Os Almotacés de Lisboa (Século XVIII)

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Lisbon Almotacés (18th century)After establishing an historical contextualization from references to the curule aedile of the Roman Empire, the islamic muthasib and the Ordenações do Reino (Ordinances of the Kingdom), the present dissertation establishes the framework of the position of almotacé in Lisbon during the 18th century, in terms of its attributions, career access path, mandate duration and renewal, and remuneration.It is a common thing to say that man makes the position more often than the position makes the man. The compilation of the names of the six hundred and fifty almotacés of 18th century Lisbon intends to identify each and every one of such protagonists of the municipal history of Lisbon. After a review of the theory of crafts, a characterization of the office position is made in terms of its attractiveness – those who requested it, and those who avoided it – and an attempt is made to establish the typical profile of the 18th century almotacé, aiming to determine if a correspondence exists with a particular social category.By depicting the evolutionary framework of the regulatory activity beginning with the 1755 earthquake, taking into special consideration the changes introduced in Lisbon by the centralist administration of Sebastião José de Carvalho e Melo, a perspective is given on the implications for the activity of the almotacés decurring from the transfer of powers and competences from the municipal sphere to the Junta do Comércio and Intendência Geral da Polícia.Lastly, the loss of social status that affected the office position and the consequent changes in its way of functioning are brought into sharp focus, in connection with the winds of change that propitiated the fall of the old regime.Keywords: Almotacé, Crafts, Lisbon, Regulation.

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  • Departamento de Sociologia

    Os Almotacs de Lisboa (sculo XVIII)

    Paulo Jorge da Costa Pereira Ferreira

    Dissertao submetida como requisito parcial para obteno do grau de

    Mestre em Histria Moderna e Contempornea,

    especialidade Poltica, Cultura e Cidadania

    Orientador:

    Doutor Nuno Gonalo Monteiro, Professor associado convidado com agregao,

    ISCTE Instituto Universitrio de Lisboa

    Outubro, 2012

  • i

    AGRADECIMENTOS

    Quero manifestar o meu agradecimento a todos os que me auxiliaram, contribuindo para esta

    realizao. Em primeiro lugar ao meu mano, Lus Miguel Ferreira, pelo inexcedvel apoio. minha

    colega Margarida Portela, por uma preciosa dica bibliogrfica online. Filomena Arajo, pela recolha

    de informao na biblioteca do Instituto de Cincias Sociais. minha universidade, o ISCTE, pelo

    timo ambiente de trabalho. Aos meus professores do Mestrado em Histria Moderna e

    Contempornea, pela sua atitude sempre prxima e disponvel. Aos funcionrios do Arquivo

    Municipal de Lisboa e do Arquivo Nacional da Torre do Tombo, pelo zelo e simpatia no cumprimento

    das suas funes. Aos moradores do labirntico bairro de Alfama que, nas passadas festas do Santo

    Antnio, me ajudaram a encontrar o acanhado Beco do Almotac. Uma palavra especial de gratido ao

    meu orientador, Prof. Doutor Nuno Gonalo Monteiro, pela confiana que sempre me transmitiu.

    Finalmente, gostaria de dedicar este trabalho cidade de Lisboa, onde nasci.

  • ii

    RESUMO

    Os Almotacs de Lisboa (sculo XVIII)

    Aps estabelecer uma contextualizao histrica a partir de referncias ao edil curul do Imprio

    Romano, aos muthasib islmicos e s Ordenaes do Reino, a presente dissertao estabelece o

    enquadramento do cargo de almotac em Lisboa durante o sculo XVIII, no que se refere s suas

    competncias, modos de acesso, prazo dos mandatos e renovao, alm das condies remuneratrias.

    comum dizer-se que as pessoas fazem os cargos muito mais do que os cargos fazem as pessoas.

    Mediante o levantamento dos nomes dos seiscentos e cinquenta almotacs da Lisboa setecentista

    pretende-se identificar, personalizadamente, cada um desses protagonistas da histria municipal

    lisbonense. Aps uma incurso pela teoria dos ofcios, procede-se caracterizao do cargo sob a

    perspetiva da apetncia pelo mesmo - quem o requeria e quem dele se escusava - e procura

    estabelecer-se a descrio de um perfil tpico do almotac setecentista visando determinar se o mesmo

    corresponde a uma categoria social.

    Ao traar-se o quadro evolutivo da atividade regulatria a partir do terramoto de 1755, dando

    especial ateno s alteraes introduzidas em Lisboa pela administrao centralista de Sebastio Jos

    de Carvalho e Melo, perspetivam-se as implicaes para o exerccio dos almotacs que decorreram da

    transferncia de poderes e competncias da esfera municipal para a Junta do Comrcio e Intendncia

    Geral da Polcia.

    Por fim, enfoca-se a perda de estatuto do cargo e as consequentes mudanas no modo do seu

    funcionamento, relacionando-as com os novos ventos de mudana que propiciavam a queda do antigo

    regime.

    Palavras-chave: Almotac, Ofcios, Lisboa, Regulao.

  • iii

    ABSTRACT

    Lisbon Almotacs (18th

    century)

    After establishing an historical contextualization from references to the curule aedile of the Roman

    Empire, the islamic muthasib and the Ordenaes do Reino (Ordinances of the Kingdom), the present

    dissertation establishes the framework of the position of almotac in Lisbon during the 18th century, in

    terms of its attributions, career access path, mandate duration and renewal, and remuneration.

    It is a common thing to say that man makes the position more often than the position makes the

    man. The compilation of the names of the six hundred and fifty almotacs of 18th century Lisbon

    intends to identify each and every one of such protagonists of the municipal history of Lisbon. After a

    review of the theory of crafts, a characterization of the office position is made in terms of its

    attractiveness those who requested it, and those who avoided it and an attempt is made to establish

    the typical profile of the 18th century almotac, aiming to determine if a correspondence exists with a

    particular social category.

    By depicting the evolutionary framework of the regulatory activity beginning with the 1755

    earthquake, taking into special consideration the changes introduced in Lisbon by the centralist

    administration of Sebastio Jos de Carvalho e Melo, a perspective is given on the implications for the

    activity of the almotacs decurring from the transfer of powers and competences from the municipal

    sphere to the Junta do Comrcio and Intendncia Geral da Polcia.

    Lastly, the loss of social status that affected the office position and the consequent changes in its

    way of functioning are brought into sharp focus, in connection with the winds of change that

    propitiated the fall of the old regime.

    Keywords: Almotac, Crafts, Lisbon, Regulation.

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  • v

    ndice RESUMO ............................................................................................................................................ ii

    SIGLAS ............................................................................................................................................. vii

    I. INTRODUO........................................................................................................................... 1

    II. CONTEXTUALIZAO HISTRICA ..................................................................................... 5

    III. AS COMPETNCIAS .......................................................................................................... 11

    1. O mercado ............................................................................................................................. 11

    2. O construtivo ......................................................................................................................... 23

    3. O sanitrio ............................................................................................................................. 24

    4. Atos de publicitao e procisses .......................................................................................... 29

    IV. O CARGO E O OFCIO: SUA NATUREZA ....................................................................... 31

    1. O cargo (almotacs das execues da almotaaria)............................................................... 31

    2. O ofcio (almotacs das execues da limpeza) .................................................................... 43

    V. OFICIAIS DAS ALMOTAARIAS E OUTROS COLABORADORES ................................ 49

    1. Escrives da almotaaria (das execues e da limpeza) ........................................................ 49

    2. Zeladores da almotaaria ....................................................................................................... 53

    3. Requerente da almotaaria .................................................................................................... 55

    4. Meirinho da cidade ................................................................................................................ 56

    5. Depositrio da almotaaria .................................................................................................... 56

    6. Homens da vara da almotaaria (das execues e da limpeza) ............................................. 58

    7. Administrador geral da almotaaria e novas licenas ........................................................... 59

    8. Contratador das condenaes da almotaaria ........................................................................ 61

    9. Contratador da limpeza ......................................................................................................... 65

    VI. ALMOTACS DO TERMO ................................................................................................. 69

    1. O termo .................................................................................................................................. 69

    2. Periodicidade, durao e localizao das correies do termo .............................................. 70

    3. Critrios de seleo e competncias ...................................................................................... 76

    VII. PERFIL SOCIAL DOS ALMOTACS DE LISBOA .......................................................... 79

    1. Nota prvia ............................................................................................................................ 79

    2. Requisitos da eleio ............................................................................................................. 80

    3. A certido de bons servios ................................................................................................... 83

    4. A mobilidade social ............................................................................................................... 86

    VIII. O DECLNIO ........................................................................................................................ 91

    CONCLUSO .................................................................................................................................. 99

    FONTES .......................................................................................................................................... 101

    1. Fontes de arquivo ................................................................................................................ 101

  • vi

    2. Sites da Web ........................................................................................................................ 101

    BIBLIOGRAFIA ............................................................................................................................. 103

    3. Estudos em livro .................................................................................................................. 103

    4. Artigos em revistas ou coletneas ....................................................................................... 104

    5. Teses de mestrado ou doutoramento ................................................................................... 105

    6. Literatura ou memrias ....................................................................................................... 105

    7. Coletneas de Legislao .................................................................................................... 105

    ANEXO A ............................................................................................................................................ I

    ANEXO B ......................................................................................................................................... III

    ANEXO C ......................................................................................................................................... IX

    ANEXO D ...................................................................................................................................... XIII

    ANEXO E ..................................................................................................................................... XXV

    ndice de Quadros

    Quadro VII.1 - Nmero de almotacs das execues e da limpeza (sc. XVIII) .................................. 79

    Quadro VII.2 - Origem geogrfica dos almotacs de Lisboa (sc. XVIII) ........................................... 80

    Quadro VII.3 - Almotacs com grau acadmico ................................................................................... 80

    Quadro VII.4 - Nmero de provises por almotac (das execues) .................................................... 83

    Quadro VII.5 - Nmero de almotacs de Lisboa reconduzidos, por funo - Sculo XVIII ................ 84

    ndice de Figuras

    Figura VII.1 - Ttulos e referncias de nobreza dos almotacs de Lisboa (sc. XVIII) ........................ 82

    Figura VII.2 - Ofcios dos almotacs de Lisboa no sc. XVIII ............................................................. 87

    Figura VIII.1 - Mandatos na cidade e no termo (por dcadas) .............................................................. 96

  • vii

    SIGLAS

    AML. AH Arquivo Municipal de Lisboa. Arquivo Histrico

    ANTT Arquivo Nacional da Torre do Tombo

    HOC Habilitaes para cavaleiro da Ordem de Cristo

    FSO Familiares do Santo Ofcio

  • viii

  • 1

    "Quand on aime la vie,

    on aime le pass, parce que c'est le prsent

    tel qu'il a survcu dans la mmoire humaine".

    Marguerite Yourcenar

    I. INTRODUO

    A ideia do tema para esta dissertao surgiu no ms de janeiro de 2011, com a entrega do trabalho

    final para O Governo da Cidade Instituies e Poderes Locais, uma das unidades curriculares do

    presente curso de mestrado, ministrada no ISCTE pelo Prof. Dr. Nuno Gonalo Monteiro. Intitulava-se

    Os almotacs de Lisboa no sculo XVIII e partiu de um trabalho biogrfico que eu vinha escrevendo

    por autoiniciativa, de modo que, chegado o momento de encetar o projeto de tese, alguma da pesquisa

    j se achava realizada.

    O perodo temporal considerado na presente dissertao situa-se algures entre dois marcos

    institucionais: o Alvar rgio de 5 de abril de 1618,1 que define a qualidade das pessoas a serem eleitas

    como almotacs (gente nobre, e dos melhores da terra), e o Decreto de Mouzinho da Silveira de 3 de

    dezembro de 1832, que extinguiu o cargo. Uma vez que a esta periodizao se faria corresponder um

    lapso de tempo excessivamente amplo (e ainda que se tomasse como ponto de partida o Regimento da

    Cmara de Lisboa de 5 de setembro de 1671 que veio reformar o anterior Regimento de 30 de julho

    de 1591), optei por contrair o intervalo, fazendo-o corresponder durao de apenas um sculo, o

    XVIII, onde no pontua qualquer marco legislativo de rutura institucional para o ofcio de almotac,

    sem prejuzo das intervenes casusticas que foram caracterizando o perodo da administrao

    iluminista em Lisboa.

    Para fazer o retrato completo do almotac setecentista importava conhec-lo a partir de ngulos

    diversos, desde a natureza e finalidade das respetivas funes, ao estatuto do cargo que exercia,

    passando pelo modo como se enquadrava no trabalho camarrio interagindo com os seus principais

    colaboradores, at ir procura de saber quem foram em concreto os almotacs de Lisboa, que outras

    ocupaes lhes pertenciam, qual o seu perfil social, procurando, se possvel, detetar uma linha de

    evoluo do cargo ao longo do referido sculo.

    1 Alvar de 5 de abril de 1618, em Silva, Jos Justino de Andrade e (1854) (comp. e anot.), Colleco

    Chronologica da Legislao Portugueza - 1613-1619, Lisboa, pp. 279-280.

  • 2

    As fontes utilizadas para esta investigao foram sobretudo provenientes do acervo do Arquivo

    Histrico da Cmara Municipal de Lisboa, por consulta direta, mas tambm por via dos Elementos

    Para a Histria do Municpio de Lisboa, que as colige em boa parte. No primeiro caso, para alm da

    seleo de documentos digitalizados disponveis online, e da consulta in loco de outros manuscritos

    sumariados no stio do Arquivo (nomeadamente, da Chancelaria Rgia de D. Pedro II, D. Joo V e D.

    Jos) procedi ao levantamento de toda a documentao considerada til para o presente trabalho,

    nomeadamente, os livros de Assentos, de cartas e de ordens do Senado e todos os livros de Consultas,

    Decretos, Avisos e Cartas respeitantes aos anos do reinado de D. Maria I em setecentos - i.e., entre

    1777 e 1800 inclusive. Para este perodo, o levantamento completo das fontes manuscritas tornou-se

    necessrio uma vez que o final do ltimo tomo dos Elementos coincide com o comeo desse

    reinado, enquanto para o perodo compreendido entre 1701 e 1777 foi valioso o recurso dita

    compilao que, conforme refere o seu autor, no exaustiva:

    (...) tentmos o trabalho de sumariar e agrupar, obedecendo a um determinado princpio, todos os

    documentos importantes e curiosos que temos compulsado no precioso arquivo da cidade, e que at agora

    andavam muito dispersos, facilitando assim o estudo para a histria do primeiro municpio do pas, e,

    porventura, da legislao ptria. 2

    A pesquisa realizada teve, pois, presente que os Elementos no contemplam toda a

    documentao entre 1701 e 1777, mas somente a que foi selecionada por Eduardo Freire de Oliveira,

    segundo o critrio enunciado. Tambm a quantidade de informao documental disponibilizada no

    endereo http://arquivomunicipal.cm-lisboa.pt/, embora seja crescente, est ainda longe de abarcar

    todo o acervo do respetivo Arquivo Histrico de Lisboa. Da o recurso complementar a outras fontes

    manuscritas originais, como os livros de Cartas, Informaes e Ordens do Senado.

    Outra fonte, que serviu ao mesmo tempo de mote para o desenvolvimento da presente dissertao,

    foi a obra do poeta Joo Dias Talaya Sotomaior, um almotac das execues que nos deixou trs

    sonetos de expressiva relevncia para o conhecimento do tema. Ficaram de fora desta investigao

    todos os volumes da Chancelaria da Cidade com exceo dos livros de Assentos do Senado, j

    referidos -, que s pontualmente tero relevncia para o objeto em estudo.

    comum dizer-se que as pessoas fazem os cargos muito mais do que os cargos fazem as pessoas.

    Para a melhor caracterizao dos almotacs importava conhecer a apetncia pelo ofcio, quem o

    requeria e quem dele se escusava, e procurar estabelecer a caracterizao de um perfil tpico do

    2 Oliveira, Eduardo Freire de, Elementos para a Histria do Municpio de Lisboa (1885), Prefcio, tomo I,

    Lisboa, p. 363.

  • 3

    almotac setecentista, visando determinar se o mesmo corresponde a uma categoria social. Alm disso,

    pretendi que este levantamento pudesse contribuir para o conhecimento sobre determinado segmento

    da sociedade lisboeta de setecentos, evidenciando, em particular, a sua mobilidade social - ainda que

    outros vectores dele possam emanar. Neste sentido, com o intuito de fazer o levantamento completo

    dos nomes dos almotacs de Lisboa no sc. XVIII, foram detalhadamente vistos os livros dos Assentos

    do Senado todos os referentes ao sculo XVIII -, onde constam os autos de juramento e posse dos

    almotacs e, bem assim, os livros de Cartas e Ordens do Senado, a ttulo supletivo. Deste trabalho

    resultou a lista dos almotacs de Lisboa, que se apresenta como anexo D. A mesma, uma vez

    confrontada com outros documentos do acervo do Arquivo Nacional da Torre do Tombo que

    completam o registo informativo, designadamente, as habilitaes para cavaleiro da Ordem de Cristo e

    as habilitaes para familiar do Santo Ofcio, e tambm com determinadas relaes de nomes que se

    acham em estudos j publicados - incluindo a lista dos vereadores e dos procuradores (da cidade e do

    povo) e a lista de militares das ordenanas e milcias - permite apresentar concluses sobre as

    caractersticas pessoais e sociais dos almotacs de Lisboa (idade, filiao, origem geogrfica, outros

    ofcios exercidos, ttulos nobilirquicos ou outros) no perodo considerado. Para esta caracterizao,

    foram ainda utilizadas cartas de mercs e tambm fontes secundrias, nomeadamente excertos de

    antigas obras bibliogrficas hoje disponveis online, a partir de uma busca por cada um dos nomes dos

    diversos almotacs. Para superar o problema da homonmia - porquanto o mesmo nome pode,

    frequentemente, corresponder a pessoas diferentes - estabeleci alguns critrios para filtragem da

    informao obtida, de modo que so estabelecidos trs nveis diferentes para o respetivo grau de

    certeza sobre a correspondncia identitria: elevado, mdio e baixo. O primeiro teve em vista,

    principalmente, os casos em que as habilitaes referem de forma explcita o passado dos requerentes

    como almotacs. O segundo resulta de um grau de probabilidade razovel, decorrente da

    complexidade dos nomes, associada plausibilidade das datas. O terceiro impe uma reserva que

    decorre da simplicidade ou vulgaridade dos nomes em apreo.

    Relativamente s fontes secundrias, a dissertao apoia-se em diversos estudos historiogrficos

    sobre o municipalismo em Portugal, as reformas pombalinas da administrao e do comrcio e a

    natureza dos ofcios municipais, que constituem o ncleo central do estado da arte relativo ao tema.

    Para o efeito da sua recolha, a Biblioteca Nacional foi o local mais visitado, sem prejuzo da utilizao

    das bibliotecas do ICS e do ISCTE. Tambm a internet dispe de importantes recursos acadmicos,

    quer da historiografia nacional quer brasileira, designadamente artigos publicados em revistas

    cientficas, a que no deixei de recorrer.

  • 4

    Foi dada particular ateno legislao rgia que estabelece o enquadramento jurdico do cargo de

    almotac e, bem assim, s consultas do Senado da Cmara ao rei, aos assentos da vereao e aos

    avisos do mesmo Senado, que determinam o comportamento a adotar em casos particulares (para o

    que utilizei coletneas diversas, por exemplo: os Elementos para a histria do Municpio de Lisboa, a

    Colleco da Legislao Portugueza desde a ltima Compilao das Ordenaes, entre outras).

    No que se refere ao modo de apresentao dos contedos, em benefcio da sua melhor

    sistematizao o texto no segue um critrio cronolgico, exceto nos casos em que tal opo pareceu

    necessria, e que so explicitamente apontados. No mesmo sentido, por razes de economia, optei por

    empregar somente uma referncia documental para ilustrar cada facto ou inferncia, a menos que se

    tornasse especialmente relevante a apresentao de outros exemplos.

    Nas transcries dos excertos de manuscritos procedi atualizao da ortografia e da pontuao

    quando isso se apresentou vantajoso para a melhor compreenso do texto, contanto que no afetasse o

    contedo; utilizei parnteses retos para condensar as partes que em virtude da sua dificuldade ou

    extenso no pudessem ser literalmente reproduzidas, ou quando se impusesse uma frmula

    interpretativa.

    Este texto segue o novo acordo ortogrfico.

    Quanto s citaes bibliogrficas, s na primeira referncia elas so completas.

    Por ltimo, o captulo sobre os ofcios da almotaaria foi escrito com base em material recolhido

    nas pesquisas sobre os almotacs, somente. Um estudo mais desenvolvido merecer uma investigao

    prpria sobre o tema.

  • 5

    II. CONTEXTUALIZAO HISTRICA

    Sendo uma instituio muito antiga a almotaaria fundava-se numa longa experincia, conformadora

    da respetiva natureza. Para uma compreenso abrangente sobre a mesma torna-se, pois, necessria a

    busca dos seus antecedentes histricos, perspetivando uma dinmica evolutiva.

    A organizao das sociedades urbanas, ao estabelecer-se segundo determinado modelo tico

    tutelado por uma autoridade, central ou local, procura conformar a teia de relaes em que indivduos

    e coletivo disputam vantagens para si. O mercado, o construtivo e o sanitrio constituem as esferas de

    atuao tradicionalmente sujeitas disciplina do municpio e correspondem ao campo de atuao da

    almotaaria, antiga instituio ibrica a quem competia a regulao das trocas e da utilizao do

    espao pblico. O protagonista desta interveno foi o almotac, oficial cujas caractersticas principais

    remontam de forma direta ao al muthasib da ocupao muulmana que, por sua vez, as ter recebido

    do edil curul do imprio romano, o magistrado que tinha por misso aprovisionar a urbe de cereais e

    fixar os seus preos de venda, bem como regular o trfico urbano, zelar pelo abastecimento de gua,

    superintender na conservao e limpeza das ruas, alm de organizar os jogos pblicos, assegurando o

    seu financiamento.3 Agaranome era a designao para o seu homlogo bizantino.

    Na cidade muulmana havia a Hisba, instituio urbana cuja jurisdio compreendia funes

    anlogas: a verificao dos pesos e medidas, a superviso das relaes mercantis, a fiscalizao da

    qualidade dos comestveis transacionados, a sindicncia dos ofcios e a regulao da limpeza. Tambm

    inclua a disciplina das obras, garantindo a observncia das normas de construo e dirimindo os

    eventuais conflitos de vizinhana. (al) Muthasib era o nome rabe para o titular da Hisba, da tendo

    passado forma portuguesa almotacel ou, mais recentemente, almotac. As atribuies da Hisba

    acompanhariam a almotaaria crist ao longo dos seus sete sculos de existncia.

    Originariamente, os almotacs eram nomeados pelo rei, que destarte fazia chegar a sua influncia

    junto das populaes, garantindo a centralizao do poder. Com a crescente autonomizao dos

    concelhos esta prerrogativa viria a passar para os municpios. Em Lisboa, foi s no reinado de D.

    Afonso IV que a almotaaria passou a ser uma jurisdio do Senado da Cmara, ficando os almotacs

    integrados na estrutura municipal; mas o foral dado cidade por D. Afonso Henriques, em 1179, ainda

    que mantendo a sua qualidade de funcionrios rgios, j previa que o concelho fizesse autonomamente

    3 Finer, S. E. (1997), The History of Government From the Earliest Times, Volume I, Nova York, Oxford

    University Press, pp. 403-404.

  • 6

    a eleio destes oficiais - um privilgio que tambm pertencia s cidades de Santarm e Coimbra e que

    em breve se generalizaria aos demais concelhos.4 Durante esse perodo medieval a Cmara elegia dois

    almotacs grandes sendo um cidado e o outro cavaleiro, os quais, por sua vez, elegiam dois

    almotacs pequenos, para mandatos de apenas um ms. Ainda entrada da poca moderna, pela

    carta rgia de 24 de junho de 1491, D. Manuel I determinava que a Cmara de Lisboa continuasse a

    eleger os almotacs como sempre fizera - pois em a cidade ser b limpa vay muyta parte da saude

    della. 5

    No sculo XV, as Ordenaes Afonsinas fariam reunir as anteriores disposies regimentais sobre

    almotaaria, a mais antiga das quais consta de uma coleo de posturas e portarias do reino, datada dos

    sculos XIII e XIV. Nesta fase, os oficiais ainda dirimiam os conflitos reportando-se tradio e ao

    costume, algo que iria mudar com as Ordenaes Manuelinas (sculo XVI), quando a jurisdio dos

    almotacs passou a ser exercida tendo por referncia os textos das posturas municipais. Apesar disso,

    as suas competncias mantiveram-se intactas, no essencial, desde o perodo muulmano. E as

    Ordenaes Filipinas no alterariam este cenrio, porquanto se limitaram a reproduzir o que j fora

    estabelecido anteriormente.

    Para a generalidade dos concelhos valia o processo de eleio dos almotacs estabelecido em 1595

    pelas Ordenaes Filipinas (Livro 1 Tit. 67, 13), de acordo com a seguinte distribuio temporal: no

    primeiro trimestre do ano o cargo era exercido pelos dois juzes do ano anterior no primeiro ms, os

    dois vereadores mais antigos no segundo ms, e um vereador e o procurador no terceiro ms.

    Distintamente, nos concelhos com quatro vereadores haveriam de servir no terceiro ms os outros dois

    vereadores, i.e., os mais recentes, e no quarto ms serviria o procurador com outra pessoa eleita. Nos

    restantes meses do ano seriam eleitos nove pares de homens bons do concelho. A capital do reino,

    porm, viria a conhecer alguns desvios no procedimento para a eleio dos almotacs relativamente ao

    quadro legal previsto nas ordenaes.

    Pelo alvar de 7 de fevereiro de 1548 D. Joo III ordenou que passassem a ser eleitos pela Cmara

    de Lisboa mais dois almotacs, num total de quatro; este procedimento sofreu uma alterao com a

    governao filipina, quando a eleio dos almotacs passou a ser feita pelos vice-reis, sob proposta do

    4 Pereira, Magnus Roberto de Mello (2001). Almuthasib Consideraes sobre o direito de almotaaria nas

    cidades de Portugal e nas suas colnias, Universidade Federal do Paran, Revista Brasileira de Histria,

    (Online), XXI (42), p. 373.

    Disponvel em: http://www.scielo.br/pdf/rbh/v21n42/a06v2142.pdf

    5 Carta rgia de 24 de junho de 1491, em Oliveira, Elementos, tomo I, Lisboa, p. 363.

  • 7

    Senado (da Cmara).6 A prerrogativa da eleio dos almotacs acabaria, no entanto, por ser devolvida

    edilidade, com a Restaurao, atravs da resoluo de D. Joo IV de 21 de julho de 1646.7

    Na capital, o mandato dos almotacs das execues era de quatro meses, conforme se pode

    verificar na consulta da Cmara a D. Joo IV, de 28 de maro de 1644.8 Atendendo ao crescimento da

    populao de Lisboa, seu filho e sucessor D. Pedro II aumentaria o nmero de almotacs para oito, por

    via do regimento da Cmara de 5 de setembro de 1671 (havendo considerao grandeza desta

    cidade)9- um desenvolvimento que no iria vingar porquanto entrada do sculo XVIII os almotacs

    empossados seriam apenas quatro (este nmero de referncia manteve-se ao longo de todo o perodo

    setecentista e nem mesmo a diviso de Lisboa entre cidade ocidental e cidade oriental, ocorrida entre

    1717 e 1740, iria pr em causa a sua prevalncia ao longo do sculo XVIII10

    ). Simultaneamente,

    estabeleciam-se critrios de elevada seleo social para as pessoas a eleger (pessoas muito nobres

    () ainda que tenham o foro de fidalgos); tais requisitos, alis, haviam sido consagrados j no

    perodo filipino.11

    No obstante a sua condio privilegiada, os indivduos que fossem eleitos para o

    cargo de almotac das execues eram obrigados a exerc-lo efetivamente, determinao esta que era

    acatada sem resistncia, porquanto o esquivar-se podia significar a priso.12

    Ademais, a preferncia de

    que os almotacs em exerccio gozavam no acesso aos ofcios da Cmara tornava o cargo apetecvel.

    Reagindo ao descuido com a observncia dos critrios de nomeao, o mesmo D. Pedro II, por decreto

    de 9 de janeiro de 1675, veio exigir ao Senado que lhe fornecesse informao acerca da qualidade das

    pessoas a eleger, tendo em muitos casos passado a ser ele prprio, o monarca, a nomear diretamente os

    6 AML. AH, Chancelaria Rgia, Livro X de Registo de Consultas de D. Maria I, 5-9-1800, Consulta sobre o

    provimento dos almotacs, fls. 97. 7Ibidem.

    8 Consulta da Cmara a el-rei em 23 de maro de 1645, em Oliveira, Elementos, tomo IV, p. 539.

    9 Alvar de 5 de setembro de 1671, em Sousa, Jos Roberto Monteiro de Campos Coelho e (1783) (org.),

    Systema, ou colleco dos regimentos reaes, Lisboa, pp. 140 e segs.

    Disponvel em: http://www.iuslusitaniae.fcsh.unl.pt/verlivro.php?id_parte=114&id_obra=74&pagina=165

    10 Cfr.: AML. AH, Livro V de Assentos do Senado, 1717-1745 (Lisboa Ocidental) e Livro VI de Assentos do

    Senado, 1729-1753.

    V. tb.: Fernandes, Paulo Jorge Azevedo (1999), As Faces de Proteu. Elites Urbanas e o Poder Municipal em

    Lisboa de finais do Sculo XVIII a 1851, Cmara Municipal de Lisboa, Lisboa, pp. 29-30.

    11 Alvar de 5 de abril de 1618, em Colleco Chronologica da Legislao Portugueza - 1613-1619, de Jos

    Justino de Andrade e Silva (1854) (comp. e anot.), Lisboa, pp. 279-280.

    Disponvel em: http://www.iuslusitaniae.fcsh.unl.pt/verlivro.php?id_parte=95&id_obra=63&pagina=1028

    12 Captulo da carta rgia de 21 de janeiro de 1606 e Consulta da Cmara a el-rei em 28 de maro de 1644,

    tomo II, p. 154 e tomo IV, pp. 539-540, respetivamente, de Oliveira, Elementos, Lisboa.

  • 8

    almotacs, ou a indicar as pessoas que o Senado deveria investir no cargo.13

    Tal procedimento

    correspondia, alis, singularidade do estatuto jurdico-administrativo do municpio de Lisboa, o

    nico na monarquia portuguesa, cujos vereadores no eram eleitos.14

    As maiores dimenses da corte, ao nvel territorial e demogrfico, suscitaram o aparecimento de

    uma especialidade, o almotac da limpeza, que se replicou em outras cidades grandes do reino.

    Segundo o historiador brasileiro Jaime Larry Benchimol, a resoluo do Senado da Cmara de

    Salvador que instituiu a criao do dito ofcio nesta cidade colonial teve como fundamento aquela

    mesma considerao: era muito conveniente que se fizessem almotacs da limpeza a exemplo das

    cidades mais populosas de Portugal.15 Em 4 de julho de 1509 D. Manuel I nomeou Vasco do Couto,

    criado da rainha D. Leonor, como almotac da limpeza da cidade de Lisboa, de modo a que houvesse

    a dois desses oficiais, repondo o cargo que havia extinguido sete anos antes.16

    Posteriormente esse

    nmero foi aumentado, tendo passado de quatro para seis pelo alvar de 20 de novembro de 1577.17

    As

    suas principais funes, autonomizadas, consistiam em fiscalizar a limpeza das ruas e locais de venda,

    acompanhar os bandos pblicos (que anunciavam os editais populao), assegurar a limpeza das

    obras e a remoo dos lixos e entulhos. Neste sentido, podemos falar em almotaarias, no plural,

    porquanto para l da almotaaria das execues propriamente dita, havia uma outra, pertencente ao

    pelouro da limpeza.

    13

    AML. AH, Chancelaria Rgia, Livro X de Registo de Consultas de D. Maria I, 45-9-1800, Consulta sobre o

    provimento dos almotacs, fls. 97. 14

    Fernandes, Paulo Jorge (1996), A Organizao Municipal de Lisboa, em Histria dos Municpios e do

    Poder Local: dos finais da Idade Mdia Unio Europeia, em Csar Oliveira et al (orgs.), Lisboa, Temas e

    Debates , pp. 103-105.

    15 Benchimol, Jaime Larry (1992), Pereira Passos: Um Haussmann tropical, Rio de Janeiro, Secretaria

    Municipal de Cultura, apud Enes, Thiago (2010), De Como Administrar Cidades e Governar Imprios:

    almotaaria portuguesa, os mineiros e o poder, (1745 1808), Dissertao de Mestrado em Histria Social

    Moderna, Universidade Federal Fluminense, Niteri, p. 52. Disponvel em:

    http://www.historia.uff.br/stricto/td/1294.pdf

    16 AML. AH, Chancelaria da Cidade, Livro I de Provimento de Ofcios, 1509-07-04, doc. 122, fls. 130-130 v. e

    AML. AH, Chancelaria Rgia, Livro I de D. Manuel, 1502-05-16, doc. 91, respetivamente.

    17 Sousa, Joaquim Jos Caetano Pereira e, (1825), Almotac, Esboo de hum diccionario juridico, theoretico, e

    practico, remissivo s leis compiladas e extravagantes, Tomo I, Lisboa, Typographia Rollandiana.

    Disponvel em: http://books.google.pt/books?id=t2ZFAAAAcAAJ&printsec=frontcover&hl=pt-

    PT&source=gbs_atb#v=onepage&q&f=false

  • 9

    Quer os almotacs das execues da limpeza, quer os almotacs das execues da almotaaria,

    detinham o poder de julgar, nas casinhas da almotaaria, as acusaes e denncias que lhes eram

    trazidas pelos oficiais da cidade. O peclio arrecadado nas multas aplicadas aos transgressores das

    posturas constitua a renda da almotaaria - das execues, ou da limpeza - que muitas vezes era dada

    de arrendamento a um particular mediante licitao.18

    Tambm designados por juzes almotacs, os

    almotacs das execues da almotaaria conheciam das causas at 600 ris que pertencessem ao foro

    das suas atribuies, embora as sentenas que proferiam fossem suscetveis de recurso para o Senado

    da Cmara. Esta tutela dos vereadores sobretudo os da almotaaria ou da limpeza, consoante fosse o

    caso - acompanhava o mandato de um almotac desde a sua gnese, porquanto eram eles que o

    elegiam e superintendiam na sua atividade por via da devassa anual que lhe tiravam (segundo a

    definio de Eduardo Freire de Oliveira, Devassa era o ato jurdico pelo qual se inquiria do

    comportamento de qualquer funcionrio, para saber se no desempenho do seu cargo ou ofcio

    observara inteiramente os seus deveres, procedendo com honra, integridade e zelo.19). Esta ao

    fiscalizadora abrangia tambm os almotacs da limpeza, de acordo com o alvar rgio de 9 de abril de

    1575.20

    Traado, por ora, um quadro caracterizador do ofcio de almotac nos seus contornos e

    antecedentes fundamentais dar-se-, seguidamente, nota do papel regulador que esta magistratura

    urbana desempenhou na vida econmica da cidade de Lisboa, tendo por referncia o sculo XVIII: o

    ltimo a ser percorrido, aps sete sculos de vigncia, por uma instituio tpica que no iria

    sobreviver queda do Antigo Regime.

    18

    Oliveira, Elementos, tomo I, pp. 126-127. 19

    Oliveira, Elementos, tomo II, p. 64. 20

    Oliveira, Elementos, tomo XI, nota 2, pp. 115-116.

  • 10

  • 11

    III. AS COMPETNCIAS

    1. O mercado

    A ameaa da ocorrncia de crises de subsistncia constituiu, desde sempre, um agente indutor de

    medidas de regulao, fosse por via de uma suposta preocupao com o bem-estar das populaes,

    fosse pelo receio de alteraes na ordem pblica, nomeadamente em economias caracterizadas por

    uma baixa produtividade agrcola. No Portugal de setecentos variadas causas contribuam para a

    persistncia de um dfice cerealfero, relevando Jos Vicente Serro, especificadamente, as condies

    edafo-climticas do territrio, pouco favorveis para a agricultura, as condies tcnicas e

    socioeconmicas da produo, as ms condies de circulao e as barreiras legais a essa circulao.21

    Ainda assim, no contexto da poca, Lisboa aparentava uma condio excecional, privilegiada, no que

    se referia ao seu abastecimento, porquanto, ao invs de outras cidades do pas e da Europa, a corte

    portuguesa no conheceu revoltas frumentrias de assinalar. Nuno Gonalo Monteiro encontra na

    regulao dos mercados a explicao para esta singularidade:

    (...) Com efeito, apesar de desde os sculos XIII/XIV o abastecimento de po depender, quase sempre,

    da importao de cereais, do trigo em particular, e apesar dos recorrentes registos de escassez, e at anos

    de fome, ainda no sculo XVIII, o facto de existir um sistema de importao de cereais e uma instituio

    reguladora o Terreiro do Trigo parece ter contribudo para atenuar o impacto social das crises de

    subsistncias. Claramente, por aquilo que se conhece, no emerge no cenrio urbano lisboeta uma cultura

    de revolta ligada ao po barato to presente em outros cenrios europeus, como em Inglaterra, ou em

    Frana, por exemplo, no processo que culminou na guerra das farinhas de 1775. 22

    Dos seis pelouros da vereao - Sade, Limpeza, Obras, Carnes, Terreiro do Trigo e Almotaaria -,

    este ltimo concorreu terminantemente para a eficcia dessa ao reguladora, atravs da influncia

    direta que exerceu sobre o funcionamento do mercado, quer fosse para assegurar o suprimento da

    cidade com os gneros de que necessitava, quer fosse no sentido de conter o aumento dos preos

    resultante de eventuais movimentos especulativos; era assim que, prevenindo-o, o Senado da Cmara

    determinava, aos almotacs das execues, no deixassem ir trigo algum para fora da cidade sem a

    21

    Serro, Jos Vicente (1994), O quadro econmico, Histria de Portugal, volume 4 (O Antigo Regime,

    1620-1807), Lisboa, Editorial Estampa, pp. 81-82.

    22 Monteiro, Nuno Gonalo (2011), Violncia urbana, mobilizao e domesticidade, em Jos Mattoso e Nuno

    Gonalo Monteiro (orgs.), Histria da Vida Privada em Portugal, A Idade Moderna, Maia, Crculo de

    Leitores e Temas e Debates, p. 413.

  • 12

    licena deste tribunal.23

    Tambm por altura dos meados do sculo XVIII, em Londres, a coberto de

    uma tradio de mercado que via nos aambarcadores de cereais inimigos de Deus e dos homens, o

    lbi urbano exercia presses no sentido de serem abolidos os incentivos s exportaes e, bem assim,

    impelia suspenso destas em pocas de escassez.24

    Uma das circunstncias em que os almotacs de Lisboa habitualmente intervinham com o propsito

    de conter a travessia de gneros (i.e., o aambarcamento e a monopolizao) era a chegada do

    carvo ao cais da Ribeira. As posturas mandavam que o profcuo mineral fosse descarregado dos

    barcos apenas no dito cais e nunca durante a noite, evitando-se assim o seu descaminho para as mos

    dos especuladores e o inerente prejuzo para o abastecimento da cidade. Tambm nesse sentido era

    proibida a estiva feita com animais de carga que no fossem os pertencentes aos mercadores

    responsveis pela importao em causa. Toda a operao era fiscalizada pelo almotac, atravs de

    bilhetes e despachos de remessa: chegada da mercadoria o transportador entregava ao almotac uma

    declarao jurada pelo destinatrio, que ficava na posse do escrivo da casinha da almotaaria; uma

    vez completo o transbordo, o encaminhamento para o dito destinatrio era atestado por juramento

    prestado pelos capatazes das companhias de descarga. Competia ao escrivo dar-lhe assento em livro

    prprio.25

    O cais da Ribeira era igualmente o cenrio onde o almotac cobrava os impostos devidos por

    ocasio do desembarque das mercadorias,

    Ao almotac das execues da almotaaria que assiste na casinha da Ribeira avisei da ordem do Senado

    para que ele e todos os mais que lhe sucederem ponham todo o cuidado na cobrana do novo imposto dos

    vinhos que entram pelo mar, dando todas as clarezas aos oficiais como Vossa merc aponta no seu aviso,

    o que lhe participo para que lhe seja presente. Deus guarde a Vossa merc; do Senado Ocidental, vinte e

    trs de dezembro de 1739; M R. Palhares; Senhor Roberto Freire de Andrade 26

    Esta particularidade no permite apontar o almotac como um cobrador de impostos qua tale, pois

    eram de outro tipo as funes que melhor servem para caracterizar o cargo - mas reforam-lhe a

    versatilidade. Portanto, o grosso das receitas por si arrecadadas para o errio pblico provinha, em

    geral, das multas que cobrava aos infratores das normas municipais. Para assegurar o cumprimento

    23

    AML. AH, Livro V de Registo de Cartas e Ordens do Senado Oriental, 28/11/1733, fls. 139.

    24 Thompson, E. P. (2008), A economia moral da multido na Inglaterra do sculo XVIII, Lisboa, Antgona, p.

    52.

    25 Decreto de 17 de julho de 1753, em Oliveira, Elementos, tomo XV, p. 441.

    26 AML. AH, Livro III de Registo de Cartas - Senado Ocidental, 23/12/1739, fls. 59.

  • 13

    dessas posturas, os almotacs saam diariamente em correio pelas ruas da cidade e subrbios

    (fazendo-se excecionalmente acompanhar pelo zelador e pelo meirinho27

    ) levando a incumbncia de

    visitar todas as lojas, bem como as oficinas dos trabalhadores mecnicos (i.e., os artfices), a quem

    deviam solicitar a exibio das licenas camarrias que no caso fossem exigveis, e proceder

    inspeo dos pesos e medidas.28

    Tais correies iniciavam-se pelas seis horas da manh no horrio de

    vero (de 1 de abril a 30 de setembro) e a partir das sete da manh no de inverno (de 1 de outubro a 31

    de maro), durando at o meio-dia. A parte da tarde era destinada s audincias para julgar as

    infraes detetadas durante a manh e realizavam-se no perodo que ia das duas da tarde at noite.29

    O giro dos almotacs era distribudo semanalmente a cada um dos quatro em funes, comeando um

    a sua semana na casinha da Ribeira (junto Feira da Ladra), outro na correio da cidade (que inclua

    a correio do mar30

    ), outro na casinha do Rossio (junto Praa da Figueira) e, finalmente, o quarto

    nos Aougues.31

    E rodavam entre eles:

    (...) o almotac que acabar a sua semana de correio ficar obrigado a comunicar ao da seguinte, at

    onde findou a sua correio, para o outro saber aonde h-de principiar a sua: E da mesma sorte os mais

    que se forem seguindo, at findarem o crculo da cidade, vindo assim a ser sempre visitada pelas

    correies; por ser presente no mesmo tribunal haverem muitas partes aonde nunca chegaram e se

    acharem muitas pessoas usando de ocupaes e tratos sem sua licena; o que V. M.c

    far presente ao seu

    almotac [etc.] Deus Guarde a V. M.c

    , Lx 23 de nov. 1765; Pedro Correia Manuel de Aboim, [ao] Sr.

    Manuel Nunes Colares [escrivo da casa real] 32

    Ao longo de todo o sculo XVIII os almotacs no somente aplicaram multas como tambm

    exerceram o poder, que detinham, de prender os transgressores para impor a ordem. Nomeadamente, a

    5 de outubro de 1712, o Senado cominava com o encarceramento os mercadores que desobedecessem

    s posturas: (...) a todos os mercadores que forem contra as posturas os mandem logo meter na cadeia

    condenando-os na forma que elas declaram. 33 Estas penas privativas da liberdade conheciam efetiva

    aplicao, conforme se verifica em informao do almotac Joo lvares Vieira, prestando

    27

    AML. AH, Livro IV de Registo das Cartas - Senado Oriental, 23/03/1715, fls. 15.

    28 Decreto de 3 de Novembro de 1742, em Oliveira, Elementos, tomo XIV, p. 121, Lisboa.

    29 Consulta da Cmara a el-rei em 2 de dezembro de 1719, de Oliveira, Elementos, tomo XI, p. 373 e AML.

    AH, Livro II de Registo de Cartas e Ordens do Senado Oriental, 28/06/1702, fls. 25.

    30 AML. AH, Livro II de Registo das Ordens do Senado Ocidental, 15/05/1726, fls. 5 v.

    31 AML. AH, Livro XVI de Cartas, 18/01/1748, fls. 90.

    32 AML. AH, Livro XII de Registo de Cartas - Senado Ocidental, 23/11/1765, fls. 50 v.

    33 AML. AH, Livro III de Registo de Cartas e Ordens do Senado Oriental, 5/10/1712, fls. 115 v.

  • 14

    esclarecimentos, ao vereador do pelouro, acerca da condenao que impusera a um comerciante

    estrangeiro por venda de trigo sem licena do Senado; conclua assim:

    () em cujos termos, a requerimento do denunciante, requerente da cidade e zelador, o condenei nas

    penas da postura estabelecida para este caso, que so vinte mil ris, perdimento do trigo, e trinta dias de

    cadeia, para onde logo o mandei. () Este foi o meu procedimento, e o meu parecer. V. S.ia mandar o

    que for servido. Lisboa Ocidental, 26 de junho de 1730.34

    A ameaa de priso podia tambm constituir um meio de prevenir a desobedincia s ordens que os

    almotacs davam no terreno; por exemplo, em carta de 12 de outubro de 1782, o almotac Jos de

    Melo Quaresma Cirne recebia instrues para ir verificar uma situao de carvo oculto para

    aambarcamento, que deveria mandar pr no local de venda apropriado, garantindo o seu acesso ao

    povo e ficando o transporte custa do transgressor - com ordem de mandar prender quem se opusesse

    a esta determinao. Este poder de decretar a priso conhecia, porm, um limite, conforme

    estabelecido no texto do aviso de 15 de agosto de 1788: os "Almotacs no podem prender pessoas

    privilegiadas, seno em flagrante delicto"; no obstante, daqui resultava a contrario sensu que os

    almotacs podiam mandar prender essas pessoas, uma vez surpreendidas a transgredir.35

    Alm disso, conforme se l em carta escrita pelo almotac das execues Incio Jos de

    Figueiredo, no ano de 1746 dando informao, ao Senado, sobre a condenao que fez por certo

    tendeiro haver excedido os preos tabelados - as penas aplicadas pelos almotacs poderiam incluir os

    castigos corporais:

    (...) me vi obrigado a cingir-me com a lei, e a condenar o suplicante em quatro mil reis e aoites pelas

    ruas pblicas, como manda a postura e alvar rgio: como semelhantes penas no se aplicam aos que

    andam soltos sem se recolherem a priso () mandei parte da publicada a Vossa Merc fosse o

    suplicante recolhido a priso para ouvir da cadeia. 36

    Ora, pelo ano de 1774 no s os castigos corporais pareciam estar arredados em matria de

    almotaaria como tambm a priso deixava de ser permitida para coagir ao pagamento das multas

    34

    AML. AH, Livro IV de Cartas e Informaes, 26/06/1730, fls. 50.

    35 Aviso de 15 de agosto de 1788 em Toms, Manuel Fernandes (1815), Repertrio geral ou ndice alphabetico

    das leis extravagantes do reino de Portugal, vol. 1, Imprensa Real da Universidade de Coimbra, p. 45.

    Disponvel em:

    books.google.pt/books/about/Repertorio_geral_ou_indice_alphabetico_d.html?id=l11FAAAAcAAJ&redir_e

    sc=y

    36 AML. AH, Livro XIX de Cartas, 18/08/1746, fls. 27 a 29.

  • 15

    (embora se mantivesse a ttulo de pena), de acordo com a recente legislao pombalina que veio

    extinguir a priso por dvidas:37

    Que pelas multas e condenaes pecunirias que eles [almotacs] impem pela transgresso das

    posturas, no procedam a priso contra os sujeitos que condenarem, porque essa execuo a pessoas est

    extinta pela dita lei, (...) que unicamente possam mandar prender os transgressores das posturas quando

    nestas se ordenar a mesma priso como pena ou como parte da pena, e que no sejam os rus detidos na

    priso pela pena pecuniria, (...) ficando as sentenas com a execuo para se haver a pecuniria pelos

    bens dos devedores, assim presentes como futuros; porque o assento [de 18 de agosto] declarou que com

    a sua imposio estava a justia satisfeita, e ficava a pena reduzida a dvida que s podia ser paga pelos

    bens e no pela pessoa dos devedores, (...) 38

    Na sua funo de sindicar o comrcio pertencia ainda aos almotacs fazer cumprir o tabelamento

    de preos periodicamente fixados pela Cmara, segundo um regime de planeamento central do

    mercado que se fazia sustentar em uma convico moral radicada na tradio. O primado da

    necessidade de provimento do povo de Lisboa a sobrelevar aos interesses negociais de alguns

    apresentava-se como valor consensualmente aceite na prtica administrativa. Achamo-lo refletido,

    nomeadamente, nas satisfaes que o Senado da Cmara entendia dever exigir aos seus almotacs, a

    fim de poder vigiar as respetivas decises; por exemplo, na ordem de 26 de agosto de 1720, que lhes

    determinou que viessem indicar a razo porque no obrigaram por termo aos arrais dos barcos que

    traziam a palha para particulares que trouxessem outro barco com a dita palha para a fornecer tambm

    ao povo.39

    Assim, enquanto em Londres e noutros pontos da Europa a economia moral dos pobres marcava a

    sua dominncia pela via proto democrtica dos motins e da taxation populaire, em Lisboa a

    almotaaria afirmava-se como pea fundamental de uma cultura poltica em que os governantes se

    incumbiam de proteger os mais fracos propondo-se, atravs do tabelamento dos preos, assegurar o

    abastecimento da cidade e prevenir carestias, porquanto estas podiam significar a fome.40

    37 Marcos, Rui Manuel de Figueiredo (2006), A Legislao Pombalina - Alguns Aspectos Fundamentais,

    Coimbra, Almedina, pp. 140-143.

    38 Despacho do Senado de 3 de outubro de 1774, em Oliveira, Elementos, tomo XVII, pp. 449-463.

    39 AML. AH, Livro I de Taxas e Ordens do Senado, 26/08/1720, fls. 167.

    40 Thompson, A Economia Moral da Multido, pp. 77-78. Sobre as formas e objetivos da regulamentao da

    atividade econmica desde a poca medieval, cfr. Hespanha, Antnio Manuel (1982), Histria das

    instituies: pocas medieval e moderna, Coimbra, Almedina, pp. 192-195.

  • 16

    Ouvi o mandado dos vereadores, procuradores destas cidades de Lisboa Ocidental e Oriental, e

    procuradores dos mesteres delas, que toda a pessoa, da publicao deste em diante, no vender cada

    melo dos maiores por maior preo que o de trinta ris e cada melo dos meiais [dos mdios] por quinze

    ris sob pena de incorrer nas penas de priso, de dinheiro e aoites que dispem as provises de S. Mag.de

    e posturas das cidades contra os transgressores das taxas. E os almotacs das execues da almotaaria o

    faro logo publicar nas partes pblicas e costumadas para que chegue notcia de todos e no possam

    alegar ignorncia, e o faro registar nos livros da almotaaria, de que remetero certido aos Senados nas

    costas deste. Lisboa Ocidental, 6 de agosto de 1723. Manuel Rebelo de Palhares 41

    Fundamental instrumento da regulao, o tabelamento era praticado para a generalidade dos bens

    comerciveis, em termos de preos mximo, mdio e mnimo, segundo diferentes gamas de qualidade.

    Ao invs, no caso dos vinhos, o preo estabelecido era uniforme, o que conduzia perda de qualidade

    no fabrico e afastava o interesse dos vinicultores em refinar a sua produo, resultando em prejuzo

    para a economia do reino; com efeito, era no vinho importado que os consumidores mais exigentes

    acabavam por encontrar satisfao.42

    A partir de 1759, todavia, os almotacs receberiam ordens para

    deixar de instaurar procedimentos por motivo da segmentao de preos no vinho, em cumprimento de

    uma determinao camarria que, abolindo o regime de preo nico, ia contra o privilgio da

    Companhia da Agricultura das Vinhas do Alto Douro.43

    No somente eram tabelados os preos dos gneros como, tambm, as remuneraes dos ofcios;

    por exemplo, o aviso do Senado de 24 julho de 1733 sujeitava o almotac das execues da casinha da

    Ribeira a fazer observar, quer as taxas de remunerao para os ofcios de pedreiro e carpinteiro (o

    mximo de trezentos ris por dia, segundo o assento de 2 de setembro daquele ano), quer o

    tabelamento dos preos dos materiais de construo (cal, tijolo, telha).44

    Por essa altura, salvo casos excecionais,45

    todo o aspirante a exercer um ofcio era sujeito ao exame

    que o Senado lhe fazia atravs dos juzes do ofcio respetivo.46

    Estes tinham igualmente a funo de

    41

    AML. AH, Livro III de Ordens, Taxas e Posturas da Cidade, 06/08/1723, fls. 21.

    42 Consulta da Cmara a el-rei em 7 de abril de 1759, em Oliveira, Elementos, tomo XVI, p. 399.

    43 Soares, Srgio Cunha (1985), Aspectos da poltica municipal pombalina: a Cmara de Viseu no reinado de D.

    Jos, em Separata da Revista Portuguesa de Histria, 21, Coimbra: Fac. Letras - Inst. Histria Econmica e

    Social, pp. 32-33.

    44 Carta do escrivo da Cmara ao almotac da casinha da Ribeira, 30 de julho de 1733, em Oliveira,

    Elementos, tomo XII, pp. 515 e 516. 45

    Assim, por exemplo, os alugadores de seges, cfr. AML. AH, Livro VII de Registo de Ordens do Senado

    Ocidental, 08/08/1753, fls. 84 v.

  • 17

    fiscalizar a confeo dos produtos, cabendo ao almotac de servio aplicar as penas que tivessem lugar

    por incumprimento de normas regimentais da corporao em causa:

    "E os juzes [do ofcio de pasteleiro] tero [en]cargo de quinze em quinze dias visitar as tendas dos

    oficiais do dito ofcio, e fazer correio com seu escrivo; e os pastis que acharem que no so feitos

    como devem, os tomaro e levaro aos almotacs das execues para fazerem nisso o que for justia, e

    darem o castigo oficial, conforme a culpa que lhe for achada;" 47

    Para no se sujeitarem ao exame de ofcio, muitos oficiais mecnicos iam renovando junto do

    Senado as suas licenas provisrias, de seis em seis meses, sob pena de multa e dias de cadeia.48

    O

    montante das coimas era aplicado em uma metade para as obras da cidade e a outra metade para as

    despesas do mesmo ofcio ou bandeira.49

    Alm do certificado de habilitao para a sua atividade, os artesos eram obrigados a exibir uma

    outra licena que lhes permitia vender ao pblico os produtos de seu fabrico. No caso de a mesma

    estar em falta, a diferena entre produzir para si e trabalhar para o povo poderia decidir que o ru

    fosse absolvido na pertinente ao, conforme se verifica em uma carta de 2 de julho de 1733 que relata

    certa audincia presidida pelo almotac da casinha do Rossio:

    (...) Notificara o Escrivo do mesmo ofcio assim homens como mulheres para virem sua presena [do

    almotac] mostrar cada um a licena que tinha dos Senados, ou a carta de examinao para usarem do

    dito ofcio e que vindo com efeito, alguns absolvera, um por lhe mostrar licena dos Senados, e outro

    contestando a ao com o fundamento de ser menos verdade trabalhar para o povo (). 50

    Neste contexto, havia pessoas dispensadas de obter as licenas de comrcio por expressa

    determinao rgia, e ofcios que delas estavam isentos por uso imemorial, nomeadamente:51

    Os mercadores da rua Nova, rua dos Escudeiros, rua dos Douradores, Conceio e rua dos Mercadores,

    que vendem fazendas de vara e cvado, e os das lojinhas de retrs e de botes da mesma rua Nova e

    Pelourinho; Os lavradores que vm vender os seus frutos a estas cidades, e na mesma forma os que

    46

    Vd., por exemplo, a Consulta da Cmara a el-Rei em 9 de agosto de 1701, em Oliveira, Elementos, tomo

    X, p. 84.

    47 Consulta da Cmara a el-rei em 21 de junho de 1763, em Oliveira, Elementos, tomo XVI, p. 541.

    48 Consulta da Cmara a el-rei em 5 de dezembro de 1718, em Oliveira, Elementos, tomo XI, pp. 294 e segs.

    49 Ordem do Senado de 14 de dezembro de 1767, em Oliveira, Elementos, tomo XVII, pp. 196-198.

    50 AML. AH, Livro I de Registo das Cartas - Senado Ocidental, 02/07/1733, fls. 106.

    51 AML. AH, Livro X de Consultas, Decretos e Avisos de D. Jos I, Aviso sobre uma condenao feita pelo

    almotac e oficiais do Senado, 1756/09/28 1756/10/05, fls. 13 a 14.

  • 18

    venderem os criadores; Os fanqueiros da Fancaria; Os que vm vender a estas cidades loia da terra ou da

    Panasqueira, Caldas, Aveiro, Estremoz e Alcanede; Os que vendem obras dos ofcios mecnicos, de que

    vivam; [etc.] 52

    Embora este ltimo caso - dos ofcios mecnicos - parea contradizer o que antes ficou dito sobre a

    exigncia que sujeitava os artesos a serem portadores de uma licena para poderem vender os

    produtos do seu fabrico, certo que o dito privilgio, de estarem isentos do contrato da almotaaria,

    era pertena somente dos ofcios embandeirados, i.e., aqueles aos quais ele tivesse sido alguma vez

    reconhecido.53

    A fim de constiturem simultaneamente um instrumento de penalizao e uma fonte de receita para

    o errio municipal o valor das coimas aplicadas pelos almotacs representava, geralmente, um

    sacrifcio com bastante significado para a bolsa do homem mdio. Em 1741 um comerciante

    surpreendido a trabalhar sem licena vlida era condenado na quantia de oito mil ris, ou seja, o

    equivalente a, por exemplo, mais de metade do salrio auferido em Lisboa pelo cirurgio da sade.54

    Contudo, os almotacs gozavam de alguma discricionariedade na determinao da medida da pena:

    O suplicante Francisco de Sousa foi denunciado pelo zelador, e requerente das cidades, por se achar com

    casa pblica de Taberna e Comestveis sem primeiro ter os papis correntes, nem ter pago ao Marco,

    como devia, e sendo esta a verdade que o suplicante no nega; como Executor das posturas, e leis dos

    Senados, achei que o devia condenar em oito mil ris, e o condenei s por quatro por me suplicar ser

    pobre. () 55

    A pobreza era, alis, uma circunstncia atenuante frequentemente considerada nas sentenas do

    juzo da almotaaria; por exemplo, ao detetarem prticas ilegais no mbito da correio da pesca

    fossem elas o desrespeito do perodo de defeso, ou o facto de as redes terem malha mais apertada do

    que o permitido , os almotacs determinavam, e faziam aplicar, penas de alguma severidade,

    nomeadamente, a apreenso dos barcos e das redes, a queima dos mesmos artefactos, a multa e o

    crcere.56

    Ora, em 1725, quando os pescadores de Frielas recorreram para o Senado pedindo que este

    52

    Carta do escrivo do Senado da Cmara ao almotac das execues da almotaaria Domingos Ferreira Sotto,

    23 de julho de 1737, em Oliveira, Elementos, tomo XIII, pp. 271 e segs. 53

    Consulta da Cmara a el-rei em 15 de setembro de 1756, em Oliveira, Elementos, tomo XVI, p. 270. 54

    Alvar rgio [de Regimento dos Ordenados do Senado da Cmara de Lisboa] com fora de lei de 23 de

    maro de 1754, em Oliveira, Elementos, tomo XV, p. 509. 55

    AML. AH, Livro XVII de cartas 1741, 25/04/1741, fls. 73.

    56 Sobre o enquadramento da atividade piscatria neste perodo vd. Ventura, Antnio Gonalves (2007), A

    Banda DAlm e a Cidade de Lisboa durante o Antigo Regime: uma Perspetiva de Histria Econmica

  • 19

    obstasse aplicao das referidas sanes, o mesmo tribunal deu parecer favorvel ao rei para que a

    execuo se limitasse queima das redes, afastando a queima dos barcos e a priso, atendendo

    pobreza dos suplicantes. Cumpre dizer que, ao procederem a tais correies, os almotacs corriam

    riscos srios para a sua integridade fsica, porquanto a via judicial nem sempre constitua o meio de

    defesa preferencialmente empregue pelos visados:

    (...) o repugnaram com tal excesso os barqueiros das ditas barcas, que no s dentro destas se

    defenderam com paus e pedras, mas passaram a fazer a mais formal e escandalosa resistncia, saindo dos

    barcos com os remos e varas deles, em forma de motim, de que resultou maltratarem a vrios oficiais,

    fazendo mais impresso em Manuel da Silva Colao, escrivo do dito almotac, a quem feriram

    gravemente na cara; () 57

    A partir da postura de 13 de setembro de 1771 passou igualmente a caber aos almotacs de Lisboa

    assegurarem a observncia da proibio de descarga e venda de peixe fora dos stios de Belm, da

    nova Ribeira e de Sacavm, nos quais estavam as casas com os oficiais competentes (escrives) para o

    exame das guias e arrecadao dos direitos.58

    Na medida em que as posturas determinavam regras na utilizao do espao destinado aos

    mercados de rua as correies dos almotacs compreendiam a inspeo desses locais. Uma das suas

    incumbncias era fazer a observar as proibies relativas atividade dos intermedirios, conforme

    eram ditadas pelo quadro mental caracterstico dessa poca: De acordo com este modelo, a

    comercializao deveria ser direta (tanto quanto possvel), do agricultor ao consumidor. Os

    agricultores deveriam trazer os seus cereais a granel at ao mercado local; no deveriam vend-los no

    campo nem deveriam guard-los, na expetativa de que os preos subissem. 59 A censura moral sobre a

    dupla venda com fins comerciais ganhava consagrao jurdica, nomeadamente, na proibio de

    vender gneros alimentcios que tivessem sido comprados antes das nove horas da manh;60

    do mesmo

    modo, ao proibir-se a presena de vendedores na Praa da Figueira, assim de dia, como de noite,

    excecionavam-se os lavradores e criadores que faziam a venda direta dos bens que produziam, com

    excluso de todos os demais, que deviam ser conduzidos presena do almotac a fim de serem

    Regional Comparada, Tese de doutoramento em Histria Moderna, Faculdade de Letras da Universidade de

    Lisboa, pp. 292-294. Disponvel em: http://hdl.handle.net/10451/536

    57 Consulta da Cmara a el-rei em 12 d'outubro de 1728, em Oliveira, Elementos, tomo XII, p. 187.

    58 Postura de 13 de setembro de 1771, em Oliveira, Elementos, tomo XVII, pp. 326-327.

    59 Thompson, A economia moral da multido, p. 30.

    60 AML. AH, Livro VIII de Registo de Ordens do Senado Ocidental, 30/07/1754, fls. 13.

  • 20

    condenados - para que por uma vez fique limpa a referida praa de semelhantes indivduos (). 61

    Ainda no mbito da vigilncia sobre estes lugares de negcio, competia aos almotacs zelar pelo

    respeito da lei divina aplicando as penas correspondentes a quem quer que exercesse o comrcio aos

    domingos e dias santos.62

    Outrossim, as limitaes podiam referir-se aos gneros admitidos para

    venda:

    (...) nenhuma pessoa poder vender em a feira da Ladra do stio da Ribeira, e seu limite, fatos novos e

    velhos usados, nem outra alguma coisa que no for comestvel, ainda que para a dita venda tenha

    alcanado licenas do Senado que por este h derrogadas; e toda a pessoa que continuar na dita venda,

    ser condenada na forma das posturas estabelecidas contra as pessoas que sem licena vendem

    publicamente qualquer gnero." 63

    Alm da posse da(s) licena(s), uma outra exigncia burocrtica referia-se obrigao de exibir o

    bilhete com o preo semanalmente fixado para o principal comestvel, o po, em todos os locais em

    que ele estivesse venda, nomeadamente, tendas, tabernas e lugares de peo. Deste dever estavam

    isentas as saloias que vinham vender o po cidade, ao abrigo de o fazerem em regime de avena.64

    Em 20 de maro de 1793, dando resposta a um expediente considerado fraudulento, o Senado

    publicou uma portaria dando ordem aos almotacs para cassarem toda a licena onde no constasse o

    nome do vendedor para quem fora emitida, assim se impedindo a sua cedncia a terceiros, por forma a

    garantir a cobrana da taxa devida sobre cada emisso. Mas as irregularidades tambm eram

    suscetveis de proceder da prpria Cmara: por vezes o requerente havia pago a taxa correspondente a

    uma licena para vender vrios gneros e alguns deles no constavam no respetivo documento, o que

    tinha como efeito sujeitar o titular da licena (com grande probabilidade, um iletrado) a ser

    injustamente autuado pelo almotac por venda no autorizada:

    (...) Ordena que da data desta em diante aquelas pessoas que na mesa da arrecadao das novas licenas

    tm obrigao de encher os mencionados bilhetes declarem neles todos os gneros de que cada uma das

    partes faz o seu devido pagamento sem que falte um s gnero e que no alto dos mesmos bilhetes lhes

    declarem por algarismo a quantia total que pagou. () 65

    61

    AML. AH, Livro XIV de Registo de Ordens do Senado Ocidental, 30/08/1790, fls. 104.

    62 AML. AH, Livro X de Registo de Consultas de D. Maria I, 26/10/1799, fls. 17.

    63 Assento de vereao de 30 de julho de 1755, em Oliveira, Elementos, tomo XVI, p. 98.

    64 AML. AH, Livro XII de Registo de Ordens do Senado Ocidental, 29/11/1783, fls. 136 v.

    65 AML. AH, Livro XV de Registo de Ordens do Senado Ocidental, 20/03/1793, fls. 16 v. e 17.

  • 21

    Importa salientar que toda esta atividade de policiamento do comrcio fundamentava o seu discurso

    legitimador, sobretudo, na ideia de defesa do povo - contra eventuais extorses por parte de

    especuladores e comerciantes sem escrpulos -, menos at do que no primado da ordem pblica:

    () Que o privilgio do tabaco se estenda a todos os casos, se no deve entender nem ainda presumir,

    porque, se o privilgio isentasse aos estanqueiros de serem pelos almotacs visitados e examinadas as

    balanas e pesos, e, achando-os por aferir ou diminutos, serem na forma da postura, castigados, com toda

    a liberdade roubariam o povo os estanqueiros, () 66

    Aos almotacs competia-lhes, no apenas, assegurarem-se de que os instrumentos de medida se

    achavam devidamente aferidos pelo aferidor da cidade,67

    mandando-os entregar a este, para

    esclarecimento, quando os pesos lhes parecessem reduzidos - e condenando os transgressores em caso

    afirmativo68

    - como, igualmente, lhes pertencia examinarem o peso dos produtos. Tratando-se da

    venda do po, a falta do peso tabelado semanalmente69

    podia inclusive determinar a sua apreenso:

    (...) dois mil cento e vinte e nove pes que se lhe haviam apreendido [a Francisco Vieira, padeiro]

    com o pretexto de falta de peso.70 O mesmo cuidado era tido na correio dos aougues, onde os

    almotacs verificavam a qualidade e condio das carnes e a fidelidade dos pesos na venda.71

    Porquanto o zelo que aplicavam nas atividades inspetivas nem sempre correspondia s expetaes,

    a aluso troca de favores entre almotacs e comerciantes ou oficiais mecnicos representava motivo

    de cuidado para os responsveis camarrios, oferecendo-se tambm como fonte de inspirao para

    mordazes epigramas. A ilustr-lo, uma das stiras taurinas que Antnio Lobo de Carvalho (Guimares,

    1730? - Lisboa, 1787?) dirigiu a Joo Dias Talaya Sotomaior, capito, almotac de Lisboa, poeta,

    bacharel e toureiro (Ajuda, 1732 Sacavm, 1798), onde se insinua que o mesmo Talaya angariara a

    sua ativa claque concedendo favores entre as padeiras que estavam sob a sua jurisdio:

    66

    Consulta da Cmara a el-rei em 30 de outubro de 1750, em Oliveira, Elementos, tomo XV, p. 194. 67

    Idem ibidem, pp. 187 e segs.

    68 () condenar [o] na forma das posturas toda a pessoa que acharem com balanas e pesos sem serem

    aferidos, nesta cidade e termo. Cfr. AML. AH, Livro XX de Cartas, 26/04/1743, fls. 105. 69

    AML. AH, Livro VIII de Registo de Consultas de D. Maria I, 19/09/1791, fls. 22.

    70 AML. AH, Livro XII de Registo de Ordens do Senado Ocidental, 09/12/1780, fls. 2.

    71 AML. AH, Livro XI de Registo de Ordens do Senado Ocidental, 11/04/1778, fls. 105-105 v.

  • 22

    Ao Talaia, toureando por ltima vez na praa de Joo Gomes, onde se fez a funo como se esperava

    SONETO XLVIII

    Talaya, que tens tu coa Padaria

    Que esquentada trincheira em co fundo,

    Desde que h toiros bravos neste mundo,

    Nunca se fez to blasfema gritaria?

    () 72

    Com efeito, os padeiros dispunham de expedientes diversos para obterem lucros indevidos na

    venda do seu produto, nomeadamente: peso deficitrio do po, adulterao, mistura de farinha barata

    e em ms condies; ora, a tolerncia ofertada pelo almotac merecia ser retribuda com alguma

    expresso de agradecimento.73

    Todavia, na sua misso de defesa dos consumidores, os almotacs

    exerciam poderes vinculados, no podendo deixar de assegurar a observncia dos cdigos de tica

    comercial sem arriscarem punio:

    Os almotacs das execues da almotaaria mandem notificar a todas as mulheres que vendem castanhas

    que as no escolham, e todo o almotac que dissimular esta ordem ser castigado asperssimamente. E as

    mulheres que no derem a execuo mesma ordem sero suspensas do tal exerccio e no entraro mais

    nas ditas ocupaes de venderem castanhas. Esta ordem se registar, [etc.] Mesa, 20 de abril de 1704

    [assinaturas] 74

    No mbito do poder jurisdicional que exerciam nas casinhas da almotaaria, alm de julgarem as

    aes relativas violao de posturas camarrias, interpostas pelo meirinho, pelo zelador ou pelo

    requerente da cidade, cabia aos almotacs de Lisboa o arbtrio, em processo sumrio, sobre causas de

    dvidas at 600 ris.75

    Este valor de alada manteve-se sem reviso desde as ordenaes filipinas

    (Livro 1 Tit. 68, 2) conforme se l na ordem que, em 14 de outubro de 1765, o Senado deu ao

    almotac Incio Monteiro de Sousa: Ordena o Senado diga a Vossa Merc que os almotacs das

    execues no podem tomar conhecimento de dvida alguma que exceda a quantia de seiscentos reis

    72

    Carvalho, Antnio Lobo de (1852), Poesias joviaes e satyricas, Colligidas e pela primeira vez impressas,

    Cadix, Soneto XLIV, p. 48.

    73 Thompson, A Economia Moral da Multido, p. 68.

    74 AML. AH, Livro II de Registo de Cartas e Ordens do Senado Oriental, 20/04/1704, fls. 61.

    75 Torres, Rui de Abreu (1992), Dicionrio de Histria de Portugal, Almotac, Porto, Livraria Figueirinhas, v.

    4, p. 121.

  • 23

    na forma da lei porque excedendo da dita quantia pertence ao conhecimento a diferente juzo (). 76

    As sentenas que os almotacs proferiam eram suscetveis de recurso para o Senado da Cmara, que

    podia ordenar a restituio das importncias injustamente cobradas a ttulo de multa.77

    Esse papel do almotac como mediador de conflitos remonta s origens do cargo na Pennsula

    Ibrica, quando inclua entre as suas competncias a resoluo dos diferendos que frequentemente

    surgiam entre os vizinhos proprietrios de paredes meeiras, moradores em casas geminadas.78

    Com

    efeito, embora a ao reguladora dos almotacs ao nvel do mercado fosse mais preponderante,

    ela estendia-se tambm ao construtivo e ao sanitrio - as outras duas grandes agendas do viver

    urbano, segundo a classificao enunciada por Magnus Roberto de Melo Pereira.79

    2. O construtivo

    Acerca do construtivo na Lisboa setecentista, as competncias dos almotacs das execues

    incluam no somente o controlo dos preos dos materiais de construo mas, tambm, assegurar as

    condies de fornecimento necessrias para o desenrolar das obras pblicas;80

    por exemplo, em 7 de

    outubro de 1735 eles recebiam instrues do Senado para mandar prover toda a lenha e tojo de que

    Apolinrio da Silva precisasse para a sua incumbncia de mandar cozer o tijolo necessrio para as

    caladas.81

    Os almotacs podiam igualmente ser chamados a acompanhar obras que fossem suscetveis

    de causar perturbao na ordem pblica. Assim sucedeu, por exemplo, em novembro de 1757, quando

    o Senado ordenou a demolio das paredes que em resultado do terramoto estivessem perigosas,

    dando indicao para que os almotacs integrassem as equipas que deveriam acompanhar os

    vereadores nas ditas operaes: (...) chamando para este fim, alm dos seus almotacs e escrives, os

    mais oficiais de justia que lhes parecer, e os mestres pedreiros que j tiverem servido de juzes do seu

    ofcio." 82

    O texto ora citado no permite esclarecer se, neste caso, eram convocados para a dita obra

    76

    AML. AH, Livro XII de Registo de Cartas - Senado Ocidental, 14/10/1765, fls. 42.

    77 Pelo seu interesse, no apenas historiogrfico, mas tambm jurdico (relativo clusula rebus sic stantibus),

    cfr. a Consulta da Cmara a el-rei em 19 de setembro de 1753, acerca da petio de D. Catharina Ricart,

    neveira da casa real e contratadora da neve da cidade, em Oliveira, Elementos, tomo XV, pp. 460-464. 78

    Enes, Thiago (2010), De Como Administrar Cidades e Governar Imprios: almotaaria portuguesa, os

    mineiros e o poder, (1745 1808), Dissertao de Mestrado em Histria Social Moderna, Universidade

    Federal Fluminense, Niteri, p. 53. Disponvel em:

    http://www.historia.uff.br/stricto/td/1294.pdf.

    79 Pereira, Almuthasib, p. 366.

    80 AML. AH, Livro I de Registo de Cartas do Senado Oriental, 30/07/1733, fls. 70 v.

    81 AML. AH, Livro III de Ordens, Taxas e Posturas da Cidade, 07/10/1735, fls. 141.

    82 Assento de vereao de 29 de novembro de 1757, em Oliveira, Elementos, tomo XVI, pp. 341- 342.

  • 24

    os almotacs das execues do pelouro da almotaaria ou, em vez destes, os almotacs das execues

    do pelouro da limpeza, sendo que as respetivas competncias se distinguiam em funo das matrias a

    que respeitassem as posturas camarrias: (...) que as posturas deste Senado se distribuem pelos seus

    executores (...), segundo a matria (...): as da almotaaria vo a executar aos almotacs das execues,

    as da limpeza aos seus almotacs;83 Entretanto, uma outra ordem do Senado, emitida no ano seguinte,

    de 1758, permite dar resposta a essa interrogao, como deixa tambm claro que os almotacs do

    pelouro da limpeza tinham competncia prpria para mandar demolir edificaes que oferecessem

    risco para a segurana das pessoas: O almotac das execues da limpeza do bairro de Alfama faa

    logo apear uma parede das casas do M.mo

    e Ex.mo

    Conde de Val de Reis, que est com evidente perigo

    e de o haver assim executado dar conta ao Senado. Lisboa, dois de junho de 1758. [assinam] 84

    Ademais, ao serem investidos na sua misso de zelar pelas condies do saneamento urbano, os

    almotacs da limpeza fiscalizavam as obras, detendo o poder de as embargar:

    O mestre das obras da Casa da Misericrdia desta corte principiou a mandar abrir um cano que d

    serventia ao recolhimento da dita Misericrdia e preciso abrir-se para esse efeito toda a rua que vi do

    mesmo recolhimento at praia. Como se no pediu licena em razo dos entulhos que precisamente

    resultaram da dita obra para mandar depositar penhor correspondente e nem me apresentam licena do Sr.

    Desembargador vereador das obras; embarguei-a, de que se trata lhe dar conta a V. Senhoria, e para que

    no suceda como j sucedeu no mesmo caso a meu antecessor que por no dar idntica conta foi

    compelido a tirar sua custa entulhos. V. S.i mandar o que for servido. Lisboa, 29 de janeiro de 1745. O

    almotac [da limpeza] do bairro da Ribeira, Caetano Manuel de Barros 85

    3. O sanitrio

    At ordem do Senado de 25 de agosto de 1745,86

    que lhes subtraiu essa competncia, aos almotacs

    da limpeza pertenceu conceder licenas para se fazer obra, mais precisamente, atribuindo locais para

    vazadouros de obras, porquanto as calias e os entulhos eram suscetveis de criar entupimentos no

    escoamento das guas pluviais ou obstruir a livre circulao das pessoas e dos veculos de trao

    animal. Da que os almotacs tivessem instrues para prender os mestres pedreiros enquanto estes

    83

    Consulta da Cmara a el-rei em 19 de dezembro de 1744, em Oliveira, Elementos, tomo XIV, pp. 363-

    364.

    84 AML. AH, Livro IX de Registo de Ordens do Senado Ocidental, 02/06/1758, fls. 58.

    85 AML. AH, Livro XXI de Cartas e Ordens do Senado, 29/01/1745, fls. 319.

    86 AML. AH, Livro V de Registo de Ordens do Senado Ocidental, 25/08/1745, fls. 79.

  • 25

    no fizessem remover das ruas os tais detritos.87

    Os prprios almotacs da limpeza estavam sujeitos a

    serem suspensos do seu exerccio, ou a terem de proceder remoo daqueles materiais a suas

    prprias expensas, quando lhes faltasse a determinao exigvel para fazerem cumprir as ditas

    instrues e, podiam, at, ser mandados para a priso, nos casos de maior gravidade.88

    Alm disso,

    asseguravam que a lama era atempadamente removida das ruas de Lisboa para os vazadouros que

    fossem permitidos, nomeadamente, algumas praias especificadas (por exemplo, as praias de S. Paulo e

    da Boavista), para dali ser carregada em barcas que a despejavam no mar.89

    Neste sentido, o almotac

    das execues da limpeza do bairro da Rua Nova, Joo Serqueira de Arajo, fez ao Senado uma

    representao, em 3 agosto de 1726, queixando-se da falta de vazadouros e de meios capazes de

    manter o ritmo de transportes para uma remoo das lamas em tempo til:

    (...) Agora represento a V. S.ia que suposto continuem as barcas com o referido expediente, nem por isso

    a corte experimenta melhor limpeza, porque, havendo tanta dilao e mediando-se tanto tempo, como se

    d de mar a mar, sem haver vazadouros certos, pararo no entanto as fbricas [i.e., os meios de

    limpeza], e ficaro as cidades inabitveis. 90

    As ruas deveriam estar, tambm, desembaraadas de animais solta (nomeadamente, porcos que

    vagueassem dispersos pela cidade) ou que estivessem mortos.91

    Quando se desse este caso, segundo o

    87

    Cfr. respetivamente:

    Licenas para se fazer obra - AML. AH, Livro III de Registo de Ordens do Senado Ocidental, 03/06/1737,

    fls. 60.

    Licenas para vazadouros - AML. AH, Livro VI de Registo de Ordens do Senado Ocidental, 05/10/1727, fls.

    24 v.

    Priso dos mestres pedreiros - AML. AH, Recompilao de Posturas da Almotaaria da Limpeza, ordem do

    Senado de 19/01/1707, fls. 10.

    88 Cfr. respetivamente:

    Suspenso do almotac AML. AH, Recompilao de Posturas da Almotaaria da Limpeza, ordem do

    Senado de 19/01/1707, fls. 10.

    Remoo dos materiais a prprias expensas do almotac - AML. AH, Livro II de Registo de Cartas e Ordens

    do Senado Oriental, 29/10/1703, fls. 52.

    Priso do almotac - AML. AH, Livro IV de Registo das Cartas - Senado Oriental, 14/12/1720, fls. 128 v.

    89 Cfr. respetivamente:

    Vazadouros em praias - AML. AH, Livro V de Registo de Cartas e Ordens do Senado Oriental, 30/04/1735,

    fls. 53.

    Despejo no mar AML. AH, Livro IV de Registo das Cartas - Senado Oriental, 11/01/1717, fls. 46 v. 90

    Carta do escrivo do Senado da Cmara ao secretrio de estado Diogo de Mendona Corte Real, em

    Oliveira, Elementos, tomo XII, pp. 79 e 80. 91

    AML. AH, Livro XIV de Registo de Ordens do Senado Ocidental, 05/09/1789, fls. 78 v.

  • 26

    alvar de regimento dos ordenados do Senado da Cmara, de 23 de maro de 1754, os almotacs da

    limpeza tinham o prazo de duas horas para lanar fora qualquer animal que se achasse morto em rua

    que pertencesse ao bairro da sua repartio.92

    E, bem assim, dirigida pelo Senado ao almotac Cludio

    Jos Antnio de Figueiredo, uma carta datada de 20 de agosto de 1768 mantinha-lhe a obrigao de

    deitar fora da cidade, sua custa, os animais mortos, sob pena de suspenso.93

    Embora o saneamento bsico tivesse estado no centro das preocupaes de Manuel da Maia,

    engenheiro-mor do reino, ao projetar o novo plano para a cidade de Lisboa,94

    dir-se- que nem mesmo

    a reedificao parece ter bastado para aquietar certas vozes, como a de Jcome Ratton, que

    continuaram a apontar graves carncias ao nvel da salubridade: (...) mas o que imperdovel nesta

    nova reedificao que todas as ruas no tenham, e todas as casas, cloacas, para o despejo das

    primeiras imundcies. Ao que acrescentava, o mesmo industrial luso-francs, em tom de maior

    indignao:

    (...) [providncias sem as quais] a fedorenta cidade de Lisboa ser sempre um manancial de molstias, a

    vergonha da Nao e um objeto asqueroso, pelos montes de imundcies acumuladas nas ruas, por efeito

    do descuido inveterado de se no varrerem e se no tirarem [as sujeiras] com a devida regularidade, no

    obstante as rendas que h destinadas para isso. 95

    Independentemente da eventual justeza deste parecer, o facto que o Senado da Cmara

    diligenciava no sentido de permitir um maior controlo sobre a limpeza das ruas, nomeadamente,

    incentivando a denncia dos prevaricadores por via da oferta de recompensas. Assim, no dia 16 de

    dezembro de 1779, o Senado fixava em metade do valor da multa o prmio a atribuir pela informao

    aos almotacs (da limpeza) sobre qualquer comportamento que violasse o disposto no edital afixado

    para a limpeza da Rua Nova.96

    Igual prstimo se deteta, por exemplo, na ordem de 6 de setembro de

    1788:

    O Senado da Cmara ordena ao almotac do Bairro da Mouraria faa notificar os habitantes da rua da

    Inveja que fabricam cordas de violas para no deitarem na rua as guas imundas com os mais fragmentos

    92

    Alvar rgio [de Regimento dos Ordenados do Senado da Cmara de Lisboa] com fora de lei de 23 de

    maro de 1754, em Oliveira, Elementos, tomo XV, p. 509. 93

    AML. AH, Livro XII de Registo de Cartas - Senado Ocidental, 20/08/1768, fls. 113.

    94 Pinheiro, Magda (2011), Biografia de Lisboa, A Esfera dos Livros, Lisboa, pp. 169-170.

    95 Ratton, Jcome (1813), Recordaoens: sobre occurrencias do seu tempo em Portugal durante o lapso de

    sesenta e trs annos e meio, alias de Maio 1747 a Setembro de 1810 que rezidio em Lisboa, Londres, H.

    Bryer, 1813, pp. 296-297.

    96 AML. AH, Livro XI de Registo de Ordens do Senado Ocidental, Mesa, 16/12/1779, fls. 200 v.

  • 27

    corruptos da dita manufatura, pena ao que transgredir de ser castigado na forma das posturas tantas vezes

    quantas forem as ditas transgresses: e o almotac tenha todo o cuidado em fazer observar esta portaria

    estranhando-se-lhe muito no ter feito executar as posturas e ordens que h sobre a limpeza, e ficando

    advertido que se o tribunal lhe conhecer a menor omisso na execuo desta proceder suspenso do seu

    ofcio; esta se registar na secretaria e lhe remeta para assim se executar. Mesa, 6 de setembro de 1788

    [assinam].

    Tambm para assegurar a limpeza das ruas, por uma Proviso de D. Filipe II, os almotacs eram

    levados a fazer correies noturnas pela cidade a fim de dissuadirem os habitantes de deitarem fora as

    imundcies pela janela97

    - medida que, aparentemente, no ter tido um sucesso por a alm.98

    Esta

    responsabilidade direta dos almotacs pelo asseio da cidade preponderava sempre que a limpeza no

    estivesse entregue a um arrematador (concessionrio); ento, a limpeza por administrao (e no por

    contrato) ficava ao cuidado dos almotacs, que a faziam com recurso fbrica da Cmara, i.e., aos

    meios que o municpio disponibilizava para o efeito (varredores, vassouras, ancinhos, bestas, etc.); nos

    seguintes termos:99

    Vendo-se no Senado a conta que Vossa Merc deu sobre a falta que tinha para se

    fazer a limpeza do bairro da Rua Nova, resolveu o Senado dissesse a V. M.c

    que na dita limpeza pode

    meter [alugar] seis bestas para continuar a limpeza do mesmo bairro. Deus Guarde a V. M.c

    , Senado

    11 de fevereiro de 1764. 100 O facto que o saneamento da cidade estava, normalmente, ao encargo

    do contratador, pertencendo aos almotacs da limpeza vigiarem sobre o cumprimento do respetivo

    contrato:

    "Estando as ruas imundas, o Senado ordena que cada um dos almotacs, na sua repartio, obrigue o

    contratador que faa a limpeza, como obrigatrio, pelo que respeita extrao dos lixos, e, pelo que

    toca aos mais entulhos e calias, procedam contra os donos das obras, tudo de sorte que em tempo breve

    fique a cidade com a limpeza e desembarao com que deve estar;" 101

    Neste sentido e semelhana dos almotacs da almotaaria, os da limpeza detinham um relevante

    meio de coao para assegurar a observncia das posturas, qual fosse, o poder de mandar prender os

    prevaricadores: O almotac das execues da limpeza da Rua Nova meta na cadeia toda a pessoa que

    97

    AML. AH, Recompilao de Posturas da Almotaaria da Limpeza, Proviso de 03/03/1596, fls. 12 a 14.

    98 Pinheiro, Biografia de Lisboa, p. 140.

    9