata, mata todos os homens; no que lhe diz res-peito, ele elimina o mundo. Seu ato é pior (consideradosimbolicamente) do que qualquer estupro ou atentado abomba, pois destrói todos os prédios; insulta a todas asmulheres. O ladrão se satisfaz com diamantes; mas o suici-

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da não: esse é seu crime. Ele não pode ser subornado, nemcom as cintilantes pedras da Cidade Celestial. O ladrãoelogia os objetos que furta, quando não elogia o dono de-les. Mas o suicida insulta a todos os objetos da terra aonão furtá-los. Ele conspurca cada flor ao recusar-se a viverpor ela.

Não existe nenhuma criatura no cosmos, por mínimaque seja, para quem a sua morte não é um escárnio. Quan-do alguém se enforca numa árvore, as folhas poderiam cairde raiva e os pássaros fugir em fúria, pois cada um delesrecebeu uma afronta direta. Obviamente pode haver pa-téticas desculpas emocionais para o ato. Geralmente as hápara o estupro, e quase sempre para o atentado a bomba.Mas quando se trata de esclarecer idéias e o significadointeligente das coisas, então, na sepultura na encruzilha-da4 e na estaca cravada no corpo, há muito mais verdaderacional e filosófica do que nas máquinas de suicídio do sr.Archer. Há um significado no enterro à parte de um suici-da. O crime desse homem é diferente de outros crimes —pois torna até os crimes impossíveis.

Mais ou menos na mesma época li uma solene bobagemde algum livre-pensador. Dizia ele que um suicida era sim-plesmente o mesmo que um mártir. A patente falácia dessetexto ajudou-me a esclarecer a questão. Obviamente umsuicida é o oposto de um mártir. Um mártir é um homemque se preocupa tanto com alguma coisa fora dele que se

4Segundo o costume cristão, o suicida não podia ser enterrado nocemitério.

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esquece de sua vida pessoal. Um suicida é um homem que sepreocupa tão pouco com tudo o que está fora dele que elequer ver o fim de tudo. Um quer que alguma coisa comece;o outro, que tudo acabe.

Em outras palavras, o mártir é nobre, exatamente por-que (embora renuncie ao mundo ou execre toda a humani-dade) ele confessa esse supremo laço com a vida; coloca ocoração fora de si mesmo: morre para que alguma coisaviva. O suicida é ignóbil porque não tem esse vínculo coma existência: ele é meramente um destruidor. Espiritual-mente, ele destrói o universo. E depois me lembrei da esta-ca e da encruzilhada, e o estranho fato de que o cristianismomostrara esse rigor incomum para com o suicida. Pois ocristianismo mostrara um ardente incentivo ao martírio.

O cristianismo histórico foi acusado, não inteiramentesem razão, de levar o martírio e o ascetismo a um pontoextremo, desolado e pessimista. Os primeiros mártirescristãos falavam de morte com uma alegria horrível. Blas-femavam as belas funções do corpo, sentiam o cheiro dasepultura à distância como se ela fosse um campo de flo-res. Tudo isso a muitos parecia a própria poesia do pessi-mismo. Todavia, existe a estaca na encruzilhada paramostrar o que o cristianismo pensava do pessimista.

Esse foi o primeiro de uma longa série de enigmas que ocristianismo discutiu. E a discussão implicava uma parti-cularidade da qual devo falar mais especificamente, sendouma característica de todas as idéias cristãs, mas que evi-dentemente começou com esta discussão. A atitude cristãpara com o mártir e o suicida não era o que com grande

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freqüência se afirma nos ensinamentos morais modernos.Não era uma questão de grau. Não que se devesse traçaruma linha nalgum ponto, com o auto-assassino exaltadocaindo dentro dela e o auto-assassino acabrunhado logofora dela. O sentimento cristão evidentemente não era ape-nas de que o suicida estava levando o martírio longe de-mais. O sentimento cristão era veementemente em favorde um e furiosamente contra o outro.

Esses dois fatos que pareciam tão iguais ocupavam ex-tremos opostos de céu e inferno. Este homem jogava fora asua vida; ele era tão bom que seus ossos secos podiam curarcidades durante a peste. Aquele homem jogava fora a suavida; ele era tão mau que seus ossos poluiriam os de seusirmãos. Não estou dizendo que a fúria estava certa; mas porque era tão violenta?

Foi aqui que pela primeira vez percebi que os meus pésperegrinos pisavam numa trilha batida. O cristianismotambém sentira essa oposição entre o mártir e o suicida.Será que talvez a sentira pela mesma razão? Será que ocristianismo sentira o que eu sentia, mas não sabia (e nãosabe) expressar — essa necessidade primeiro de uma leal-dade às coisas, e depois de uma devastadora reforma de-las? Em seguida eu me lembrei de que realmente a acusaçãocontra o cristianismo era a de que ele combinava essas duascoisas que eu loucamente tentava combinar. O cristianis-mo foi acusado de ser, ao mesmo tempo, otimista demaissobre o universo, e pessimista demais acerca do mundo. Acoincidência de repente me faz ficar paralisado.

Surgiu na controvérsia moderna o hábito imbecil de di-zer que tal e tal crença pode ser sustentada numa época,

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mas não em outra. Alguns dogmas, dizem, eram críveis naséculo XII, mas não no século XX. Alguém poderia igual-mente dizer que determinada filosofia pode ser abraça-da na segunda-feira, mas não se pode acreditar nela naterça. Alguém poderia também falar que determinada vi-são de mundo é adequada às três e meia, mas não às qua-tro e meia. Aquilo em que um homem pode acreditardepende de sua filosofia, não do relógio ou do século. Quemacredita numa lei natural inalterável não pode acreditarem nenhum milagre em nenhuma época.

Suponhamos, só para argumentar, que estamos falan-do de um caso de cura milagrosa. Um materialista do sécu-lo XII não poderia acreditar nela mais do que ummaterialista do século XX. Mas um cientista cristão do sé-culo XX pode acreditar nela tanto quanto um cristão doséculo XII. É simplesmente uma questão da teoria que setem da realidade. Portanto, quando se trata de uma res-posta histórica, o ponto básico não é saber se essa respostafoi dada no nosso tempo, mas se foi dada em resposta ànossa pergunta. E quanto mais eu pensava sobre quando ecomo o cristianismo surgira no mundo, tanto mais eu sen-tia que, de fato, viera para responder a essa pergunta.

São geralmente os cristãos frouxos e latitudinários quedirigem elogios totalmente indefensáveis ao cristianismo.Falam como se nunca houvesse existido nenhuma piedadeou compaixão até a vinda do cristianismo, um ponto sobreo qual um cidadão da Idade Média os teria mais do quedepressa corrigido. Eles explicam que o fato digno de notaacerca do cristianismo foi ele ter sido o primeiro a pregar

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simplicidade e autodomínio, ou espiritualidade e sinceri-dade.

Eles vão me considerar muito tacanho (o que quer queisso signifique) se eu disser que o fato digno de nota acercado cristianismo foi ele ter sido o primeiro a pregar o cristia-nismo. Sua peculiaridade foi ser peculiar, e simplicidade esinceridade não são peculiares, mas ideais óbvios de toda ahumanidade. O cristianismo foi a resposta a um enigma, nãoo último truísmo proferido depois de uma longa conversa.

Alguns dias atrás vi num excelente semanário de ten-dência puritana a seguinte observação: o cristianismo,quando privado da sua armadura de dogmas (como alguémque falasse de um homem privado de sua armadura de os-sos), nada mais é do que a doutrina quaqueriana na LuzInterior. Ora, se eu dissesse que o cristianismo veio ao mun-do especialmente para destruir a doutrina na Luz Interior,isso seria um exagero. Mas estaria muito mais próximo daverdade.

Os últimos estóicos, como Marco Aurélio, foram exata-mente as pessoas que de fato acreditaram na Luz Interior.A sua dignidade, seu tédio, sua triste preocupação exteriorcom os outros, sua incurável preocupação interior consigo,tudo se devia à Luz Interior, e existia apenas naquela ilu-minação sombria. Note-se que Marco Aurélio insiste, comoesses moralistas introspectivos sempre fazem, em coisaspequenas praticadas ou não praticadas; isso se deve ao fatode ele não ter ódio ou amor suficiente para fazer uma revo-lução moral. Ele se levanta de manhã bem cedo, exatamentecomo os nossos aristocratas que praticam a Vida Simples

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se levantam de manhã bem cedo, porque esse altruísmo émuito mais fácil do que suprimir os jogos no anfiteatro oudevolver ao povo inglês as suas terras. Marco Aurélio é otipo humano mais intolerável. É um egoísta altruísta. Umegoísta altruísta é um sujeito que tem orgulho sem a des-culpa da paixão.

Dentre todas as formas concebíveis de iluminismo, a pioré o que essa gente chama Luz Interior. Dentre todas asreligiões horríveis, a mais horrível é a adoração do deusinterior. Qualquer que conheça alguém sabe como isso fun-ciona; qualquer que conheça alguém do Centro do Pensa-mento Superior sabe como isso realmente funciona. O fatode o Silva adorar o deus interior em última análise significaque o Silva adora o Silva. Que o Silva adore o sol ou a lua,qualquer coisa em vez da Luz Interior; que o Silva adoregatos ou crocodilos, se conseguir encontrá-los na rua, masnão o deus interior.

O cristianismo veio ao mundo acima de tudo para afir-mar com veemência que o homem não só não devia olharpara dentro, mas devia olhar para fora, contemplar comassombro e entusiasmo uma companhia divina e um capi-tão divino. O único prazer de ser cristão era que o homemnão ficava sozinho com a Luz Interior, mas definitivamen-te reconhecia uma luz exterior, bela como o sol, clara comoa lua, formidável como um exército com bandeiras.

Contudo, o Silva também pode não adorar o sol e a lua.Se o fizer, a tendência é que ele os imite; que diga que, se osol queima insetos vivos, ele também pode queimar insetosvivos. Acha que, pelo fato de o sol provocar insolações nas

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pessoas, ele pode provocar o sarampo nos vizinhos. Achaque, pelo fato de a lua ter a fama de enlouquecer os ho-mens, ele pode enlouquecer sua mulher.

Esse lado perverso do otimismo meramente externo tam-bém se mostrava no mundo antigo. Por volta da época emque o idealismo estóico começava a mostrar as fraquezasdo pessimismo, a velha adoração da natureza pelos anti-gos começava a mostrar as enormes fraquezas do otimismo.A adoração da natureza é bastante natural enquanto asociedade é jovem, ou, em outras palavras, não há nada deerrado com o panteísmo desde que seja a adoração de Pã.

Mas a natureza tem outro lado que a experiência e opecado não demoram a descobrir, e não é leviandade dizerdo deus Pã que ele logo mostrou seu casco fendido. A únicaobjeção à religião natural é que, de certo modo, ela semprese torna antinatural. Alguém ama a natureza de manhãpela sua inocência e amabilidade, e à noite, se ainda conti-nuar a amá-la, será pela sua escuridão e crueldade. Ele selava ao amanhecer em águas claras como faziam os Ho-mens Sábios dos estóicos; no entanto, de algum modo nofinal sombrio do dia, ele se lavará no sangue quente de umboi, como fazia Juliano, o Apóstata. A mera busca da saú-de sempre conduz a algo doentio.

A natureza física não deve ser transformada no objetodireto de obediência; ela deve ser desfrutada, não adora-da. As estrelas e as montanhas não devem ser levadas asério. Se o forem, nós vamos acabar onde acabou a adora-ção pagã da natureza. Por ser a terra bondosa, nós pode-mos imitar todas as suas crueldades. Por ser a sexualidade

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sadia, nós podemos enlouquecer por ela. O mero otimismoatingia seu final insano e apropriado. A teoria de que tudoera bom tornara-se uma orgia geral de tudo o que era ruim.

Em contrapartida, os nossos pessimistas idealistas fo-ram representados pelos velhos remanescentes dos estóicos.Marco Aurélio e seus amigos haviam de fato abandonadoa idéia de qualquer deus presente no universo e procura-vam apenas o deus interior. Não depositavam nenhumaesperança na virtude da natureza, e quase nenhuma espe-rança na virtude da sociedade. Não alimentavam um inte-resse suficiente no mundo exterior para realmente destruí-loou revolucioná-lo. Não amavam suficientemente a cidadepara atear-lhe fogo.

Assim, o mundo antigo estava exatamente diante do nos-so desolado dilema. As únicas pessoas que realmente des-frutavam desse mundo ocupavam-se em desintegrá-lo; eas pessoas virtuosas não atribuíam atenção suficiente a essagente para derrubá-la. Diante desse dilema (o mesmo quenós enfrentamos) o cristianismo de repente entrou em cenae apresentou uma resposta singular, que o mundo no fimaceitou como A resposta. Foi a resposta naquela época, eeu penso que é a resposta agora.

A resposta foi como um golpe de espada: separava. Nãounia, em nenhum sentido sentimental. Resumindo, sepa-rava Deus do cosmos. Aquela transcendência e nitidez dadivindade que alguns cristãos querem agora eliminar docristianismo era realmente a única razão pela qual as pes-soas queriam ser cristãs. Era toda a essência da respostacristã ao infeliz pessimista e ao ainda mais infeliz otimista.

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Como aqui só estou tratando do problema particular de-les, vou apenas indicar brevemente esta grande sugestãometafísica.

Todas as descrições do princípio que tudo cria e sus-tenta devem ser metafóricas, porque devem ser verbais.Assim o panteísta é forçado a falar de Deus presente emtodas as coisas como se ele estivesse dentro de uma caixa.Assim o evolucionista tem, no próprio nome que o designa,a idéia de estar se desenrolando como um tapete. Todosos termos, religiosos ou não-religiosos, estão abertos a essaacusação. A única pergunta é se todos os termos são inú-teis, ou se um deles pode, com uma dessas frases, cobriruma IDÉIA distinta sobre a origem das coisas.

Acho possível, e evidentemente assim o acha o evolucio-nista, caso contrário ele não falaria sobre evolução. E a ex-pressão radical para todo o teísmo cristão era esta: queDeus era um criador, como um artista é um criador. Umpoeta está tão separado de seu poema que ele mesmo refe-re-se a ele como uma coisinha que foi “jogada fora”. Atémesmo no ato de produzi-lo ele o jogou fora. Esse princípiosegundo o qual toda criação, toda procriação é um des-prender-se é no mínimo coerente através do cosmos comoo princípio evolucionário de que todo crescimento é umaramificação. Uma mulher perde o filho exatamente quan-do o está dando à luz. Toda criação é separação. O nasci-mento é uma despedida tão solene quanto a morte.

O princípio filosófico básico do cristianismo era queesse divórcio no ato divino de criar (como o que separa opoeta do poema ou a mãe do filho recém-nascido) era a

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verdadeira descrição do ato com o qual a energia absolutacriou o mundo. Segundo a maioria dos filósofos, Deus aocriar o mundo o escravizou. Segundo o cristianismo, ao criá-lo Deus o libertou. Deus havia escrito não exatamente umpoema, mas antes uma peça; uma peça que planejara àperfeição, mas que tinha necessariamente legado a atores ediretores humanos, que a partir daquele tempo a transfor-maram numa grande confusão. Discutirei mais adiante averdade desse teorema.

Aqui preciso apenas ressaltar a surpreendente tranqüi-lidade com que essa verdade resolveu o dilema que discuti-mos neste capítulo. Desse modo alguém podia ao menossentir alegria e indignação sem rebaixar-se e tornar-se pes-simista ou otimista. Baseado nesse sistema, podia-se lutarcontra todas as forças da existência sem desertar a bandei-ra da existência. Podia-se estar em paz com o universo e,no entanto, estar em guerra com o mundo. São Jorge aindapodia lutar contra o dragão, por maior que o monstro as-somasse ao cosmos, ainda que fosse maior que as cidadesou maior que as colinas eternas. Se ele fosse do tamanhodo mundo, mesmo assim ele poderia ser morto em nome domundo. São Jorge não precisou considerar nenhuma óbviadiferença ou proporção na escala das coisas, mas apenas osegredo original do plano delas. Ele pode brandir a espadacontra o dragão, mesmo que o dragão seja todas as coisas;mesmo que os céus vazios acima de sua cabeça sejam ape-nas a enorme arcada de suas mandíbulas abertas.

E depois aconteceu uma experiência que é impossíveldescrever. Foi como se eu houvesse estado tateando às ce-

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gas desde o berço com duas máquinas enormes e poucomanejáveis, de formato distinto e sem conexão aparente— o mundo e a tradição cristã. Eu descobrira esta falha nomundo: o fato de alguém ter de algum modo de amar o mun-do sem confiar nele; de alguma forma, devíamos amar omundo sem sermos mundanos. Descobri essa saliente ca-racterística da teologia cristã, como uma espécie de pontarígida a insistência dogmática de que Deus era pessoal ecriara um mundo separado de si mesmo.

A ponta do dogma encaixava-se exatamente na falhado mundo — evidentemente fora concebida para ocuparesse espaço — e então uma coisa estranha começou a acon-tecer. Assim que essas duas partes das duas máquinas seajustaram, uma depois da outra, todas as demais se encai-xaram, combinando com misteriosa exatidão. Eu podia ou-vir peça por peça em toda a maquinaria ocupando seu lugarcom uma espécie de clique de alívio. Depois de ajustadauma parte, todas as outras repetiam o ajuste, como toqueapós toque o relógio bate o meio-dia. Instinto após instin-to era respondido por doutrina após doutrina. Ou, paravariar a metáfora, eu era como alguém que houvesse avan-çado num país inimigo para tomar uma alta fortaleza. Equando o forte caíra, todo o país se rendera, posicionando-se em bloco atrás de mim.

A paisagem toda estava iluminada, por assim dizer, re-montando aos campos da minha infância. Todas aquelasfantasias cegas da meninice que no quarto capítulo em vãotentei identificar nas trevas, de repente, tornaram-se trans-parentes e sadias. Eu estava certo quando senti que as

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rosas eram vermelhas por alguma espécie de escolha: era aescolha divina. Eu estava certo quando senti que eu quasepreferia dizer que a relva tinha a cor errada a dizer queaquela sua cor devia ser necessária: ela poderia de fato serde qualquer outra cor.

Minha percepção de que a felicidade pendia do fio in-certo de uma condição, no fim das contas, significava algu-ma coisa: significava toda a doutrina da Queda. Mesmoaqueles sombrios e informes monstros de noções que nãofui capaz de descrever, muito menos de sustentar, ocupa-ram suavemente seus espaços como colossais cariátides docredo. A fantasia de que o cosmos não era vasto e vazio,mas pequeno e aconchegante, tinha agora um significadorealizado, pois toda obra de arte deve ser pequena aos olhosdo artista: para Deus as estrelas talvez fossem apenas mi-núsculas e caras, como diamantes. E o meu persistente ins-tinto de que, de algum modo, o bem não era simplesmenteum instrumento a ser usado, mas uma relíquia a ser preser-vada, como os bens do navio de Crusoé — até isso fora otímido sussurro de algo originariamente sábio, pois, segun-do o cristianismo, éramos de fato os sobreviventes de umnaufrágio, a tripulação de um navio dourado que fora apique antes do começo do mundo.

Mas o ponto importante era o seguinte: que tudo issoinvertera totalmente a razão do otimismo. E no instanteem que a inversão aconteceu, senti um súbito alívio comoquando um osso é recolocado em sua articulação. Muitasvezes chamara-me de otimista, para evitar a blasfêmia pordemais evidente do pessimismo. Mas todo o otimismo da

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época tinha sido falso e desanimador por esta razão: elesempre tentara provar que estamos em harmonia com omundo.

O otimismo cristão baseia-se no fato de NÃO nos encai-xarmos no mundo. Eu tentara ser feliz dizendo a mim mes-mo que o homem é um animal como outro qualquer queprocurava seu alimento provindo de Deus. Mas agora euestava realmente feliz, pois aprendera que o homem é umamonstruosidade. Eu estivera certo ao sentir que todas ascoisas eram estranhas, pois eu mesmo era simultaneamen-te pior e melhor que todas elas.

O prazer do otimista era prosaico, pois baseava-se nanaturalidade de tudo; o prazer cristão era poético, pois re-sidia na antinaturalidade de tudo à luz do sobrenatural. Ofilósofo moderno me dissera muitas e muitas vezes que euestava no lugar certo, e eu ainda me sentia deprimido mes-mo aceitando isso. Mas eu ouvira que estava no lugar ERRA-DO, e minha alma exultou de alegria, cantando como umpássaro na primavera. O conhecimento revelou e iluminouaposentos esquecidos da casa escura da infância. Agora eusabia por que a relva sempre me parecera estranha como abarba verde de um gigante, e por que eu podia sentir sau-dades de casa estando em casa.

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VI

PARADOXOS DO CRISTIANISMO

O VERDADEIRO PROBLEMA com este nossomundo não é que se trata de um mundo sem razão, nemtampouco de um mundo razoável. O tipo mais comum deproblema é que se trata de um mundo quase razoável, masnão totalmente. A vida não é um ilogismo; todavia, é umacilada para os lógicos. Parece simplesmente um poucomais matemática e regular do que é; sua exatidão é óbvia,mas sua inexatidão está escondida; sua loucura está à es-preita. Vou dar um exemplo grosseiro do que quero dizer.

Suponhamos que alguma criatura matemática prove-niente da lua examinasse o corpo humano; ela imediata-mente veria que o fato essencial nesse caso é que o corpo éduplicado. Um homem contém dois homens: um à direitaque se parece exatamente com outro à esquerda. Depoisde notar que há um braço do lado direito e outro do ladoesquerdo, uma perna à direita e outra à esquerda, ela po-deria ir adiante e ainda encontrar de cada lado o mesmonúmero de dedos nas mãos, o mesmo número de dedos nospés, olhos geminados, orelhas geminadas, narinas geminadase até lobos do cérebro geminados. No mínimo ela tomaria

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o fato como lei; e depois, quando encontrasse um coraçãode um lado, ela deduziria a presença de outro coração dooutro lado. E exatamente nesse momento, no ponto em quese sentisse mais segura de estar certa, ela estaria errada.

É esse silencioso desvio milimétrico da precisão que cons-titui o elemento misterioso presente em tudo. Parece umaespécie de traição secreta do universo. Uma maçã ou umalaranja é redonda o suficiente para ser chamada de redon-da, e, no entanto, no fim das contas, não é redonda. A pró-pria Terra tem a forma de uma laranja para induzir algumsimples astrônomo a chamá-la de globo. Em inglês dizemos“uma lâmina de grama” em alusão à lâmina de uma espa-da, porque ambas têm uma extremidade pontuda; mas nãoé bem assim.

Em todas as coisas, em toda parte, existe o elemento domisterioso e do incalculável. Ele foge aos racionalistas, massó escapa no último momento. Da grande curvatura daTerra alguém poderia facilmente inferir que cada centíme-tro dela apresentasse a mesma curva. Pareceria racionalque, assim como um ser humano tem um cérebro de am-bos os lados, ele devesse ter um coração dos dois lados.Todavia, os cientistas ainda estão organizando expediçõespara descobrir o Pólo Norte, porque eles gostam tanto depaisagens planas. Os cientistas estão organizando expedi-ções para descobrir o coração do ser humano; e quandotentam descobri-lo, geralmente procuram do lado errado.

Ora, a verdadeira percepção ou inspiração é mais bem tes-tada quando se observa se ela detecta essas malformaçõesou surpresas ocultas. Se o nosso matemático da lua visse

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PARADOXOS DO CRISTIANISMO 137

dois braços e duas orelhas, ele poderia deduzir as duasomoplatas e as duas metades do cérebro. Mas se ele adivi-nhasse que o coração do homem estava no lugar certo, en-tão eu deveria chamá-lo de algo mais que um matemático.

Ora, essa é exatamente a reivindicação que venho fa-zendo para o cristianismo. Não simplesmente que ele de-duz verdades lógicas, mas que quando de repente se tornailógico, ele encontrou, por assim dizer, uma verdade ilógi-ca. Ele não apenas acerta em relação às coisas, mas tam-bém erra (se assim se pode dizer) exatamente onde as coisassaem erradas. Seu plano se adapta às irregularidades ocul-tas e espera o inesperado. É simples no que se refere à ver-dade sutil. Admite que o homem tem duas mãos, mas nãoadmite (embora todos os modernistas lamentem o fato) adedução óbvia de que tenha dois corações.

Meu único propósito neste capítulo é mostrar isso; mos-trar que quando sentimos a existência de algo estranho nateologia cristã, geralmente vamos descobrir que existe algoestranho na verdade.

Eu aludi a uma frase absurda que afirmava que não sepode crer neste ou naquele credo em nossa época. É claroque se pode acreditar em qualquer coisa em qualquer épo-ca. Mas, embora pareça estranho, há de fato um sentidoem que um credo, quando digno de alguma crença, podeser abraçado mais firmemente numa sociedade complexado que numa simples. Se um homem julgar que o cristianis-mo é verdadeiro em Birmingham, ele realmente tem razõesmais claras para ter fé do que se o tivesse julgado verda-deiro em Mércia. Pois quanto mais complicada parecer a

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coincidência, tanto menos ela pode ser uma coincidência.Se caíssem flocos de neve na forma, digamos, do coraçãode Midlothian,1 poderia ser um acidente. Mas se caíssemflocos de neve com a forma exata do labirinto de HamptonCourt, acho que se poderia chamar isso de milagre.

É exatamente esse tipo de milagre que passei a perceberna filosofia do cristianismo. A complicação do nosso mun-do moderno prova a verdade do credo mais perfeitamentedo que qualquer um dos simples problemas das épocas defé. Foi em Notting Hill e Battersea que comecei a ver que ocristianismo era verdadeiro. É por isso que a fé tem aquelaelaboração de doutrinas e detalhes que tanto incomoda osque admiram o cristianismo sem acreditar nele. Quandoalguém abraça uma crença, essa pessoa se sente orgulhosade sua complexidade, como os cientistas se sentem orgu-lhosos da complexidade da ciência. O fato mostra como elaé rica em descobertas.

Se a crença simplesmente está certa, é um elogio dizerque ela é elaborada. Uma vareta poderia encaixar-se per-feitamente num buraco, ou uma pedra num vão, por meroacaso. Mas uma chave e uma fechadura são ambas com-plexas. E se uma chave se encaixa numa fechadura, vocêsabe que se trata da chave certa.

Mas essa complicada exatidão da coisa dificulta gran-demente o que me proponho fazer agora: descrever esseacúmulo de verdade. Fica muito difícil para um homem

1Condado escocês. A expressão “coração de Midlothian” refere-sea seu brasão.

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defender alguma coisa da qual ele está inteiramente con-vencido. É comparativamente fácil quando se está conven-cido em parte. Ele está convencido apenas em parte porquedescobriu esta ou aquela prova da coisa, e consegue explicá-la. Mas ninguém se sente realmente convencido acerca deuma teoria filosófica quando apenas descobre alguma coi-sa para prová-la.

A pessoa fica realmente convencida quando descobreque tudo prova aquela teoria. E quanto mais numerosasforem as razões apontando para essa convicção, tanto maisconfusa ela ficará se de repente for solicitada a resumi-las.Assim, se alguém perguntasse a um homem de inteligênciacomum, de supetão: “Por que você prefere a civilização àselvageria?”, ele olharia desesperado ao redor contemplan-do um objeto depois do outro, e só saberia responder vaga-mente: “Bem, existe esta estante de livros... e o carvão nacaixa de carvão... e pianos... e a polícia”. Toda a argumen-tação em defesa da civilização consiste no fato de que a ar-gumentação em sua defesa é complexa. A civilização feztantas coisas. Mas essa mesma multiplicidade de provas quedeveria tornar a resposta irrefutável torna-a impossível.

Portanto, toda convicção completa está envolvida numaespécie de desamparo. A crença é tão enorme que se exigemuito tempo para colocá-la em ação. Essa hesitação, muitoestranhamente, surge sobretudo de uma indiferença acer-ca do ponto onde se deveria começar. Todas as estradasconduzem a Roma; e isso é uma razão que explica por quemuitos nunca chegam lá. No caso desta defesa da convic-ção cristã confesso que eu tanto poderia começar a discussão

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com uma coisa quanto com outra; poderia começar comum nabo ou um táxi. Mas, se eu tiver de ter o mínimo de cui-dado para esclarecer o que quero dizer, será mais sensato,na minha opinião, continuar os argumentos gerais do últi-mo capítulo, que tinha como objetivo insistir na primeiradessas coincidências, ou melhor, ratificações místicas.

Tudo o que eu até então ouvira sobre a teologia cristãme alienara dela. Eu era pagão aos doze anos de idade eum perfeito agnóstico aos dezesseis; e não posso entenderninguém que ultrapasse os dezessete anos sem ter-se feitouma pergunta tão simples. Eu retive, de fato, uma obscurareverência por uma deidade cósmica e um grande interessehistórico pelo Fundador do cristianismo. Mas certamenteo via como um homem; embora talvez achasse que, mes-mo sob esse aspecto, ele levasse vantagem sobre alguns deseus críticos modernos.

Li a literatura cética e científica do meu tempo — tudonesse campo, pelo menos tudo o que pude encontrar emlíngua inglesa ao alcance de minhas mãos; e não li mais nada;quero dizer, mais nada de qualquer outro cunho filosófico.As obras sensacionalistas que também li pertenciam de fatoa uma tradição heróica e sadia do cristianismo; mas eu nãosabia disso naquele tempo. Nunca li uma linha deapologética cristã. Leio o menos possível disso atualmente.

Foram Huxley, Herbert Spencer e Bradlaugh que metrouxeram de volta à teologia ortodoxa. Eles me semearamna mente as primeiras fortes dúvidas da dúvida. Nossasavós estavam muito certas quando diziam que Tom Painee os livres-pensadores perturbavam a cabeça. Perturbavam

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mesmo. Perturbaram a minha de um modo horrível. Oracionalista me fez perguntar se a razão tinha alguma uti-lidade qualquer; e, quando terminei Herbert Spencer, eujá fora tão longe que duvidei (pela primeira vez na vida) sea evolução havia sequer acontecido. Quando depus a últi-ma das palestras atéias do Coronel Ingersoll, irrompeu oterrível pensamento: “Tu quase me persuadiste a ser cris-tão”. Eu o era de um modo desesperado.

Esse estranho efeito dos grandes agnósticos despertan-do dúvidas mais profundas do que aquelas que eles mes-mos alimentavam poderia ser ilustrado de muitas maneiras.Tomo apenas uma. À medida que eu lia e relia todas asexplicações não-cristãs ou anticristãs da fé, de Huxley aBradlaugh, uma lenta e terrível impressão se formava gra-dativa mas graficamente em minha cabeça — a impressãode que o cristianismo deve ser maximamente extraordiná-rio. Pois ele, no meu modo de entender, não só tinha osvícios mais ardentes, mas aparentemente tinha um talen-to místico para combinar vícios que pareciam incompatí-veis entre si.

O cristianismo era atacado de todos os lados e por to-das as razões contraditórias. Mal um racionalista acabarade demonstrar que ele pendia demais para o oriente, outrodemonstrava com igual clareza que ele pendia demais parao ocidente. Mal a minha indignação se arrefecera diantede sua configuração quadrada angular e agressiva, minhaatenção era novamente chamada para observar e conde-nar sua irritante natureza redonda e sensual. Caso algumleitor não tenha percebido aquilo de que estou falando,

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vou dar aleatoriamente os exemplos de que me lembro parailustrar a contradição interna dos ataques dos céticos.Apresento quatro ou cinco casos; tenho mais cinqüenta.

Assim, por exemplo, eu me comovia muito com o elo-qüente ataque contra o cristianismo pelo seu pessimismodesumano; pois eu pensava (e ainda penso) que o pessimis-mo sincero é o pecado que não tem perdão. O pessimismoinsincero é um refinamento social, mais agradável que de-sagradável; e felizmente quase todo pessimismo é insincero.

Mas se o cristianismo era, como essas pessoas diziam,algo puramente pessimista que se opunha à vida, então euestava perfeitamente preparado para explodir a Catedralde São Paulo em Londres. O fato, porém, extraordinárioera o seguinte: Eles me provavam no Capítulo 1, para mi-nha plena satisfação, que o cristianismo era demasiadopessimista; e depois, no Capítulo 2, começavam a me pro-var que ele era, em grande parte, otimista demais. Umaacusação contra o cristianismo dizia que ele, com suasmórbidas lágrimas e terrores, impedia que os homens bus-cassem a alegria e a liberdade no seio da natureza. Masoutra acusação era que ele confortava os homens com umaprovidência fictícia, e os situava num mundo cor-de-rosa ebranco.

Um grande agnóstico perguntava por que a naturezanão era suficientemente bonita, e por que era difícil serlivre. Outro grande agnóstico objetava que o otimismo cris-tão, “o manto do faz-de-conta tecido por mãos piedosas”,escondia de nós o fato de que a natureza era feia, e eraimpossível ela ser livre. Um racionalista mal terminara

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de chamar o cristianismo de pesadelo, e outro já começavaa chamá-lo de falso paraíso.

Isso me intrigava; as acusações pareciam inconsisten-tes. O cristianismo não podia ser, ao mesmo tempo, a más-cara negra de um mundo branco, e também a máscarabranca de um mundo negro. A condição do cristão no mun-do não podia ser, ao mesmo tempo, tão confortável que erauma covardia agarrar-se a ela, e tão desconfortável que erauma loucura suportá-la. Se o cristianismo falsificava a vi-são humana, devia falsificá-la de um jeito ou de outro; elenão podia usar óculos que eram verdes e também cor-de-rosa. Eu saboreei com alegria enorme, como fizeram todosos jovens daquela época, os sarcásticos insultos desferidospor Swinburne contra a insipidez do credo...

Tu conquistaste, ó pálido Galileu; o mundo com teu hálito

assumiu a cor cinza.2

Mas quando eu li as explicações do paganismo dadaspelo mesmo poeta (como, por exemplo, em “Atalanta”),concluí que, possivelmente, antes de o Galileu respirar so-bre ele, o mundo era ainda mais cinza. De fato, o poetadefendia, em abstrato, que a vida em si era negra como obreu. E, mesmo assim, o cristianismo de algum modo a obs-curecera. O mesmo homem que acusava o cristianismo depessimismo era ele também um pessimista. Achei que de-via haver algo de errado nisso. E por um louco instante

2Thou hast conquered, O pale Galilaean, the world has grown graywith Thy breath.

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passou-me pela cabeça que os melhores juízes para julgara relação da religião com a felicidade talvez não fossemaqueles que, segundo seus próprios relatos, não tinham nemuma coisa nem outra.

Deve-se entender que não fui precipitado ao concluirque as acusações eram falsas ou os acusadores eram tolos.Simplesmente deduzi que o cristianismo devia ser algo atémais estranho e mais perverso do que eles imaginavam.Uma coisa poderia ter esses dois vícios contraditórios; mas,nesse caso, deveria ser uma coisa bastante esquisita. Umhomem poderia ser gordo demais num ponto e magro de-mais em outro; mas ele seria uma figura estranha. A essaaltura os meus pensamentos concentravam-se apenas nafigura estranha da religião cristã; eu não alegava a existên-cia de nenhuma figura estranha na mente racionalista.

Aqui está outro argumento da mesma natureza. Eu sentique um forte argumento contra o cristianismo residia naacusação de que existe algo de tímido, monástico e poucoviril envolvendo tudo o que é chamado de “cristão”, espe-cialmente em sua atitude perante a resistência e a luta. Osgrandes céticos do século XIX eram muito viris. Bradlaughde um modo expansivo, Huxley de um modo reticente, fo-ram sem dúvida homens. Numa comparação, parecia-meclaro que havia algo de fraco e por demais paciente envol-vendo os conselhos cristãos. O paradoxo do evangelho so-bre a outra face, o fato de os sacerdotes jamais lutarem,uma centena de coisas tornava plausível a acusação de queo cristianismo era uma tentativa de fazer o homem pare-cer-se demais com a ovelha.

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Li isso e acreditei, e, se não tivesse lido nada em contrá-rio, teria continuado acreditando. Mas li algo muito dife-rente. Passei à página seguinte do meu manual agnóstico, emeu cérebro ficou de cabeça para baixo. Agora eu desco-bria que tinha de odiar o cristianismo não por ele lutarpouco demais, mas por sua luta excessiva. Parecia que ocristianismo era a matriz de todas as guerras. Ele inundarao mundo de sangue.

Eu ficara absolutamente zangado com o cristão porqueele nunca se zangava. E agora pediam-me que me zangas-se com ele porque sua raiva tinha sido o maior e mais hor-rível fenômeno da história humana; porque sua raivaensopara a terra e obscurecera o sol. As mesmas pessoasque censuravam o cristianismo pela brandura e não-resis-tência dos seus mosteiros também o censuravam pela vio-lência e pelo valor das Cruzadas. Foi por culpa do pobre evelho cristianismo (de um jeito ou de outro) que Eduardo,o Confessor, não quis lutar, ao passo que Ricardo Coraçãode Leão o fez. Os quacres, diziam-nos, eram os únicos cris-tãos típicos ; e, no entanto, os massacres de Cromwell eAlva eram típicos crimes cristãos.

O que poderia significar tudo isso? O que era esse cristia-nismo que sempre proibia a guerra e sempre produzia guer-ras? Qual poderia ser a natureza dessa coisa que se podiaxingar primeiro porque não lutava e, segundo, porque es-tava sempre lutando? Em que mundo enigmático nasceraesse monstruoso assassinato e essa monstruosa brandura?A configuração do cristianismo assumia uma figura maisestranha a cada instante.

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Apresento um terceiro argumento; o mais estranho detodos, porque envolve a única verdadeira objeção à fé. Aúnica objeção real à religião cristã é simplesmente que ela éuma única religião. O mundo é um lugar amplo, cheio detipos de pessoas muito diferentes. O cristianismo (alguémpoderia razoavelmente dizer) é uma única coisa que se li-mita a uma única espécie de gente; começou na Palestina epraticamente parou com a Europa.

Eu me sentia devidamente impressionado com esse ar-gumento na juventude, e muitas vezes me sentia atraídopara a doutrina freqüentemente pregada pelas SociedadesÉticas — isto é, a doutrina de que existe uma única grandeigreja inconsciente de toda a humanidade, estruturadasobre a onipresença da consciência humana. Os credos, di-ziam, dividem os homens; mas pelo menos as doutrinasmorais os uniram. A alma pode buscar as terras e épocasmais estranhas e remotas e lá ainda encontra o senso co-mum ético essencial. Ela poderia encontrar Confúcio de-baixo de árvores orientais, e ele estaria escrevendo: “Nãofurtarás”. Ela poderia decifrar o mais obscuro hieróglifo nomais primitivo deserto, e o significado decifrado seria: “Ascrianças devem dizer a verdade”.

Eu acreditava nessa doutrina da fraternidade de todosos homens na posse do senso moral, e ainda acredito nisso— junto com outras coisas. E ficava totalmente aborrecidocom o cristianismo por sugerir (segundo eu imaginava) queépocas inteiras de seres humanos haviam sido totalmenteprivados dessa luz da justiça e da razão. Mas depois eudescobri uma coisa assombrosa. Descobri que as mesmas

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pessoas que diziam que a humanidade era uma única igre-ja de Platão a Emerson também diziam que a moralidadehavia mudado totalmente, e o que era certo numa épocaera errado em outra.

Se eu pedisse, digamos, um altar, diziam-me que nãoprecisava disso, pois os homens, nossos irmãos, proferiamclaros oráculos e um único credo em seus costumes e ideaisuniversais. Mas se eu discretamente insistisse que um doscostumes universais dos homens era ter um altar, então osmeus agnósticos professores assumiam uma posiçãodiametralmente oposta e me diziam que os homens sem-pre haviam vivido nas trevas com superstições de selva-gens. Eu descobri que era seu escárnio diário contra ocristianismo dizer que ele era a luz de um único povo edeixara todos os outros morrerem nas trevas.

Mas eu também descobri que era sua especial vanglóriadizer que a ciência e o progresso eram descobertas de umúnico povo, e todos os outros povos haviam perecido nastrevas. Seu principal insulto ao cristianismo era de fato suaprincipal vanglória, e parecia haver uma estranha injusti-ça envolvendo toda a sua relativa insistência nas duas coi-sas. Quando se tratava de algum agnóstico ou pagão,devíamos nos lembrar de que todos os homens tinham umaúnica religião; quando se tratava de algum místico ouespiritualista, devíamos apenas considerar como eram ab-surdas as religiões que alguns homens acalentavam. Podía-mos confiar na ética de Epíteto, porque a ética não mudavanunca. Não devíamos confiar na ética de Bossuet, porquea ética havia mudado. Ela mudava em duzentos anos, masnão em dois mil.

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O caso começou a ficar alarmante. Não parecia tantoque o cristianismo era suficientemente perverso a pontode incluir qualquer vício, mas sim que qualquer pau erabom para bater nele. Como seria essa coisa assombrosa queas pessoas queriam tanto contradizer, a ponto de fazê-losem importar-se em contradizer a si mesmas?

Eu via a mesma situação de todos os lados. Não possodedicar mais espaço para discutir este caso em detalhes;mas, para que ninguém suponha que escolhi injustamentetrês argumentos acidentais, vou mencionar brevemente maisalguns. Assim, certos céticos escreveram que o grande cri-me do cristianismo fora o seu ataque contra a família; elearrastara as mulheres à solidão e contemplação do claus-tro, longe de sua casa e filhos.

Mas, em contrapartida, outros céticos (ligeiramentemais avançados) disseram que o grande crime do cristia-nismo foi obrigar-nos ao casamento e à constituição de umafamília; que o cristianismo condenava as mulheres à escra-vidão de sua casa e filhos, e lhes proibia a solidão e a con-templação. A acusação foi realmente invertida. Ou, ainda,certas frases das epístolas ou do ritual do casamento, naopinião de anticristãos, mostravam desprezo pelo intelec-to da mulher. Mas descobri que os próprios anticristãosnutriam o desprezo pelo intelecto feminino; pois sua gran-de chacota contra a igreja na Europa era que “apenasmulheres” a freqüentavam.

Ou então, o cristianismo era censurado por seus hábitosdespojados e estéreis; pelo burel e as ervilhas secas. Masno minuto seguinte o cristianismo era censurado por sua

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pompa e ritualismo; seus templos de pórfiro e paramentosde ouro. Ele era ofendido por ser simples demais e por serdemasiado colorido. De novo, o cristianismo sempre foraacusado de limitar em excesso a sexualidade, quando omalthusiano Bradlaugh descobriu que ele a limitava pou-co demais. Ele é muitas vezes acusado ao mesmo tempo deafetada respeitabilidade e de extravagância religiosa.

Entre as capas do mesmo panfleto ateu eu vi a fé censu-rada por sua desunião (“Um pensa uma coisa, outro pensaoutra.”) e censurada também por sua união (“É a diferen-ça de opinião que preserva o mundo de sucumbir.”). Namesma conversa um livre-pensador, amigo meu, censura-va o cristianismo por desprezar os judeus, e depois ele mes-mo o desprezava por ser judaico.

Eu desejava ser muito justo naquela época e desejo sermuito justo agora; e não concluí que o ataque contra ocristianismo era todo errado. Só concluí que se ele estavaerrado, estava de fato muito errado. Esses hostis horrorestalvez pudessem ser juntados numa única coisa, mas essacoisa devia ser muito estranha e solitária. Há homens quesão avarentos e também perdulários; mas eles são raros.Há homens que são sensuais e também ascéticos; mas elessão raros.

Mas se esse acúmulo de loucas contradições realmenteexistia, algo pacífico como um quacre e ao mesmo tempo san-guinolento, deslumbrante demais e surrado demais, austeroe, no entanto, pendendo absurdamente para a volúpia dosolhos, o inimigo das mulheres e seu insensato refúgio, umsolene pessimista e um parvo otimista, se essa perversidade

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existia, então havia nela algo totalmente supremo e único.Pois eu não descobri em meus professores racionalistas ne-nhuma explicação dessa excepcional corrupção.

O cristianismo (em termos teóricos) era aos olhos delesapenas um dos mitos e erros comuns dos mortais. ELES nãome deram nenhuma chave dessa maldade distorcida eantinatural. Esse paradoxo do mal adquiria a estatura dosobrenatural. Era, de fato, tão sobrenatural como a infali-bilidade do papa. Uma instituição histórica, que nunca deucerto, é realmente um milagre praticamente tão grandequanto uma instituição que não pode dar errado. A únicaexplicação que imediatamente me ocorria era que o cris-tianismo não provinha do céu, mas do inferno. Realmente,se Jesus de Nazaré não era o Cristo, ele devia ter sido oanticristo.

Depois, numa hora de quietude, um estranho pensa-mento me ocorreu feito um raio. De repente me entrara nacabeça outra explicação. Suponhamos que ouvíssemosmuita gente fazendo menções a um desconhecido. Supo-nhamos que ficássemos intrigados por ouvir alguns dizen-do que ele era alto demais; outros, baixo demais. Algunsfaziam objeções à sua obesidade; outros lamentavam a suamagreza. Alguns o achavam escuro demais; outros, lourodemais.

Uma explicação (como já se admitiu) seria que ele fosseuma figura estranha. Mas há outra explicação. Ele pode-ria ser a figura certa. Homens exageradamente altos po-deriam achá-lo baixo. Homens demasiado baixos poderiamachá-lo alto. Velhos machões a caminho da corpulência

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poderiam considerá-lo fisicamente mal fornido; velhos ja-notas a caminho da fraqueza poderiam sentir que ele seencorpara excedendo as linhas minuciosas da elegância.Talvez os suecos (que têm o cabelo amarelo como uma es-piga de milho) o chamassem de pardo, ao passo que os ne-gros o consideravam distintamente louro.

Talvez, em suma, essa coisa extraordinária seja realmen-te a coisa ordinária; pelo menos a coisa normal, o centro.Talvez, no fim das contas, o cristianismo fosse sadio e to-dos os seus críticos fossem loucos — de maneiras variadas.

Eu testei essa idéia perguntando-me se havia nalgumdos acusadores algo mórbido que pudesse explicar a acu-sação. Fiquei chocado ao descobrir que essa chave se en-caixava na fechadura. Por exemplo, era certamente estranhoque o mundo moderno acusasse o cristianismo simulta-neamente de austeridade física e de pompa artística. Masera também estranho, muito estranho, que o próprio mun-do moderno combinasse um luxo físico extremo com umaextrema ausência de pompa artística.

O homem moderno achava as túnicas de Becket exage-radamente ricas e suas refeições exageradamente pobres.Mas também é verdade que o homem moderno era de fatouma exceção histórica; homem nenhum antes jamais con-sumiu jantares tão elaborados vestindo roupas tão feias. Ohomem moderno achava a igreja simples demais exatamen-te onde a vida moderna era demasiado complexa; ele acha-va a igreja esplendorosa demais exatamente onde a vidamoderna é demasiado esquálida.

O homem que não gostava dos simples jejuns e das fes-tas era louco por ENTRÉES. O homem que tinha aversão a

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vestimentas usava calças esquisitas. E certamente, se ha-via nisso alguma insensatez qualquer, ela estava nas cal-ças, não na túnica de caimento discreto. Se havia algumainsensatez qualquer, ela estava nas extravagantes ENTRÉES,não no pão e vinho.

Examinei todos os casos e descobri que a chave até ago-ra se encaixava. O fato de Swinburne ter-se irritado com ainfelicidade dos cristãos e depois mais ainda com a felici-dade deles era fácil de explicar. Já não se tratava de umacomplicação de enfermidades do cristianismo, mas de umacomplicação de enfermidades de Swinburne. As limitaçõesdos cristãos o aborreciam simplesmente porque ele era maishedonista do que alguém sadio deveria ser. A fé cristã oaborrecia porque ele era mais pessimista do que alguémsadio deveria ser. Da mesma maneira os malthusianos ata-cavam por instinto o cristianismo, não porque haja nelealgo de antimalthusiano, mas porque há algo anti-humanono malthusianismo.

Apesar de tudo, eu sentia que não podia ser realmen-te verdade que o cristianismo era simplesmente sensato eocupava a posição intermediária. De fato havia nele umelemento de ênfase e até de delírio que justificava os secula-ristas em suas críticas superficiais. Talvez o cristianismofosse prudente, e passei a convencer-me de que ele era pru-dente, mas não do ponto de vista meramente mundano.Ele não era temperado e respeitável. Seus violentos cruza-dos e dóceis santos poderiam compensar-se uns aos outros;todavia, os cruzados eram muito violentos e os santos muitodóceis, dóceis além de qualquer decência.

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Ora, foi justamente nesse ponto da especulação que melembrei dos meus pensamentos acerca do mártir e do suici-da. Nessa questão sempre houvera a combinação de duasposições quase insanas que, no entanto, de algum modoeram equivalentes à sanidade. Esse caso era simplesmentemais uma contradição, e essa eu já descobrira que estavacerta. Esse era exatamente um dos paradoxos nos quais oscéticos encontraram o erro do credo; e nesse paradoxo euconstatava que o credo estava certo.

Por mais loucamente que os cristãos pudessem amar omártir ou odiar o suicida, eles nunca sentiram essas pai-xões mais loucamente do que eu as sentira muito antes desonhar com o cristianismo. Então a parte mais difícil e inte-ressante do processo mental se abriu, e comecei a delinearvagamente essa idéia em meio aos enormes pensamentosda nossa teologia. A idéia era aquela que eu havia esboça-do no tocante ao otimismo e o pessimismo de que não que-remos um amálgama de ambos, mas ambos no pontomáximo de sua energia; amor e ira, os dois inflamados.

Aqui vou apenas delinear a idéia em relação à ética. Masnão preciso lembrar ao leitor que a idéia dessa combinaçãoé de fato central na teologia ortodoxa. Pois a teologia orto-doxa tem insistido especialmente que Cristo não foi um serseparado de Deus e do homem, como um elfo, nem tam-pouco um ser meio humano e meio não humano, como umcentauro, mas as duas coisas ao mesmo tempo e as duascoisas de modo pleno, verdadeiro homem e verdadeiroDeus. Agora peço permissão para esboçar essa idéia comoa descobri.

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Todos os homens sensatos podem ver que a sensatez éuma espécie de equilíbrio; que alguém pode ser louco co-mendo demais, ou louco comendo de menos. Surgiram defato alguns modernos com vagas versões do progresso e daevolução procurando destruir o MESON ou equilíbrio deAristóteles. Parecem sugerir que temos de morrer à minguagradativamente, ou então continuar consumindo refeiçõescada vez maiores todas as manhãs para todo o sempre.

Mas o grande truísmo do MESON permanece válido paratodos os homens pensantes, e aqueles modernos não aba-laram nenhum equilíbrio, a não ser o deles mesmos. Con-cedendo-se, porém, que todos temos de manter umequilíbrio, o verdadeiro interesse surge com a pergunta decomo se pode mantê-lo. Esse foi o problema que o paganis-mo tentou resolver; esse foi o problema que, na minha opi-nião, o cristianismo resolveu e resolveu de um modo muitoestranho.

O paganismo declarou que a virtude estava em equilí-brio; o cristianismo declarou que ela estava em conflito: acolisão de duas paixões aparentemente opostas. É óbvioque elas não eram realmente inconsistentes; mas eramde tal natureza que ficava difícil sustentá-las ao mesmotempo. Sigamos por um momento a pista do mártir e dosuicida; e vamos analisar o caso da coragem. Nenhuma qua-lidade jamais confundiu tanto os miolos de sábios mera-mente racionais, complicando-lhes as definições.

A coragem é quase uma contradição em termos. Signifi-ca um forte desejo de viver que toma a forma de uma dis-posição para morrer. “Quem perder a sua vida, salvá-la-á,”

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não é um fragmento de misticismo para santos e heróis. Éum fragmento de orientação para o dia-a-dia de navegantese alpinistas. Poderia ser estampado no livro de orientaçõesou de exercícios para escaladores de montanhas. Nesse pa-radoxo está todo o princípio da coragem; mesmo da cora-gem totalmente terrena ou totalmente brutal. Um homemisolado pelo mar pode salvar a vida arriscando-a no preci-pício.

Ele só pode escapar da morte se for continuamente pi-sando a um centímetro dela. Um soldado cercado por ini-migos, se quiser achar uma saída, precisa combinar um fortedesejo de viver com uma estranha despreocupação com amorte. Ele não deve simplesmente agarrar-se à vida, poisentão será covarde — e não escapará. Ele não deve sim-plesmente aguardar a morte, pois então será suicida — enão escapará. Ele deve buscar a vida num espírito de furio-sa indiferença diante dela; deve desejar a vida como águae, no entanto, beber a morte como vinho.

Nenhum filósofo, imagino eu, jamais expressou esse enig-ma romântico com a necessária lucidez, e eu certamentenão o fiz. Mas o cristianismo fez mais; ele demarcou seuslimites nas terríveis sepulturas do suicida e do herói, mos-trando a distância entre quem morre por amor à vida equem morre por amor à morte. E depois disso sempre os-tentou acima das lanças européias o estandarte do misté-rio da cavalaria: a coragem cristã, que é um desdém damorte; não a coragem chinesa, que é um desdém da vida.

E agora eu começava a achar que essa dúplice paixãoera a chave cristã da ética em todos os pontos. Em todos os

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pontos o credo criava uma moderação a partir do choquesilencioso de duas emoções tempestuosas. Tomemos, porexemplo, a questão da modéstia, do equilíbrio entre o meroorgulho e a mera depressão. O pagão médio, assim como oagnóstico médio, simplesmente diria que estava contenteconsigo mesmo, mas não insolentemente satisfeito; quehavia muitas pessoas melhores e muitas piores do que ele;que seus méritos eram limitados, mas ele cuidaria de tê-los.

Em resumo, ele caminharia de cabeça erguida, mas nãonecessariamente de nariz empinado. Essa é uma posição ra-cional e digna de um homem, mas está aberta à objeçãoque vimos contra o compromisso entre o otimismo e o pes-simismo — a “resignação” de Matthew Arnold. Sendo umamistura de duas coisas, é uma diluição de ambas; nenhu-ma está presente em sua força plena e nenhuma contribuicom sua cor total. Esse orgulho adequado não eleva o co-ração como som das trombetas; você não pode vestir-se depúrpura e dourado por ele.

Em contrapartida, essa suave modéstia racionalista nãopurifica a alma com fogo, nem a deixa clara como cristal;ao contrário da humildade rigorosa e profunda, ela nãotransforma o homem numa criancinha, que pode sentar-seaos pés da relva. Ela não o faz olhar para o alto e ver mara-vilhas; pois Alice precisa ficar pequena se quiser ser Aliceno País das Maravilhas. Assim, essa modéstia perde tantoa poesia de ser orgulhosa quanto a poesia de ser simples. Ocristianismo buscou, por meio desse mesmo expediente es-tranho, salvar as duas coisas.

Ele separou as duas idéias e depois exagerou ambas. Numsentido, o homem devia sentir-se mais orgulhoso do que nun-

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ca; noutro ele devia ser mais humilde do que jamais fora.Na medida em que sou homem, sou a principal das criatu-ras. Na medida em que sou um homem, sou o principaldos pecadores. Toda a humildade que significara pessimis-mo, que significara assumir uma visão vaga ou mesquinhado próprio destino — tudo isso devia ser descartado.

Não devíamos mais dar ouvidos às lamúrias do Ecle-siastes dizendo que a humanidade não tinha primaziaalguma sobre os brutos, ou ao grito horrível de Homerodizendo que o homem era apenas o mais triste de todos osanimais do campo. O homem era uma estátua de Deus ca-minhando pelo jardim. O homem tinha primazia sobre to-dos os brutos; o homem só era triste por não ser um animal,mas sim um deus falido.

Os gregos haviam falado de homens rastejando sobre aterra, como se agarrados a ela. Agora o homem devia pisarsobre a terra como se quisesse subjugá-la. O cristianismo,desse modo, alimentou um pensamento de dignidade dohomem que somente poderia ser expresso em coroas raia-das como o sol e leques com plumagem de pavão. No en-tanto, ele podia ao mesmo tempo alimentar um pensamentosobre a abjeta pequenez do homem que só poderia ser ex-presso em jejuns e fantástica submissão, nas escuras cinzasde São Domingos e nas brancas neves de São Bernardo.

Quando alguém pensava em SI MESMO, havia espaço evazio suficientes para qualquer quantidade de sombria ab-negação e amarga verdade. Ali o cavalheiro realista podiatomar todas as liberdades — desde que as tomasse consi-go. Havia um playground aberto para o feliz pessimista.

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Deixemos que ele diga o que quiser contra si, desde quenão blasfeme contra o objetivo original de seu ser; deixe-mos que ele chame a si de louco, até mesmo de louco dana-do (embora isso seja calvinista); mas ele não deve dizerque os loucos não são dignos de salvação. Ele não deve di-zer que um homem, na qualidade de homem, pode não tervalor.

Aqui, mais uma vez resumindo, o cristianismo superoua dificuldade de combinar furiosos opostos mediante a ma-nutenção de ambos, cada uma com sua fúria. A Igreja foipositiva nos dois pontos. Não se pode fazer uma idéia pe-quena demais de si mesmo. Nem se pode fazer uma idéiagrande demais da própria alma.

Tomemos outro caso: a complicada questão da carida-de, que alguns idealistas altamente descaridosos parecemjulgar muito simples. A caridade é um paradoxo, como amodéstia e a coragem. Mal formulada, a caridade certamen-te significa uma de duas coisas: perdoar atos imperdoáveisou amar pessoas não amáveis. Mas se nos perguntarmos(como fizemos no caso do orgulho) o que um pagão sensa-to sentiria a respeito desse assunto, vamos provavelmentecomeçar da base da questão.

Um pagão sensato diria que há algumas pessoas que sepodem perdoar; e algumas que não se podem: um escravoque roubasse vinho poderia ser motivo de riso; um escra-vo que traísse seu benfeitor poderia ser morto e amaldiçoa-do mesmo depois de morto. Na medida em que o ato eraperdoável, o homem era perdoável. Isso, mais uma vez, éracional, e até reconfortante; mas é uma diluição. Não dei-

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xa espaço para o puro horror perante uma injustiça, comoaquele que é uma grande beleza no inocente. E não deixaespaço para a mera ternura pelos homens na qualidade dehomens, como a que constitui todo o fascínio do caridoso.

Como antes, o cristianismo entrou em cena. Entrou demaneira alarmante com uma espada e separou uma coisada outra. Separou o crime do criminoso. Ao criminoso de-víamos perdoar até setenta vezes sete. Ao crime não devía-mos perdoar de modo algum. Não bastava que os escravosque roubassem vinho inspirassem em parte ira e em partebondade. Nós devíamos nos irar muito mais com o furtodo que antes, e, no entanto, devíamos ser muito mais bon-dosos com os ladrões do que antes. Havia espaço para a irae para o amor sem limites. E quanto mais eu contemplavao cristianismo, tanto mais percebia que, embora ele hou-vesse estabelecido uma regra e uma ordem, o objetivo prin-cipal dessa ordem era permitir espaço para coisas boas semlimites.

A liberdade mental e emocional não é tão simples comoparece. Na realidade ela exige um equilíbrio de leis e condi-ções tão meticuloso como acontece com a liberdade sociale política. O anarquista estético comum que se dispõe asentir tudo livremente no fim se enreda num paradoxo quesimplesmente o impede de sentir. Ele foge dos limites fami-liares para seguir a poesia. Mas, cessando de sentir os limi-tes familiares, ele deixa de sentir a “Odisséia”. Está livre depreconceitos nacionais e do patriotismo exterior. Mas es-tando fora do patriotismo, ele está fora de “Henrique V”.

Esse tipo de literato está simplesmente fora de toda lite-ratura: é mais prisioneiro do que qualquer fanático. Pois,

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se há um muro entre você e o mundo, faz pouca diferençavocê se descrever como alguém fechado dentro ou alguémfechado fora. O que queremos não é a universalidade queestá fora dos sentimentos normais; queremos a universali-dade que está dentro de todos os sentimentos normais. Aliestá toda a diferença entre estar livre fora deles, como umhomem está livre fora da prisão, e estar livre deles, comoum homem se livra de uma cidade. Eu estou livre fora doCastelo de Windsor (isto é, não estou forçosamente detidolá dentro), mas de modo algum estou livre daquele prédio.

Como pode o homem estar praticamente livre de belasemoções, conseguindo atirá-las num espaço definido semruptura ou injustiça? Essa foi a proeza desse paradoxo cris-tão das paixões paralelas. Concedido o primeiro dogma daguerra entre o divino e o diabólico, a revolta e a ruína domundo, o seu otimismo e pessimismo, como poesia pura,puderam desprender-se feito cataratas.

São Francisco, elogiando todo o bem, pôde ser um oti-mista mais retumbante do que Walt Whitman. São Jerô-nimo, denunciando todo o mal, pôde pintar um mundomuito mais negro que Schopenhauer. As duas paixões es-tavam livres porque as duas eram mantidas dentro de seuespaço.

O otimista poderia despejar todo o louvor que quisessesobre a bela música da marcha, as trombetas douradas eos purpúreos estandartes a caminho da batalha. Mas elenão deveria chamar a luta de desnecessária. O pessimistapoderia desenhar com as mais negras tintas que escolhesseas repugnantes marchas ou as sangrentas feridas. Mas elenão deveria chamar a luta de desesperada.

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O mesmo se aplicaria a todos os outros problemas mo-rais, ao orgulho, ao protesto e à compaixão. Definindo suadoutrina principal, a Igreja não apenas manteve lado a ladocoisas aparentemente inconsistentes, mas, o que é mais no-tável, permitiu que elas irrompessem numa espécie de vio-lência artística que em outras circunstâncias seria possívelapenas para anarquistas. A submissão humilde ficou maisdramática que a loucura.

O cristianismo histórico assumiu a estatura estranha deum COUP DE THEATRE da moralidade — coisas que estão paraa virtude como os crimes de Nero estão para os vícios. Osespíritos de indignação e de caridade assumiram formasterríveis e atraentes, variando da fúria monástica que cas-tigou como um cão o primeiro e maior dos plantagenetas,até a sublime compaixão de Santa Catarina, que, no ma-tadouro oficial, beijou a cabeça sangrenta do criminoso.

A poesia podia ser encenada bem como composta. Esseestilo heróico e monumental na ética desapareceu inteira-mente com a religião sobrenatural. Eles, sendo humildes,podiam exibir-se; mas nós somos orgulhosos demais parasermos proeminentes.

Nossos professores de ética escrevem com argumenta-ção racional em favor da reforma das prisões; mas não existea probabilidade de vermos o sr. Cadbury, ou qualquer ou-tro eminente filantropo, entrar no cárcere de Reading paraabraçar o cadáver estrangulado antes de ele ser atirado nacal viva. Nossos professores de ética escrevem com delica-deza contra o poder dos milionários; mas não existe a pro-babilidade de vermos o sr. Rockefeller, ou qualquer outro

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tirano moderno, publicamente chicoteado na Abadia deWestminster.

Assim, a dupla acusação dos secularistas, embora lan-çando apenas trevas e confusão sobre si mesmos, projetauma luz real sobre a fé. É verdade que a Igreja históricaenfatizou ao mesmo tempo o celibato e a família, defendeuferozmente ao mesmo tempo (se assim se pode dizer) quese deve ter filhos e que não se deve tê-los. Manteve as duascoisas lado a lado como duas cores fortes, vermelho e bran-co, como o vermelho e o branco no escudo de São Jorge.Sempre teve um ódio sadio pelo rosa. Ela odeia a combina-ção de duas cores, que é o fraco recurso dos filósofos. Elaodeia essa evolução do preto para o branco, que é o mesmoque um cinza sujo.

De fato, toda a teoria da Igreja sobre a virgindade pode-ria ser simbolizada na afirmação de que o branco é umacor: não simplesmente a ausência de cor. Tudo aquilo emque estou insistindo aqui pode ser expresso dizendo-se queo cristianismo procurou, na maioria desses casos, manteras duas cores coexistindo, porém puras. Não se trata deuma mistura como o castanho ou o roxo; trata-se antes dealgo como a seda jaspeada,3 pois a seda lustrada sempreforma ângulos retos, segundo o padrão da cruz.

Isso acontece, naturalmente, com as acusações contra-ditórias dos anticristãos sobre a submissão e a carnificina.Pois é verdade que Igreja pediu que alguns homens lutas-

3Seda tecida com um fio de uma cor na trama e um fio de outracor na urdidura. Dependendo do ângulo do qual se olha, o tecido apre-senta uma cor diferente e bem definida.

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sem e que outros não lutassem; e é verdade que aquelesque lutaram comportaram-se como raios e aqueles que nãolutaram, como estátuas. Tudo isso simplesmente significaque a Igreja preferiu usar seus super-homens e usar seustolstoianos.

Deve haver algo de bom na vida da batalha, pois tantoshomens bons sentiram prazer em ser soldados. Deve haveralgo de bom na idéia da não-resistência, pois tantos ho-mens bons parecem gostar de ser quacres. Tudo o que aIgreja fez (no que se refere a esse ponto) foi impedir queuma dessas coisas boas desbancasse a outra. Elas existi-ram lado a lado.

Os tolstoianos, tendo todos os escrúpulos de monges,simplesmente tornaram-se monges. Os quacres tornaram-se um clube em vez de uma seita. Os monges disseram tudoo que diz Tolstoi; despejaram lúcidas lamentações sobre acrueldade da batalha e a vaidade da vingança. Mas ostolstoianos não são suficientemente adequados para diri-gir o mundo inteiro; e nas épocas de fé não lhes foi permiti-do dirigi-lo.

O mundo não foi privado da última investida de sir JamesDouglas ou do estandarte da Donzela Joana. E às vezes essapura gentileza e essa pura ferocidade se encontraram e jus-tificaram a sua junção; o paradoxo de todos os profetas secumpriu, e, na alma do rei São Luís, o leão deitou-se com ocordeiro. Mas é preciso lembrar que o texto é interpretadocom demasiada leviandade. Com freqüência se assegura,especialmente em nossas tendências tolstoianas, que quan-do o leão se deita com o cordeiro o leão torna-se semelhan-te ao cordeiro. Mas isso é brutal anexação e imperialismo

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da parte do cordeiro. Isso é simplesmente o cordeiro absor-vendo o leão em vez de o leão comer o cordeiro.

O verdadeiro problema é o seguinte: Pode o leão deitar-se com o cordeiro e ainda reter sua régia ferocidade? Esse oproblema que a Igreja enfrentou; esse é o milagre que elaconseguiu.

Isso é o que chamei de adivinhar as excentricidades ocul-tas da vida. Isso é saber que o coração do homem está àesquerda e não no meio. Isso é saber não apenas que a Ter-ra é redonda, mas também exatamente onde ela é achata-da. A doutrina cristã detectou as esquisitices da vida. Elanão apenas descobriu a lei, mas previu as exceções.

Subestimam o cristianismo os que dizem que ele desco-briu a misericórdia; qualquer um poderia descobrir a mise-ricórdia. De fato todo o mundo o fez. Mas descobrir o planopara ser misericordioso e também severo — isso foi anteci-par uma estranha necessidade da natureza humana. Poisninguém quer ser perdoado por um pecado grande comose fosse um pecado pequeno.

Qualquer um poderia dizer que não deveríamos ser to-talmente infelizes, nem totalmente felizes. Mas descobriraté que ponto alguém pode ser totalmente infeliz sem eli-minar a possibilidade de ser totalmente feliz — isso foi umadescoberta na psicologia. Qualquer um poderia dizer: “Nempavonear-se, nem rastejar;” e seria um limite. Mas dizer:“Aqui você pode pavonear-se e ali você pode rastejar” —isso foi uma emancipação.

Esse foi o grande feito envolvendo a ética cristã; a des-coberta de um novo equilíbrio. O paganismo fora como umpilar de mármore, reto por sua proporção simétrica. O cris-

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PARADOXOS DO CRISTIANISMO 165

tianismo foi como uma áspera e romântica rocha, que,embora oscile sobre o pedestal a um ligeiro toque, todavia,sendo que suas exageradas excrescências se equilibram en-tre si, ali está entronizada há mil anos.

Numa catedral gótica as colunas eram todas diferentes,mas todas necessárias. Cada suporte parecia acidental efantástico; cada pilar era um contraforte. Assim tambémno cristianismo, aparentes acidentes se equilibravam.Becket usava um cilício sob suas vestes de ouro e púrpura,e há muito a dizer em defesa dessa combinação; pois Becketse beneficiava com o cilício enquanto as pessoas na rua sebeneficiavam vendo o ouro e a púrpura. Trata-se no míni-mo de um estilo melhor que o do milionário moderno, quepor fora exibe o preto e o desbotado para os outros e es-conde o ouro junto ao seu coração.

Mas o equilíbrio não estava sempre no corpo físico comono caso de Becket; o equilíbrio muitas vezes se distribuíapor todo o corpo da cristandade. Pelo fato de um homemrezar e jejuar nas neves do norte, flores poderiam ser arre-messadas em seus festivais nas cidades do sul; e pelo fatode fanáticos beberem água nas areias da Síria, outros ho-mens ainda poderiam beber sidra nos pomares da Ingla-terra. Isso é o que torna o cristianismo ao mesmo tempomuito mais intrigante e interessante do que o império pa-gão; exatamente como a catedral de Amiens não é melhor,mas é mais interessante do que o Partenon.

Se alguém quer uma prova moderna de tudo isso, queconsidere o curioso fato seguinte: sob o cristianismo, a Eu-ropa (embora continue sendo uma unidade) dividiu-se emnações individuais. O patriotismo é um exemplo perfeito

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desse deliberado equilíbrio de uma qualidade enfática con-tra outra. O instinto do império pagão teria dito: “Vocêstodos serão cidadãos romanos e se tornarão semelhantesentre si; que os alemães sejam menos lentos e reverentes;que os franceses sejam menos experimentais e rápidos”. Maso instinto da Europa cristã diz: “Que os alemães permane-çam lentos e reverentes, para que os franceses possam, emmaior segurança, ser rápidos e experimentais. Vamos criarum equilíbrio a partir desses excessos. O absurdo chamadoAlemanha deverá corrigir a insensatez chamada França”.

Último e mais importante: é exatamente isso que expli-ca o que é tão inexplicável para todos os críticos modernosda história do cristianismo. Refiro-me às monstruosas guer-ras sobre pequenos pontos de teologia, os terremotos deemoção envolvendo um gesto ou uma palavra. Era apenasuma questão de um centímetro; mas um centímetro é tudoquando você está equilibrando.

A Igreja não poderia se dar ao luxo de oscilar um milí-metro em alguns pontos, se quisesse continuar seu grandee ousado experimento do equilíbrio irregular. Assim que sepermitisse que uma idéia perdesse um pouco de sua força,alguma outra idéia ganharia força demais. O que o pastorcristão conduzia não era um rebanho de ovelhas, mas simuma manada de touros e tigres, de terríveis ideais e vora-zes doutrinas, cada uma delas forte o suficiente para trans-formar-se numa falsa religião e devastar o mundo.

Lembre-se de que a Igreja abraçou especificamente idéiasperigosas; ela foi uma domadora de leões. A idéia do nas-cimento por meio do Espírito Santo, da morte de um serdivino, do perdão dos pecados ou do cumprimento das pro-

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PARADOXOS DO CRISTIANISMO 167

fecias — qualquer um pode ver que são idéias que preci-sam apenas de um toque para transformar-se em algo blas-femo ou feroz. Os artífices do Mediterrâneo deixaram queo menor elo se partisse, e o leão do pessimismo ancestralrompeu sua cadeia nas esquecidas florestas do norte. Des-sas compensações teológicas devo falar mais adiante. Aquibasta observar que se algum pequeno erro fosse cometi-do na doutrina, enormes disparates poderiam ser cometi-dos na felicidade humana.

Uma frase formulada erroneamente acerca da nature-za do simbolismo teria quebrado todas as melhores está-tuas da Europa. Um deslize nas definições poderia parartodas as danças; poderia secar todas as árvores de Natalou quebrar todos os ovos de Páscoa. As doutrinas tinhamde ser definidas dentro de rigorosos limites, até mesmo paraque o homem pudesse desfrutar de liberdades humanasgerais. A Igreja precisou ser cuidadosa, se não por outromotivo para que o mundo pudesse ficar despreocupado.

Essa é a emocionante aventura da Ortodoxia. As pes-soas adquiriram o tolo costume de falar de ortodoxia comoalgo pesado, enfadonho e seguro. Nunca houve nada tãoperigoso ou tão estimulante como a ortodoxia. Ela foi asensatez, e ser sensato é mais dramático que ser louco. Elafoi o equilíbrio de um homem por trás de cavalos em loucadisparada, parecendo abaixar-se para este lado, depois paraaquele, mas em cada atitude mantendo a graça de umaescultura e a precisão da aritmética.

A Igreja em seus primeiros dias correu violenta e ve-lozmente com qualquer cavalo de batalha; no entanto, étotalmente anti-histórico dizer que ela apenas cometeu

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loucuras apegando-se a uma única idéia, como um fanatis-mo vulgar. Ela curvou-se para a esquerda e para a direita,na medida exata a fim de evitar enormes obstáculos. Numdado momento ela abandonou o enorme vulto do arianis-mo, apoiado por todos os poderes deste mundo para fazero cristianismo mundano demais. No instante seguinte elaestava se curvando para evitar o orientalismo, que o teriaespiritualizado demais.

A Igreja ortodoxa nunca tomou a rota fácil ou aceitouas convenções; a Igreja ortodoxa nunca foi respeitável. Te-ria sido mais fácil ter aceitado o poder terreno dos arianos.Teria sido mais fácil, durante o calvinista século XVII, cairno abismo infinito da predestinação. É fácil ser louco; éfácil ser herege. É sempre fácil deixar que cada época te-nha a sua cabeça; o difícil é não perder a própria cabeça. Ésempre fácil ser um modernista; assim como é fácil ser umsnob. Cair em qualquer uma das ciladas explícitas de erro eexagero que um modismo depois de outro e uma seita de-pois de outra espalharam ao longo da trilha histórica docristianismo — isso teria sido de fato simples.

É sempre simples cair; há um número infinito de ângu-los para levar alguém à queda, e apenas um para mantê-lode pé. Cair em qualquer um dos modismos, do agnosticismoà Ciência Cristã, teria de fato sido óbvio e sem graça. Masevitá-los a todos tem sido uma estonteante aventura; e naminha visão a carruagem celestial voa esfuziante atraves-sando as épocas. Enquanto as monótonas heresias estãoesparramadas e prostradas, a furiosa verdade cambaleia,mas segue de pé.

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VII

A ETERNA REVOLUÇÃO

FORAM AQUI ENFATIZADAS as seguintes pro-posições: primeiro, que algum tipo de fé é necessário emnossa vida até mesmo para melhorá-la; segundo, que al-gum tipo de insatisfação com as coisas como elas se apre-sentam é necessária até mesmo para sentir-se satisfeito;terceiro, que para se ter esse contentamento e desconten-tamento, ambos necessários, não basta ter o equilíbrio ób-vio do estóico. Pois a mera resignação não tem a gigantescaleveza do prazer, nem a orgulhosa intolerância da dor. Háuma objeção vital ao conselho de simplesmente sorrir e su-portar. A objeção é que se você simplesmente suportar, vocênão sorri. Os heróis gregos não sorriem; mas as gárgulassim — porque são cristãs. E quando um cristão está satis-feito, ele se sente (no sentido mais exato da palavra) as-sustadoramente satisfeito; a sua satisfação é assustadora.

Cristo profetizou toda a arquitetura gótica naquela horaem que gente nervosa e respeitável (gente como os que hojefazem objeções ao realejo) objetava contra a gritaria dosmoleques de rua de Jerusalém. Disse ele: “Se eles se cala-rem, as pedras clamarão”. Sob o impulso do seu espírito

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surgiram como em clamoroso coro as fachadas das cate-drais medievais, apinhadas de rostos gritando e bocas aber-tas. A profecia se cumpriu: as próprias pedras gritam.

Feitas essas concessões, mesmo que só para argumen-tar, podemos retomar a discussão na linha do pensamentodo homem natural, que os escoceses (com lamentável fa-miliaridade) chamam de “the old man” (o velho homem).Podemos fazer a pergunta seguinte, que se nos apresentade modo tão óbvio. Alguma satisfação é necessária atémesmo para melhorar as coisas. Mas o que queremos sig-nificar dizendo “melhorar as coisas”? A maior parte daconversa moderna sobre esse assunto é mera argumenta-ção em círculo — aquele círculo que já tomamos como sím-bolo de loucura e de mero racionalismo. A evolução só éboa se produzir o bem; o bem só é bom se ajudar a evolu-ção. O elefante ergue-se sobre a tartaruga, e a tartaruga,sobre o elefante.

Obviamente, não adianta tirar o nosso ideal do princí-pio da natureza, pela simples razão de que (excetuando-sealguma teoria humana ou divina) não há na natureza ne-nhum princípio. Por exemplo, o reles antidemocrata de hojelhe dirá solenemente que não há na natureza nenhumaigualdade. Ele está certo, mas não percebe o adendo lógico.Não há na natureza nenhuma igualdade; mas também nãohá nenhuma desigualdade. A desigualdade, tanto quantoa igualdade, implica um padrão de valores.

Ver aristocracia na anarquia dos animais é exatamentetão sentimental como ver nela democracia. Tanto a aristo-cracia como a democracia são um ideal: a primeira diz que

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todos os homens são preciosos; a segunda, que alguns ho-mens são mais preciosos que os outros. Mas a naturezanão diz que os gatos são mais preciosos que os ratos; a na-tureza não faz nenhuma observação sobre o assunto. Elanem sequer diz que o gato é digno de inveja ou que o ratoé digno de dó. Nós pensamos que o gato é superior porquetemos (ou a maioria de nós tem) uma filosofia particularafirmando que a vida é melhor que a morte. Mas se o ratofosse um rato pessimista alemão, ele talvez não pensasseque o gato o havia de algum modo derrotado. Pensaria queele havia derrotado o gato chegando antes dele à sepultu-ra. Ou então poderia sentir que ele de fato infligira um tre-mendo castigo ao gato mantendo-o vivo.

Exatamente como um micróbio poderia sentir-se orgu-lhoso por espalhar uma pestilência, assim o rato pessimis-ta poderia exultar ao pensar que estava renovando no gatoa tortura da existência consciente. Tudo depende da filo-sofia do rato. Você não pode dizer que há uma vitória ousuperioridade na natureza, a menos que tenha algumadoutrina acerca do que é superior. Você não pode dizerque o gato marca pontos, a menos que haja um sistema demarcação de pontos. Você não pode nem mesmo dizer queo gato leva a melhor, a menos que haja alguma coisa me-lhor para levar.

Não podemos, portanto, tomar da natureza o ideal emsi. E como estamos seguindo neste caso a primeira espe-culação natural, vamos excluir (por ora) a idéia de tomá-lode Deus. Precisamos ter a nossa própria visão. Mas as ten-tativas da maioria dos modernos de expressar essa visãosão muito vagas.

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Alguns recorrem simplesmente ao relógio: falam comose a passagem pelo tempo trouxesse alguma superioridade;assim, até mesmo alguém do melhor calibre mental usa semo menor cuidado a afirmação de que a moralidade huma-na nunca está atualizada. Como pode alguma coisa estaratualizada? Uma data não tem caráter. Como podemosdizer que as celebrações do Natal não são adequadas aovigésimo quinto dia de determinado mês?

O que o autor quis dizer, naturalmente, foi que a maio-ria está atrás da minoria preferida dele — ou na frente dela.Outros vagos modernos refugiam-se em metáforas mate-riais. De fato, essa é a marca principal dos modernos. Nãoousando definir sua doutrina do que é o bem, eles usam,sem restrição ou pudor, figuras físicas de linguagem e, piorde tudo, parecem pensar que essas analogias baratas sãoextremamente espirituais ou superiores à velha moralida-de. Assim, eles acham que é intelectual falar sobre coisasque são “elevadas”.

Isso é no mínimo o avesso do intelectual; trata-se de meraexpressão proveniente de uma torre ou de um cata-vento.“Tommy foi um bom menino” é uma afirmação puramen-te filosófica, digna de Platão ou Tomás de Aquino. “Tommylevou uma vida mais elevada” é uma metáfora grosseiraproveniente de uma régua de dez metros.

Essa, incidentalmente, é toda a fraqueza de Nietzsche,que alguns estão representando como pensador ousado eforte. Ninguém negará que ele foi um pensador poético esugestivo; mas foi exatamente o oposto de forte. Não foi demodo algum ousado. Ele nunca colocou suas idéias diante

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de si com palavras simples e abstratas, como fizeram os vigo-rosos e destemidos pensadores Aristóteles e Calvino e atémesmo Karl Marx. Nietzsche sempre se evadia de umaquestão usando uma metáfora física, como um jovial poe-ta menor. Ele dizia “além do bem e do mal” porque nãotinha a coragem de dizer “melhor que o bem e o mal”, ou“pior que o bem e o mal”.

Se ele houvesse enfrentado o pensamento sem metáfo-ras, teria visto que se tratava de um disparate. Assim, quan-do ele descreve o seu herói, não ousa dizer “o homem maispuro”, ou “o homem mais feliz”, ou “o homem mais triste”;pois todas essas expressões são idéias, e as idéias são alar-mantes. Ele diz “o homem superior” ou “o super-homem”,uma metáfora física, baseada em acrobatas ou alpinistas.

Nietzsche é realmente um pensador muito tímido. Real-mente não tem a mínima idéia do tipo de homem que elequer que a evolução produza. E se ele não sabe, com certe-za os evolucionistas comuns, que falam sobre coisas que são“mais elevadas”, também não sabem.

Além disso, algumas pessoas recorrem à mera submis-são e a imobilidade. A natureza vai fazer alguma coisa al-gum dia. Ninguém sabe o quê, ninguém sabe quando. Nãotemos motivos para agir e para não agir. Se alguma coisaacontece está certa; se alguma coisa é obstada está errada.Outro caso, algumas pessoas tentam antecipar a naturezafazendo alguma coisa, qualquer coisa. Pelo fato de poder-mos talvez criar asas, eles cortam as próprias pernas. Noentanto, eles não sabem de nada: a natureza poderia estartentando transformá-los em centopéias.

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Por último, há uma quarta classe de pessoas que tomamuma coisa qualquer que queiram e dizem que ela é o obje-tivo supremo da evolução. Essas são as únicas pessoas sen-satas. Essa é realmente a única maneira sadia de usar apalavra evolução, trabalhar por aquilo que se quer, e cha-mar isso de evolução.

O único sentido inteligível que progresso ou avanço podeter entre os homens é que temos uma visão definida e dese-jamos fazer o mundo inteiro conformar-se a essa visão. Sevocê quiser expressar-se assim, a essência da doutrina é queaquilo que nos rodeia é o mero método e a preparação paraalgo que temos de criar. Este não é um mundo, mas sim omaterial para um mundo. Deus não nos deu exatamente ascores de um quadro, mas sim as cores de uma paleta. Masele também nos deu um tema, um modelo, uma visão fixa.Devemos ter claro diante de nós o que queremos pintar.

Isso acrescenta mais um item à nossa lista anterior deprincípios. Dissemos que precisamos gostar do mundo, atémesmo para mudá-lo. Acrescentamos agora que precisa-mos gostar de outro mundo (real ou imaginário) para teralgo definido em que possamos transformar este mundo.

Não precisamos debater sobre as meras palavras evolu-ção ou progresso: pessoalmente prefiro chamar isso de re-forma. Pois reforma implica forma. Implica que estamostentando conformar o mundo a uma imagem particular;transformá-lo em algo que mentalmente já enxergamos.Evolução é uma metáfora que se origina na idéia de umdesenvolvimento automático. Progresso é uma metáforapara um simples caminhar ao longo de uma estrada — mui-

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to provavelmente a estrada errada. Mas reforma é umametáfora para homens racionais e determinados: significaque vemos determinada coisa fora de forma e queremoscolocá-la em forma. E sabemos qual é a forma.

Agora entra aqui em cena todo o fracasso e enorme dis-parate do nosso tempo. Nós misturamos duas coisas dife-rentes, duas coisas opostas. Progresso deveria significar queestamos sempre mudando o mundo para adaptá-lo à vi-são. Progresso realmente significa (neste exato momento)que estamos sempre mudando a visão. Deveria significarque agimos com lentidão, mas com certeza, na implanta-ção da justiça e misericórdia entre os homens; realmentesignifica que rapidamente pomos em dúvida a conveniên-cia da justiça e misericórdia: uma página insensata de qual-quer sofista prussiano faz os homens duvidarem disso.Progresso deveria significar que estamos sempre caminhan-do para a Nova Jerusalém. Realmente significa que a NovaJerusalém está sempre se afastando de nós. Não estamosalterando o real para que se adapte ao ideal. Estamos alte-rando o ideal: é mais fácil.

Exemplos bobos são sempre mais simples. Suponha-mos que um homem quisesse um tipo particular de mun-do; um mundo azul, por exemplo. Ele não teria motivo paraqueixar-se da leveza ou rapidez de sua tarefa; poderia la-butar por um longo tempo na transformação; poderia irtrabalhando (em todos os sentidos) até que tudo fosse azul.Poderia ter aventuras heróicas: a aplicação dos últimos re-toques num tigre azul. Poderia ter sonhos mágicos: osurgimento de uma lua azul. Mas se ele trabalhasse com

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afinco, esse reformador idealista certamente deixaria omundo (segundo a sua visão) melhor e mais azul do que oencontrara. Se alterasse uma folha de capim por dia paraa sua cor preferida, ele avançaria lentamente.

Mas se todos os dias alterasse a cor preferida, não pode-ria avançar absolutamente nada. Se, depois de ler um novofilósofo, ele começasse a pintar tudo de amarelo ou verme-lho, seu trabalho seria jogado fora: não haveria nada paramostrar, exceto alguns tigres azuis andando por aí, espéci-mes de seu mau estilo da fase inicial. Essa é exatamente aposição do típico pensador moderno.

Alguém dirá que isso é claramente um exemplo absur-do. Mas é literalmente um fato da história recente. Asgrandes e graves mudanças na nossa civilização políticapertencem todas ao início do século XIX, não ao final. Per-tencem à época de branco e preto, quando os homens acre-ditavam invariavelmente no conservadorismo dos tóris, noprotestantismo, no calvinismo, na Reforma e, com freqüên-cia, na Revolução. E tudo aquilo em que cada um acredi-tava, ele o martelava continuamente, sem ceticismo.

Houve um tempo em que a Igreja estabelecida poderiater caído e a Casa dos Lordes quase caiu. Foi porque osradicais eram suficientemente sábios e constantes e consis-tentes; foi porque os radicais eram suficientemente sábiosa ponto de serem conservadores. Mas na atmosfera atualnão há tempo e tradição suficientes no radicalismo paraderrubar o que quer que seja. Há muita verdade na suges-tão de Lorde Hugh Cecil (apresentada num belo discurso)de que a era da mudança acabou e de que a nossa era é de

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conservação e repouso. Mas provavelmente Lorde HughCecil ficaria muito magoado se percebesse (o que certa-mente acontece) que a nossa época é de conservação por-que é uma época de completa descrença.

Deixe que as crenças desapareçam com rapidez e fre-qüência, se você quer que as instituições permaneçam asmesmas. Quanto mais perturbada for a vida da mente, tan-to mais o mecanismo da matéria poderá agir por conta pró-pria. O resultado líquido de todas as nossas sugestõespolíticas, o coletivismo, o tolstoianismo, o neo-freudismo, ocomunismo, a anarquia, a burocracia científica —, o frutoevidente de todas elas é que a monarquia e a Casa dos Lor-des permanecerão. O resultado líquido de todas as novasreligiões será que a Igreja da Inglaterra não será desestabi-lizada, sabe Deus por quanto tempo. Foram Karl Marx,Nietzsche, Tolstoi, Cunninghame Grahame, Bernard Shawe Auberon Herbert que, entre eles, com gigantescos torsoscurvados, suportaram o trono do arcebispo de Cantuária.

Podemos dizer, de modo geral, que o pensamento livre éa melhor de todas as salvaguardas contra a liberdade. Con-trolada num estilo moderno, a emancipação da mente doescravo é a melhor maneira de impedir a emancipação des-se escravo. Ensine-o a preocupar-se com a questão de que-rer ou não ser livre, e ele não se libertará. De novo, pode-sedizer que este exemplo é remoto ou extremo. Mas, de novo,é exatamente verdade em relação ao homem da rua ao nossoredor.

É verdade que o escravo negro, sendo um bárbaro avil-tado, provavelmente terá um afeto humano de lealdade,

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ou um afeto humano pela liberdade. Mas o homem quevemos todos os dias — o trabalhador da fábrica do sr. Grad-grind, o pequeno funcionário do escritório do sr. Gradgrind— está mentalmente preocupado demais para preocupar-se com a liberdade. Ele é mantido sob controle com litera-tura revolucionária. É acalmado e mantido em seu lugarpor meio de uma constante sucessão de filosofias insensa-tas. Ele é marxista num dia, nietzcheano no outro, super-homem (provavelmente) no dia seguinte e escravo todosos dias.

A única coisa que permanece depois de todas as filoso-fias é a fábrica. O único homem que ganha com todas essasfilosofias é Gradgrind. Para ele valeria a pena manter suaescravidão comercial abastecida de literatura cética. E pen-sando nisso agora, parece óbvio: o sr. Gradgrind é famosopor doar bibliotecas. Nisso ele mostra a sua inteligência.Todos os livros modernos estão do seu lado. Enquanto avisão do céu estiver sempre mudando, a visão da terra seráexatamente a mesma. Nenhum ideal continuará por umtempo longo o suficiente para ser concretizado, mesmo queseja de modo parcial. O jovem moderno nunca mudará oambiente; ele sempre mudará a mente.

Essa, portanto, é a nossa primeira exigência envolvendoo ideal para o qual se direciona o progresso: ele deve serfixo. Whistler costumava fazer muitos estudos rápidos deum modelo; não importava se tinha de rasgar vinte retra-tos. Mas teria importado se ele erguesse o olhar e visse,cada vez, uma nova pessoa placidamente posando para oretrato. Assim, não interessa (comparativamente falando)

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quantas vezes a humanidade fracassa na imitação do seuideal; pois nesse caso os seus velhos fracassos são frutífe-ros. Mas interessa dramaticamente quantas vezes a hu-manidade muda o seu ideal; pois nesse caso todos os seusvelhos fracassos são infrutíferos.

O problema, portanto, é o seguinte: Como podemosmanter o artista descontente com o seu quadro e ao mes-mo tempo impedi-lo de sentir-se vitalmente insatisfeito coma sua arte? Como podemos manter alguém sempre insatis-feito com a sua obra e, no entanto, sempre satisfeito com otrabalho? Como podemos nos certificar de que o pintor doretrato jogará o retrato pela janela em vez de tomar a me-dida natural e mais humana de jogar o modelo?

Regras severas não somente são necessárias para gover-nar; também são necessárias para rebelar-se. Esse ideal fixoe conhecido é necessário para qualquer tipo de revolução.O homem às vezes atua lentamente com base em novasidéias; mas às vezes atua com rapidez com base em velhasidéias. Se eu quiser simplesmente flutuar ou desaparecerou evoluir, pode ser na direção de algo anárquico; mas seeu quiser rebelar-me, deve ser por algo respeitável.

Aqui está toda a fraqueza de certas escolas de pro-gresso e evolução moral. Elas sugerem que tem havido ummovimento lento na direção da moralidade, com uma im-perceptível mudança ética todos os anos ou a cada instan-te. Essa teoria tem apenas uma grande desvantagem. Elafala de um movimento lento na direção da justiça, mas nãopermite um movimento rápido. Não é permitido a um ho-mem levantar-se de repente e declarar que certo estado decoisas é intrinsecamente intolerável.

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Para esclarecer a questão é melhor tomar um exemploespecífico. Alguns dentre os vegetarianos idealistas, comoo sr. Salinas, dizem que é chegado o tempo de não maiscomermos carne. Por implicação, eles dão a entender quehouve um tempo em que era certo comer carne e sugerem(com palavras que poderiam ser citadas) que algum diapoderá ser errado consumir leite e ovos.

Não discuto aqui a questão do que é justiça para comos animais. Digo apenas que, seja o que for a justiça, eladeveria, em dadas condições, ser justiça rápida. Se um ani-mal sofre uma injustiça, nós deveríamos ser capazes decorrer em seu socorro. Mas como podemos correr se esta-mos, talvez, à frente do nosso tempo? Como podemos cor-rer para pegar um trem que talvez não chegue antes que sepassem alguns séculos? Como posso denunciar um homempor esfolar gatos, se exatamente agora ele é o que eu talvezvenha a ser depois de beber um copo de leite?

Uma esplêndida e insana seita russa corria por aí desa-trelando animais de todas as carroças. Como posso eu criarcoragem para desatrelar o cavalo do meu tílburi, quandonão sei se meu relógio evolucionário está um pouco adian-tado ou se o do cocheiro está um pouco atrasado? Supo-nhamos que eu diga ao patrão que explora empregados: “Aescravidão era adequada num dado estágio da evolução”.E suponhamos que ele me responda: “E o trabalho exaus-tivo é adequado neste estágio da evolução”. Como possoeu responder-lhe se não houver um padrão eterno? Se ospatrões exploradores podem estar atrasados em relação àmoralidade corrente, por que não deveriam os filantropos

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estar à frente dela? O que é afinal a moralidade corrente, anão ser no seu sentido literal — a moralidade que está sem-pre correndo em fuga?

Assim, podemos dizer que um ideal permanente é tãonecessário para o inovador como para o conservador. É ne-cessário quer desejemos que as ordens do rei sejam pron-tamente executadas, quer desejemos apenas que sejaprontamente executado o próprio rei. A guilhotina temmuitos pecados, mas, fazendo-lhe justiça, nela não há nadade evolucionário. O argumento evolucionário preferido en-contra a sua melhor resposta no machado. O evolucionistadiz: “Onde você traça a linha do limite?”. O revolucionistaresponde: “Eu a traço aqui: exatamente entre a sua cabeçae o seu corpo”.

Deve existir, num determinado momento, um certo eum errado abstratos para que o golpe possa ser desferido;deve existir algo eterno para que possa haver alguma coisarepentina. Portanto, para todos os propósitos humanos,para alterar as coisas ou para mantê-las como são, paradar um acabamento definitivo, como na China, ou para al-terá-lo todos os meses, como no início da Revolução Fran-cesa, é igualmente necessário que a visão seja uma visãofixa. Essa é a nossa primeira exigência.

Depois de ter escrito isso, eu senti mais uma vez a pre-sença de algo mais na discussão: como quem ouve o sino deuma igreja em meio ao som da rua. Algo parecia estar di-zendo: “O meu ideal pelo menos está fixo, pois foi fixadoantes das fundações do mundo. A minha visão de perfeiçãoindubitavelmente não pode ser alterada, pois se chama

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Éden. Você pode alterar o lugar para o qual se dirige, masnão pode alterar o lugar do qual saiu. Para o ortodoxo sem-pre deve haver um argumento em favor da revolução, poisno coração dos homens Deus foi posto sob os pés de Satã.No mundo superior o inferno uma vez se rebelou contrao céu. Mas neste mundo o céu está se rebelando contra oinferno.

“Para o ortodoxo sempre pode haver uma revolução, poisa revolução é uma restauração. Em qualquer momento vocêpode desferir um golpe em favor da perfeição que homemnenhum viu desde Adão. Nenhum costume imutável, ne-nhuma evolução mutável pode transformar o bem originalnoutra coisa que não seja o bem. O homem pode ter tidoconcubinas desde que as vacas têm chifres; mesmo assim,elas não fazem parte dele se são pecaminosas. Os homenspodem ter vivido sob opressão desde que os peixes vivemnas águas; mesmo assim, eles não deveriam ter passado porisso, se a opressão é pecaminosa. A corrente pode parecertão natural para o escravo, ou a maquilagem para a mere-triz, como a plumagem para o pássaro ou a toca para araposa; mesmo assim, elas não são naturais, se são pecami-nosas. Eu ergo a minha pré-histórica lenda para desafiartoda a sua história. A sua visão não é meramente um obje-to fixo: é um fato”. Eu parei para observar a coincidênciado cristianismo; mas fui em frente.

Fui em frente e examinei a necessidade seguinte de qual-quer ideal de progresso. Algumas pessoas (como já disse)parecem acreditar num progresso automático e impessoalpresente na natureza das coisas. Mas está claro que não se

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pode estimular nenhuma atividade política dizendo que oprogresso é natural e inevitável; isso não é uma razão paraser ativo, mas é antes uma razão para ser preguiçoso. Seestamos fadados a melhorar, não precisamos nos preo-cupar com isso. A doutrina pura do progresso é a melhorde todas as razões para não ser progressista. Mas não épara nenhum desses comentários óbvios que eu desejo pri-meiramente chamar a atenção.

O único ponto que chama a atenção é este: que se nóssupomos que a melhoria é natural, ela deve ser bastantesimples. O mundo poderia supostamente estar trabalhan-do para uma consumação, mas não para uma harmoniza-ção particular de muitas qualidades. Tomemos a nossacomparação original: a natureza por si só pode estar fi-cando mais azul; isto é, um processo tão simples que pode-ria ser impessoal. Mas a natureza não pode estar criandoum quadro cuidadoso feito de muitas cores selecionadas, amenos que ela seja pessoal. Se o fim do mundo fosse meraescuridão ou mera luz, ele poderia acontecer tão lenta einevitavelmente como o anoitecer ou o amanhecer. Mas seo fim do mundo for uma peça de elaborado e artísticochiaroscuro, então deve haver nele um plano, ou divino, ouhumano. O mundo, através do tempo, poderia enegrecercomo um quadro velho, ou descorar-se como um casacovelho; mas se ele é transformado numa peça particular dearte em branco e preto — então existe um artista.

Se a distinção não estiver clara, dou um exemplo comum.Ouvimos constantemente dos humanitários modernos umacrença cósmica particular. Uso a palavra “humanitários”

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no sentido comum, significando pessoas que defendem asreivindicações de todas as criaturas contra as reivindica-ções da humanidade. Eles sugerem que, através dos tem-pos, ficamos cada vez mais humanos, isto é, que um depoisdo outro, grupos e segmentos de seres, escravos, crianças,mulheres, vacas, ou seja lá o que for, foram gradativa-mente sendo contemplados pela misericórdia ou pela jus-tiça.

Dizem que outrora julgávamos certo comer seres huma-nos, o que não é verdade; mas não estou aqui preocupadocom a história dessas pessoas, que é altamente anti-histó-rica. De fato, a antropofagia é com certeza uma coisa de-cadente, não uma coisa primitiva. É muito mais provávelque o homem moderno coma carne humana por afetaçãodo que o homem primitivo a tenha comido por ignorância.Estou aqui apenas seguindo as linhas gerais de sua argumen-tação, que consiste em defender que o homem tornou-seprogressivamente mais clemente, primeiro com os cidadãos,depois com os escravos, depois com os animais e depois(presumivelmente) com as plantas.

Acho errado sentar-me em cima de um homem. Em bre-ve, vou achar errado sentar-me sobre um cavalo. No fim(suponho) vou achar errado sentar-me numa cadeira. Essaé a tendência da argumentação. E a seu favor pode-se di-zer que é possível falar dela em termos de evolução ou pro-gresso inevitável. Uma tendência constante de tocar cadavez menos coisas poderia — a gente sente — ser uma sim-ples tendência inconsciente básica, como a tendência deuma espécie a ter cada vez menos filhos. O impulso poderealmente ser evolucionário, porque é estúpido.

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O darwinismo pode ser usado para apoiar duas morali-dades insanas, mas não pode ser usado para apoiar umaque seja sadia. O parentesco e a competição de todas ascriaturas vivas podem ser utilizados como motivos paraalguém ser insanamente cruel ou insanamente sentimental,mas não para alimentar um amor sadio pelos animais. Combase na evolução, você pode ser desumano ou absurdamen-te humano; mas não pode ser um ser humano. O fato devocê e um tigre serem a mesma coisa pode ser motivo paraser gentil com o tigre. Ou então pode ser motivo para sertão cruel como o tigre. Um jeito é treinar o tigre a imitarvocê; outro jeito mais rápido é você imitar o tigre. Mas emnenhum desses casos a evolução lhe diz como tratar o tigreracionalmente, isto é, admirando-lhe as listras e evitando-lhe as garras.

Se você quer tratar um tigre racionalmente, precisa re-troceder ao jardim do Éden. Pois o obstinado lembrete con-tinuava a repetir-se: apenas o sobrenatural pode assumiruma visão sadia da natureza. A essência de todo panteís-mo, evolucionismo e religião cósmica moderna está real-mente nesta proposição: que a natureza é a nossa mãe.Infelizmente, se você considerar a natureza como mãe, vaidescobrir que ela é madrasta. O ponto principal do cristia-nismo era este: que a natureza não é a nossa mãe: a natu-reza é nossa irmã. Podemos sentir orgulho de sua beleza,uma vez que temos o mesmo pai; mas ela não tem autori-dade sobre nós; temos de admirá-la, não de imitá-la.

Isso confere ao prazer tipicamente cristão neste mundoum estranho toque de leveza que é quase frivolidade. A

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natureza foi mãe solene para os adoradores de Ísis e Cibele.Foi mãe solene para Wordsworth ou para Emerson. Mas anatureza não é solene para Francisco de Assis ou paraGeorge Herbert. Para São Francisco de Assis ela é irmã, atémesmo uma irmã menor: uma irmãzinha que dança, dequem se ri e a quem se ama.

Entretanto, esse está longe de ser o nosso ponto princi-pal neste momento. Entrei no assunto apenas para mos-trar de que forma constante e, por assim dizer, acidental achave se encaixa nas menores portas. Nosso ponto princi-pal aqui é que, se há uma simples tendência de melhoraimpessoal na natureza, é de presumir que seja uma tendên-cia para algum triunfo simples. Pode-se imaginar que algu-ma tendência automática na biologia possa agir para nosproporcionar um nariz cada vez mais comprido. Mas aquestão é a seguinte: nós queremos ter um nariz cada vezmais comprido? Imagino que não. Imagino que a maioriade nós deseja dizer ao nariz: “Até aqui, e não mais. Aqui atua orgulhosa ponta será detida”. Exigimos um nariz de taltamanho que possa nos assegurar um rosto interessante.

Mas não podemos imaginar uma simples tendência bio-lógica visando a produzir rostos interessantes, pois um ros-to assim é uma disposição particular de olhos, nariz e boca,numa relação extremamente complexa entre si. A proporçãonão pode ser uma tendência: ou é um acidente ou é um pla-no. O mesmo acontece com o ideal da moralidade humanae sua relação com os humanitários e anti-humanitários.

É concebível que o nosso contato manual com as coisasvenha a diminuir cada vez mais: deixaremos de conduzir

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cavalos e de apanhar flores. Talvez um dia sejamos obriga-dos a não perturbar a mente humana nem sequer com umadiscussão; a não perturbar o sono dos pássaros nem sequertossindo. Essa apoteose final aparentemente mostrará umhomem sentado totalmente imóvel, sem ousar mexer-separa não perturbar uma mosca, nem comer para não inco-modar um micróbio. Para uma consumação tão cruel comoessa poderíamos, talvez inconscientemente, caminhar. Masrealmente queremos uma consumação tão cruel?

De modo semelhante, poderíamos inconscientementeevoluir seguindo a linha de desenvolvimento oposta ounietzschiana — um super-homem esmagando super-ho-mens numa torre de tiranos até que o universo fosse des-truído por diversão. Mas queremos o universo destruídopor diversão? Não está perfeitamente claro que aquilo querealmente esperamos é um gerenciamento particular e umaproposição destas duas coisas: uma certa dose de restriçãoe respeito, uma certa dose de energia e de mistério?

Se nossa vida realmente quiser ser bela como um contode fadas, devemos nos lembrar de que toda a beleza de umconto de fadas está no seguinte: que o príncipe tem um es-panto que quase chega a ser medo. Se ele temer o gigante,será o seu fim; mas também se ele não se sentir atônitodiante do gigante, será o fim do conto de fadas. A questãotoda depende de ele ser ao mesmo tempo suficientementehumilde para espantar-se e suficientemente orgulhoso paradesafiar.

Assim, nossa atitude com o gigante do mundo não devesimplesmente ser de crescente delicadeza ou de crescente

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desprezo; deve haver uma determinada proporção das duascoisas — que esteja exatamente certa. Devemos ter em nósreverência suficiente por todas as coisas fora de nós a pon-to de pisar a grama com cuidado. Devemos também terdesprezo suficiente por todas as coisas fora de nós a pontode, na ocasião devida, cuspir nas estrelas. Mas, essas duascoisas (se quisermos ser bons e felizes) devem ser combina-das, não de qualquer modo, mas numa determinada com-binação.

A perfeita felicidade dos homens sobre a terra (se elaum dia acontecer) não será uma coisa plana e sólida, comoa satisfação dos animais. Será um equilíbrio exato e perigo-so; como o equilíbrio de um romance desesperado. O ho-mem precisa ter a medida exata e suficiente de fé em simesmo para ter aventuras; e ter a medida exata e suficien-te de dúvida de si mesmo para desfrutá-las.

Esta é, portanto, a nossa segunda exigência para o idealdo progresso. Primeiro, ele deve ser fixo; segundo, ele deveser composto. Não deve (se quiser satisfazer a alma) ser amera vitória de alguma coisa engolindo tudo o mais, amorou compaixão ou paz ou aventura. Deve ser um quadrocomposto desses elementos em sua melhor proporção e re-lação. Não estou preocupado neste momento em negar que,pela constituição das coisas, possa existir alguma culmina-ção boa assim reservada para a raça humana. Apenas res-salto que, se essa felicidade composta está fixada para nós,ela deve ter sido fixada por alguma mente; pois apenas umamente pode dosar as proporções exatas de uma felicidadecomposta.

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Se a beatificação do mundo for mera obra da natureza,então ela deve ser tão simples como o congelamento domundo, ou como a consumação do mundo pelo fogo. Po-rém, se a beatificação do mundo não for obra da natureza,mas sim uma obra de arte, então ela envolve um artista. Eaqui mais uma vez a minha contemplação foi fendida pelaantiga voz que dizia: “Eu poderia ter-lhe dito isso muitotempo atrás. Se houver algum determinado progresso, sópode ser o meu tipo de progresso, o progresso para umacidade completa de virtudes e ascendências onde a justiçae a paz conseguem se beijar. Uma força impessoal poderiaestar conduzindo você para uma vastidão de planura per-feita ou um pico de altura perfeita. Mas apenas um Deuspessoal pode estar conduzindo você (se, de fato, você estásendo conduzido) para uma cidade com ruas e proporçõesarquitetônicas exatas, uma cidade em que cada um podecontribuir na medida exata com sua própria cor para omanto multicolorido de José”.

De novo, portanto, duas vezes o cristianismo havia en-trado em cena com a resposta exata de que eu precisava.Eu dissera: “O ideal deve ser fixo”. E a Igreja respondera:“O meu é literalmente fixo, pois existiu antes de qualqueroutra coisa”. Eu disse depois: “Ele dever ser artisticamenteharmonioso, como um quadro”. E a Igreja respondeu: “Omeu é literalmente um quadro, pois eu sei quem o pintou”.Depois passei para a terceira questão, que, a meu ver, eranecessária para uma utopia ou ideal de progresso. Das três,esta é inifnitamente mais difícil de expressar. Talvez sepossa apresentá-la assim: nós precisamos de vigilância até

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mesmo na utopia, para não cairmos fora da utopia comocaímos do Éden.

Observamos que uma razão apresentada para ser pro-gressista é que as coisas tendem naturalmente a melhorar.Mas a única razão para sê-lo é que as coisas tendem natu-ralmente a piorar. A corrupção nas coisas não é apenas omelhor argumento para ser progressista; é também o únicoargumento contra ser conservador. A teoria conservadoraseria de fato irresistível e irrefutável se não fosse por esseúnico fato.

Mas todo conservadorismo se baseia na idéia de que,se você abandona as coisas à própria sorte, você as deixacomo são. Mas isso não acontece. Se você abandona umacoisa à própria sorte, você a deixa à mercê de uma tor-rente de mudanças. Se você abandona um poste branco àprópria sorte, ele logo será um poste preto. Se você desejaparticularmente que ele seja branco, precisa pintá-lo con-tinuamente; isto é, você precisa estar sempre promovendouma revolução. Em resumo, se você quer o velho poste bran-co, precisa ter um novo poste branco.

Mas isso que é verdade até no caso de coisas inanima-das é verdade, num sentido muito especial e terrível, nocaso de todas as coisas humanas. Uma vigilância quaseantinatural é de fato exigida dos cidadãos por causa dahorrível rapidez com que as instituições humanas envelhe-cem. Costuma-se falar, no jornalismo e em romances pas-sageiros, de homens que sofrem sob velhas tiranias. Mas,na verdade, os homens sempre sofreram sob tiranias no-vas; sob tiranias que haviam sido liberdades públicas ape-nas vinte anos antes.

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Assim, a Inglaterra enlouqueceu de alegria com a mo-narquia patriótica da rainha Elisabete; e depois (quaseimediatamente depois) enlouqueceu de raiva nas armadi-lhas da tirania do rei Carlos I. Assim também, na França amonarquia tornou-se intolerável, não apenas logo depoisde ter sido tolerada, mas logo depois de ter sido adorada.O filho do bem-amado Luís foi o Luís guilhotinado. Assim,da mesma forma, na Inglaterra do século XIX o fabricanteradical recebia do povo a confiança de um verdadeirotribuno, até que, de repente, ouvimos o socialista gritar queele era um tirano que comia gente como se come pão. As-sim também, quase até o último instante, confiamos nosjornais como sendo órgãos da opinião pública. Só recente-mente alguns de nós percebemos (não lentamente, mas comum susto) que eles obviamente não são nada disso. São,por sua própria natureza, o passatempo preferido de al-guns ricos.

Não temos de modo algum de nos rebelar contra a anti-guidade; temos de nos rebelar contra a novidade. São osnovos governantes, o capitalista ou o editor, que realmen-te sustentam o mundo moderno. Não há por que temerque um rei moderno tente passar por cima da constitui-ção; é mais provável que ele a ignore e trabalhe nos basti-dores. Ele não tirará vantagem de seu régio poder; o maisprovável é que ele tire vantagem de sua régia impotência,do fato de estar livre da crítica e da publicidade. Pois o reié a pessoa com mais privacidade no nosso tempo. Não seránecessário que ninguém lute contra a censura da impren-sa. Nós temos a censura pela imprensa.

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Essa surpreendente rapidez com que sistemas popula-res tornam-se opressivos é o terceiro fato que vamos pedirque a nossa perfeita teoria do progresso deduza. Ela devesempre atentar para todos os privilégios que sofrem abu-sos, todos os direitos trabalhistas que se tornam injustiças.Nessa questão eu estou plenamente de acordo com os revo-lucionistas. Eles estão realmente certos em não depositarsua confiança nos príncipes ou em qualquer um dos filhosdos homens. O chefe escolhido para ser o amigo do povotorna-se o inimigo do povo; o jornal fundado para dizer averdade existe agora para impedir que a verdade seja dita.Aqui, repito, senti que de fato estava do lado do revolucio-nário. E depois respirei novamente: pois me lembrei de queeu mais uma vez estava do lado do ortodoxo.

O cristianismo pronunciou-se de novo e disse: “Eu sem-pre afirmei que os homens eram naturalmente reinciden-tes no erro; que a virtude humana por sua própria naturezatendia a enferrujar e corromper-se; eu sempre afirmei queos seres humanos como tais cometem erros, especialmenteos seres humanos felizes, especialmente os seres humanosprósperos e orgulhosos. Essa revolução eterna, essa suspei-ta sustentada ao longo dos séculos, você (sendo um vagomoderno) a chama de doutrina do progresso. Se você fosseum filósofo, você a chamaria, como eu, de doutrina do pe-cado original. Você pode chamá-la de avanço cósmico tan-to quanto você quiser; eu a chamo o que ela é — a Queda”.

Falei da ortodoxia apresentando-se como uma espada;confesso que aqui ela se apresentou como uma acha-de-armas. Pois de fato (pensando nisso) o cristianismo é a única

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coisa remanescente que tem algum direito real de questio-nar o poder dos bem-nascidos e bem-criados. Ouvi muitasvezes os socialistas, e até mesmo os democratas, dizendoque as condições físicas dos pobres devem necessariamen-te torná-los mental e moralmente aviltados. Ouvi cientis-tas (ainda há cientistas que não se opõem à democracia)dizendo que, se dermos aos pobres condições mais sadias,o vício e a injustiça desaparecerão. Eu os escutei com hor-rível atenção, com tremenda fascinação. Pois era como ob-servar alguém serrando vigorosamente o galho da árvoreem que está sentado. Se esses democratas felizes pudessemprovar sua tese, eles desfeririam um golpe mortal na demo-cracia.

Se os pobres são assim totalmente desmoralizados, podeser ou não prático alçá-los a melhores condições. Mas écertamente muito prático privá-los dos direitos civis. Se ohomem que tem um quarto de dormir ruim não pode pro-duzir um voto bom, então a primeira e mais rápida dedu-ção é que ele nunca deverá votar. A classe governante, semcontradizer-se, pode afirmar: “Talvez leve algum tempo parareformar seu quarto de dormir. Mas se ele é a fera que vocêsafirmam que é, bastará um breve espaço de tempo paraele arruinar o nosso país. Portanto, vamos aceitar a suasugestão e não vamos dar a ele a menor oportunidade”.

Acho horrivelmente engraçado observar como o socia-lista sério estabelece com cuidado a fundação de toda aaristocracia, delongando-se maliciosamente sobre o eviden-te despreparo dos pobres para governar. É como ouvir al-guém numa festa formal desculpando-se por comparecer

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sem o traje exigido e explicando que recentemente se em-briagara, tinha o hábito de tirar a roupa na rua e, além dis-so, acabara de trocar o uniforme da prisão. Sente-se que, aqualquer momento, o anfitrião poderia dizer-lhe que defato, se a situação era assim tão grave, ele simplesmentenão precisava ter comparecido.

Assim é quando o socialista comum, de rosto radiante,prova que os pobres, depois de suas devastadoras expe-riências, não podem realmente ser dignos de confiança. Aqualquer momento os ricos poderiam dizer: “Então, estábem; nós não vamos confiar neles”, e lhe bateriam a portana cara. Com base na visão do sr. Blatchford sobre a here-ditariedade e o meio, a causa da aristocracia é totalmenteirrefutável. Se casas limpas e ar puro criam almas limpas epuras, por que não entregar o poder (pelo menos no mo-mento presente) àqueles que indubitavelmente têm arpuro? Se condições melhores tornarão os pobres mais ap-tos a governar-se a si mesmos, por que condições melhoresjá não deveriam tornar os ricos mais indicados para gover-ná-los?

Segundo o argumento comum do meio, a questão é bas-tante evidente. A classe confortável deve ser simplesmentea nossa vanguarda na utopia.

Existe alguma refutação à proposição de que aquelesque têm tido as melhores oportunidades provavelmenteserão nossos melhores guias? Existe alguma refutação àargumentação de que aqueles que respiraram ar puro de-veriam decidir por aqueles que respiraram ar poluído? Atéonde eu sei, só há uma refutação, e essa refutação é o cristia-

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nismo. Somente a Igreja cristã pode apresentar uma obje-ção à completa confiança nos ricos. Pois desde o início elamanteve que o perigo não estava no meio em que vive ohomem, mas sim no homem. Mais ainda, ela manteve quese quisermos discutir um meio perigoso, o mais perigoso detodos os meios é o meio confortável.

Eu sei que o fabricante mais moderno tem andado mui-to ocupado na tentativa de produzir uma agulha extraor-dinariamente grande. Eu sei que os mais recentes biólogostêm andado ansiosos por descobrir um camelo muito pe-queno. Mas se reduzirmos o camelo ao mínimo possível,ou se abrirmos o buraco da agulha ao máximo possível — se,em suma, supusermos que as palavras de Cristo tinham exata-mente o significado mínimo que poderiam ter, suas pala-vras devem no mínimo significar o seguinte: que é provávelque os ricos não sejam moralmente dignos de confiança.

O cristianismo, mesmo quando diluído, é forte o suficien-te para reduzir toda a sociedade moderna a trapos. O sim-ples mínimo da Igreja seria um ultimato mortal para omundo. Pois todo o mundo moderno está absolutamen-te baseado no pressuposto, não de que os ricos são neces-sários (o que é defensável), mas de que os ricos são dignosde confiança, o que (para um cristão) não é defensável.Você vai ouvir a vida inteira, em todas as discussões sobrejornais, companhias, aristocracias ou partidos políticos, oargumento de que o rico não pode ser subornado. O fato é,naturalmente, que o rico é subornado; ele já foi suborna-do. É por isso que ele é rico.

Todo esse argumento em favor do cristianismo é que umhomem que depende dos confortos desta vida é um homem

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corrupto, espiritualmente corrupto, politicamente corrup-to, financeiramente corrupto. Há uma coisa que Cristo etodos o santos cristãos disseram com uma espécie de mo-notonia cruel. Eles disseram simplesmente que ser rico écorrer um risco peculiar de desastre moral. Não se podedemonstrar que seja anticristão matar os ricos como viola-dores de uma justiça definível. Não se pode demonstrarque seja anticristão coroar os ricos como convenientes go-vernantes da sociedade. Não é certamente anticristão re-belar-se contra os ricos ou submeter-se a eles. Mas é comcerteza totalmente anticristão confiar nos ricos, considerarque os ricos são moralmente mais dignos de confiança queos pobres.

Um cristão pode coerentemente dizer: “Eu respeito aposição social daquele homem, embora ele aceite subor-nos”. Mas um cristão não pode dizer, como todos os mo-dernos andam dizendo no café da manhã e no almoço: “Umhomem daquela posição social não aceitaria subornos”. Poisé parte do dogma cristão que qualquer homem de qual-quer posição social pode aceitar subornos. É parte dodogma cristão; e acontece que, por uma curiosa coincidên-cia, é parte da óbvia história humana.

Quando as pessoas dizem que um homem “naquelaposição social” seria incorruptível, não há necessidade detrazer o cristianismo para a discussão. Acaso Lorde Baconera um engraxate? E o Duque de Marlborough era um gari?Na melhor das utopias, devo estar preparado para a que-da moral de qualquer homem de qualquer posição a qual-quer momento; devo estar preparado especialmente paraminha queda de minha posição neste momento.

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Muitos artigos de jornal vagos e sentimentais foram es-palhados para dizer que o cristianismo é semelhante à de-mocracia, e a maior parte deles mal tem força e clarezasuficientes para refutar o fato de que essas duas institui-ções muitas vezes brigaram entre si. O verdadeiro motivopelo qual o cristianismo e a democracia são uma coisa só émuito mais profundo. A única idéia especial e peculiarmenteanticristã é a de Carlyle: que deveria governar quem senteque pode fazê-lo.

Cristã pode ser qualquer outra coisa, isso é pagão. Se anossa fé fizer algum comentário sobre governo, o comentá-rio deve ser o seguinte: que deveria governar quem não achas-se que pode fazê-lo. O herói de Carlyle pode dizer: “Euserei rei”. Mas o santo cristão deve dizer: “Nolo episcopari”,ou seja, não quero ser bispo.

Se o grande paradoxo do cristianismo significa algumacoisa, é isto: que devemos tomar a coroa nas mãos e sairprocurando em lugares áridos e cantos sombrios da terraaté encontrar aquele homem que se sente inadequado parausá-la. Carlyle estava completamente equivocado. Nãodevemos coroar o homem excepcional que sabe que podegovernar. Devemos antes coroar o homem muito mais ex-cepcional que sabe que não pode.

Ora, esta é uma das duas ou três defesas vitais da de-mocracia que funciona. O mero mecanismo de votação nãoé democracia, embora atualmente não seja fácil criar al-gum método democrático mais simples. Mas mesmo o me-canismo de votação é profundamente cristão no sentidoprático de que é uma tentativa de obter a opinião daqueles

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que seriam modestos demais para manifestar-se. É umaaventura mística; é confiar especialmente naqueles que nãoconfiam em si mesmos.

Esse enigma é estritamente peculiar do cristianismo. Nãohá nada realmente humilde acerca da abnegação do bu-dista; o plácido hindu é plácido, mas ele não é humilde.Mas há algo psicologicamente cristão envolvendo a idéiade procurar a opinião dos obscuros em vez de seguir o ca-minho óbvio de aceitar a opinião dos proeminentes. Dizerque votar é particularmente cristão pode parecer um tan-to curioso. Dizer que pedir votos é cristão pode parecer mui-to estranho. Mas pedir votos é muito cristão na sua idéiaprimária. É encorajar os humildes; é dizer ao modesto: “Ami-go, sobe mais para cima”. Ou então, se há algum ligeirodefeito no pedido de votos, defeito esse que esteja em suaperfeita e completa piedade, só pode ser porque essa ativi-dade talvez deixe de estimular a modéstia de quem pede.

A aristocracia não é uma instituição: a aristocracia éum pecado, geralmente um pecado venial. É simplesmenteum movimento ou deslizamento dos homens para uma es-pécie de afetação natural e elogio dos poderosos, o que é acoisa mais fácil e óbvia deste mundo.

Uma das centenas de respostas à fugaz perversão da“força” moderna é que os agentes mais rápidos e ousadossão também os mais frágeis ou repletos de sensibilidade.As coisas mais rápidas são as mais maleáveis. Um pássaroé ativo porque é maleável. Uma pedra não tem nenhumachance porque é rígida. A pedra, por sua própria nature-za, vai para baixo porque rigidez é fraqueza. O pássaro

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pode, por sua própria natureza, ir para cima, porque fragi-lidade é força.

Numa força perfeita existe uma espécie de frivolidade,uma leveza aérea que se mantém no ar. Os pesquisadoresmodernos da história dos milagres solenemente admitiramque uma característica dos grandes santos é o seu poder de“levitação”. Eles poderiam ir mais longe: uma característi-ca dos grandes santos é seu poder de leveza. Os anjos con-seguem voar porque dão pouca importância a si mesmos.Esse sempre foi o instinto do cristianismo, especialmente oinstinto da arte cristã. Lembre-se de como Frá Angélicorepresentava seus anjos, não apenas como pássaros, masquase como borboletas. Lembre-se de como a arte medie-val mais séria era repleta de leves e flutuantes cortinados,de rápidos e lépidos pés. Foi a única coisa que os pré-rafae-litas modernos não conseguiram imitar dos pré-rafaelitasverdadeiros.

Burne-Jones jamais conseguiu recuperar a profunda le-veza da Idade Média. Nos antigos quadros cristãos o céupor sobre todas as figuras é como um pára-quedas em azule dourado. Todas as figuras parecem prontas para alçarvôo e flutuar nos céus. A capa esfarrapada do mendigo osustenta no ar como as raiadas plumagens dos anjos. Masos reis com seu ouro pesado e os orgulhosos com suas ves-tes de púrpura tenderão todos eles, por sua própria natu-reza, a descer e afundar-se, pois o orgulho não pode atingira leveza ou a levitação. O orgulho é a resistência que em-purra para baixo, presente em todas as coisas, para umasolenidade fácil.

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A gente “se fixa” numa espécie de seriedade egoísta; masé preciso erguer-se para um alegre esquecimento de si mes-mo. Um homem “se afunda” num escritório marrom; masele tenta alcançar um céu azul. A seriedade não é uma vir-tude. Seria uma heresia, mas uma heresia muito mais sen-sata, dizer que a seriedade é um vício. É na verdade umlapso ou tendência natural a levar-se muito a sério, porqueé a coisa mais fácil de fazer. É muito mais fácil escrever umbom artigo de fundo para o TIMES do que escrever uma boapiada para a PUNCH. Pois a solenidade flui dos homens na-turalmente; mas o riso é um salto. É fácil ser pesado, é difí-cil ser leve. Satanás caiu devido à força da gravidade.

Ora, desde que se tornou cristã, cabe à Europa esta hon-ra peculiar: embora tenha uma aristocracia, ela no fundo docoração sempre a tratou como uma fraqueza — geralmenteuma fraqueza que se deve permitir. Se alguém deseja apre-ciar esse ponto, que busque fora do cristianismo em outrasatmosferas filosóficas. Que compare, por exemplo, as clas-ses sociais da Europa com as castas da Índia. Lá a aristo-cracia é muito mais terrível, porque é muito mais intelectual.Sente-se lá que a escala de classes é uma escala de valoresespirituais; que o padeiro é melhor que o açougueiro numsentido sagrado e invisível. Mas nenhum cristianismo, nemmesmo o mais ignorante ou perverso, jamais sugeriu queum baronete era melhor do que um açougueiro nesse sen-tido sagrado. Nenhum cristianismo, por mais ignorante eextravagante que fosse, jamais sugeriu que um duque nãoseria condenado.

Na sociedade pagã pode ter existido (eu não sei) algu-ma divisão séria dessa espécie entre o homem livre e o es-

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cravo. Mas na sociedade cristã sempre pensamos que ocavalheiro é uma espécie de piada, embora eu admita queem algumas cruzadas e conselhos de grande importânciaele adquiriu o direito de ser considerado uma piada de maugosto.

Mas nós da Europa, no fundo da alma, jamais levamosa aristocracia a sério. É tão somente um ocasional estran-geiro não-europeu (como o dr. Oscar Levy, o único nietzs-chiano inteligente) que chega a conseguir, por um momento,levar a aristocracia a sério. Pode tratar-se de um mero viéspatriótico, embora eu não pense assim, mas me parece quea aristocracia inglesa não é apenas o tipo, mas é também acoroa e a flor das verdadeiras aristocracias: ela tem todasas virtudes oligárquicas bem como todos os defeitos. É des-pretensiosa, é bondosa, é corajosa em questões óbvias; mastem um grande mérito que se sobrepõe até mesmo a essasvirtudes. O grande e óbvio mérito da aristocracia inglesa éque provavelmente ninguém poderia levá-la a sério.

Em resumo, eu havia decifrado lentamente, como decostume, a necessidade de uma lei uniforme na utopia; e,como de costume, descobri que o cristianismo tinha chega-do lá antes de mim. Toda a história da minha utopia pade-ce da mesma tristeza engraçada. Eu sempre saía correndodo meu estúdio de arquiteto com planos para uma novatorre e logo acabava descobrindo que ela já estava lá expos-ta ao sol, brilhando, e tinha mil anos. Para mim, no sentidoantigo e parcialmente no sentido moderno, Deus atendeuà oração que diz: “Guia-nos, Senhor, em todas as nossasações”.

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Sem vaidade, eu realmente penso que houve um mo-mento em que eu poderia ter inventado as promessas ma-trimoniais (como uma instituição) usando apenas a minhacabeça. Mas descobri, com um suspiro, que elas já haviamsido inventadas. Sendo, porém, que seria uma tarefa de-morada demais mostrar, fato por fato, centímetro por cen-tímetro, como a minha concepção de utopia só obteve suaresposta na Nova Jerusalém, tomarei somente esse únicocaso do casamento como indicador da tendência conver-gente (eu poderia dizer choque convergente) de todo o resto.

Quando os opositores comuns do socialismo falam so-bre impossibilidades e alterações na natureza humana, sem-pre esquecem uma distinção importante. Na concepçãomoderna de sociedade há algumas aspirações que são rea-lizáveis; mas existem alguns desejos que não são desejáveis.Que todos os homens deveriam viver em casas igualmentebelas é um sonho que pode ser realizado ou não. Mas quetodos os homens deveriam viver na mesma bela casa não éde modo algum um sonho; é um pesadelo. Que o homemdeveria amar as velhinhas é um ideal que talvez não sejaatingível. Mas que o homem deveria ver as velhinhas exa-tamente como ele vê sua mãe não é apenas um ideal ina-tingível, mas também um ideal que não deveria ser atingido.

Não sei se o leitor concorda comigo nesses exemplos; masvou acrescentar outro que sempre me afetou sobremanei-ra. Eu jamais poderia conceber ou tolerar nenhuma utopiaque não me deixasse a liberdade que mais prezo, a liberda-de de me obrigar. A anarquia completa não apenas impos-sibilitaria a existência de qualquer disciplina ou fidelidade;também impossibilitaria qualquer divertimento.

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Para dar um exemplo óbvio, não valeria a pena apostarse a aposta não criasse obrigações. A dissolução de todosos contratos não só destruiria a moralidade, mas tambémacabaria com as apostas. Ora, apostas e jogos dessa natu-reza são apenas formas atrofiadas e distorcidas do instintooriginal do homem por aventura e romance, coisas de quetanto falei nestas páginas. E perigos, recompensas, puni-ções e realizações de uma aventura precisam ser reais, casocontrário a aventura é apenas um pesadelo incerto e cruel.

Se eu aposto, devo ser obrigado a pagar, ou então nãoexiste poesia na aposta. Se eu desafio, devo ser obrigado alutar, ou não haveria poesia no desafio. Se eu prometo fi-delidade, devo ser amaldiçoado quando sou infiel, casocontrário não há graça na promessa. Não se poderia criarnem um conto de fadas a partir das experiências de umhomem que, quando fosse engolido por uma baleia, pu-desse ir parar no alto da Torre Eiffel, ou quando fossetransformado num sapo, pudesse comportar-se como umflamingo.

Até mesmo para os propósitos do romance mais malucoos resultados precisam ser reais; os resultados precisam serirrevogáveis. O casamento cristão é o grande exemplo deum resultado real e irrevogável; e é por isso que ele é o prin-cipal assunto e centro de todos os textos românticos. E esteé o meu último exemplo das coisas que eu exigiria, e exigiriade modo imperativo, de qualquer paraíso social; eu exigi-ria ser obrigado a cumprir o meu contrato, a levar a sérioos meus juramentos e compromissos; eu exigiria que a uto-pia vingasse a minha honra contra mim mesmo.

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Todos os meus amigos utopistas modernos entreolham-se com certa dúvida, pois sua esperança suprema é a disso-lução de todos os vínculos especiais. Mas novamente eutenho a impressão de estar ouvindo, como uma espécie deeco, uma resposta de além do mundo. “Você terá obriga-ções reais e, portanto, aventuras reais quando chegar àminha utopia. Mas a obrigação mais difícil e a aventuramais extraordinária consistem em chegar lá.”

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VIII

O ROMANCE DA ORTODOXIA

EXISTE O COSTUME DE NOS QUEIXARMOS da cor-reria e do árduo trabalho da nossa época. Mas na verdadea marca principal da nossa época é uma profunda pregui-ça e fadiga. O fato é que a verdadeira preguiça é a causa daaparente correria. Tomemos um caso totalmente externo:as ruas são barulhentas, cheias de táxis e carros. Mas issonão se deve à atividade humana, mas sim ao repouso. Ha-veria menos correria se houvesse maior atividade, se aspessoas simplesmente andassem a pé. O mundo seria maissilencioso se houvesse mais trabalho. E isso que se aplica àaparente correria física também se aplica à aparente cor-reria intelectual.

A maior parte do mecanismo da linguagem moderna visaa poupar trabalho; e poupa muito mais trabalho mentaldo que deveria. Frases científicas são usadas como rodas epistões científicos para tornar ainda mais rápido e maissuave o caminho do conforto. Palavras compridas passampor nós chacoalhando como longos trens ferroviários. Sa-bemos que carregam milhares de pessoas que se sentemdemasiado cansadas ou indolentes para caminhar e pen-sar por conta própria.

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É um bom exercício tentar, de vez em quando, expressaras próprias opiniões com palavras de uma ou duas sílabas.Se você disser: “A utilidade social da frase indeterminada éreconhecida por todos os criminologistas como parte denossa evolução social buscando uma visão mais humana ecientífica da punição”, você pode continuar falando assimpor horas sem que haja nenhum movimento da massa cin-zenta no interior do seu cérebro. Mas se você começar di-zendo: “Eu queria que Jones fosse para a cadeia e queBrown dissesse quando Jones vai sair de lá”, você vai des-cobrir, com um calafrio de horror, que você é obrigado apensar.

As palavras compridas não são palavras difíceis. Difí-ceis são as palavras curtas. Há muito mais sutileza metafísi-ca na palavra “dane-se!” do que na palavra “degeneração”.

Mas essas longas e confortáveis palavras que poupamaos modernos o trabalho do raciocínio têm um aspectoparticular em que elas são especialmente desastrosas e con-fundem. Essa dificuldade ocorre quando a mesma palavracomprida é usada em contextos diferentes para significarcoisas totalmente diversas. Assim, para dar um exemplomuito conhecido, a palavra “idealista” tem um significadocomo termo de filosofia e outro totalmente diverso comotermo de retórica moral. Da mesma forma, os materialis-tas científicos queixaram-se recentemente, com razão, dequem confunde o termo “materialista” como termo de cos-mologia com “materialista” como um insulto moral. Assim,para dar um exemplo mais comum, o mesmo homem que

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odeia os “progressistas” de Londres identifica-se como “pro-gressista” na África do Sul.

Uma confusão totalmente sem sentido como essa sur-giu em relação à palavra “liberal” como se aplica à religiãoe como se aplica à política e à sociedade. Sugere-se comfreqüência que todos os liberais deveriam ser livres-pensa-dores, porque deveriam amar tudo o que é livre. Poder-se-ia igualmente dizer que todos os idealistas deveriam sermembros da igreja alta, porque deveriam amar tudo o queé alto. Poder-se-ia igualmente dizer que todos os membrosda igreja baixa deveriam gostar da missa baixa, ou que osmembros da igreja tolerante deveriam gostar de piadas to-lerantes. Trata-se de mera coincidência de palavras.

Na Europa moderna real o termo “livre-pensador” nãose refere a alguém que pensa por si mesmo. Refere-se a al-guém que, tendo pensado por si mesmo, chegou a umaclasse particular de conclusões, a origem material dos fe-nômenos, a impossibilidade de milagres, a improbabilidadeda imortalidade pessoal e assim por diante. E nenhumadessas idéias é particularmente liberal. Não, quase todasessas idéias são de fato definitivamente iliberais, como ten-cionamos demonstrar neste capítulo.

Nas poucas páginas seguintes pretendo mostrar, o maisrápido possível, que em relação a cada uma das questõesmais enfatizadas pelos liberalizadores da teologia o efeitodelas na prática social seria definitivamente iliberal. Qua-se todas as propostas contemporâneas de trazer liberdadepara a Igreja são simplesmente propostas de trazer a tira-nia para o mundo. Pois libertar a igreja agora não significa

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sequer libertá-la em todas as direções. Significa libertaraquele conjunto particular de dogmas vagamente chamadosde científicos, dogmas do monismo, do panteísmo, ou doarianismo, ou da necessidade.

Podemos demonstrar que cada um deles (e vamos exa-miná-los um por um) é um aliado natural da opressão. Defato, é uma circunstância digna de nota (na verdade, pen-sando bem, não muito digna) que as coisas na sua maioriasejam aliadas da opressão. Existe apenas uma coisa quenunca pode ultrapassar determinado ponto em sua alian-ça com a opressão — e trata-se da ortodoxia. Eu posso, éverdade, distorcer a ortodoxia para justificar em parte umtirano. Mas também posso facilmente criar uma filosofiaalemã para justificá-lo por inteiro.

Vamos agora analisar, na ordem, as inovações que sãoas notas da nova teologia ou igreja modernista. Concluí-mos o último capítulo com a descoberta de uma delas.Descobrimos que exatamente a doutrina que é vista comoa mais ultrapassada é a única salvaguarda das novas de-mocracias da terra. Descobrimos que a doutrina aparen-temente mais impopular é a única força do povo. Em suma,descobrimos que a única negação lógica da oligarquia esta-va na afirmação do pecado original. Eu sustento que issoacontece em todos os outros casos.

Tomo primeiro o exemplo mais óbvio, o caso dos mila-gres. Por alguma razão extraordinária, existe a idéia fixa deque é mais liberal não acreditar do que acreditar em mila-gres. O motivo não consigo imaginar, e ninguém consegueme dizer. Por alguma causa inconcebível um membro do

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clero que seja “liberal” ou “tolerante” sempre significa umhomem que deseja no mínimo diminuir o número de mila-gres; nunca significa um homem que deseja aumentar essenúmero. Sempre significa um homem que está livre paranão acreditar que Cristo saiu de sua tumba; nunca signifi-ca um homem que está livre para acreditar que sua pró-pria tia saiu de sua cova.

É comum haver problemas numa determinada paróquiaporque o seu vigário não consegue admitir que Pedro cami-nhou sobre as águas. No entanto, como é raro descobrir-mos problemas numa determinada paróquia porque ovigário diz que seu pai caminhou sobre o lago Serpentine!E isso não acontece porque (como o precipitado debatedorsecularista imediatamente retorquiria) não se pode acre-ditar em milagres como parte da nossa experiência. Não éporque “milagres não acontecem”, como no dogma queMatthew Arnold recitava com ingênua fé. Alega-se quemais coisas sobrenaturais têm acontecido em nossa épocado que teriam sido possíveis oitenta anos atrás.

Os cientistas acreditam nesses portentos muito mais doque costumavam: os mais intrigantes e até mesmo os maishorríveis prodígios da mente e do espírito estão continua-mente sendo revelados na psicologia moderna. Coisas quea velha ciência no mínimo rejeitaria sinceramente rotulan-do-as de milagres a cada hora vão sendo afirmadas pelanova ciência. A única coisa que é ainda suficientementeantiquada para rejeitar os milagres é a nova teologia.

Mas na verdade essa idéia de que somos “livres” para ne-gar milagres nada tem a ver com as provas em favor deles

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ou contra eles. É um preconceito verbal cristalizado cujaorigem e cujo princípio não estavam na liberdade de pen-samento do materialismo, mas simplesmente em seu dogma.O homem do século XIX não desacreditava da ressurrei-ção porque o seu cristianismo liberal lhe permitia essa dú-vida. Ele desacreditava dela porque o seu materialismomuito rigoroso não lhe permitia acreditar.

Tennyson, um homem bem típico do século XIX, expres-sou um dos truísmos instintivos dos seus contemporâneosquando disse que havia fé na honesta dúvida deles. Haviamesmo. As palavras de Tennyson contêm uma verdadeprofunda e até mesmo horrível. Na sua dúvida sobre mila-gres havia uma fé num destino fixo e sem deus; uma pro-funda e sincera fé na incurável rotina do cosmos. As dúvidasdo agnóstico eram simplesmente os dogmas do monista.

Sobre a realidade e a comprovação do sobrenatural fa-laremos mais adiante. Aqui estamos apenas preocupadoscom este ponto claro: na medida em que se pode dizer quea idéia liberal de liberdade está num dos dois lados da dis-cussão, sobre os milagres ela obviamente está do lado de-les. Reforma ou progresso (este entendido no único sentidotolerável) significa simplesmente o controle gradual damatéria pela mente. Um milagre simplesmente significa orápido controle da matéria pela mente.

Se você deseja alimentar o povo, pode pensar que ali-mentá-lo milagrosamente no deserto é impossível — masnão pode pensar que isso seja iliberal. Se você realmentedeseja que crianças pobres vão à praia, não pode pensarque é iliberal que elas sejam levadas para lá no dorso de

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dragões voadores; você só pode pensar que isso é imprová-vel. Um feriado, assim como o liberalismo, significa apenasa liberdade do homem. Um milagre significa apenas a li-berdade de Deus.

Você pode, seguindo a consciência, negar qualquer umadas duas, mas não pode chamar a sua negação de triunfoda idéia liberal. A Igreja Católica acreditava que o homeme Deus tinham ambos uma espécie de liberdade espiritual.O calvinismo tirou a liberdade do homem, mas preservoua de Deus. O materialismo científico amarra o próprio Cria-dor; acorrenta Deus como o Apocalipse acorrentou o Dia-bo. Não deixa nada livre no universo. E os que promovemesse processo são chamados de “teólogos liberais”.

Este, na minha opinião, é o caso mais leve e mais evi-dente. A presunção de que no duvidar dos milagres hajaalgo semelhante à liberalidade ou à reforma é literalmenteo oposto da verdade. Se um homem não consegue acredi-tar em milagres, temos o fim da questão; ele não é parti-cularmente liberal, mas é perfeitamente honrado e lógico,e essas são coisas muito melhores. Mas se um homem con-segue acreditar em milagres, ele certamente é muito maisliberal; porque os milagres significam, primeiro, a liberda-de da alma e, segundo, o controle dela sobre a tirania dascircunstâncias.

Às vezes essa verdade é ignorada de um modo singular-mente ingênuo, até mesmo pelos homens mais competentes.Por exemplo, o sr. Bernard Shaw fala com desprezo vee-mente e antiquado sobre a idéia de milagres, como se elesfossem uma espécie de falta de fé da parte da natureza:

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estranhamente ele parece não ter consciência de que osmilagres são apenas as flores que arrematam a própria ár-vore favorita, a doutrina da onipotência da vontade.

Exatamente da mesma forma ele chama o desejo de imor-talidade de egoísmo mesquinho, esquecendo-se de que elemal acabou de chamar o desejo de vida de egoísmo heróicoe sadio. Como pode ser nobre desejar tornar a vida pessoalinfinita e, no entanto, mesquinho desejar torná-la imortal?Não, se é desejável que o homem triunfe sobre a crueldadeda natureza ou do costume, então os milagres são certa-mente desejáveis; discutiremos mais adiante se eles sãopossíveis.

Mas preciso passar a examinar os casos mais abrangentesdesse curioso erro; a idéia de que a “liberalização” da reli-gião de algum modo ajuda a libertação do mundo. Pode-seencontrar o segundo exemplo disso na questão do panteís-mo — ou melhor, de uma certa atitude moderna que mui-tas vezes é chamada de imanentismo e freqüentemente ébudismo. Mas essa é uma questão tão mais difícil que euquero abordar com um pouco mais de preparação.

O que pessoas modernas dizem com a maior convicçãodirigindo-se a platéias apinhadas geralmente vai contra osfatos: na verdade, são nossos truísmos que são falsos. Aquiestá um exemplo. Há uma frase de liberalidade fácil que éproferida muitas e muitas vezes em sociedades éticas e emparlamentos da religião: “As religiões da terra diferem emritos e formas, mas são a mesma coisa naquilo que ensi-nam”. Isso é falso; é o contrário dos fatos.

As religiões da terra não diferem muito em ritos e for-mas; elas diferem muito naquilo que ensinam. É como se

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alguém dissesse: “Não se deixe enganar pelo fato de que osjornais The Church Times e The Freethinker parecem total-mente diferentes; de que um é impresso em papel perga-minho e o outro é esculpido em mármore; de que um étriangular e o outro é hectagonal. Leia-os e você verá queeles dizem a mesma coisa”.

A verdade, naturalmente, é que eles são semelhantesem tudo exceto no fato de que não dizem a mesma coisa.Um corretor ateu da bolsa de Surbiton parece exatamenteigual a um corretor da bolsa swedenborgiano de Wimble-don. Você pode observá-los de todos os pontos de vista esubmetê-los a uma investigação pessoal e agressiva semdescobrir nada swedenborgiano no chapéu, nem nada par-ticularmente ímpio no guarda-chuva. É exatamente naalma que eles se dividem.

Assim, a verdade é que a dificuldade de todos os credosdo mundo não está, como se alega, nesta máxima barata:que eles concordam no significado, mas diferem no meca-nismo. É exatamente o oposto. Eles concordam no mecanis-mo: quase todas as grandes religiões da terra funcionamcom os mesmos métodos externos, com sacerdotes, escritu-ras, altares, irmandades com votos, festas especiais. Con-cordam no método de ensino; diferem é no que ensinam.

Os otimistas pagãos e os pessimistas orientais teriamtemplos igualmente, do mesmo modo que os liberais e ostóris têm jornais. Os credos que existem para destruíremum ao outro têm escrituras, do mesmo modo que exércitosque existem para destruírem um ao outro têm canhões.

O grande exemplo dessa alegada identidade de todas asreligiões humanas é a alegada identidade espiritual do

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budismo e do cristianismo. Os que adotam essa teoria ge-ralmente evitam a ética da maioria dos outros credos, ex-cetuando, de fato, o confucionismo, do qual gostam pornão ser um credo. Mas eles são cautelosos nos seus elogiosao islamismo, limitando-se em geral a impor a sua morali-dade apenas na restauração das classes inferiores. Eles ra-ramente sugerem a visão muçulmana do casamento (emfavor da qual há muito a dizer), e a atitude deles para comos thugs (seguidores de uma seita assassina) e os adoradoresde fetiches pode ser descrita como fria. Mas no caso dagrande religião de Gautama eles sinceramente sentem umasimilaridade.

Os que estudam ciência popular, como o sr. Blatchford,destacam o budismo e sempre insistem que essa religião e ocristianismo são muito semelhantes. Em geral se acreditanisso, e eu mesmo acreditava até ler um livro que apre-sentava as razões da semelhança. As razões eram de doistipos: semelhanças que nada significavam porque eram co-muns a toda a humanidade e semelhanças que não eramabsolutamente semelhanças.

O autor explicava solenemente que os dois credos eramsemelhantes no que todos os credos se assemelham, ou en-tão os descrevia como semelhantes em alguns pontos emque, de maneira muito óbvia, são diferentes. Assim, comoum exemplo do primeiro tipo, ele dizia que tanto Cristoquanto Buda foram chamados por uma voz divina que saiudo céu, como se alguém pudesse esperar que a voz divinasaísse do porão. Ou então ele insistia solenemente que es-ses dois mestres orientais, por uma singular coincidência,

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estavam ambos relacionados com a lavação dos pés. Al-guém poderia igualmente dizer que por uma notável coin-cidência os dois tinham pés para lavar.

Já as semelhanças do outro tipo não eram nada simi-lares. Assim, esse reconciliador das duas religiões chamaseriamente a atenção para o fato de que em certas festasreligiosas o manto do Lama é rasgado em pedaços em sinalde respeito, e os pedaços têm um valor muito alto. Mas issoé o contrário de uma semelhança, pois as vestes de Cristonão foram rasgadas em pedaços em sinal de respeito, massim de zombaria; e os pedaços não tinham um valor muitoalto: seu valor era o preço dos brechós. É praticamentecomo aludir à óbvia conexão entre as duas cerimônias daespada: quando ela toca o ombro do cidadão e quando elalhe corta a cabeça. Não são absolutamente semelhantespara o cidadão.

Esses rabiscos de pedantismo pueril teriam de fato pou-co valor se não fosse verdade que as alegadas semelhançasfilosóficas também são destes dois tipos: ou provam de-mais ou não provam nada. O fato de o budismo aprovar amisericórdia ou o autocontrole não significa que ele é espe-cialmente semelhante ao cristianismo. Significa apenas queele não difere totalmente de toda existência humana. Osbudistas desaprovam em teoria a crueldade ou o excessoporque todos os seres humanos sensatos desaprovam emteoria a crueldade ou o excesso.

Mas dizer que o budismo e o cristianismo apresentam amesma filosofia sobre essas coisas é simplesmente falso.Toda a humanidade concorda que estamos numa rede de

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pecado. A maior parte da humanidade concorda que há umasaída. Mas sobre qual seja essa saída, não acho que existamduas instituições no universo que contradizem uma à ou-tra tão diametralmente como o budismo e o cristianismo.

Mesmo quando eu pensava, assim como muitíssimasoutras pessoas bem-informadas, embora não eruditas, queo budismo e o cristianismo eram semelhantes, sempre vianessas religiões um pormenor que me intrigava. Refiro-meà chocante diferença no tipo de arte dessas duas correntes.Não estou falando de estilos técnicos de representação, masde coisas que evidentemente se quiseram representar. Nãohá dois ideais que se oponham mais do que um santo cris-tão numa catedral gótica e um santo budista num templochinês.

A oposição existe em cada ponto; mas talvez a mais con-centrada demonstração disso seja o fato de o santo budis-ta ter um corpo harmonioso e luzidio, mas olhos pesados ecerrados pelo sono. O corpo do santo medieval é desgastadoe exibe seus estranhos ossos, mas os olhos estão assustado-ramente vivos. Não pode haver nenhuma real comunhãode espírito entre as forças que produziram símbolos assimtão diferentes.

Concebendo-se que as duas imagens são extravagân-cias, perversões do credo puro, a divergência capaz de pro-duzir extravagâncias tão opostas deve ser real. O budistaestá olhando com uma atenção peculiar para dentro. Ocristão fixa os olhos com desvairada atenção para fora. Seseguirmos essa indicação com firmeza, vamos descobrir al-gumas coisas interessantes.

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Pouco tempo atrás, a sra. Besant anunciou, num artigointeressante, que só havia uma religião no mundo, que to-das as fés eram apenas versões ou perversões dessa religião,e ela estava totalmente preparada para dizer qual era. Se-gundo a sra. Besant, essa Igreja universal é simplesmente oeu universal. É a doutrina de que todos nós somos real-mente uma só pessoa; de que não há muros reais de indivi-dualidade entre um ser humano e outro. Se assim possodizer, ela não nos diz para amar o próximo; ela nos dizpara sermos o nosso próximo. Essa é a ponderada e sugesti-va descrição da religião da sra. Besant na qual todos oshomens devem estar de acordo.

Nunca ouvi em minha vida uma sugestão da qual eudiscorde com mais veemência. Quero amar o próximo nãopor ele ser eu, mas precisamente por ele não ser eu. Queroadorar o mundo, não como quem gosta de um espelho, porele ser o eu de quem vê, mas como quem ama uma mulher,por ela ser inteiramente diferente. Se as almas estão sepa-radas, o amor é possível. Se as almas estão unidas, o amoré obviamente impossível. Pode-se dizer que alguém amavagamente a si mesmo, mas não se pode dizer que alguémpossa apaixonar-se por si mesmo, ou então, se isso vier aacontecer, só pode ser um namoro monótono. Se o mundoestá cheio de eus reais, pode haver eus que realmente nãosejam egoístas. Mas, segundo o princípio da sra. Besant,todo o cosmos é apenas uma enorme pessoa egoísta.

É exatamente nesse ponto que o budismo fica do lado dopanteísmo e da imanência modernos. E é exatamente nes-se ponto que o cristianismo fica do lado da humanidade,

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da liberdade e do amor. O amor deseja a personalidade;por isso deseja a divisão. O cristianismo instintivamente sealegra por Deus ter fragmentado o universo em pequenaspartes, porque essas partes são vivas. Instintivamente elediz “Criancinhas, amai-vos umas às outras”, em vez demandar uma pessoa enorme amar a si mesma.

Este é o abismo intelectual entre o budismo e o cristia-nismo: o que para o budista ou para a personalidadeteosofista é a queda do homem, para o cristão é o propósi-to de Deus, o significado integral de sua idéia cósmica. Aalma do mundo dos teosofistas pede ao homem que ame omundo apenas para que o homem possa atirar-se nele. Maso centro divino do cristianismo de fato atirou o homempara fora do mundo para que o homem pudesse amá-lo.

A deidade oriental é como um gigante que tivesse per-dido uma perna ou uma das mãos e estivesse sempre pro-curando encontrá-la. Mas o poder cristão é como algumgigante que, num gesto estranho de generosidade, cortassea mão direita para que ela espontaneamente pudesse cum-primentá-lo com um aperto de mãos. Voltamos à mesmaincansável nota no tocante à natureza do cristianismo.Todas as filosofias modernas são correntes que se interco-nectam e prendem; o cristianismo é uma espada que sepa-ra e liberta. Nenhuma outra filosofia faz Deus de fato exultarcom a divisão do universo em almas vivas. Mas segundo ocristianismo ortodoxo essa separação entre Deus e o ho-mem é sagrada, porque é eterna.

Para que o homem possa amar a Deus é necessário nãoapenas que exista um Deus a ser amado, mas também umhomem para amá-lo. Todas aquelas vagas mentes teosóficas

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para as quais o universo é um imenso crisol são exatamen-te as mesmas mentes que recuam por instinto diante da-quela frase do evangelho que abala o mundo declarandoque o Filho de Deus veio não com a paz, mas com a espa-da que separa. A frase soa inteiramente verdadeira mesmoquando considerada pelo que obviamente é: a afirmaçãode que qualquer homem que prega o verdadeiro amor estáfadado a gerar o ódio. Ela é tão verdadeira referindo-se àfraternidade democrática como ao amor divino.

O amor falso termina em acomodamento e filosofia co-mum; mas o amor real sempre terminou em sangue derra-mado. No entanto, há um outro significado e outra verdadeainda mais terrível por trás do significado óbvio da decla-ração de nosso Senhor. De acordo com ele mesmo, o Filhoera uma espada separando irmão de irmão para que eles seodiassem por uma eternidade. Mas o Pai também era umaespada, que no sombrio começo separou o irmão do irmão,para que eles no fim se amassem um ao outro.

Este é o significado daquela felicidade quase insana queaparece nos olhos do santo no quadro medieval. Este é osignificado dos olhos cerrados da soberba imagem budista.O santo cristão está feliz por ter sido realmente cortado domundo; ele está separado das coisas e as contempla atur-dido. Mas por que o santo budista deveria sentir-se aturdi-do — sendo que existe de fato uma só coisa, e essa coisaimpessoal não pode aturdir a si mesma?

Houve muitos poemas panteístas sugerindo deslumbra-mento, mas nenhum bem-sucedido. O panteísta não podedeslumbrar-se, pois não pode louvar a Deus ou louvar o quequer que seja como sendo realmente distinto dele mesmo.

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Todavia, nosso objetivo imediato aqui está ligado ao efeitoda admiração cristã (que se volta para fora, para uma di-vindade distinta do adorador) sobre a necessidade geralde atividades éticas e reformas sociais. E certamente o efei-to é bastante óbvio. Não existe uma possibilidade real deextrair do panteísmo nenhum impulso especial para açõesmorais. Pois o panteísmo implica, por sua natureza, queuma coisa é tão boa quanto outra; ao passo que a açãoimplica, por sua natureza, que uma coisa é muito preferí-vel a outra.

Swinburne, no auge de seu ceticismo, tentou em vão lu-tar com essa dificuldade. Em “Songs before Sunrise” (“Can-ções antes do nascer do sol”), escritas sob a inspiração deGaribaldi e a revolta da Itália, ele proclamou a nova reli-gião e o Deus mais puro que fulminaria todos os sacerdo-tes do mundo:

Que fazes tu agoraOlhando para Deus para gritarEu sou eu, tu és tu,

Eu em baixo, tu no alto,Eu sou tu que tu buscas encontrar e encontras apenas

a ti mesmo, tu és eu.

A dedução imediata e evidente disso é que os tiranossão tão filhos de Deus quanto os Garibaldis; e o fato de orei Bomba de Nápoles ter, com extremo sucesso, “encon-trado a si mesmo” é idêntico ao bem supremo em todas ascoisas. A verdade é que a energia ocidental que destronatiranos deveu-se diretamente à teologia ocidental que diz“eu sou eu, tu és tu”. A mesma separação espiritual que

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ergueu os olhos e viu um rei bom no universo ergueu osolhos e viu um rei mau em Nápoles. Os adoradores do deusde Bomba destronaram Bomba. Os adoradores do deus deSwinburne cobriram a Ásia durante séculos e nunca des-tronaram um tirano.

O santo indiano pode com razão fechar os olhos porqueele está olhando para aquilo que é Eu e Tu e Nós e Eles eIsso. É uma ocupação racional: mas não é verdade em teo-ria e não é verdade de fato que isso ajuda o indiano a ficarde olho em Lorde Curzon. A vigilância externa que semprefoi a marca do cristianismo (o mandamento de que deve-mos vigiar e orar) expressou-se tanto na típica ortodoxiaocidental quanto na típica política do ocidente: mas ambasdependem da idéia de uma divindade transcendente, dife-rente de nós mesmos, uma divindade que desaparece.

Com certeza os credos mais sagazes podem sugerir quedeveríamos buscar a Deus em círculos cada vez mais pro-fundos do labirinto do nosso ego. Mas somente nós do cris-tianismo temos dito que deveríamos buscar a Deus comauma águia no alto das montanhas: e nós matamos todos osmonstros nessa busca.

Aqui, portanto, mais uma vez descobrimos que, à medi-da que valorizamos a democracia e as energias auto-renová-veis do ocidente, as probabilidades de as encontrarmos navelha teologia são muito maiores do que na nova. Se quere-mos reformas, devemos aderir à ortodoxia: especialmente nestaquestão (tão discutida nos conselhos do sr. R. J. Campbell),a de insistir na divindade imanente ou na transcendente.Insistindo especialmente na imanência de Deus, temos in-trospecção, auto-isolamento, quietismo, indiferença social

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— Tibete. Insistindo especialmente na transcendência deDeus, temos deslumbramento, curiosidade, aventura mo-ral e política, indignação justa — cristianismo. Insistindoque Deus está no interior do homem, o homem está sem-pre no interior de si mesmo. Insistindo que Deus transcen-de ao homem, o homem tem de transcender a si mesmo.

Se tomarmos qualquer outra doutrina que recebeu orótulo de antiquada, vamos descobrir que o caso é o mes-mo. É o mesmo, por exemplo, na profunda matéria da Trin-dade. Os unitários (seita que nunca se deve mencionar semum respeito profundo por sua distinta dignidade e honra-dez intelectual) são muitas vezes reformadores pelo fatoacidental que leva tantas seitas menores a assumir essaposição.

Mas não há absolutamente nada liberal ou semelhantea uma reforma na substituição da Trindade pelo puromonoteísmo. O Deus complexo do símbolo atanasiano tal-vez seja um enigma para o intelecto. Mas é muito menosprovável que esse Deus acumule o mistério e a crueldadede um sultão do que o deus solitário de Omar ou Maomé.O deus que é uma simples terrível unidade não é apenasum rei, é um rei oriental.

O coração da humanidade, especialmente da humani-dade européia, sente-se com certeza muito mais satisfeitocom as estranhas sugestões e símbolos que acompanham aidéia trinitária, a imagem de um conselho junto ao qualintercede a misericórdia assim como a justiça, a concepçãode uma espécie de liberdade e variedade existentes até nomais reservado gabinete do mundo. Pois a religião ociden-

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tal sempre sentiu profundamente a idéia “não é bom que ohomem esteja só”.1

O instinto social afirmou-se em todas as partes comoquando a idéia oriental de eremitas foi praticamente ex-pulsa pela idéia ocidental de monges. Assim, até mesmo oascetismo tornou-se fraternal, e os trapistas eram sociáveismesmo quando ficavam em silêncio. Se esse amor por umacomplexidade viva for o nosso teste, é certamente muitomais sadio ter uma religião trinitária do que ter uma reli-gião unitária. Pois para nós trinitários (se assim posso di-zer com reverência) — para nós o próprio Deus é umasociedade.

Trata-se de fato de um mistério teológico insondável, emesmo se eu fosse teológico o bastante para tratar disso deforma direta, não seria relevante fazê-lo aqui. Basta aquidizer que esse tríplice enigma é tão reconfortante como ovinho e tão aberto como uma lareira inglesa; que esse mis-tério que confunde o intelecto acalma completamente ocoração. Mas do deserto, de lugares áridos e de pecadosterríveis, vieram os filhos cruéis do Deus solitário; os ver-dadeiros unitários que, empunhando cimitarras, devasta-ram o mundo. Pois não é bom para Deus estar só.

Mais uma vez, o mesmo se aplica àquela difícil questãodo perigo que a alma corre, que perturbou a mente de tantosjustos. Esperar é imperativo para todas as almas; e é per-feitamente defensável dizer que a sua salvação é inevitá-vel. É defensável, mas não favorece especialmente a ação e

1Gênesis 2:18.

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o progresso. Nossa sociedade lutadora e criativa deveriapreferir insistir no perigo que todos correm, no fato de quetodos os homens estão pendendo por um fio ou se agarramsobre um precipício. Dizer que todos no fim estarão bemde qualquer jeito é uma observação compreensível; masisso não pode ser classificado como clangor de trombeta.

A Europa deveria preferir enfatizar a possível perdição,coisa que ela sempre fez. Nesse ponto, sua mais alta reli-gião está de acordo com todos os seus romances mais bara-tos. Para o budista ou para o fatalista oriental, a existênciaé uma ciência ou um plano, que deve acabar de uma deter-minada maneira. Mas para o cristão, a existência é umahistória, que pode acabar de qualquer maneira. Num ro-mance emocionante (esse produto puramente cristão) oherói não é devorado pelos canibais; mas é essencial para aexistência da emoção que ele possa ser devorado por eles.O herói deve (por assim dizer) ser um herói palatável.

Assim, a moral cristã sempre disse ao homem, não queele perderia sua alma, mas que ele deveria cuidar para nãoperdê-la. Na moral cristã, em suma, é perverso chamar umhomem de “condenado”; mas é estritamente religioso e fi-losófico chamá-lo de condenável.

Todo o cristianismo se concentra no homem na encruzi-lhada. As vastas e rasas filosofias, as imensas sínteses damentira, todas falam sobre épocas e evolução e desenvolvi-mentos definitivos. A verdadeira filosofia se preocupa como instante. O homem tomará esta ou aquela estrada? —essa é a única coisa sobre a qual devemos pensar, se gosta-mos de fazê-lo. É muito fácil pensar nos éons, qualquer umpode fazê-lo. O instante é realmente terrível: e é por ter

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sentido intensamente o instante que a religião deu tantaatenção à batalha na literatura e, na teologia, ao inferno.Ele está cheio de perigos como um livro para crianças: estánuma crise imortal.

Há muita semelhança entre a ficção popular e a religiãodos povos ocidentais. Se você disser que a ficção popular évulgar e de mau gosto, você está apenas dizendo o que ostristes e bem-informados também dizem sobre as imagensnas igrejas católicas. A vida (segundo a fé) se parece muitocom a história de um seriado de revista: ela termina com apromessa (ou a ameaça) “de continuar no número seguin-te”. Também, com nobre vulgaridade, a vida imita o seria-do e pára no momento mais emocionante. Pois a morte édistintamente um momento de emoção.

Mas o ponto importante é que a história emociona por-que contém um elemento muito forte de vontade, daqui-lo que a teologia chama de livre-arbítrio. Você não podeconcluir uma soma do jeito que prefere; mas uma histó-ria sim. Quando alguém descobriu o Cálculo Diferencial,havia apenas um Cálculo Diferencial a descobrir. Masquando Shakespeare matou Romeu, ele poderia tê-lo ca-sado com a velha babá de Julieta, se ele se sentisse inclinadoa fazê-lo. E a cristandade sobressaiu-se na narrativa roma-nesca exatamente porque insistiu no livre-arbítrio teológico.

Esse é um assunto vasto que pende demais para um ladoda estrada para discuti-lo adequadamente aqui; mas tra-ta-se da verdadeira objeção àquela torrente de conversamoderna acerca do crime como uma doença, sobre trans-formar a prisão num mero ambiente higiênico como umhospital, sobre curar o pecado por meio de lentos métodos

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científicos. A falácia de todo esse caso é que o mal é umaquestão de escolha ativa, ao passo que a doença não é.

Se você diz que vai curar um devasso como se cura umasmático, minha resposta fácil e óbvia é esta: “Apresente aspessoas que querem ser asmáticas uma vez que muitas que-rem ser devassas”. Um homem pode ficar deitado inertee curar-se de uma enfermidade. Mas ele não pode ficardeitado inerte se quiser curar-se de um pecado. Pelo con-trário, ele precisa levantar-se e correr por aí feito louco.

A questão toda de fato está expressa à perfeição na pró-pria palavra usada para quem está hospitalizado: “pacien-te” tem um sentido passivo; “pecador” tem um sentido ativo.Se um homem quiser se salvar de uma gripe, ele pode serpaciente. Mas se quiser se salvar de uma falcatrua, ele nãopode ser paciente, tem de ser impaciente. Ele deve sentir-se impaciente com a falcatrua. Toda reforma moral come-ça na vontade ativa, não na passiva.

Aqui mais uma vez chegamos à mesma conclusão subs-tancial. Na medida em que desejamos as reconstruçõesdefinidas e as perigosas revoluções que caracterizaram acivilização européia, não devemos desencorajar a idéia deuma possível ruína; devemos antes encorajá-la. Se quiser-mos, como os santos orientais, meramente contemplarcomo as coisas estão certas, naturalmente devemos ape-nas dizer que elas estão certas. Mas se quisermos parti-cularmente fazê-las dar certo, precisamos insistir que elaspodem dar errado.

Por último, essa verdade é mais uma vez comprovadano caso das tentativas modernas comuns de diminuir oude explicar racionalmente a divindade de Cristo. O caso

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pode ser verdadeiro ou não; tratarei disso antes do fim.Mas, se a divindade de Cristo é verdadeira, ela é com cer-teza terrivelmente revolucionária. Que um homem bompossa assumir uma posição defensiva não é dizer mais doque já sabíamos; mas que Deus pudesse assumir uma posi-ção defensiva é um motivo de vanglória para todos os in-surgentes para sempre.

O cristianismo é a única religião do mundo a sentir queonipotência tornava Deus incompleto. Apenas o cristianis-mo sentiu que Deus, para ser totalmente Deus, deve tersido rebelde bem como rei. Dentre todos os credos, o cristia-nismo foi o único que acrescentou a coragem às virtudesdo Criador. Pois a única coragem digna desse nome devenecessariamente significar que a alma passa por um pontode ruptura e não se parte.

Dizendo isso, de fato estou abordando uma questão quenão é fácil discutir porque é obscura e terrível; e peço des-culpas de antemão se algumas de minhas frases não forembem entendidas ou se eu parecer irreverente no tocante aum assunto que os maiores santos e pensadores com razãorecearam abordar. Mas naquela história terrível da Paixãohá uma distinta sugestão emocional de que o autor de todasas coisas (de algum modo impensável) não apenas passoupela agonia, mas também pela dúvida. Está escrito: “Nãotentarás o Senhor teu Deus”. Não, mas o Senhor teu Deuspode tentar-se a si mesmo; e tem-se a impressão de que foiisso o que aconteceu no Getsêmani.

Num jardim Satanás tentou o homem; e num jardimDeus tentou Deus. De alguma forma sobre-humana elepassou pelo horror humano do pessimismo. O mundo foi

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abalado e o sol desapareceu do céu não no momento dacrucificação, mas no momento do grito do alto da cruz: ogrito que confessou que Deus foi abandonado por Deus.

E agora deixemos que os revolucionários escolham umcredo dentre todos os credos e um deus dentre todos osdeuses do mundo, ponderando com cuidado todos os deu-ses de inevitável recorrência e poder inalterável. Eles nãoencontrarão um outro deus que tenha ele mesmo passadopela revolta. Não (a questão torna-se difícil demais para afala humana), mas deixemos que os próprios ateus escolhamum deus. Eles encontrarão apenas uma divindade que che-gou a expressar a desolação deles; apenas uma religião emque Deus por um instante deixou a impressão de ser ateu.

Esses podem ser chamados de pontos essenciais da ve-lha ortodoxia, cujo mérito principal é o de ser a fonte natu-ral de revoluções e reformas; cujo defeito principal é o deobviamente consistir apenas em afirmações abstratas. Suaprincipal vantagem é a de ser a mais corajosa e viril de to-das as teologias. Sua principal desvantagem é simplesmen-te a de ser uma teologia. Sempre se pode insistir que ela,por sua natureza, é arbitrária e fica no ar. Mas não fica tãoalto no ar para impedir que grandes arqueiros passem todaa vida desferindo flechas contra ela — isso mesmo, e atésuas últimas flechas. Há homens que destroem a si mes-mos e destroem a própria civilização se também puderemdestruir essa fantástica história.

Esse é o fato supremo e mais aterrador envolvendo a fé:que seus inimigos usarão qualquer arma contra ela, as es-padas que cortam os próprios dedos e as achas que quei-mam as próprias casas. Homens que começam a combater

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a Igreja em benefício da liberdade e da humanidade termi-nam jogando fora a liberdade e a humanidade só para po-derem com isso combater a Igreja. Não é exagero. Eu poderiaencher um livro com exemplos disso.

O sr. Blatchford iniciou, como um demolidor bíblico co-mum, querendo provar que Adão não teve culpa em seupecado contra Deus; manobrando para defender essa idéia,ele admitiu, como mera questão secundária, que todos ostiranos, de Nero ao rei Leopoldo, não tiveram culpa emnenhum de seus pecados contra a humanidade. Conheçoum homem que tem tal paixão por provar que ele não teráuma existência pessoal depois da morte que recorre à tesede que ele não tem uma existência pessoal agora. Invoca obudismo e diz que todas as almas desaparecem uma naoutra. Para provar que não pode ir para o céu ele provaque não pode ir para a cidade de Hartle-pool.

Conheci pessoas que protestavam contra a educação re-ligiosa com argumentos contra qualquer tipo de educação,dizendo que a mente da criança deve crescer livre ou queos mais velhos não devem ensinar aos jovens. Conheci pes-soas que demonstraram que não poderia existir nenhumjulgamento divino mostrando que não pode haver nenhumjulgamento humano, nem mesmo em prol de objetivos prá-ticos. Elas queimaram o próprio trigo para atear fogo à Igre-ja; destruíram as próprias ferramentas para destruí-la;qualquer pedaço de pau era bom para bater nela, mesmoque fosse o último pedaço de sua mobília desmantelada.

Não admiramos, mal desculpamos o fanático que des-troça este mundo pelo amor do outro. Mas que devemosdizer do fanático que destroça este mundo por causa do

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ódio pelo outro? Ele sacrifica a própria existência da hu-manidade à não-existência de Deus. Oferece suas vítimasnão para o altar, mas simplesmente para afirmar a inutili-dade do altar e o vazio do trono. Ele está disposto a des-truir até mesmo aquela ética primária pela qual todas ascoisas vivem, em prol de sua estranha e eterna vingançacontra alguém que jamais sequer viveu.

E, no entanto, a coisa pende dos céus, incólume. Seusopositores só conseguem destruir tudo aquilo a que elesmesmos com justiça dão valor. Não destroem a ortodoxia;destroem apenas o sentido comum e político de coragem.Não provam que Adão não foi responsável perante Deus;como poderiam fazê-lo? Provam apenas (a partir de suaspremissas) que o czar não é responsável perante a Rússia.Não provam que Adão não deveria ter sido punido porDeus; provam apenas que o patrão explorador mais próxi-mo não deveria ser punido pelos homens.

Com suas dúvidas orientais sobre a personalidade, nãonos dão certeza de que não teremos uma vida pessoal de-pois da morte; apenas nos dão certeza de que não teremosuma vida muito divertida ou completa aqui. Com suas su-gestões paralisantes de que todas as conclusões saem erra-das, não rasgam o livro do Anjo do Registro; apenas tornamum pouco mais difícil fazer a contabilidade de Marshall &Snelgrove. Não é apenas verdade que a fé é a mãe de to-das as energias deste mundo, mas é também verdade queos inimigos dela são os pais de toda a confusão do mundo.

Os secularistas não destruíram coisas divinas; destruíramcoisas seculares, se isso servir de algum conforto para eles.Os Titãs não escalaram o céu; mas devastaram o mundo.

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IX

A AUTORIDADE

E O AVENTUREIRO

O ÚLTIMO CAPÍTULO TRATOU da alegação deque a ortodoxia não é apenas (como muitas vezes se ressal-ta) a única salvaguarda segura da moralidade ou da or-dem, mas é também o único guardião lógico da liberdade,da inovação e do avanço. Se quisermos derrubar o próspe-ro opressor, não podemos fazê-lo com a nova doutrinada perfectibilidade humana; podemos fazê-lo com a velhadoutrina do pecado original. Se quisermos arrancar ascrueldades inerentes ou elevar populações perdidas a umacondição superior, não podemos fazê-lo com a teoria ci-entífica de que a matéria precede a mente; podemos fazê-lo com a teoria sobrenatural de que a mente precede amatéria.

Se quisermos especialmente despertar as pessoas parauma vigilância social e uma incansável busca de atuaçãoprática, não poderemos conseguir muito êxito insistindono Deus Imanente e na Luz Interior, pois essas são, na me-lhor das hipóteses, razões de satisfação. Poderemos conse-guir muito êxito insistindo no Deus transcendente e no raiofugaz e fugidio, pois isso significa insatisfação divina.

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Se quisermos particularmente afirmar a idéia de umequilíbrio generoso em oposição ao de uma terrível auto-cracia, deveremos ser instintivamente trinitários em vezde unitários. Se quisermos que a civilização européia sejaum ataque e um resgate, deveremos preferir insistir que asalmas correm um risco real a dizer que o perigo que cor-rem, em última análise, é irreal. E se desejarmos exaltar obanido e o crucificado, deveremos antes desejar pensar queum Deus verdadeiro foi crucificado, e não um mero sábioou herói.

Acima de tudo, se quisermos proteger os pobres, deve-remos nos posicionar em favor de regras fixas e dogmas cla-ros. As regras de um clube ocasionalmente são em favor deum associado pobre. A tendência de um clube é sempreestar em favor de quem é rico.

E agora chegamos à questão crucial que realmente con-clui todo o assunto. Um agnóstico razoável, caso tenhaconcordado comigo até aqui, pode com razão virar-se e di-zer: “Você descobriu uma filosofia prática na doutrina daQueda; muito bem. Você descobriu um aspecto democrá-tico, hoje perigosamente esquecido, afirmado com sabedo-ria no pecado original; tudo bem. Você descobriu umaverdade na doutrina do inferno; parabéns. Você está con-vencido de que os adoradores de um Deus pessoal têm avisão voltada para fora e são progressistas; parabéns a eles.Mas, mesmo supondo que essas doutrinas de fato incluamessas verdades, por que você não pode tomar as verdades edeixar as doutrinas?

“Admitindo-se que toda sociedade moderna confia de-mais nos ricos porque ela não leva em consideração a fra-

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queza humana? Admitindo-se que as épocas ortodoxas ti-veram grandes vantagens porque (com sua crença na Que-da) elas levavam em consideração a fraqueza humana, porque não pode simplesmente aceitar a fraqueza humanasem acreditar na Queda? Se você descobriu que a idéia dacondenação representa uma idéia sadia de perigo, por quenão pode simplesmente tomar a idéia do perigo e deixar ada condenação? Se você enxerga com clareza a amêndoado bom senso na avelã da ortodoxia cristã, por que nãopode simplesmente tomar a amêndoa e deixar a avelã?

“Por que você não pode (para usar uma frase feita dosjornais que eu, como agnóstico altamente erudito, sinto-me um pouco envergonhado de usar), por que você sim-plesmente não toma o que é bom no cristianismo, o quevocê define como valioso, o que se pode compreender, edeixa todo o resto, todos os dogmas absolutos que por suanatureza são incompreensíveis?”.

“Essa é a verdadeira questão; essa é a última questão; eé um prazer tentar responder-lhe.

A primeira resposta é simplesmente dizer que sou racio-nalista. Gosto de ter alguma justificativa intelectual paraminhas intuições. Quando estou tratando do homem comoum ser decaído, é para mim uma conveniência intelectualacreditar que ele caiu; e eu acho, por alguma estranha ra-zão psicológica, que posso lidar melhor com o exercíciohumano do livre-arbítrio acreditando que o homem dis-põe dele.

Mas nessa questão sou ainda mais racionalista. Eu nãome proponho transformar este livro numa apologética cristã

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comum; gostaria de me encontrar em qualquer outra oca-sião com os inimigos do cristianismo nessa arena mais ób-via. Aqui estou apenas dando uma explicação do meucrescimento na certeza espiritual. Mas posso fazer umapausa para observar que quanto mais eu entendia os ar-gumentos meramente abstratos contra a cosmologia cristãtanto menos eu os admirava.

Quero dizer que, depois de descobrir que a atmosferamoral da encarnação era senso comum, passei a analisaros argumentos intelectuais estabelecidos contra a encar-nação e descobri que eram disparates comuns. Caso se ve-nha a pensar que a argumentação padece com a ausênciada apologética comum, vou agora, muito brevemente, re-sumir os meus argumentos e conclusões sobre a verdadepuramente objetiva ou científica da questão.

Se me perguntarem, num sentido puramente intelec-tual, por que acredito no cristianismo, só posso responderassim: “Pela mesma razão que faz um agnóstico inteligentenão acreditar nele”. Acredito no cristianismo de modo to-talmente racional, com base na evidência. Mas a evidênciano meu caso, como no caso do agnóstico inteligente, nãoestá nesta ou naquela alegada demonstração; está numenorme acúmulo de fatos pequenos, mas unânimes.

Não se deve culpar o secularista porque suas objeçõesao cristianismo são heterogêneas e desconexas, pois são pre-cisamente essas provas desconexas que de fato convencema mente. Quero dizer que alguém pode sentir-se menos con-vencido acerca de uma filosofia por causa de quatro livrosdo que por causa de um livro, uma batalha, uma paisagem

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e um velho amigo. Exatamente por serem coisas de espéciesdiferentes, pesa mais o fato de todas apontarem para umaúnica conclusão.

Ora, para fazer justiça, deve-se dizer que o não-cristia-nismo da média das pessoas escolarizadas de hoje quasesempre consiste nessas experiências avulsas, mas vivas. Sóposso dizer que as minhas provas em favor do cristianismosão da mesma vívida mas variada espécie das provas con-tra ele. Pois quando considero essas diversas verdades an-ticristãs, simplesmente descubro que nenhuma delas éverdadeira. Descubro que a verdadeira correnteza e forçade todos os fatos flui na direção contrária.

Tomemos alguns casos. Muitos homens modernos sen-satos devem ter abandonado o cristianismo pela pressãode três convicções convergentes como estas: primeiro, a con-vicção de que os homens, com sua forma, estrutura e sexua-lidade, são no fim das contas muito semelhantes às feras,uma simples variedade do reino animal; segundo, que areligião primitiva surgiu da ignorância e do medo; terceiro,que os sacerdotes imprimiram na sociedade as marcas daamargura e da melancolia.

Esses três argumentos anticristãos são muito diferen-tes; mas são todos muito lógicos e legítimos; são todos con-vergentes. Percebo que a única objeção a eles é que sãotodos falsos. Se você parar de olhar para livros sobre osanimais e os homens e começar a olhar diretamente paraos animais e os homens (com um senso mínimo de imagi-nação ou humor, um senso do desvairado ou do ridículo),você observará que o que assusta não é quanto o homem

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se assemelha aos animais, mas quanto ele difere deles. É amonstruosa escala de sua divergência que exige explicação.Que o homem e os animais são iguais é, num certo sentido,um truísmo; mas que, sendo tão iguais, eles sejam tão dis-paratadamente desiguais, esse é o choque e o enigma.

O fato de um macaco ter mãos é muito menos interes-sante para o filósofo do que o fato de que, tendo mãos, elenão faz quase nada com elas; não estala os dedos, nemtoca violino; não entalha o mármore, nem trincha costele-tas de carneiro. Fala-se de arquitetura bárbara e de arteinferior. Mas os elefantes não constroem colossais templosde marfim nem mesmo no estilo rococó; os camelos nãopintam nem mesmo quadros ruins, embora estejam equi-pados com o material de muitos pincéis de pêlo de camelo.

Certos sonhadores modernos dizem que as formigastêm uma organização social superior à nossa. Elas têm defato uma civilização; mas exatamente essa verdade só nosfaz lembrar de que é uma civilização inferior. Quem jamaisdescobriu um formigueiro decorado com as estátuas de for-migas famosas? Quem já viu uma colméia na qual estivessemesculpidas as imagens de esplêndidas rainhas de outrora?

Não; o abismo entre o homem e as outras criaturas podeter uma explicação natural, mas é um abismo. Falamos deanimais selvagens; mas o único animal selvagem é o ho-mem. Foi o homem que se evadiu. Todos os outros animaissão domésticos e seguem a inflexível respeitabilidade de suatribo ou espécie. Todos os outros animais são domésticos;apenas o homem é sempre indômito, seja ele um devasso,seja ele um monge. Assim, essa primeira razão superficial

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do materialismo é, na melhor das hipóteses, um bom moti-vo para acreditar-se no contrário; é exatamente onde a bio-logia pára que a religião começa.

Constataríamos a mesma coisa se examinássemos o se-gundo dos três argumentos racionalistas escolhidos alea-toriamente: o argumento de que tudo o que chamamos dedivino começou em alguma espécie de escuridão e terror.Quando tentei examinar os fundamentos dessa idéia mo-derna, simplesmente descobri que não havia nenhum. Aciência não sabe absolutamente nada sobre o homem pré-histórico, pela excelente razão de ele ser pré-histórico. Al-guns professores escolhem conjeturar que fatos como osacrifício de seres humanos eram outrora considerados ino-centes e gerais; depois foram gradativamente diminuindo.Mas não dispomos de nenhuma prova direta, e a pequenaquantidade de provas indiretas aponta muito mais para ocontrário disso.

Nas lendas mais antigas a nosso dispor, como as históriasde Isaque e de Ifigênia, o sacrifício humano não é apresen-tado como algo tradicional, mas sim como uma novidade;como uma estranha e assustadora exceção misteriosamen-te exigida pelos deuses. A História não diz nada. E todas aslendas dizem que a terra era mais amável nas épocas maisantigas. Não há uma tradição do progresso; mas toda a raçahumana tem uma tradição da Queda. É de fato bastanteengraçado ver que a própria disseminação dessa idéia éusada contra a sua autenticidade. Os eruditos dizem literal-mente que essa calamidade pré-histórica não pode ser ver-dadeira porque todas as raças da humanidade se lembramdela. Eu não consigo acompanhar esses paradoxos.

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E a constatação seria a mesma, se tomássemos o tercei-ro exemplo aleatório: a visão de que os sacerdotes tornamo mundo mais sombrio e mais amargo. Olho para o mundoe simplesmente percebo que eles não fazem isso. Os paísesda Europa que ainda são influenciados pelos sacerdotessão exatamente aqueles onde ainda há canto e dança e rou-pas coloridas e arte ao ar livre. A doutrina e a disciplinados católicos podem ser muros; mas são os muros de umpátio de recreio.

O cristianismo é a única estrutura que preservou o pra-zer do paganismo. Poderíamos imaginar crianças brincan-do na planície de um topo relvoso de alguma ilha elevadano meio do mar. Contanto que houvesse um muro em vol-ta da beira do precipício, elas poderiam entregar-se ao jogofrenético e transformar o lugar na mais barulhenta creche.Mas os muros foram derrubados, deixando desguarnecidoo perigo do precipício. As crianças não caíram; mas quan-do seus amigos voltaram, elas estavam todas amontoadascheias de terror no centro da ilha; e sua canção já haviacessado.

Assim os três fatos da experiência, fatos esses que ser-vem para fazer um agnóstico, são, segundo esta visão, to-talmente virados ao contrário. Resta-me dizer: “Traga-meuma explicação, primeiro, da altaneira excentricidade dohomem entre os animais; segundo, da vasta tradição deuma certa felicidade antiga; terceiro, da perpetuação par-cial dessa alegria pagã nos países da Igreja Católica”.

Uma explicação, de qualquer modo, cobre os três casos:a teoria de que duas vezes a ordem natural foi interrompi-

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da por alguma dessas explosões ou revelações que hoje sãochamadas de “psíquicas”. Uma vez o céu desceu sobre aterra com um poder ou selo chamado imagem de Deus,mediante a qual o homem assumiu o comando da nature-za; e mais uma vez (quando um império depois de outro semostrara deficiente) o céu veio salvar a humanidade naforma terrível de um homem. Isso explicaria por que a massados homens sempre olha para trás; e por que o único lugaronde eles, em todos os sentidos, olham para diante é o pe-queno continente onde Cristo tem a sua Igreja.

Eu sei que se dirá que o Japão se tornou progressista.Mas como isso pode ser uma resposta quando, mesmo di-zendo que “o Japão se tornou progressista”, nós de fato sóqueremos dizer que “o Japão se tornou europeu”? Toda-via, mais do que insistir na minha explicação, desejo aquiressaltar a minha observação original. Concordo com odescrente comum da rua em me deixar guiar por esses trêsou quatro fatos, todos eles apontando para alguma coisa;só que, quando passei a examinar os fatos, sempre consta-tei que eles apontavam para alguma outra coisa diferente.

Apresentei uma tríade imaginária desses argumentosanticristãos comuns. Caso isso constitua uma base muitoestreita, sob o impulso do momento, vou apresentar maisuma. Estes são os pensamentos que, combinados, criam aimpressão de que o cristianismo é algo fraco e doente. Pri-meiro, por exemplo, que Jesus foi uma criatura gentil, aca-nhada e espiritual, exercendo sobre o mundo um mero apeloineficaz. Segundo, que o cristianismo surgiu e prosperounas épocas sombrias da ignorância, e que de volta para tais

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épocas a Igreja nos arrastaria. Terceiro, que os povos aindafortemente religiosos ou (se você preferir) supersticiosos —como, por exemplo, os irlandeses — são fracos, pouco prá-ticos e atrasados.

Só menciono essas idéias para afirmar a mesma coisa:que, quando as examinei separadamente, descobri, não queas conclusões eram antifilosóficas, mas simplesmente que osfatos não eram fatos. Em vez de examinar livros e quadrossobre o Novo Testamento, examinei o próprio Novo Testa-mento. Ali descobri um relato que absolutamente não mos-trava uma pessoa de cabeleira partida ao meio ou de mãosentrelaçadas num gesto de súplica, mas mostrava um serextraordinário com lábios de trovão e atos terrivelmentedecididos, que derrubava mesas, expulsava demônios, pas-sava com o bravio sigilo do vento do isolamento da monta-nha para uma espécie de medonha demagogia; um ser quemuitas vezes agia como um deus irado — e sempre comoum deus.

Cristo tinha até um estilo literário próprio, que, na mi-nha opinião, não encontramos em nenhuma outra parte;consiste no uso quase furioso do a fortiori. Seus “quantomais” acumulam-se um sobre o outro como um sobre ooutro se acumulam os castelos nas nuvens. As palavrasusadas a respeito de Cristo têm sido, talvez sabiamente,doces e submissas. Mas as palavras usadas por Cristo sãocuriosamente gigantescas, cheias de camelos passando porburacos de agulhas e montanhas arremessadas ao mar.

Do ponto de vista moral, elas são igualmente tremen-das: ele chamou a si mesmo de espada da matança e pediu

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aos homens que comprassem espadas, mesmo que para issotivessem de vender suas vestes. O fato de ele ter usado ou-tras palavras ainda mais violentas em defesa da não-resis-tência aumenta grandemente o mistério; mas na melhordas hipóteses também aumenta bastante a violência.

Nem podemos explicar isso chamando de insano essetipo de ser, pois a insanidade é geralmente acompanhadade uma direção consistente. O maníaco é geralmentemonomaníaco. Aqui precisamos nos lembrar da difícil de-finição de cristianismo que apresentei antes: o cristianis-mo é um paradoxo sobre-humano segundo o qual duaspaixões opostas podem arder lado a lado. A única explica-ção da linguagem do evangelho que realmente o explica éaquela da visão panorâmica de alguém que contempla, dealguma altura sobrenatural, uma síntese ainda mais sur-preendente.

Seguindo a ordem, tomo o exemplo que veio em segui-da: a idéia de que o cristianismo pertence à Idade das Tre-vas. Aqui não me contentei com a leitura das generalizaçõesmodernas; li um pouco de história. E na história descobrique o cristianismo não fez parte da Idade das Trevas; mui-to pelo contrário, ele foi, através desse período, a única tri-lha que não era de trevas. Foi uma ponte luminosa ligandoduas luminosas civilizações.

Se alguém disser que a fé surgiu no meio da ignorância eselvageria, a resposta é simples: não surgiu. Ela surgiu nacivilização mediterrânea, no pleno verão do Império Ro-mano. O mundo estava infestado de céticos, e o panteísmoera tão patente quanto o sol, quando Constantino pregou

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o travessão ao mastro da cruz. É absolutamente verdadeque em seguida o navio afundou; mas é muito mais extra-ordinário que o navio voltou novamente à tona, com pin-tura nova e cintilante, com a cruz ainda lá no alto.

Esse é o feito maravilhoso que a religião realizou: elatransformou um navio afundado num submarino. A arcaviveu sob o peso das águas; depois de ficarmos enterradossob o entulho de dinastias e clãs, nós nos levantamos e noslembramos de Roma. Se a nossa fé tivesse sido apenas ummodismo do ocaso do império, um modismo teria seguidooutro modismo no crepúsculo, e se a civilização um diareemergisse (e muitas como ela jamais reemergiram), issoteria acontecido sob alguma nova bandeira de bárbaros.

Mas a Igreja cristã foi a última vida da velha sociedadee foi também a primeira vida da sociedade nova. Ele reu-niu as pessoas que estavam se esquecendo de como se fazum arco e lhes ensinou como inventar um arco gótico.Numa palavra, a coisa mais absurda que se poderia dizerda Igreja é aquilo que ouvimos dizer dela. Como podemosdizer que a Igreja deseja nos levar de volta para a Idadedas Trevas? A Igreja foi a única instituição que nos trouxepara fora desse período.

Nessa segunda tríade de objeções incluí mais um exem-plo sem nenhum fundamento proporcionado por aquelesque acham que gente como os irlandeses foi enfraquecidaou estagnada pela superstição. Eu só a incluí neste pontoporque se trata de um caso peculiar de uma afirmação defato que se revela a afirmação de uma falsidade.

Sempre se diz que os irlandeses não são práticos. Masse deixarmos por um momento de olhar para o que se afir-

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ma a respeito deles e olharmos para o que se faz com eles,veremos que os irlandeses não apenas são práticos, mas, aduras penas, muito bem-sucedidos. A pobreza do seu país,a minoria de seus membros representam simplesmente ascondições sob as quais eles têm de trabalhar. Mas nenhumoutro grupo no Império Britânico fez tanto em tais condi-ções. Os nacionalistas foram a única minoria que jamais foicapaz de forçar todo o Parlamento britânico a sair total-mente dos trilhos. Os camponeses irlandeses são os únicospobres destas ilhas que fizeram seus patrões retroceder.

Essas pessoas, que descrevemos como dominadas por pa-dres, são os únicos bretões que não serão dominados porfidalgos rurais. E quando passei a examinar o caráter realdos irlandeses, o caso mostrou-se o mesmo. Os irlandesessão os melhores em profissões especialmente difíceis — ado soldado, do advogado e do comerciante de ferro. Emtodos esses casos, portanto, cheguei à mesma conclusão: ocético estava muito certo em pautar-se pelos fatos, só queele não havia analisado os fatos. O cético é crédulo demais;acredita em jornais ou até mesmo em enciclopédias.

Mais uma vez as três questões me deixaram com outrastrês questões muito antagônicas. O cético mediano queriasaber como eu explicava o cunho piegas do texto evangéli-co, a conexão do credo com as trevas medievais e a inviabi-lidade política dos celtas cristãos. Mas eu queria perguntar,e perguntar com uma seriedade que chega a ser urgência:“O que é essa incomparável energia, que aparece primei-ro em alguém que percorre a terra como um julgamentovivo, e essa energia que pode morrer com uma civilizaçãomoribunda e, no entanto, a força a ressuscitar dos mortos;

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essa energia que no fim de tudo pode inflamar um campe-sinato falido com uma fé tão fervorosa na justiça que oscampesinos conseguem o que pedem, ao passo que outrossaem de mãos vazias; de modo que a mais desamparadailha do Império consegue de fato ajudar-se a si mesma?”

Há uma resposta: ela serve para dizer que a energia vemrealmente de fora do mundo; é psíquica ou, no mínimo, éum dos resultados de uma perturbação psíquica real. Deve-se o maior respeito e gratidão às grandes civilizações hu-manas tais como a antiga civilização egípcia e a atualcivilização chinesa. Todavia, não se comete nenhuma in-justiça contra elas dizendo que a Europa moderna sempreexibiu um poder de auto-renovação que muitas vezes re-corre a pequenos intervalos e desce aos menores detalhesde sua arquitetura ou tradição.

Todas as outras civilizações no fim morrem e morremcom dignidade. Nós morremos todos os dias. Estamos sem-pre renascendo com uma obstetrícia quase indecente. Nãochega a ser um exagero dizer que há na cristandade histó-rica uma espécie de vida não natural: ela poderia ser explicadacomo uma vida sobrenatural. Poderia ser explicada comouma terrível vida galvânica agindo no que teria sido umcadáver. Pois a nossa civilização deveria ter morrido, portodos os paralelos, por todas as probabilidades sociológi-cas, na Ragnorak1 do fim de Roma.

Essa é a estranha inspiração de nosso estado: você e eunão temos nenhuma razão de estarmos aqui. Somos todos

1Morte dos deuses.

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espectros; todos os cristãos viventes são pagãos que morre-ram e andam por aí. Exatamente quando a Europa estavapara recolher-se ao silêncio diante da Assíria e da Babilô-nia, algo tomou conta de seu corpo. E a Europa assumiuuma vida estranha — não é exagero dizer que tem tido umdelirium tremens — desde aquela época.

Tratei demoradamente dessa típica tríade de dúvidas afim de transmitir o argumento mais importante — que aminha tese pessoal em defesa do cristianismo é racional;mas não é simples. Trata-se de um acúmulo de vários fa-tos, como no caso da atitude do agnóstico. Mas o agnósticocomum entendeu seus fatos de modo totalmente errado.Ele é um descrente por inúmeras razões; mas são razõesfalsas. Ele duvida porque a Idade Média foi de bárbaros,mas não foi; porque o darwinismo está demonstrado, masnão está; porque os milagres não acontecem, mas aconte-cem; porque os monges eram preguiçosos, mas eles erammuito ativos; porque as freiras são infelizes, mas elas sãoparticularmente alegres; porque a arte cristã era triste epálida, mas ela era representada com cores peculiarmentevivas e com o brilho do ouro; porque a ciência modernaestá se afastando do sobrenatural, mas ela não está, estáse movendo na direção do sobrenatural com a rapidez deum trem.

Mas entre esses milhões de fatos fluindo todos numamesma direção há, naturalmente, uma questão bastantesólida e separada para ser vista brevemente, mas em des-taque. Refiro-me à ocorrência objetiva do sobrenatural. Emoutro capítulo já mostrei a falácia da suposição comum de

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que o mundo é impessoal por ser ordenado. Alguém tantopode desejar uma coisa ordenada quanto uma coisa desor-denada. Mas a minha convicção de que a criação pessoal émais aceitável do que a fatalidade material é, num certosentido, eu admito, indiscutível. Não a chamarei de fé oude intuição, pois essas palavras se confundem com a meraemoção. Trata-se de uma convicção estritamente intelec-tual; mas é primeiramente uma convicção intelectual comoa certeza que o eu tem de que a vida é boa.

Quem preferir pode, portanto, chamar minha crença emDeus de meramente mística. Não vale a pena brigar poressa frase. Mas a minha crença de que milagres têm acon-tecido na história humana não é de modo algum mística:eu acredito com base em provas humanas assim como acre-dito no descobrimento da América. Nesse ponto há um sim-ples fato lógico que é preciso apenas declarar e esclarecer.

Surgiu de algum modo a idéia extraordinária de que osdescrentes de milagres os analisam com frieza e justiça, aopasso que os crentes em milagres os aceitam apenas emconexão com algum dogma. O fato é totalmente o contrá-rio. Os que crêem em milagres os aceitam (com ou sem ra-zão) porque têm provas deles. Os que não crêem neles osnegam (com ou sem razão) porque têm uma doutrina con-tra eles. A atitude óbvia, democrática, é acreditar numavelhinha que vende maçãs quando ela dá testemunho deum milagre, exatamente como se acredita numa velhinhaque vende maçãs quando ela dá testemunho de um crime.A tendência popular pura e simples é confiar na palavrade um camponês sobre um fantasma exatamente na mes-ma medida em que se confia na palavra dele acerca do seu

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senhorio. Sendo um camponês, ele provavelmente terá umaboa dose de saudável agnosticismo acerca das duas coisas.Mesmo assim, seria possível encher o Museu Britânico comtestemunhos proferidos por camponeses e oferecidos emfavor do fantasma.

Quando se trata de testemunho humano, há uma sufo-cante enxurrada de testemunhos em favor do sobrena-tural. Rejeitando-os, você só pode dar a entender uma deduas coisas. Você rejeita a história do camponês sobre ofantasma ou por ele ser camponês, ou por se tratar de umahistória de fantasmas. Isto é, ou você nega o princípio fun-damental da democracia, ou afirma o princípio fundamentaldo materialismo — a impossibilidade abstrata de milagres.Você tem todo o direito de agir assim; mas neste caso vocêé que é dogmatista. Somos nós, os cristãos, que aceitamostodas as provas reais — são vocês, os racionalistas, que re-futam as provas reais e são obrigados a fazê-lo pelo seucredo.

Mas não sou forçado por nenhum credo nessa questão,e examinando imparcialmente certos milagres dos temposmedievais e modernos cheguei à conclusão de que eles acon-teceram. Toda a argumentação contra esses fatos eviden-tes é sempre uma argumentação em círculo. Se eu disser:“Os documentos medievais atestam certos milagres damesma forma que atestam certas batalhas”, eles respon-dem: “Mas os homens medievais eram supersticiosos”. Sequero saber em que pontos eles eram supersticiosos, a úni-ca resposta definitiva é que eles acreditavam em milagres.Se eu disser que um camponês viu um fantasma, eles me di-zem que os camponeses são muito crédulos. Se eu perguntar

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por que são crédulos, a única resposta é que eles vêem fan-tasmas.

A Islândia não pode existir porque apenas alguns mari-nheiros idiotas já a viram; e os marinheiros só são idiotaspor dizerem que viram a Islândia. É simplesmente justoacrescentar que há um outro argumento que o descrentepode usar racionalmente contra os milagres, embora elegeralmente se esqueça de usá-lo.

Ele pode dizer que houve, em muitas histórias de mila-gres, uma noção de preparação e aceitação espirituais: emsuma, que o milagre só podia acontecer para quem acredi-tava nele. Isso pode ser verdade, e se for verdade, comodevemos testá-lo? Se estamos indagando se certos resulta-dos acompanham a fé, é inútil repetir até a exaustão que,se acontecem, eles acompanham a fé. Se uma das condi-ções é a fé, os sem-fé têm o mais saudável direito de rir.Mas não têm o direito de julgar.

Ser crente pode ser, se você quiser, tão ruim quanto serbêbado; mesmo assim, se você estivesse extraindo fatospsicológicos de bêbados, seria absurdo continuamente zom-bar deles por estarem bêbados.

Suponhamos que estivéssemos investigando se homensirados realmente enxergam uma névoa vermelha diante dosolhos. Suponhamos que sessenta excelentes cidadãos ju-rassem que, quando irados, eles haviam visto essa nuvemvermelha: certamente seria absurdo responder: “Ah, masvocês admitem que na ocasião estavam irados”. Eles pode-riam com razão retrucar, num fortíssimo uníssono: “Comopoderíamos descobrir, sem estarmos irados, que quem estáirado enxerga vermelho?”

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Assim, os santos e os ascetas poderiam racionalmentereplicar: “Suponhamos que a indagação seja saber se quemtem fé pode ter visões — mesmo nesse caso, se você estáinteressado em visões não faz nenhum sentido objetar aosque têm fé”. Você está sempre argumentando em círculo— aquele velho círculo da loucura com o qual iniciamoseste livro.

A indagação sobre a ocorrência de milagres é uma per-gunta de senso comum e de imaginação histórica ordinária,não de algum experimento físico conclusivo. Podemos aquicertamente descartar aquela obra de pedantismo desmio-lado que fala da necessidade de “condições científicas” emconexão com alegados fenômenos espirituais. Quando es-tamos indagando se a alma de um morto pode comunicar-se com alguém vivo, é ridículo insistir que a indagação deveser efetuada em condições tais que não possa haver ne-nhuma possibilidade de dois seres humanos vivos, no gozode seus sentidos, poderem se comunicar entre si.

O fato de os fantasmas preferirem a escuridão não refu-ta a existência de fantasmas mais do que o fato de os aman-tes preferirem a escuridão refuta a existência do amor. Sevocê decidir dizer: “Eu acreditarei que a srta. Brown cha-mou seu noivo de pervinca, ou de qualquer outro termocarinhoso, se ela repetir a palavra perante dezessete psicó-logos”, então eu lhe direi: “Muito bem, se essas são as suascondições, você nunca conseguirá a verdade, pois ela comcerteza não o dirá”.

É simplesmente tão anticientífico quanto antifilosóficosurpreender-se que, numa atmosfera anti-sentimental, cer-tos sentimentos extraordinários não se manifestam. É como

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se eu dissesse que não poderia saber se havia neblina por-que o ar não estava suficientemente claro; ou se eu insistis-se exigindo a presença de uma perfeita claridade solar paraver um eclipse do Sol.

Tirando uma conclusão baseada no senso comum, comoaquelas a que chegamos sobre o sexo ou sobre a meia-noite(sabendo bem que muitos detalhes devem, por sua pró-pria natureza, permanecer ocultos), digo que milagres acon-tecem. Sou forçado a isso por uma conspiração de fatos:o fato de que os homens que encontram elfos ou anjos nãosão os místicos, nem os sonhadores doentios, mas sim ospescadores, camponeses e todos os homens ao mesmo tem-po rústicos e cautelosos; o fato de que todos conhecemoshomens que atestam incidentes de caráter espiritual, masnão são espiritualistas; e o fato de que a própria ciênciaadmite essas coisas cada vez mais, todos os dias. A ciên-cia admitirá até mesmo a ascensão se você a chamar delevitação, e muito provavelmente admitirá a ressurreiçãoquando ela houver pensado em outra palavra para isso.Sugiro regalvanização.

Todavia, mais forte que tudo é o dilema mencionado aci-ma, de que essas coisas sobrenaturais nunca são negadasexceto com base ou na antidemocracia, ou no dogmatismomaterialista — eu poderia dizer misticismo materialista. Ocético sempre assume uma destas duas posições: ou não sedeve acreditar num homem comum, ou não se deve acre-ditar num evento incomum. Pois espero que possamos des-cartar a argumentação contra portentos que se baseiana mera recapitulação de fraudes, de médiuns trapaceirosou de milagres que são truques. Aquilo absolutamente não

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é uma argumentação, nem boa, nem ruim. Um fantasmafalso refuta a realidade de fantasmas exatamente da mes-ma forma que uma nota falsa refuta a existência do Bancoda Inglaterra — se ela prova alguma coisa, prova a existên-cia desse banco.

Admitindo-se essa convicção de que os fenômenos espi-rituais acontecem (minhas provas disso são complexas, masracionais), colidimos então com um dos piores males men-tais de nossa época. O maior desastre do século XIX foieste: o homem começou a usar a palavra “espiritual” como sefosse o mesmo que a palavra “bem”. Ele pensou que se tor-nar mais refinado e incorpóreo era se tornar mais virtuoso.

Quando se anunciou a evolução científica, houve quemtemesse que ela estimulasse a mera animalidade. Fez pior:estimulou a mera espiritualidade. Ela ensinou os homens apensar que, se eles estavam ultrapassando o macaco, esta-vam caminhando para o anjo. Mas você pode ultrapassaro macaco e ir para o diabo. Um homem de gênio, muitotípico daquela época de perplexidade, expressou isso à per-feição. Benjamin Disraeli acertou quando disse que estavado lado dos anjos. Estava mesmo; estava do lado dos anjosdecaídos. Ele não estava do lado de algum mero apetite ouda brutalidade animal; mas estava também do lado doimperialismo dos príncipes do abismo; estava do lado da ar-rogância e do mistério e do desprezo por todo o bem óbvio.

Entre esse orgulho submerso e os altaneiros espíritoshumildes do céu há, devemos supor, espíritos de formas etamanhos diversos. O homem, quando os encontra, devecometer praticamente os mesmos erros que comete quan-do encontra quaisquer outras espécies em qualquer outro

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continente distante. Deve ser difícil no início saber quem éa autoridade máxima e quem são os subordinados. Se umfantasma surgisse do submundo e contemplasse a praçade Piccadilly, não entenderia bem a idéia de uma carrua-gem fechada comum. Ele imaginaria que o cocheiro no altode seu posto era um triunfante conquistador arrastandoatrás de si um recalcitrante cativo aprisionado.

Assim, quando observamos fatos espirituais pela primei-ra vez, podemos nos confundir sobre quem ocupa a posi-ção mais alta. Não basta descobrir os deuses; eles são óbvios;precisamos descobrir a Deus, o verdadeiro chefe dos deu-ses. Precisamos ter uma longa experiência histórica em fe-nômenos sobrenaturais — para descobrir quais são de fatonaturais.

À luz disso percebo que a história do cristianismo, e atémesmo de suas origens judaicas, é muito prática e clara.Não vejo problema se me disserem que o deus hebreu eraum entre muitos. Eu sei que era, sem precisar que nenhumapesquisa me mostre isso. Jeová e Baal pareciam ter a mesmaimportância, exatamente como o sol e a lua pareciam domesmo tamanho. Só aos poucos aprendemos que o sol é onosso patrão com poder incomensurável, e a pequena luaé apenas o nosso satélite.

Acreditando na existência de um mundo de espíritos,caminharei nele como caminho no mundo dos homens,procurando aquilo de que gosto e considero bom. Exata-mente como eu procuraria, no deserto, água limpa, ou tra-balharia no Pólo Norte para fazer uma fogueira, assim heide sondar a vastidão e o vazio da visão da terra até desco-brir alguma coisa fresca como a água e reconfortante como

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o fogo; até descobrir algum lugar na eternidade onde euesteja literalmente em casa. E existe apenas um lugar as-sim a descobrir.

Já disse o suficiente para mostrar (a qualquer um paraquem uma explicação assim é essencial) que tenho, na are-na comum da apologética, um fundamento da crença. Nossimples registros de experimentos (se estes forem tomadosdemocraticamente, sem desprezo ou favor) há provas,primeiro, de que milagres acontecem e, segundo, de que osmilagres mais nobres pertencem à nossa tradição. Mas nãovou alegar que esta discussão lacônica constitui minha ver-dadeira razão para aceitar o cristianismo em vez de extrairdele o bem moral como o extrairia do confucionismo.

Tenho outra razão muito mais sólida e central para sub-meter-me ao cristianismo como uma religião em vez de sim-plesmente tomar dele sugestões como se fosse um esquema.É a seguinte: a Igreja Cristã em sua relação prática com aminha alma é mestra viva, não mestra morta. Ela não ape-nas me ensinou com certeza ontem, mas quase com certe-za me ensinará amanhã.

Certa vez de repente vi o significado da forma da cruz;algum dia de repente poderei ver o significado da forma damitra. Certa manhã livre entendi por que as janelas sãopontiagudas; uma bela manhã poderei ver por que os pa-dres são tonsurados. Platão lhe disse uma verdade; masPlatão está morto. Shakespeare o assustou com uma ima-gem; mas Shakespeare já não o assustará mais. Mas imagi-ne o que seria conviver com esses homens, saber que Platãopoderia aparecer amanhã com uma aula original, ou queShakespeare a qualquer momento poderia estilhaçar tudo

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com uma única canção. Quem vive em contacto com o queacredita ser uma igreja viva é alguém que sempre esperaencontrar-se com Platão e Shakespeare no café da manhã.É alguém que sempre espera descobrir uma verdade nun-ca vista antes.

Existe apenas outro paralelo dessa posição, e é o parale-lo da vida em que todos fomos iniciados. Quando seu pailhe disse, caminhando pelo jardim, que as abelhas picam,ou que as rosas têm cheiro agradável, vocês não conversa-vam sobre extrair o melhor de sua filosofia. Quando asabelhas o picaram, você não considerou o fato uma coinci-dência engraçada. Quando a rosa exalou seu perfume agra-dável, você não disse: “Meu pai é um rude símbolo bárbaro,que guarda como num relicário (talvez inconscientemen-te) as profundas e delicadas verdades de que as flores têmcheiro”. Não; você acreditou em seu pai porque já tinhadescoberto que ele era uma fonte viva de fatos, alguém querealmente sabia mais que você, alguém que lhe diria a ver-dade amanhã assim como a dizia hoje.

E se isso era verdade a respeito de seu pai, era aindamais verdade sobre sua mãe; pelo menos era verdade sobrea minha, a quem este livro é dedicado. Ora, quando a socie-dade está fazendo um estardalhaço fútil acerca da sujei-ção das mulheres, será que ninguém dirá como cada homemestá endividado à tirania e ao privilégio das mulheres, aofato de que somente elas dominam a educação até quea educação se torne fútil? Pois um menino só é enviado àescola quando já é tarde demais para lhe ensinar algumacoisa.

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A verdadeira educação já está pronta, e graças a Deusela é quase sempre feita por mulheres. Todos os homenstornam-se femininos, simplesmente por nascerem. Fala-seda mulher masculina; mas todos os homens são feminiza-dos. E se um dia os homens se dirigirem para Westminstera fim de protestar contra esse privilégio feminino, eu nãoentrarei na procissão deles.

Pois me lembro com certeza deste fato psicológico: exa-tamente na época em que eu estava mais sujeito à autori-dade da mulher estava mais repleto de fogo e aventura.Exatamente porque, quando minha mãe dizia que as for-migas picavam, elas de fato picavam, e porque a neve che-gava no inverno (como ela dizia). Portanto, para mim todoo mundo era um país de conto de fadas de feitos maravi-lhosos, e era como viver em alguma época hebraica, quan-do uma profecia após outra se concretizava.

Saí como criança para o jardim, que era para mim umlugar terrível, precisamente porque eu tinha informaçõessobre ele. Se eu não tivesse nenhuma informação, ele nãoteria sido terrível, mas sim doméstico. Uma simples vasti-dão sem significado nem sequer impressiona. Mas o jardimda minha infância era fascinante, justamente porque tudotinha um significado fixo que podia ser descoberto no seutempo devido. Centímetro por centímetro, eu poderia des-cobrir o que era aquele objeto de formato feio chamadoancinho; ou formar alguma vaga hipótese sobre a razão demeus pais terem um gato.

Assim, desde que aceitei o cristianismo como uma mãee não apenas como um exemplo aleatório, percebi que a

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Europa e o mundo mais uma vez são como o pequeno jar-dim onde fixei os olhos nas formas simbólicas do gato e doancinho. Contemplo tudo com a velha ignorância e expec-tativa dos elfos. Este ou aquele rito, esta ou aquela doutri-na podem parecer tão feias e incomuns como um ancinho;mas descobri pela experiência que essas coisas de algummodo terminam em relva e flores. Um clérigo pode ser apa-rentemente tão inútil quanto um gato, mas é também igual-mente fascinante, pois deve haver alguma estranha razãopara a sua existência.

Dou um exemplo dentre uma centena: não tenho pes-soalmente nenhuma afinidade com aquele entusiasmo pelavirgindade física, que certamente tem sido uma marca docristianismo histórico. Mas quando olho não para mimmesmo, mas para o mundo, percebo que esse entusiasmonão é apenas uma marca do cristianismo, mas uma marcado paganismo, uma marca de natureza profundamentehumana em muitas esferas. Os gregos sentiram a virginda-de quando esculpiram Ártemis; os romanos, quando vesti-ram as vestais; os piores e mais loucos dos grandes dramaturgoselisabetanos agarraram-se à pureza literal de uma mulhercomo se isso fosse o pilar central do mundo.

Acima de tudo, o mundo moderno (mesmo enquantozomba da inocência sexual) atirou-se a uma generosa ido-latria da inocência sexual — a grande adoração modernadas crianças. Pois qualquer um que ame as crianças con-cordará que a peculiar beleza delas é ferida por uma insi-nuação de sexo físico.

Com toda essa experiência humana, aliada à autorida-de cristã, simplesmente concluo que estou errado e a igreja

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está certa; ou melhor, que sou defeituoso, ao passo que aigreja é universal. São necessários todos os tipos para fazeruma igreja; ela não me pede para ser celibatário. Mas ofato de eu não ter nenhum apreço pelos celibatários, eu oaceito como o fato de não ter nenhum ouvido para a músi-ca. O melhor da experiência humana está contra mim, comoacontece no assunto de Bach. O celibato é uma flor no jar-dim de meu pai, da qual não me foi revelado o doce ou terrí-vel nome. Mas é possível que me seja revelado algum dia.

Essa é, portanto, concluindo, a minha razão para acei-tar a religião e não simplesmente as dispersas e secularesverdades derivadas dela. Faço-o porque a instituição nãorevelou esta ou aquela verdade, mas revelou-se como a ins-tituição que diz a verdade. Todas as outras filosofias di-zem as coisas que claramente parecem verdadeiras; somenteesta filosofia tem dito muitas e muitas vezes aquilo quenão parece, mas é verdadeiro. Ela é a única de todas ascrenças que convence em pontos em que não é atrativa;ela acaba se revelando certa, como o meu pai no jardim.

Os teosofistas, por exemplo, vão pregar uma idéia obvia-mente atrativa como a reencarnação; mas se esperarmosos seus resultados lógicos, eles serão o desdém espirituale a crueldade de castas. Pois se um homem for um mendi-go por seus próprios pecados pré-natais, as pessoas tende-rão a desdenhá-lo. Mas o cristianismo prega uma idéiaobviamente pouco atrativa como o pecado original; mas seesperarmos os seus resultados, eles são a compaixão e afraternidade e uma explosão de riso e piedade; pois somen-te com o pecado original podemos, ao mesmo tempo, tercompaixão pelo mendigo e desconfiar do rei.

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Os cientistas nos oferecem a saúde, um benefício óbvio;só depois descobrimos que por saúde eles querem dizer es-cravidão corpórea e tédio espiritual. A ortodoxia nos fazpular junto à súbita borda do inferno; só depois percebe-mos que pular era um exercício atlético altamente benéfi-co à saúde. Só depois percebemos que esse perigo é a raizde todo drama e romance. O argumento mais forte em fa-vor da graça divina é simplesmente a desgraciosidade. Aspartes impopulares do cristianismo, quando examinadas,revelam-se os verdadeiros esteios das pessoas.

O círculo externo do cristianismo é uma proteção rígidade abnegações éticas e sacerdotes profissionais; mas den-tro dessa proteção desumana você encontrará a velha vidahumana dançando como dançam as crianças e bebendovinho como bebem os homens; pois o cristianismo é a úni-ca moldura para a liberdade pagã. Mas na filosofia moder-na o caso é o oposto; é o círculo externo que é obviamenteartístico e emancipado; seu desespero está dentro.

E o seu desespero é o seguinte: ela realmente não acredi-ta que haja algum significado no universo; portanto, elanão pode esperar encontrar nenhuma aventura romanes-ca; seus romances não têm trama alguma. Ninguém podeesperar nenhuma aventura no país da anarquia. Mas po-dem-se esperar infinitas aventuras quando se viaja no paísda autoridade. Não se podem esperar significados numaselva de ceticismo; mas podem-se encontrar sempre maissignificados caminhando por uma floresta de doutrina ecom planos.

Aqui tudo tem uma história presa ao próprio rabo, comoas ferramentas e os quadros na casa de meu pai, pois é a

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casa de meu pai. Termino onde comecei — do lado certo.Ultrapassei no mínimo o portão de toda boa filosofia. Che-guei à minha segunda infância.

Mas esse universo cristão mais amplo e mais aventurosotem um caráter final difícil de expressar. No entanto, comoconclusão de toda esta matéria, vou tentar expressá-lo.Toda a argumentação real sobre a religião gira em torno daquestão de se o homem que nasceu de cabeça para baixopode saber quando se porá de cabeça para cima.

O paradoxo primário do cristianismo é que a condiçãocomum do homem não é sua condição equilibrada e sensa-ta; que a própria normalidade é anormal. Essa é a maisprofunda filosofia da Queda. No interessante novo cate-cismo de Sir Oliver Lodge, as primeiras duas perguntaseram: “Que é você?” e “Qual, então, é o significado da Que-da do Homem?”

Lembro-me de que me diverti escrevendo minhas pró-prias respostas a essas questões; mas logo percebi que eramquestões truncadas e agnósticas. À pergunta “Que é você?”eu só podia responder: “Só Deus sabe”. E à pergunta “Qualé o significado da Queda do Homem?” eu só podia respon-der com sinceridade total: “Seja lá o que sou, eu não sou eumesmo”.

Esse é o primeiro paradoxo da nossa religião; algo quenunca conhecemos em nenhum sentido pleno não ape-nas é melhor do que nós, mas até nos é mais natural doque nós mesmos. E para isso não existe realmente um testeexceto aquele meramente experimental com o qual estaspáginas começaram, o teste da cela acolchoada e da portaaberta. Foi só depois de conhecer a ortodoxia que conheci

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a emancipação mental. Mas, concluindo, isso tem umaaplicação especial na idéia suprema da alegria.

Dizem que o paganismo é uma religião de alegria e ocristianismo é de tristeza. Seria igualmente fácil provar queo paganismo é pura tristeza e o cristianismo pura alegria.Esses conflitos nada significam e não levam a lugar algum.Tudo o que é humano deve conter em si alegria e tristeza; aúnica questão que interessa é como os dois ingredientessão equilibrados e divididos. E a coisa realmente interes-sante é a seguinte, que o pagão sentia-se em geral cada vezmais feliz à medida que se aproximava da terra, mas cadavez mais triste à medida que se aproximava dos céus.

A alegria do melhor paganismo, como na jocosidade deCatulo ou Teócrito, é, de fato, uma alegria eterna que nun-ca deve ser esquecida por uma humanidade grata. Mas éuma alegria totalmente voltada para os fatos da vida, nãoenvolvendo a origem dela. Para o pagão, as menores coisassão doces como os menores riachos que irrompem da mon-tanha; mas as coisas maiores são amargas como o mar.Quando o pagão olha para o verdadeiro âmago do cosmos,ele de súbito se sente gelado. Por trás dos deuses, que sãomeramente despóticos, sentam-se as parcas, que são mor-tais. Melhor dizendo, as parcas são piores que mortais; elasestão mortas.

E quando os racionalistas dizem que o mundo antigoera mais esclarecido que o mundo cristão, do seu ponto devista eles estão certos. Pois quando dizem “esclarecido”querem dizer “obscurecido” por um incurável desespero. Éprofundamente verdadeiro que o mundo antigo era maismoderno do que o cristão. O vínculo comum está no fato

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de que os antigos e os modernos sentiram-se infelizes acer-ca da existência, acerca de todos os fatos da vida, ao passoque os medievais sentiam-se felizes pelo menos a respeitodisso.

Admito francamente que os pagãos, assim como os mo-dernos, eram apenas infelizes acerca da totalidade dos fa-tos da vida — eles eram muito alegres acerca de tudo omais. Concedo que os cristãos da Idade Média viviam empaz com a totalidade dos fatos da vida — estavam em guerracom tudo o mais. Mas se a questão girar em torno do pri-meiro pivô do cosmos, então havia mais contentamentocósmico nas estreitas e sangrentas ruas de Florença do queno teatro de Atenas ou no jardim aberto de Epicuro. Giottoviveu numa cidade mais sombria do que Eurípides, masele viveu num universo mais alegre.

A massa humana tem sido forçada a sentir-se alegre acer-ca de coisas pequenas, mas a entristecer-se acerca de coi-sas grandes. Apesar disso (apresento o meu último dogmacomo uma provocação), não é natural para o homem serassim. O homem se identifica mais consigo mesmo, é maisparecido com o homem quando a alegria é a coisa funda-mental dentro dele e a dor é superficial. A melancolia de-veria ser um inocente interlúdio, um estado de espíritodelicado e fugaz; a pulsação permanente da alma deveriaser o louvor. O pessimismo é, na melhor das hipóteses, ummeio-feriado emocional; a alegria é a ruidosa labuta pelaqual vivem todas as coisas.

No entanto, de acordo com a aparente condição do ho-mem na ótica do pagão ou do agnóstico, essa primeira ne-cessidade da natureza humana nunca pode ser satisfeita.

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A alegria deveria ser expansiva; mas, para o agnóstico, eladeve ser contraída, deve restringir-se a alguém bem-suce-dido neste mundo. A dor deveria ser uma concentração;mas, para o agnóstico, a desolação dela se espalha por umaeternidade inimaginável. Isso é o que chamo de nascer decabeça para baixo. Pode-se na verdade dizer que o céticoestá de pernas para o ar, pois seus pés vão dançando vira-dos para cima em vãos frenesis, enquanto o cérebro estáno abismo.

Para o homem moderno, os céus estão realmente embai-xo da terra. A explicação é simples: ele está de ponta-cabe-ça, o que constitui um pedestal pouco resistente paraapoiar-se. Mas quando ele houver novamente descobertoos próprios pés, saberá disso. O cristianismo satisfaz de re-pente e à perfeição o instinto ancestral do homem de estarvirado para cima; e o satisfaz plenamente neste sentido:com seu credo a alegria se torna algo gigantesco e a tristezaalgo especial e pequeno.

A abóbada acima de nós não é surda porque o universoé um idiota: seu silêncio não é o silêncio sem piedade de ummundo sem fim e sem destino. O silêncio que nos cerca éantes uma pequena e compassiva quietude como a súbitaquietude no quarto de um enfermo. Talvez a tragédia nosseja permitida como uma espécie de comédia benigna: por-que a frenética energia das coisas divinas nos derrubariacomo uma farsa de bêbados. Podemos aceitar as própriaslágrimas mais facilmente do que poderíamos aceitar a tre-menda leveza dos anjos. Assim ficamos sentados talvez numquarto estrelado e silencioso, enquanto a risada dos céus éforte demais para os nossos ouvidos.

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A alegria, que foi a pequena publicidade do pagão, é ogigantesco segredo do cristão. E no fechamento deste caó-tico volume torno a abrir o estranho livrinho do qual pro-veio o cristianismo; e novamente sinto-me assombrado poruma espécie de confirmação. A tremenda figura que encheos evangelhos ergue-se altaneira nesse respeito, como emtodos os outros, acima de todos os pensadores que jamaisse consideraram elevados.

A compaixão dele era natural, quase casual. Os estóicos,antigos e modernos, orgulhavam-se de ocultar as própriaslágrimas. Ele nunca ocultou as suas; mostrou-as claramen-te no rosto aberto ante qualquer visão do dia-a-dia, comoa visão distante de sua cidade natal. No entanto, algumacoisa ele ocultou. Solenes super-homens e diplomatas im-periais orgulham-se de conter a própria ira. Ele nunca aconteve. Arremessou móveis pela escadaria frontal do Tem-plo e perguntou aos homens como eles esperavam escaparda danação do inferno. No entanto, alguma coisa ele ocul-tou. Digo-o com reverência; havia naquela chocante per-sonalidade um fio que deve ser chamado de timidez. Haviaalgo que ele encobria constantemente por meio de umabrupto silêncio ou um súbito isolamento. Havia uma cer-ta coisa que era demasiado grande para Deus nos mostrarquando ele pisou sobre esta nossa terra. Às vezes imaginoque era a sua alegria.

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