Os Anjos Também Choram

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 J. P. Wilkerson

Tambem Choram s Anjos

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 Melhor é a tristeza do que o riso, porque se estiver triste o

homem buscará a felicidade que realmente importa.

Rei Salomão

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PREÂMBULO 

eu nome é John. Tenho trinta e um anos e sou o maisvelho dentre os sete filhos que a minha mãe conseguiucriar com muitas dificuldades, e neste momento estou

tomado de uma vergonha mortal. Sou professor do ensino funda-mental, mas fui viciado em álcool desde os doze anos de idade, e

embora julgasse haver me libertado desse vício há cerca de cincoanos, quando conheci a agora minha esposa Natalie, voltei a inge-rir a bebida ontem, depois que recebi a visita de Antony Watson,que foi o melhor amigo dos meus pais desde a primeira infância,quando eles ainda nem se namoravam.

Eu o conheci há quase vinte anos, pois Watson era um jovempastor na pequena cidade em que morávamos, e desde cedo provou

possuir o dom da persuasão, quando fez a vez de Cupido para con-vencer a minha mãe a ficar com o cara que mais tarde veio a sermeu pai. Anos depois, o mesmo Watson interferiu nas decisões deminha mãe e a fez crer que precisava entrar para o seu simpáticorebanho composto de gente sentimentalmente falida e de outrastantas infelizes que a vida resolveu deixar para trás.

O moço, talvez por ser amigo íntimo da família, sabia com

sobejos que o casamento de meus pais estava em avançada contag-em regressiva para se desfazer, e como o meu pai não lhe desseouvidos, ele convidou mamãe a buscar acompanhamento espiritualem sua igreja, e ela, não tendo mais nenhuma tábua de salvação àqual se apegar, atendeu ao seu apelo e aceitou se batizar na IgrejaCongregacional.

Na época ela me disse entre risos que havia tomado uma grande

decisão e que a sua vida estava prestes a mudar radicalmente para

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melhor, mas eu torci o nariz, e por muitos anos amaldiçoei tal dia, jurando que aquela tinha sido a decisão mais estúpida que já havia

tomado.

Eu odiava a minha mãe. É vergonhoso ter de admitir isso, maseu realmente sentia prazer em contrariá-la. A verdade é que naminha infeliz adolescência eu jamais havia parado para pensar sepossuía razões para odiá-la tanto, e nem sabia quanto mal esseódio estava causando a nós dois. Ela ficava ofendida com o meno-sprezo que eu lhe oferecia, e eu me sentia aliviado por estar des-

contando nela as ofensas que na vida recebi.

Houve um dia, no entanto, em que eu consegui feri-la de umachaga da qual jamais viria a ser sarada. Era uma ensolarada manhãde Domingo e havia se passado apenas uma semana desde que elatinha entrado para a igreja do pastor Watson. Eu retornava doginásio depois de animada partida de futebol entre amigos e ao en-trar em casa encontrei mamãe chorando aos cântaros. Não era um

pranto qualquer; ela gemia e gritava como se a maior das desgra-ças houvesse acabado de lhe ocorrer. Estava atirada ao chão, sobreuma poça de lágrimas que ela mesma havia derramado e ao sentirque eu estava presente, levantou-se, vindo em minha direção parame abraçar. Tinha na mão algo que na ocasião me parecia umacarta bastante amassada, e como alguém que recorre a outro embusca de um ombro amigo, ela me apertou com todas as forças que

lhe restavam, dizendo:_ Nós estamos sozinhos, Johnny! O seu pai nos abandonou!

Deveria não ter sido surpresa para mim, pois o casamento entremeus pais há muito que não existia nem nas aparências, porém,naquela manhã eu senti o golpe mais vil e traiçoeiro que a vidadesferiu contra mim. Não me lembro de ter lamentado nem um

pouco pela dor da minha mãe, já que na vida infeliz em que está-

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vamos levando, julgava que ela mesma era culpada pelo caos devergonha e pobreza com o qual eu tinha de conviver. Lamentei por

mim mesmo, compreendendo que a minha existência que já nãoera boa, a partir dali se transformaria num inferno insuportável quehaveria de me roubar todos os sonhos que na adolescência alimen-tei.

Portanto, deixei mamãe chorando na miserável casa que nemera nossa, e me atirei no mundo. Fui sufocar a minha tristeza juntoao balcão de um bar, e apesar de na época eu não ter mais do que

doze anos de idade, bebi até que não suportei, e só retornei paracasa depois de alguns dias, porquanto meus avôs maternos saíssema minha procura. Aquela foi a primeira vez em que me embriaguei.

Na segunda ocasião em que isso me aconteceu, eu ainda tinhadoze anos, pois fui buscar no álcool um remédio que sem me curarou arrancar-me a dor, me mantivesse alheio à vergonha, ao medo,ao desprezo e à violência que impingiam minha indefesa alma de

menino. Mas a falarei a respeito disso adiante.

Agora são passados vinte anos desde que todas essas coisas meaconteceram, e são como feridas abertas que eu jamais desejeicurar. Hoje estou crescido, me casei e estou aguardando a chegadado meu primeiro filho. Outros cinco irmãos tiveram melhor sorte,pois que além de terem concluído a faculdade, têm bons empregos,casas confortáveis e carrões maravilhosos. Eu não tive a mesmagraça, conquanto fosse obrigado a trabalhar duro desde os dezanos, e sendo o filho mais velho, tornei-me o homem da casa de-pois que o papai nos deixou em total abandono e fugiu com umamulher mais jovem.

Eu precisei abandonar a escola para ajudar nas despesas dacasa. Isso veio a privar-me do privilégio de um diploma univer-

sitário, e, conseqüentemente, do futuro tranqüilo que os meus ir-

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Vi a mamãe há dois anos e sei que os demais filhos não a têmprocurado por muito mais tempo. Comunicamo-nos ao telefone a

cada mês e o Edwards costuma nos mandar e-mails todas as sema-nas.

O mais interessante de tudo, porém, é que apenas agora, depoisque Antony Watson apareceu em minha casa é que os meus olhosse abriram para a maior das minhas vergonhas. Ou seja, que du-rante toda a minha vida odiei sem motivos à pessoa que mais meamou e que decidiu viver infeliz para que eu tivesse melhor sorte.

Compreendi, entrementes, que enquanto eu relutava porsuportar o fado que me afligia, deixei de atentar para alguém quesendo infinitamente mais frágil do que eu, aceitou todos os tiposde sofrimentos para que a minha dor se tornasse amena. É por issoque somente agora, envergonhado de mim mesmo, e depois de teringerido quase uma garrafa de uísque, estou indo à casa da mamãe,a confessar-lhe o quanto fui ingrato e, depois de trinta anos, dizer-

lhe que amo e que no profundo me arrependo de não haver enxer-gado a grande mulher que ela sempre foi.

O relato a seguir é o resultado do diálogo que tive com AntonyWatson, quando ele veio à minha residência para me contar dosofrimento que a mamãe há trinta anos vem suportando em silên-cio sem que nenhum de nós, seus filhos, tenhamos nos importado.Mas, muito além de conselhos, naquele dia Antony me revelou osegredo que me despedaçou o coração e que transformou as nossasvidas para sempre.

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Capítulo 1

Uma Visita Inesperad

 

uase não acreditei ao ver aquele homemdiante do portão da minha casa. Eu estagrama do jardim enquanto ouvia o radio a

“Baby I Love Your Way   , de Will To Power, que porsentimentais passou a ser a música predileta da Natal

  Reconheci-o imediatamente, pois se tratava de Aum velho amigo de meus pais ao qual eu não via haanos. Aparentemente, o tempo não havia passado paser pelos cabelos já grisalhos, tudo parecia estarmente. Larguei a tesoura e retirei as luvas para ir rlogo o portão se abriu, ele me abraçou forte e depoispouco com a intenção de me fitar dos pés à cabeça. E

_ Como você cresceu, rapaz! Está a cópia perfeita dNão pude entender de imediato, mas naquele dia

contente com a repentina aparição de Antony. Ele sepessoa adorável, mas eu o havia evitado durante todque vivíamos na mesma cidade, e a nossa últimahavia sido nada amistosa. Tratei logo de afugentar tae o convidei para entrar. Enquanto íamos caminhan

rogava:

Qm pé, paradoa aparando aocar a canção 

motivos beme.

tony Watson,ia uns quinzea ele, e a nãocomo antiga-

  ecebê-lo. Tãose afastou umntão disse:

seu pai.iquei bastantepre fora uma

o o tempo emconversa nãos recordaçõeso eu o inter-

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_ Então, não foi por coincidência que você me encontrou, certo?Está tudo Ok com você? E a família, como tem passado?

Ele se movia sem pressa, os olhos fitos em Natalie que jáassomava na varanda. Ao ver a sua enorme barriga, me indagou?

_ É o seu primeiro herdeiro? Deve ser um garoto bem grande!

_ É uma menina. Estamos pensando em chamá-la de Ashley.

_ Um belo nome – acentuou ele.

Fomos direto para a sala, e após cumprimentar elogiosamente àminha esposa, ele me disse:

_ Preciso ter um tempo a sós com você, Johnny.

Natalie sempre foi compreensiva, pelo que nem precisei lhepedir para que se ausentasse um pouco. Ela mesma se antecipou

em dizer:_ Estarei na cozinha. Caso precisem de alguma coisa, é só chamar.Vai nos dar honra de ficar para o almoço, Sr. Watson?

Ele respondeu em seguida:

_ Não tenho certeza, mas por via das dúvidas, pode ir contandocomigo.

Ficamos sozinhos na sala e guardamos silêncio por algunsinstantes. Até que o meu visitante, respirando fundo, começou afalar:

_ Como tem passado, meu caro?

_ Estamos bem – respondi - As coisas melhoraram muito desde

que a Natalie se estabilizou no novo emprego. Mas sem rodeios,

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amigo, pois sei que não veio aqui para saber de mim. Pode ir diretoao assunto.

Ele então voltou a tomar alento e desabafou:

_ Estive com a sua mãe há dois dias.

_ Sério? Está tudo bem com ela?

_ Não sei o que significa estar bem para você, mas a Amy desfrutade relativa saúde. Ela foi nos pedir para que ficássemos com oEdwards por alguns dias enquanto viaja para resolver... questõesfamiliares. – concluiu oscilante.

Quando terminou a sua frase, eu fiquei a imaginar o real sentidodas suas palavras. A Mamãe não tinha muitos parentes e desde quea Vovó faleceu há cerca de quatorze anos, só lhe restou o VovôBenjamin. Assim, divagando na minha incompreensão, perguntei:

_ Problemas com os meus irmãos?

_ Não, Johnny. Seus irmãos estão muito bem. Na verdade, Amyprecisou retornar a Phoenix para sepultar o velho Ben. Ele é mortodesde a última Quarta-feira.

Agora foi a minha vez de tomar alento:

_ O Vovô Benjamin morreu há três dias? Mas como eu não fiqueisabendo disso?!

Antony fitou-me demoradamente e disse:

_ Faria diferença se o houvessem avisado?

Dirigi os meus pensamentos para bem longe. Eu tive uma vidaamarga, com uma infância marcada por violentas brigas entre

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meus pais onde apenas a Mamãe se machucava. Passados algunsanos, veio a dissolução do casamento, quando também me levaram

a adolescência, pois tive de abandonar os estudos para trabalhar.Minha juventude passou rápida e foi um amontoado de fracassostanto na área sentimental quanto na profissional. Como já conhe-cesse o psicodélico paraíso do álcool desde os doze anos, fui fazerdele o meu refúgio secreto, para o qual me retirava todas as vezesque o mundo me dizia “não”.

Nesse tufão de desilusões, eu tinha apenas uma segura âncora,

que era o colo da Vovó Susan, que sempre me acolhia com cari-nhos, conselhos e votos de que tudo haveria de acabar bem. Ela erao verdadeiro esteio da família e, mesmo estando distante, era quemconseguia nos dar um pouco de estabilidade. Houve uma época emque fugi de casa para ir morar com o Papai, e ela foi a única pessoacapaz de me convencer a retornar para junto da minha mãe.

Quando faleceu, eu chorei muito, pois apesar de todas as

agruras que a vida tinha me proporcionado, tornando-me uma pes-soa bruta, irritadiça, indiferente, insensível e insociável, conseguiasentir que a Vovó despertava a centelha de bondade e de esperançaque ainda existia em mim. Ela era a única pessoa capaz de mefazer acreditar que era possível voar acima da tempestade, onde asflechas da estupidez humana jamais nos alcançam. Mas assim quisa vida, e quando ela desceu à sepultura, levou consigo a diminuta

esperança que ainda me restava, e como eu havia previsto, todos oselos que nos uniam como família foram rompidos desde então ecada um tomou o seu próprio rumo.

Como não tivesse mais marido, e estando a Vovó já morta, aMamãe passou a contar apenas com o Vovô Benjamin como únicoparente vivo. Mas ele insistia em continuar morando sozinho novelho rancho aos arredores de Phoenix. E agora que a sua última

candeia havia se apagado, a Mamãe passou a se sentir totalmente

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no escuro. Ao imaginar os olhos do Vovô se fecharem pela últimavez, deixei que uma preguiçosa lágrima me escorresse pela face.

Então sussurrei:

_ Isso não está certo! A Mamãe devia ter me aviado há maistempo.

Antony, ainda me fitando com os seus olhos profundamenteazuis, falou:

_ O que teria feito, caso ela o houvesse procurado para contarsobre a morte de Benjamin Wilkerson?

_ Eu... sei lá. Ao menos lhe daria algum dinheiro para asdespesas!

_ Dinheiro? – retorquiu Antony – Acha mesmo que a Amy viriaaqui para buscar dinheiro enquanto o seu velho e amado pai desciaà tumba fria?

Levantando o olhar eu respondi:

_ Não sei. O que mais eu poderia fazer por ela?

Nesse momento Antony Watson pousou a mão sobre o meuombro e me falou:

_ Tentei convencê-la a te procurar para dar a notícia pessoal-mente, Johnny, mas ela se recusou, e francamente, agora com-preendo que fez a coisa certa em não ter vindo aqui.

Sem entender o que estava a dizer ao certo, inquiri:

_ Ela quis vir aqui? E por que razão não veio?

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_ Porque tinha certeza de que não ia suportar a sua indiferençamais uma vez. Não, Johnny, você já a magoou demais; na verdade,

bem mais do que ela podia suportar.

_ O que está dizendo?! Tem ela feito maus comentários a meurespeito?

_ Não se trata disso, rapaz. Há vinte anos, em uma marcantemanhã de Domingo, ela estava em prantos e se aproximou de vocêpara contar de sua maior agonia, quando o Charles a abandonou,

falida, desamparada e humilhada, com cinco filhos ainda peque-nos. E o que foi que você fez? Tudo ao seu redor estava desmo-ronando. Ela avançou para você apenas para receber um pouco decalor humano em sua hora mais fria. Na sua tão grande dor, eladisse: “Estamos sozinhos, Johnny. O seu pai nos abandonou!” Eem resposta, o que foi mesmo que você disse?

Ao me fazer recordar daquele escuro episódio da minha vida,

eu engoli a seco; cobri o rosto com ambas as mãos e curvei acabeça. Ao longo desses vinte anos eu jamais havia parado pararefletir sobre aquele dia, e não o faria agora, se Antony Watsonnão o houvesse pintado em cores tão reais. Quando lhe devolvi oolhar, foi com essas palavras:

_ Eu era apenas um menino. Tinha doze anos e estava sendoobrigado a carregar o mundo sobre os meus ombros.

Ao que ele me disse, ponderando bem as palavras:

_ Eu o compreendo, Johnny, mas naquele dia você feriu de morteà pessoa que mais te ama nesta vida, e o fez no seu momento maisnevrálgico. Apesar disso, ela continua te amando incondicional-mente.Só não tem mais coragem de encarar a indiferença no seuolhar. Entretanto, me diga se não foram essas as palavras que você

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cruelmente proferiu naquela manhã fatídica: “A gente colhe o queplanta”?

Fiquei bastante sério e nada respondi, mas olhei de esguelhapara a porta da cozinha, a ver se Natalie de alguma forma poderiaestar a escutar a nossa conversa. Antony, porém, prosseguia com asua voz pausada:

_ Está esperando um filho... Certamente irá criá-lo com todocarinho e dedicação. Um dia você envelhecerá e por um motivo ou

por outro, há de precisar da sua ajuda. O que há de fazer, se àsemelhança do que fez, ele se voltar para você e disser: “Essa é asua parte da colheita”?

A minha respiração ficou pesada, mas tomei coragem e falei:

_ Eu só tinha doze anos naquela época e nada entendia sobre omundo dos adultos. Hoje compreendo que fui um pouco rude.

_ Um pouco rude? Então é desta maneira que você vê as coisas?

_ O que está feito está feito, Antony. O importante agora é nãorepetirmos os erros do passado

_ Correto. Mas parece que o vejo a fazer tudo do mesmo jeitooutra vez. Porque quando perguntei sobre o que você faria se aAmy aqui viesse para contar da morte do seu avô, você rudementeme respondeu que lhe “daria algum dinheiro”.

_ E o que mais eu poderia fazer?

Ele, todavia, foi incisivo na resposta:

_ Não seja inconseqüente, meu jovem. Há vinte anos você vemdando dinheiro para a sua mãe, e apesar disso, ela tem se tornado

cada vez mais infeliz. E sabe qual a razão, Johnny? –

é 

porque toda

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riqueza ou conforto que possamos dar à nossa mãe não valem maisque escória se não vieram acompanhados de atenção e afeto. Os

mendigos recebem dinheiro e comida todos os dias, e ainda assimeles não se realizam. Em todo o caso, você consegue imaginar quea sua mãe apareceria aqui para chorar a perda do próprio pai, eesperando encontrar um ombro amigo, receberia um pouco dedinheiro e muita indiferença, porque o seu filho mais amado não écapaz de lhe devotar um só instante de afeto. Você não tem cora-ção, garoto? Perdeu toda a afeição pelo que há de mais belo nestavida?

Com isso ele conseguiu me deixar bastante acossado. Mas eulogo reagi:

_ Não veio aqui para me cobrir com os seus sermões moralistas,não é mesmo Antony?

_ Absolutamente. Eu vim porque tinha esperanças de poder

resgatar um pouco da inocência e do amor que julguei existirem nasua alma, mas não pretendia dizer nada além do que estivessedisposto a escutar. E como não podemos continuar com a conver-sa, posso ir antecipando que irei levar a Amy para morar com agente em Santa Fé. Lá pelo menos ela viverá em companhia depessoas que a querem bem.

_ E por que faria isso? Ela não é nenhuma desvalida.

_ Farei isso porque não agüento mais vê-la sofrendo o abandonopor parte de seus próprios filhos. É certo que não resolverá todosos seus problemas, mas ela ao menos terá com quem conversar oudesabafar a sua dor todas as vezes que a solidão vier lhe assaltar.Sabia que o Edwards está falando em se casar? Quando isso acon-tecer a Amy será sepultada viva, pois será tirado o pouco consoloque ainda lhe resta.

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Dizendo isso, ele se ergueu da poltrona, caminhou até onde euestava e olhou nos meus olhos:

_ Johnny, a sua mãe precisa muito de você. Agora que o Benmorreu ela está completamente sozinha neste mundo. Todos osagravos sofridos ao longo dos anos parecem haver completado amedida. O fardo se tornou pesado demais para ela e temo quevenha a desistir de viver.

_ Ela não faria isso! – relutei.

_ Queira Deus que não. Mas ouça, há dois dias, quando esteve láem casa, e antes que me dissesse o motivo de sua visita, perguntei-lhe como iam as coisas e me respondeu que não suporta mais avida. Então contou-nos o que estava se passando e tanto a Sarahquanto eu choramos muito, principalmente quando nos confessouque estava sofrendo muito e que desde que se lembra a vida só lhetrouxe angústias. E tanto mais nos abatemos quando afirmou que

ao receber a notícia da morte do Ben, ela estava sozinha em casa eque chorou abraçada ao travesseiro. Tem sido sempre assim, meurapaz, todas as vezes que a vida a feriu, ela teve de sofrer sozinha,sem ter ninguém por perto para consolá-la. E ela não tem exigidomuito para ser feliz, ao contrário, tudo o que desejou e deseja éviver do lado daqueles a quem ama. Mas de quantas fatalidades elaainda será vítima, se sempre teve de ser privada do amor dos seusqueridos?

E penetrando-me a alma com o seu olhar cortante, recobrou:

_ Johnny, você não terá de fazer sacrifícios para torná-la feliz.Basta uma decisão sua e ela esquecerá completamente todas asangústias vividas através dos anos.

_ Porque eu? Não tem ela mais cinco filhos?

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_ Sim, ela de fato criou outros filhos, mas é a você que a sua almaestá apegada. Outrossim, todos os seus irmãos podem igualmente

ignorá-la, entretanto, você foi o único que a magoou profun-damente. E acredite-me: ela te ama muito mais pelo mal que acausou do que pelo bem que os outros a possam fazer.

Desviei o meu olhar para outra direção e falei num frêmito:

_ Não sei... As lembranças não são nada boas...

_ Então você se lembra?_ De cada cena. A memória é o meu melhor trunfo.

_ Pelo menos espero que ela não seja injusta com a sua mãe.

_ Se conhecesse bem a sua história não a defenderia tanto.

_ Mas eu realmente a conheço. Infinitamente mais do que você

possa imaginar._ Claro que posso imaginar. Você é um pastor e deve escutar milconfissões todos os dias. Mas eu me pergunto: serão verdadeirastodas as histórias tristes que te contam?

_ Receio que tenha um pouco de razão no que está a dizer. Masme escute: também sou psicólogo e tenho tratado de pessoas com

problemas diversos. Depois de algum tempo nesse ofício, a genteconsegue distinguir quando alguém está mentindo, acrescentandoou falando a verdade. Por isso sei que a Amy não mente, e além domais, sou testemunha de sua trágica história.

Querendo demonstrar o quanto desacreditava nas estórias con-tadas por minha mãe, eu lhe contei essa velha fábula:

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_ Sabe, Antony, há um conto interessante de uma mulher que jamais lavava as próprias roupas, até que um dia, não tendo mais

com que se vestir, decidiu tratar da limpeza de algumas peças.Como não houvesse água em casa, ela resolveu fazer a lavagemnas margens de um rio. Mas para o seu desespero, notou que lá jaziam outras mulheres fazendo o mesmo trabalho. Como dese- jasse manter o segredo da própria imundícia, ela bolou um planopara não se expor e nem continuar com as roupas sujas. Sabe o queela fez? – Arremessou todas as peças de uma só vez, e assimninguém percebeu coisa nenhuma.

Com toda segurança, Antony me lançou o seu olhar com ummisto de compaixão e reproche. E me disse:

_ Acho horrorosa a maneira como descreve a própria mãe. Masvou insistir com isso, pois aqui não vim para dizer mais do quevocê quisesse saber.

E ao enfiar uma das mãos no bolso da camisa, tirou um cartão eo pôs sobre a mesa. Então me falou:

_ Aqui estão o meu endereço e telefone, caso algum dia queira irnos visitar. Mas por favor, Johnny, não apareça se não tiver boasdádivas para oferecer à pobre Amy. Ademais, diga a Natalie queeu lhe deixei felicitações e votos de uma gestação tranqüila.Adeus, garoto. Você realmente tem tudo do seu pai.

Disse essas coisas e se foi. Um minuto depois, escutei o motordo seu carro dando partida. Respirei fundo e me joguei contra oencosto do sofá.

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Capítulo 2

Repentina Decepção 

aquela altura eu havia me esquecido de dque continuava a tocar lá na varanda. Pretentava limpar a minha mente de qualqu

ou sentimento que pudesse me ocorrer. Queria extrpouco de tranqüilidade, porquanto estivesse com osda pele desde que Antony partiu. Foi então querádio a tocar a música Take a Look At Me Now. A me

baixinha e suave aos meus ouvidos, fazendo-me spaz. Parecia que eu estava começando a me sentir me

  Pouco depois, estando ainda com os olhos cerradoce perfume de mulher e entendi que a minha adestava ali na sala. Abri os olhos, e ela estava paravando em silêncio. Tinha a respiração arfante, osmarejados. Então tive um leve sobressalto e lhe pe

estava acontecendo. Foi então que me falou:_ Amor, eu escutei tudo...!

Apanhado de surpresa, eu fingi desconhecer osmurei:

_ Tudo o quê, querida?

Nsligar o rádioo ao sofá, eur pensamentoir do éter umnervos à flore lembrei dolodia chegava

ntir enganosalhor.

dos, senti umorável esposaa, me obser-

  lhos rubros erguntei o que

fatos e mur-

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_ Tudo. Palavra por palavra. Estou muito decepcionada, Johnny.Não imaginava que pudesse ser tão indiferente com a sua própria

mãe.

Levantei-me com a intenção de tomá-la em meus braços, masse esquivou de mim e rumou para o quarto. Atirou-se na cama,entregando-se às lágrimas. Rodeei para ficar diante de si. Procureios seus olhos e sussurrei:

_ Está tudo bem, querida...

Mas ela reagiu em um tom bastante ousado:

_ Como pode dizer que está tudo bem? O seu avô acaba de sersepultado; sua mãe ficou sozinha no mundo e está sendo amparadapor estranhos, e vem dizer-me que está tudo bem! Deus! Eu des-conheço o homem com quem casei!

Confesso que a sua brusca reação me deixou deveras descon-sertado. Natalie é meiga por natureza e sempre me tratou commuito dengo, mas quando eu, por minha insensibilidade, a fizchorar, senti um nó na garganta. Irredutível, porém, tentei des-conversar:

_ Antony Watson não é nenhum estranho. Ao contrário, trata-sedo melhor e mais velho amigo que a Mamãe já teve.

Natalie então se voltou para mim:

_ Mas não está certo, Johnny. Ela tem sete filhos muito bem-criados. Entretanto, posso imaginar o que está se passando. Vocêtem vergonha da sua mãe, não é? É isso! Você e seus irmãos bem-sucedidos têm vergonha da mulher analfabeta que mal sabepronunciar os nomes dos próprios filhos!

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_ Não é nada disso, querida. O que acontece é que a Mamãesempre foi uma pessoa de difícil convivência, e por outro lado,

desejamos a vida toda ter o nosso próprio espaço.

Ela me encarou com segurança e rebateu:

_ O Pastor Watson parece ter outra opinião a respeito dela...

_ É a função dele - retruquei - um pastor sempre há de buscar areconciliação entre as pessoas. Eles estão sempre à procura do que

possa existir de melhor em alguém, mesmo que esse melhor sóexista na intenção.

_ Você nem se deu ao trabalho de ouvir o que ele veio de tãolonge para te dizer.

_ É o blá-blá-blá de sempre. As coisas não mudaram em vinteanos.

Nisso, ela me olhou com a expressão de quem faz uma súplica.E falou:

_ É da vontade de Deus que as famílias se unam e vivam em paz.Vocês não podem virar as costas para a própria mãe. Não depoisde tudo o que ela teve de passar para criá-los.

Tropeçando nas minhas palavras eu tentava me justificar:

_ Ela não é a única neste mundo cruel. Há milhares de mães queenfrentam as mesmas dificuldades todos os dias e nem por isso es-peram receber uma medalha de honra ao mérito, como se esti-vessem a cumprir uma tarefa hercúlea.

_ Pode estar certo quanto a isso, Johnny, mas eu me pergunto seestas mulheres têm a malfadada sorte de receberem de seus filhos a

ingratidão por tantos males sofridos no afã de lhes dar uma vida

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menos miserável. Acho que todas as ofensas na vida podem sersuportadas, menos o a ingratidão daqueles a quem amamos. Eu me

sentiria um lixo e decerto pediria a morte se fosse rejeitada pelomeu próprio filho.

Calei-me ante estas palavras. Eu sentia que seria inútil tentarconvencê-la sem ter de expor aos seus ouvidos a história de minhamiserável infância. Estávamos casados havia três anos e eu jamaislhe contara uma só linha de toda a minha existência, de modo quetudo o que a Natalie sabia ao meu respeito foi lido nas entrelinhas

de nossa convivência. Portanto, eu não teria lhe aberto o livro daminha vida se ela não me houvesse lançado em rosto a seguinteinsinuação:

_ Estive pensando nas palavras que o pastor Watson falou e mepus a imaginar sobre o que quis ele dizer ao afirmar que você temse tornado a cópia perfeita do seu pai...

Foi como um soco no estômago. Eu não tenho boas recordaçõesdo Papai e por esta razão detestava imaginar que um dia viesse aser comparado com ele. Mesmo eu tinha jurado que jamais tratariaa minha esposa e filhos do modo que a Mamãe e eu fomos por eletratados. Por isso falei:

_ A semelhança física foi a única coisa que herdei do Papai. Maspara que você me compreenda, terei de contar um pouco da minha

história. Está disposta a me escutar?

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Capítulo 3

 Minhas Lembranças 

empre tive uma memória privilegiada. Aperguntei ao Vovô Ben se ele conseguia se leacidente automobilístico que presenciamos dur

gem que fizemos para o Colorado. Dei-lhe detalhesvimos e ele ficou de sobrancelhas arqueadas dianteração, daí exclamou:

_ Como consegue se lembrar disso, se na época vtinha um ano de idade?

Pois é, eu consigo me recordar de praticamente taconteceu ao longo destes trinta e um anos de vida.tudo, estão vivas na minha memória as imagens daem que vi os meus pais brigando. A Mamãe apanhome lembro de como urrava a cada soco que o Papaiépoca eu não entendia o que estava se passando, masar das cenas compreendi que todas as vezes que o Pnoite fora de casa havia discussão em nosso lar, e daí

Aos dois anos eu já havia testemunhado a Mamãdiversas vezes. Eu me assustava e chorava, pois erabrar os moveis e as louças da casa. Certo dia, vi a

boca ensangüentada e lhe perguntei se estava doen

s oito anosbrar de certo

ante uma via-  as coisas que

a minha nar-

  cê ainda nem

do o que meas acima de

primeira vezbastante e eulhe dava. Nacom o repri-

pai passava aas brigas.

e apanhar poromum o que-

  amãe com a

o. Ela apenas

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me disse que devia seguir para o quarto, mas evidentemente, eunão a obedeci. Logo, o Papai foi até á pia onde ela se lavava e a

agarrou pelos cabelos, desferindo-lhe uma seqüência de socos nacabeça. Presenciei estas cenas diversas vezes e delas extrai algu-mas lições, tais como: o mais forte é que manda; homens e mulhe-res são iguais quando discutem, mas se brigam, a fêmea sempreleva a pior. Também comecei a entender que existia uma diferençade força em relação ao porte físico. Meu pai era robusto, e a Ma-mãe bastante franzina, daí advinha que apenas ela ficasse machu-cada.

Como essas brigas fossem constantes em nossa casa, a VovóSusan me levou para passar uns tempos com ela e quando volteipara junto dos meus pais havia-me nascido um irmãozinho – oThomas. Nesse retorno, notei que as coisas tinham melhorado. OPapai dormia em casa todas as noites, não existiam mais brigas e aMamãe já não era espancada. Tínhamos comida em abundância,

roupas novas e brinquedos diversos. Meu pai era sócio-gerente deuma pequena fábrica de móveis e ganhava o bastante para nos ga-rantir uma vida de considerável fartura e conforto.

Agora falarei do primeiro Natal de que tenho lembranças. Essadata foi marcante para mim, pois foi numa ocasião desta que apa-receu em nossa casa uma mulher bonita que dizia ser minha tia.Ela de fato tinha muito apego com o Tom, mas não me dava a

menor importância. Quando veio à nossa casa, trouxe vários pre-sentes e guloseimas para o maninho. Das suas mãos, porém, nãorecebi um caramelo sequer. Lembro-me de como cresceram e bri-lharam os meus olhos ao ver o meu irmãozinho sendo coberto debrinquedos enquanto eu nada recebia. Também fiquei babando aovê-lo se lambuzando de chocolate e da maneira como me agarrei àsaia da Mamãe, pedindo–lhe que dissesse ao Tom para me dar umpouco daqueles doces que pareciam tão deliciosos. Ela realmente

não intercedeu por mim junto ao meu irmão, mas deu-me garantias

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de que naquele mesmo dia haveria de me cobrir de brinquedos e detodos os caramelos que eu pudesse desejar.

Aconteceu de o Papai retornar mais cedo do trabalho, afinal erao dia da celebração do Natal. Ao ver que aquela mulher estava emcasa, ele a tomou pelo braço e ficaram um longo tempo a conver-sar baixinho a um canto. Mamãe não estava nada contente e ficouainda mais irritada, o que deu ocasião ao prelúdio de uma briga,pois o Papai, retornando da conversa que tivera com a “Tia”, disse-lhe para por roupas novas no Tom, pois iria levá-lo para passear.

Ela o obedeceu a contragosto. Assim, saíram o Papai e a “Tia”, le-vando consigo o Tom. Imaginei que estivessem indo ao parque dediversões e implorei para que também me levassem, mas o Papaime deu um leve empurrão, e eu cai sentado.

Então se foram, e me pus a chorar. A mamãe então veio e meergueu do chão, cobrindo-me de beijos. Depois de me dar banho etrocar-me a roupa, levou-me para passear no parque da cidade.

Fez-me brincar no carrossel, no balanço, no aviãozinho. Comemosalgodão-doce, pipoca, caramelos, e ela ainda tomou sorvete comi-go. Tiramos fotografias com o Papai Noel e de quebra ela mecomprou um palhacinho de pano.

Era para ter sido uma recordação feliz da minha infância, senaquela tarde não tivéssemos ali encontrado o Papai e a supostatitia. Assistíamos a uma apresentação de fantoches e riamos à beçaquando ele nos apareceu. Seu semblante não deixava disfarçar afúria interior, mesmo assim lhe falei:

_ Olha, papai, a Mamãe me deu um brinquedo!

Ele me ignorou e se dirigiu à minha mãe, rosnando assim:

_ Eu não te falei para me esperar em casa? Não vá dizer que não

avisei!

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Segurei a sua calça na altura da coxa e puxei, dizendo:

_ Olha, Papai, que palhacinho bonito que eu tenho!Como de costume, ele fez pouco caso de mim. Mas era assim

que ele me tratava. Todos os meus irmãos tiveram a sua atenção ecarinho; comigo, porém, ele jamais saiu para passear ou me trouxepresentes ao retornar das muitas viagens que fazia. Também nuncame bateu, pois para ele era como se eu nem existisse. Ali, entre-tanto, tiveram um desentendimento e para não apanhar em público,

a Mamãe me tomou nos braços e deu pressa de voltar para casa.Eu ainda pedi para que ficássemos, mas ela tinha de obedecer aoseu marido.

Nosso retorno foi imediato. Quanto ao Papai, só voltou paracasa à noite, trazendo o pequeno Tom e também a “Tia” que ja-mais tivemos. Ela, inclusive, ficou para dormir em nossa casa ecomo eu não passasse de inocente criança, fiquei muitíssimo feliz,

embora ela não estivesse nem aí para mim.

Mais tarde compreendi o que estava se passando. A Mamãeficou zangada e reclamava muito com o Pai e isso me deixavaconfuso, pois não conseguia entender a razão pela qual ela nãogostava da “Tia”, que parecia não se importar com a sua irritação.Recordo-me de que depois de haver servido a refeição noturna aoTom e a mim, levou-nos para o seu quarto e lá nos trancou, per-

manecendo ela mesma conosco. Chorava em silêncio, esforçando-se para não nos contagiar com a sua tristeza. Desse ponto emdiante, creio que adormeci, já que não consigo me lembrar de maisnada. Ao amanhecer o dia, porém, a Mamãe nos conduziu à mesapara a refeição matinal. Estava muda, e hoje sei qual era o motivo:na noite anterior, o Papai não havia subido ao quarto de dormir.

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Aos pouco fui entendendo que as brigas entre ambos aconte-ciam sempre pela mesma razão, ou seja: a Mamãe começava a mal

responder à voz do Papai. Logo, passei a compreender os efeitosdessa ação-reação, e disso nasciam em mim os primeiros sinais deódio contra a minha genitora, pois a parecia-me que ela imbuía-sede culpa e que só apanhava do Papai depois de haver-lhe “enchidoa paciência”.

Era exatamente o que estava a acontecer à mesa naquela ma-nhã. A Mamãe havia preparado a ração que cabia para ela e os

seus dois filhos, deixando o Papai e a “Tia” de fora. Quando eleveio para a mesa, certo de que teria o desjejum pronto para serservido, e nada e nada encontrou, passou a proferir incisivas recla-mações. A Mamãe nada respondia a esse respeito. A “Tia” veiologo em seguida, e depois de tomar assento e descobrir que nadateria para comer, deu-se a grunhir igualmente. Foi então que aminha mãe resolveu falar, apontando-lhe o fogão da cozinha.

O Papai não gostou nenhum pouco dessa atitude e ordenou quese levantasse imediatamente a preparar-lhes o café da manhã. Ela,ainda assim, não moveu um só dedo e percebi aumentar a irritaçãoda “Tia”, que começou a vociferar com a Mamãe. Uma de suasfrases mexeu forte com a minha imaginação e jamais me saiu dacabeça, porquanto ela tivesse dito que só não cobriria a Mamãe depancadas porque não encontrava nela lugar para bater. Anos

depois, eu compreendi que o que ela queria dizer era que a Mamãeera muito magra, ou algo tão insignificante que nem valeria apenaespancar.

A discussão entre as duas se agigantou e o Papai resolveu inter-ferir. E havendo sem sucesso insistido para que a Mamãe se diri-gisse à cozinha, agarrou-a pelos cabelos, arrancando-a da mesa eatirando-a com força ao chão. Como toda criança bem-criada, eu

adorava à minha mãe, mas já me estava o fato de ela não “obede-

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cer” ao Papai e evitar toda aquela confusão. Mesmo eu nãoconseguia entender porque não queria servir o café da manhã ao

senhor da casa. Estava me acostumando com as brigas entre osdois, mas quando notei que o Tom havia se assustado demais e queberrava de pavor, passei igualmente a chorar.

Ainda assim, a Mamãe não retrocedia em sua decisão, e o Papaipassou a desferir-lhe tapas no rosto. Ele era um homem bastanterobusto, com os braços roliços e fortes, pelo que eu via a cabeça daMamãe oscilando de um lado para o outro a cada açoite que

recebia. Houve um momento em que ela foi atirada contra a paredee desabou no chão como um fardo, largando um longo e roucogemido. Mas se levantou imediatamente para uma nova sessão detorturas. Até tentou reagir, avançando na direção do Papai com osdedos em ristes, mas ele lhe mandou um soco na lateral do pescoçoe a fez parecer uma boneca de pano. O golpe a catapultou para olado, e, descontrolada, se chocou contra a pia da cozinha. Largou

um urro abafado e foi ao chão a gemer. Aí notei que a sua testasangrava.

Fiquei apavorado, mas o Tom fazia um escândalo daqueles. OPapai não se importou com isso e nem se deu por satisfeito, antes,apanhou a Mamãe pelo pescoço como a um monte de trapos e aergueu do chão, enforcando-a e gritando que a mataria ali mesmo.E decerto que a teria matado se ela não houvesse passado a mão

por um prato de louça e o atingido em cheio na testa, provocando-lhe um sangramento. Ele a largou imediatamente e passou a mãono ferimento. Notando que a sua fronte sangrava, precipitou-se so-bre a Mamãe outra vez e mandou-lhe um chute na altura doslombos.

A potência desse golpe pareceu ter-lhe fraturado algum osso, jáque ela caiu estrebuchando em dores e não conseguiu mais se le-

vantar. Tentou se arrastar com dificuldade e outra vez o Papai deu

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em cima dela. Agora tinha uma garrafa de uísque em punho e pelamanifestação da sua cólera eu tenho a certeza de que ele a teria

matado naquele dia. Por sorte isso não aconteceu, pois a “Tia”correu em defesa da Mamãe e tomou-lhe a frente no exato mo-mento em que o Papai descia o braço para acertar-lhe a cabeçacom toda a força que tinha.

Ele ficou ainda mais furioso e depois de ter arremessado agarrafa contra a parede, correu para tomar um frasco de álcool e odespejou totalmente sobre a Mamãe que já estava inconsciente.

Então o escutei a dizer algo como “atear fogo”.

Ora, aos quatro anos de idade eu já havia assistido bastante àtelevisão, pelo que entendi perfeitamente o que estava por vir. Efoi nesse momento que a “Tia” se ajuntou ao Tom e a mim nochoro. Ela tentou conter o Papai quando ele marchou com ofósforo na mão, mas ele reagiu e lhe deu um safanão. Vendo quenão prevaleceria, ela gritou a plenos pulmões, pedindo socorro à

vizinhança, anunciando que o Papai pretendia incendiar à suaesposa. Com isso, ele retrocedeu e ficou apenas a berrar ameaças.Até que vizinhos acudiram, munidos de pás, tacos de golfe e ca-deiras. Enfim, o Papai reconheceu que a sua violência havia extra-polado os limites tanto da sua covardia, quanto da tolerância dosvizinhos. Então, desesperando-se, tomou a “Tia” pelo braço e seapressou em fugir, desaparecendo por alguns dias.

A Mamãe foi socorrida e tão logo teve acalmados os nervos, foiorientada a tomar a decisão que até então havia evitado. Procuroua polícia e denunciou o Papai. Ele foi localizado e preso depois dequatro dias. Quanto a tal “Tia”, vim saber mais tarde que era umavelha amante do meu pai e que depois dos acontecimentos daqueledia sumira da sua vida para nunca mais. O carinho que ela haviamanifestado pelo Thomas se justificava, porquanto ela mesma

fosse a sua verdadeira mãe.

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Capítulo

Começar De !o"o 

esde que o Papai fora levado para a prisãpaternos vieram à nossa casa para “botar

ordem”. A Mamãe ficou muito machucada já não conseguia dar conta de dois filhos e dos afazer

Ficaram apenas por um final de semana e duraque tiveram com a Mamãe eu estive presente, escfiquei estarrecido ao extremo. Sou (ou pelo menos fuquerido, tanto pelo lado materno quanto pelo paternominha mãe nunca foi grande, pois a Vovó Susan tev

túnios em sua condição de genitora, porquanto doishouvessem morrido antes de nascerem e o terceiroGuerra do Vietnã, retornando para os seus braçefêmera forma de uma medalha à qual ela sempre jamais conseguisse tirá-la da principal parede daMamãe, nascera-lhe também a Tia Corie, que vierarante um parto no qual a vida do bebê foi igualmente

Já o Papai, teve melhor sorte. Sua família é enmente todos ainda vivem e desfrutam de perfeita satenha uma idéia, meu bisavô está com mais de cemser pela visão já cansada, não tem muito do que reneto mais estimado de minhas duas avós. Elas jamaisso dos demais netos e eles jamais criaram qualqpelo fato de eu haver desfrutado de ambas as predile

D

, nossos avósas coisas em

e, além disso,s do lar.

te a conversatando tudo ei) o neto mais. A família dealguns infor-

  de seus filhosingressara nas apenas nadiou, emboraala. Além daa falecer du-

  ceifada.

rme. Pratica-  úde. Para que

anos e, a nãoclamar. Fui os esconderamuer problemaões.

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Quando a Vovó Bernie caiu doente e pressentiu que morreria,mandou que um de seus filhos fosse me buscar imediatamente,

pois ela desejava beijar os meus olhos antes de partir deste mundo.E assim aconteceu. Viajamos a noite inteira até chegarmos à suacidade e ela parece ter resistido à morte apenas o tempo de quenecessitava até que eu aparecesse. Chegamos ao hospital ao ama-nhecer e fomos logo para a UTI na qual ela conscientemente espe-rava o momento de nos deixar.

Vendo que eu me aproximava, estendeu-me a mão já exangue,

e, não podendo erguer a cabeça, ficou a me olhar de ladodemoradamente. Seus olhos já estavam perdendo a luz, mesmoassim pediu para que me achegasse mais e fez-me curvar parabeijar-me nos olhos. Também a beijei na testa e ficamos aconversar sobre as poucas vezes que eu tinha ido à sua residência.Contou-me de certa ocasião quando eu tinha dezesseis anos e mefizeram viajar sozinho de ônibus até Denver para que a acom-

panhasse durante um tratamento de câncer. Eu havia reclamadomuito e perguntado pela razão de ter-me feito ir para tão longe seela tinha tantos filhos e netos ao seu redor. Ela respondeu apenasque se alguma coisa saísse errada e viesse a morrer, eu deveriaestar ao seu lado.

Agora ela estava ali, prestes a ir embora deste mundo e eu aacompanhava para realizar seu último desejo. Faleceu tranqüi-

lamente antes das oito da manhã e eu segurava o seu pulso quandoos seus olhos se cerraram para sempre. A Tia Grace, que lhe dera omaior número de netos, estava presente, e ao vê-la expirar, afagou-me os cabelos e disse entre as silenciosas lágrimas:

_ Você sempre há de ser o seu netinho preferido!

Nunca compreenderei a devoção que a Vovó Bernie mantinha

por mim, pois o nosso tempo de convivência sempre fora bem

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curto e julgo que se somarmos todos os minutos, horas e dias queestivemos juntos, não dariam mais que um quarto de ano. Mesmo

assim, ela nunca escondeu que me amava mais que aos outrosnetos.

Certa feita, antes da sua morte, curioso fato aconteceu. Eu ahavia acompanhado em sua última visita ao médico depois de terpassado por uma cirurgia para extração do câncer. Havia se pass-ado pouco mais de um mês e ela estava sentindo dores muito fortesno abdômen e para que se sentisse mais segura, prontifiquei-me a

acompanhá-la à clínica. Enquanto estava sendo atendida por umaequipe, fiquei no corredor a esperar, até que um dos médicos veiome procurar e me deu a triste notícia de que ela não viveria maisdo que trinta dias. Aí receitou alguns remédios para aliviar-lhe asdores, mas orientou-me a estar preparado para o pior.

Terminada a sessão, ela retornou para mim, e estando eu a con-duzi-la em uma cadeira de rodas até o estacionamento, acenou para

que eu parasse, e me perguntou:

_ O que foi que o doutor falou para você?

Imediatamente, enfiei a mão no bolso da camisa e tirei as recei-tas que tinha. Então falei:

_ Ele passou alguns remédios.

Mas ela me encarou com firmeza e disse:

_ Johnny... eu tenho o direito de saber. Eu sei que estou morrendo,por isso, não precisa mentir para mim.

Eu não sabia o que responder e ela outra vez deu a voz:

_ Quanto tempo de vida eu ainda tenho?

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Sem poder me esquivar dos seus rogos, imaginei um meio-termo entre a verdade e a mentira:

_ O médico afirmou que o seu câncer é incurável. Receitou reme-dios para o alívio das dores, mas não negou que a senhora há demorrer com essa enfermidade. Quanto ao tempo de vida que aindalhe resta, não sei o que dizer.

Pareceu-me que ficou satisfeita com a resposta e não perguntoumais coisa nenhuma. Permaneceu compenetrada durante as vinte e

cinco milhas que distavam da clínica para a sua casa. Então retor-nei para os meus pais e só voltamos a nos ver quando pressentiuque a morte já era vinda. Desse modo, a nossa convivência não foidas mais longas. Contudo, foi das mais profundas e sinceras e euaprendi a trazê-la com bastante estima no meu coração. Todavia,naquela oportunidade em que foi nos visitar após a briga que fez omeu pai ir para a cadeia, ela nos disse algumas coisas que mepermitiram sentir um pouco de ódio em relação à sua pessoa.

Almoçávamos, quando ela começou a dar conselhos à Mamãe,como que a culpando pelo fato de ter o Papai ido para a prisão. Averdade é que eu também me incomodava por saber que o meu paiestava atrás das grades, já que na minha imaginação só os crimi-nosos de alta periculosidade que eu tinha visto na TV é queestariam a dividir a cela com ele. Mas o que me chateou de ver-dade naquela tarde, foi quando a Vovó disse que a Mamãe deviapedir o divórcio e se separar do Papai de uma vez por todas.

Como ela foi capaz de pedir uma coisa assim? Não. Eu nãoconseguia imaginar a separação de meus pais. Qualquer dano po-dia nos sobrevir, menos o trauma de ver o casamento dois chegarao fim. Foi por essa razão que senti suscitar em mim uma pontadade ódio contra a minha avó querida. Mas foi algo que logo passou.

Até porque a Vovó Susan apareceu em seguida e deu à Mamãe um

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conselho inverso, orientando-lhe a perdoar o nosso pai e a retirar aqueixa que dele dera na delegacia. Ela a obedeceu e poucos dias

depois o Papai retornava para junto de nós. Assim, quando a VovóSusan regressou para Phoenix, levou-me consigo para passar umtempo que no meu entender deve ter sido um ano.

Ao fazer considerações a respeito dos acontecimentos daqueleano, penso haver existido uma razão justificável para que a Mamãepudesse perdoar a covardia e a violência com que o Papai a tinhatratado, pois que ao retornar de Phoenix tive uma grandiosa sur-

presa: Mamãe havia dado vida a duas gêmeas idênticas – Carolinee Catarine.

Nesse meu retorno, percebi que o Papai parecia ter atingido oápice da felicidade, ao passo que as duas meninas vieram a setornar a razão de todo o seu contentamento. A Mamãe, no entanto, já dava mostras de seu infortúnio e parecia estar perdendo a alegriade viver.

Então fomos todos ao Colorado para uma visita mais demoradaà casa de meus avós paternos. Eu era muito pequeno, mas já sentiaque o meu pai me tratava com desmedido desdém. Gritava comigopor qualquer motivo, era impaciente e me botava os apelidos maispejorativos, além de praguejar-me com muita freqüência. Durantea viagem, paramos para almoçar em um restaurante à beira da es-trada, onde ele me submeteu ao trauma do qual jamais conseguime esquecer.

Foi durante essa refeição. A Mamãe e ele estavam sendoservidos de macarronada com almôndegas, enquanto que o Tom eeu comíamos hambúrguer. Por entender que ele não cederia a umpedido meu, supliquei à Mamãe a que me desse um pouco dasalmôndegas do seu próprio prato. Ao que ela atendeu com a maior

felicidade do mundo. Até que comemos tudo o que estava diante

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de si. O Papai parecia não haver se importado com o seu gesto,mas ao se levantar para ir ao banheiro, deixou o seu prato à mesa,

e a Mamãe ficou a me servir um pouco do que nele ainda restava.Retornando o Papai, porém, e notando que faltava uma das almôn-degas do seu prato, ficou sobremaneira exaltado e passou a gritarcomigo:

_ Lombriga anêmica! Está morrendo de fome?

A Mamãe saiu a me defender, mas falava de modo que não

chamasse a atenção das demais famílias ao redor:_ Charles, ele não vai fazer isso novamente...

Ainda assim, ele prosseguiu, rosnando comigo:

_ Então, seu inútil, você gosta de almôndegas? Gostaria de comeralmôndegas? Vamos, responda!

E a Mamãe já se levantando:

_ Basta, Charles. Está assustando o menino!

Ele acenando-lhe com a mão:

_ Eu ainda não terminei.

Avançou para mim, repetindo:

_ Gostaria de comer almôndegas?

Eu tremia de medo, pensando que iria me bater, mas em vezdisso, ele passou a mão pelo prato, apanhou uma almôndega e aesfregou na minha cara até esmagá-la. Comecei a chorar e ele ros-nou em tom ainda mais ameaçador:

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_ Cale a boca, porque eu não te bati! Agora me responda: Vocêainda quer comer almôndegas?

Bastante assustado e ainda choramingando, eu balbuciei:

_ Não, Papai. Eu não quero comer almôndegas!

Mamãe tentou me ajudar, dizendo:

_ Basta, Charles. Está deixando-o assustando.

Ele outra vez acenou e disse:

_ Não tem que se preocupar. Só estou tentando ensinar bonsmodos a essa aberração.

E cravando o seu olhar de gavião em mim, ordenou:

_ Abra a boca!

Estremeci, temendo o que estava por vir. Então supliquei:

_ Não, Papai...

_ O que disse?

_ Eu não quero mais comer almôndegas... Papai!

Mas ele foi veloz como um raio e enfiou uma almôndega inteirana minha boca, berrando:

_ Engula sem mastigar!

Desabei a chorar, mas fui embargado pela sua voz de bicho-papão que me ameaçava:

_ Se chorar, te faço engolir outra!

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Obviamente, eu não conseguiria engolir uma almôndega inteiranem que o desejasse, por isso, e sentindo que estava por me engas-

gar, lancei-a fora. Então ele me agarrou pelo pescoço, arrastou-meaté ao seu assento e enfiou a minha cara no prato, vociferando:

_ Verme insolente! Faça isso outra vez e não responderei pormeus atos!

Quando me soltou, eu estava soluçando. Chorei como jamais ohavia feito. Mas como a medida da sua “justiça” não estivesse ain-

da completa, ele tomou o seu próprio copo de refrigerante e oderramou sobre a minha cabeça. Durante muitos anos eu aindachorava ao me recordar desse acontecimento, e tanto mais pelavergonha ao recordar que naquele dia a violência de meu paihavia me feito urinar nas calças.

Eu tinha pouco mais de cinco anos, e ainda assim ele conseguiufazer sucumbir em mim todo o respeito e afeição que um dia pude

nutrir pela sua imagem de pai. E pensando bem, acho que foi apartir de então que passei a me sentir infeliz, rejeitado e sobrecar-regado de complexos que talvez eu deva carregar comigo até aoslimiares da sepultura. Duas coisas, porém, eu tinha certeza que nãovoltariam a acontecer – nunca mais lhe daria o meu amor, nempermitiria que ele me ferisse outra vez. Mas, evidentemente, otempo se encarregou de provar que eu havia me enganado...

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Capítulo #

$eridas %bertas 

nterrompi a minha narrativa, pois sentia que oa reclamar dentro de mim. Minha voz embargcrise de espasmos que me obrigaram a cobrir o

bas as mãos enquanto me desfazia em lágrimas. Eu eà vida os fantasmas que julguei estarem sepultadospassado.

_ O Papai sempre me odiou – disse num fio de vopranto e a angústia.

Nesse instante, Natalie se aproximou mais de miminha cabeça, apertando-a contra o seu peito.

_ Sinto muito por você – sussurrou. – Deve ter sidosuportar a indiferença do seu próprio pai por tanto te

E erguendo o meu rosto, prosseguiu, mirando-me

_ Não precisa continuar com isso se as lembranças t

Eu tinha os olhos em ebulição pelo gotejar contmas e aquela havia sido a segunda vez que a minhachorar. Mas como estivesse extravasando a minhamurei:

Ioração estavau e tive umaosto com am-

  tava trazendoas brumas do

em meio ao

e abraçou a

orrível ter depo.

os olhos:

são cruéis.

ínuo de lágri-  sposa me viu

moção, mur-

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_ Era apenas um garotinho querendo comer um pouco de almôn-degas... mas ele conseguiu me machucar mortalmente com aquele

gesto!

Querendo me confortar, Natalie beijou-me a testa e disse:

_ Está tudo bem agora. Já pode esquecer o que passou.

Porém, decido, eu respondi:

_ Não se preocupe comigo. Chorar faz bem, e agora que tenhocomeçado a remover a areia, quero continuar escavando.

_ Mas você está tremendo e não cessa de soluçar...

_ Hei de ficar bem. Mas por ora preciso desabafar ou o meucoração irá explodir.

_ Parece irracional. Como pôde um pai odiar tanto ao seu próprio

filho?_ Nem eu mesmo sei explicar. No entanto, acho que vim aomundo contra a sua vontade. Ademais, aos poucos pude concluirque muito do desprezo que mantinha por mim era pelo fato de quequando criança eu fazia lembrar a Tia Corie.

_ E o que isso poderia ter de tão deplorável?

_ Tia Corie tinha Síndrome de Down, e o Papai vivia dizendo queeu tinha os olhos dela. Naquele tempo eu entendia que com issoele queria dizer que eu era feio.

_ Quanta estupidez. Aborrecer a um filho por causa de tão distor-cido conceito de beleza!

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_ Mas eu não me incomodaria que me achasse feio, desde que meamasse, e ainda assim, ele abominava até o som da minha voz, às

vezes me obrigando a manter-me calado se estivéssemos sozinhosno mesmo ambiente. Aos cinco anos de idade, porém, eu o odiei epropus no meu interior que nunca mais voltaria a mendigar o seuamor.

Ao escutar semelhante declaração, Natalie sacudiu com acabeça e me falou:

_ Pobre Johnny... Não possuir o amor do pai te fez muito mal,mas o fato de tê-lo odiado acabou te estragando a vida.

_ Certamente. E desde de então eu o odiei até ao dia da sua morte.

_ O que te causou maior dano, querido. Se a vida às vezes podeser ingrata, há de ser sempre curta demais para se odiar.

Abaixei os meus olhos e disse:

_ Infelizmente, o ressentimento foi tudo o que restou dele emmim. Houve, porém, uma ocasião em que dei a mim mesmo aoportunidade de outra vez o amar e busquei com isso descobrir seo seu sentimento em relação à minha pessoa havia mudado. Foiquando nos casamos, Natalie. Eu menti para você ao justificar asua ausência, dizendo que estava bastante doente e que por esse

motivo não poderia estar presente em nossa cerimônia de casa-mento. Na verdade, entrei em conflito comigo mesmo e por algu-mas semanas tentei tirar da cabeça a idéia de convidá-lo para afesta. Enfim, tomei coragem e lhe telefonei. Quando atendeu aotelefone, demonstrou desinteresse, afirmando, todavia, que haveriade pensar a respeito.

Ele não me ligou, nem compareceu à nossa festa. Enquanto eu

te aguardava diante do altar, mantinha a minha mente ocupada

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com as doces e inocentes lembranças de quando era menino eficava radiante de felicidade a cada fim de tarde, saltitante pela ex-

pectação de ver a porta se abrir e o meu pai retornando para mimdepois de mais dia de trabalho. Porém, parado diante do altar e dastestemunhas, eu corria com o olhar, buscando o rosto do meu paientre aquelas pessoas que ali estavam para me prestigiar por tãoimportante dia. Mas ele não apareceu.

Portanto, amor, quando você me viu a chorar descontrolada-mente lá na recepção, não foi apenas pela emoção de ter me casado

com você. Na verdade, eu estava arrasado, amargando a indife-rença de meu pai pela última vez!

Após fazer essa revelação, notei que a minha esposa estavasendo contagiada pela mesma emoção que estava a fervilhar emmim. Uma lágrima brilhava no seu olhar quando me falou:

_ Como ele pôde fazer isso?

_ Assim era ele. Mas vamos em frente. Preciso continuar comessa história.

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Capítulo &

 Meus elhores %mi'o

 rebeldia aflorou cedo em mim e aos dez

eu já era dono do meu próprio nariz.importava comigo, ao passo que a Mamã

vez mais ocupada com os filhos menores. Assim,praticamente independente para fazer o que bem eter que dar qualquer tipo de satisfação a quem quer q

Embora adorasse os estudos, era dado a muitas brimas nunca fui desobediente com as minhas professomaior parte do tempo livre a percorrer as ruas da cidMamãe ao menos imaginasse por onde eu andavnoite, não tinha hora para voltar e em não poucasfazia ao amanhecer. Era o mundo se descortinanmeus olhos, num convite à maravilhosa fuga da mi

encial. Nada ali me encantava ou prendia, mas era sme fazer esquecer temporariamente as contínuas turtro de casa. Eu não me deixaria iludir, mas entendiaaproveitar um pouco.

Em uma dessas andanças noturnas conheci doivieram a se tornar os melhores amigos que já tive.se chamavam Boy e Will. Eram negros, filhos de

A

s

anos de idadeapai não se

e ficava cadau me tornavatendesse seme fosse.

gas na escola,as. Passava ade, sem que a. Se saísse àocasiões só oo diante dosha crise exis-

  uficiente paraulências den-

  que precisava

garotos queram irmãos ema prostituta

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com um marinheiro a quem eles jamais chegaram a conhecer. Per-deram a mãe quando Boy estava com apenas sete anos e só não

foram parar em um orfanato porque Bart, o irmão mais velho e que já era casado, abriu os braços e a própria casa para acolhê-los.

Conhecemo-nos na escola e logo nos tornamos bons amigos.Boy era alegre, conversador e tirado a Don Juan. Will, por sua vez,era um pouco reservado, meio que retraído, mas um verdadeiro pé-de-valsa. Depois que os conheci a minha vida ficou animada, cheiade aventuras e molecagens que até então eu havia me esquivado de

fazer. E foi através deles mesmos que tive o meu primeiro contatocom as garotas do bairro.

Em meio às brincadeiras e diversões que desfrutávamos existiaum inconveniente, pois eu já estava habituado a permanecer na ruaaté as altas horas, ao passo que meus dois amigos fossem obriga-dos a retornar para casa antes das nove, já que essa era uma deter-minação da cunhada à qual jamais ousavam desobedecer. Certa

noite lhes sugeri que demorássemos um pouco mais, porquantoassistíamos a um comício após o qual iriam se apresentar dois dan-çarinos que executavam as coreografias de todas as músicas dosPet Shop Boys e eu desejava que o Will as aprendesse para depoisensiná-las a mim.

Disseram-me que adorariam ficar, mas tinham prometido àcunhada que retornariam mais cedo, pois não tinham água enca-nada em casa e eram eles próprios os responsáveis pelo abasteci-mento da mesma, além de serem obrigados a lavar a casa, as lou-ças, limpar o quintal, recolher o lixo e até lavar a roupa e prepararo alimento diário. Perguntei-lhes o que poderia acontecer casodesobedecessem à cunhada e Boy me disse que não o sabia, umavez que jamais ousaria contrariar a mulher de seu irmão. Will, noentanto, levantou a camisa e me mostrou o tórax e o ventre total-

mente marcados por queimaduras, afirmando que haviam sido

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provocadas pela cunhada, quando lhe atirou uma chaleira de águafervente depois de ele ter se recusado a lavar a louça do jantar.

Foi então que vim a entender que assim como eu, havia ummilhão de outras crianças sofrendo violências pelo mundo afora.Digo isso porque compreendo ser também portador da autocomi-seração, e como tal, eu igualmente achava que o meu sofrimentoera maior do que o das demais pessoas em todo o mundo. Mas na-quele pedaço de noite o meu amigo Will me revelou os horrores deum tormento que nem mesmo nos pesadelos eu imaginei que fosse

capaz de existir. Então Boy, notando que o irmão menor estava porrevelar particularidades da vida de ambos, tentou intimidá-lo, que-rendo lembrar-lhe de que a cunhada ficaria furiosa ao descobrirque ele andou falando do que não devia. Will, porém, foi intrépidoe demonstrou confiar em mim, pelo que não se deteve. Assim, nosassentamos, e ele começou a falar de coisas que me deixaram im-pressionado.

Naquela época Boy contava com treze anos e Will ainda nãohavia atingido a casa dos onze. O irmão que os havia recebido emcasa trabalhava em outro estado e só retornava a cada três meses,de modo que eles deviam ficar sob os totais cuidados da cunhada,além de lhe servir de companhia durante todo o tempo em que eleestivesse fora. Aconteceu, porém, de eles descobrirem que a mu-lher era viciada em drogas e que acima disso, possuía um amante

na cidade, sendo ele mesmo o responsável pelo suprimento da ma-conha e cocaína que rolavam naquele bairro. Quando a mulherdescobriu que os garotos se fizeram conhecedores dos seus segre-dos, ameaçou-os de morte, caso ousassem contar alguma coisas aoirmão. Assustados como estavam, os dois juraram mantercompleto silêncio sobre o assunto.

Ao que me pareceu, no início a mulher apenas consumia a

droga, adquirindo-a através do dinheiro que o marido lhe enviava a

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cada mês. Até que não pôde mais pagar pelo vício e teve denegociar com o seu próprio corpo. Chegou enfim o dia em que o

traficante veio a perder o interesse por ela, e, desesperada, fez-lhea mais vil e macabra de todas as propostas: ofereceu-lhe os doismeninos para serem molestados sexualmente em troca dos maldi-tos entorpecentes.

Obviamente, o criminoso aceitou a permuta, mas não se con-tentou em explorar sexualmente às duas crianças. Antes, valendo-se da situação, ele os transformou em “aviões”, ou seja, em passa-

dores de drogas, vindo em seguida viciá-los na maconha, até queos preparou para usá-los em pequenas entregas de armas e muni-ção. Quando os conheci, estavam afastados do crime devido aofato de o “Patrão” ter ido para a prisão em conseqüência de umhomicídio. Disseram que não pretendiam voltar para a vida deoutrora, mas que temiam que o “Patrão” não demorasse tanto nacadeia. E por outro lado, a cunhada já estava se envolvendo com

outro traficante da cidade e isso significava que para os dois aliberdade permanecia comprometida.

Cerca de um mês após, Boy foi até a minha casa para umaconversa que dizia ser bastante séria. Convidei-o para que tomasseo café da manhã conosco e em seguida fomos para um parque apartir do qual nascia uma ciclovia que ia se estendendo até aoslimites da cidade no sentido Sul. Assim, seguíamos por ela a con-

versar até que chegamos ao fim da pista, onde estavam grandesblocos de concreto que bloqueavam a passagem e impediam quecarros invadissem o espaço que se reservava apenas aos ciclistas epedestres. Ali nos assentamos e o diálogo se tornou ainda maispreocupante para mim, pois o meu amigo tirou do bolso um deseus cigarros e começou a desfazê-lo, e, usando um dedo, ficou aespalhar o conteúdo interno na palma da mão enquanto me diziameio apático:

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_ Sentiria a minha falta se eu morresse?

Eu nunca havia visto a maconha, mas de pronto imaginei queaquela coisa que Boy estava a espalhar na palma da mão fosse aerva maldita. Também não tinha a menor noção do que ele estava ame perguntar, daí que respondi:

_ Você é o meu melhor amigo. Se morrer, sentirei bastante a suafalta. Mas por que me pergunta sobre isso?

Ele desviou o olhar para outra direção e não se preocupou emme responder diretamente:

_ Não é por nada, mas Carson (O “Patrão”) acabou de deixar aprisão e não demora vir atrás do Will e também de mim. Entãoestive pensando seriamente se não seria melhor fugirmos para bemlonge daqui.

Lamentaria muito se tivéssemos de nos separar. Principalmenteem circunstâncias tão desesperadoras, embora compreendesse quepara o bem de ambos a melhor alternativa seria desaparecer. Maspara onde iriam eles? Antes que pudesse imaginar uma resposta,ele passou a mão pela cintura por sob a camisa e apanhou umapistola que trazia consigo sem que eu o soubesse. Fiquei tomadode espanto e comecei a gaguejar. Ele, porém, me disse:

_ Bacana essa arma, não acha?Apavorei-me ainda mais. Quando consegui me refazer da

primeira impressão, lhe falei:

_ Boy, esconda esse revólver. Não devia andar com isso!

_ Relaxa. Está descarregada.

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disparado, pois eu tinha as reais imagens das coisas que estavam sepassando em sua torpe imaginação. Fiquei de prontidão, sentido

que devia correr a plenos pulmões a qualquer momento. Contudo,o homem loiro se voltou para Boy e falou:

_ Precisamos ter uma conversa, rapaz. Vem comigo e entra nocarro.

Boy retrocedeu dois passos e o homem lhe estendeu a mão,dando-lhe a voz:

_ Perdeu a confiança em mim? Entra no carro agora.

Jamais irei esquecer-me do seu olhar caído e da maneira quemurchou o seu ânimo ao mirar o meu rosto, como que me dizendo:“Esta vendo? Se eu não fugir há de ser sempre desse jeito”.

_ Eu não quero ir – sussurrou. - Tenho de voltar para casa acumprir minhas tarefas diárias.

_ Entra no carro, garoto. Agora! Não se preocupe que da sua tiacuido eu.

Boy sabia que não tinha outra opção, por isso se deixou levar eentrou no carro. De lá de dentro o homem ainda me olhava commalícia até que deu partida no carro. Saí dali às pressas e a cadaquadra percorrida não cessei de olhar para trás para ter certeza deque não estava sendo seguido. Cheguei em casa assombrado e mecerrei no quarto, pondo-me a imaginar os horrores que o meuamiguinho deveria estar sofrendo naquele exato momento. E maiorpreocupação me sobreveio ao pensar que o “Patrão” havia se inte-ressado por mim e que não demoraria sair à minha procura. Desdeentão, evitei dar com a cara na rua pelos cinco dias seguintes.

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Enfim, quando resolvi deixar o meu esconderijo foi por insis-tência da Mamãe que já não tolerava o meu não comparecimento

na escola. Lá me encontrei com Will e ele transbordava defelicidade ao me dizer que certamente aquela seria a última vezque nos veríamos, pois Boy tinha sido encarregado de fazer umaboa entrega de armas e o dinheiro desse tráfico deveria ficar emsuas mãos até que Carson viesse recebê-lo. Eles tinham entãocombinado de fugirem para bem longe dali, levando a grana toda.Disse-me Will que nada podia contar sobre o destino que amboshaveriam de tomar, mas que depois de alguns dias me enviariamum cartão postal. E tinham de fazer isso já, pois a oportunidade eraúnica, embora nem pudessem olhar nos olhos de Bart pela últimavez, justamente agora que faltavam apenas dois dias para a suachegada.

Fiquei deveras angustiado, mesmo assim, após lhe entregar omeu casaco como recordação e ter recebido o seu boné como

lembrança, trocamos um caloroso abraço e lhe desejei boa sorte.Ao nos separarmos, ele ia sorrindo e eu fiquei chorando. No meuíntimo, todavia, sentia um pouco de alento por acreditar que elesestariam bem e que passados alguns dias eu receberia notíciassuas. Só não imaginava que isso viesse acontecer dentro de tãopouco tempo.

Quatro dias depois de nossa despedida, eles já haviam desa-

parecido da cidade, quando uma catastrófica notícia chegou aosmeus ouvidos. Bart, o irmão mais velho, havia chegado de viagem,e, segundo informações por mim apuradas, ele teria encontrado asua mulher nos braços do amante. Como ela não houvesse notadoa sua chegada em casa e flagrado a traição, ele se retirou às sur-dinas a comprar um revólver. Mas seguindo para casa a acertar ascontas com a traidora, resolveu entrar em um bar e beber paraafogar as mágoas ou para tomar coragem e não se apartar do

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terrível intento que alimentava. E estando já embriagado, rumoupara casa no afã de botar um ponto final na embaraçosa situação.

De acordo com o que me participaram, Bart havia entrado emdiscussão coma mulher e trocaram agressões verbais. Como esti-vesse bastante fora de si, ele foi ao chão depois de haver sidoempurrado, e não quis ou não conseguiu se levantar. Vizinhos queteriam corrido para separar a briga, disseram que Bart afirmouhaver presenciado a mulher em pleno ato da traição. Foi quandoela saiu de casa chorando, e ele, bêbado como estava, se deitou no

chão onde adormeceu em seguida. Testemunhas disseram que atraidora tinha ido à casa dos pais a contar para os irmãos que Barta havia espancado durante a discussão que tiveram. Dois delesentão tomaram porretes e se dirigiram a casa dela para tomar satis-fações. Lá encontraram o pobre homem a dormir sobre o chão e oespancaram, dando-lhe seguidas pauladas na cabeça, assassinando-o covardemente.

Ao me inteirar dessas coisas, fiquei estarrecido e me pus aimaginar se Boy e Will de alguma forma haviam sido informadosda morte do irmão e se incorreriam no risco de reaparecer nacidade mesmo sabendo que criminosos de alta periculosidade osestariam esperando. E eu não tinha a menor idéia do quanto estavaenganado a respeito dos dois. A verdade era que Boy e Will nãoabandonaram a cidade, como de fato jamais chegariam a fazê-lo,

porquanto estivessem mortos. Seus corpos foram encontrados emum matagal no mesmo e fatídico dia em que o irmão mais velhoteve a morte por traumatismo craniano.

Foi através da televisão que fiquei sabendo de suas mortes.Meus dois amigos haviam sido encontrados mortos na mata, nãomuito longe de onde moravam. Ainda usavam os uniformes daescola. Will ainda vestia o casaco que eu tinha lhe dado como

recordação. Tinham consigo as mochilas com os poucos pertences

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que possuíam, mas nenhum sinal do dinheiro que poderiam tersurrupiado dos traficantes de armas. Will fora alvejado pelas cos-

tas e tinha uma bala na nuca. Boy recebera um tiro na têmporadireita. A arma que tinha causado as duas mortes estava lá e deimediato eu a reconheci pela televisão. Era a mesma pistola auto-mática que eu tinha visto com Boy na última vez em que esti-vemos juntos. E ele mesmo teria sido o autor de ambas as mortes.

Recebi essa notícia com imensurável espanto e entrei em estadode choque, pois na minha mente começou a se passar cada cena de

tudo o que teria acontecido aos dois nos últimos dias. E eu podiaver tudo em cores bastante reais. Não preciso dizer que chorei elamentei pela tragédia de ambos. E muito mais pelo fato de naminha mente estar fixa a última e ingênua imagem que eu tinha deWill, de como ele estava feliz ante a possibilidade de fugir com oirmão e juntos começarem nova vida longe daquele lugar.

Ainda hoje lamento pelos dois, pois eram anjos, almas puras e

inocentes que o mundo quis transformar em espíritos do mal,incapazes de amar ou serem amados, mas, sobretudo, privados dafelicidade que deveria pertencer a todos. Como eles, existem mi-lhares de anjos sofrendo as mesmas violências em todo o mundo,mas reclamo apenas pelos dois, pois haviam sido os melhoresamigos de minha infância. – E eu que imaginava ser a mais infelizde todas as crianças da Terra!

Segundo as investigações da polícia, Boy teria cometido os doiscrimes. Primeiro ele teria assassinado o irmão pelas costas, depoisdeu cabo de sua própria vida. Mas não teria planejado aquela ação,antes, alguém o teria obrigado a matar Will e depois atirar contra aprópria cabeça. E de fato existiam evidências de que as coisasteriam acontecido exatamente desse jeito. A polícia só estavaequivocada quanto à existência de uma terceira pessoa que teria

obrigado Boy a matar o seu irmão e depois disparar contra si

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mesmo. Posso afirmar com toda segurança e até ouso dizer quepela soma das informações pessoais que apenas eu possuía, Boy

estava cansado da vida miserável a qual estava submetido, bemcomo da exploração sexual de que sofriam ele e o irmão maisnovo, por isso decidiu suprimir a vida a ambos, julgando queapenas dessa maneira conseguiriam se libertar da violência que osoprimia.

Estou plenamente convencido disso porque Boy havia meperguntado se eu sentiria a sua falta caso viesse a morrer. Lembro-

me de ter lhe respondido que sim, mas não imaginei que o sentiriatanto! Igualmente, me perseguia a imagem de Will a sorrir quandode mim se despedia pela vez final. Ele julgava estar fugindo paraum novo mundo de liberdade e sonhos, mas Boy tinha planejadouma saída mais drástica, por isso inventou aquele história dasarmas, do dinheiro e da fuga, tudo para convencer o irmão a seretirar com ele à mata onde juntos se atirariam nos braços da

morte.A perda destes dois amigos foi um duro golpe para mim e o

meu trauma só não foi maior porque a Mamãe me encaminhoupara fazer tratamento psicológico. Seja como for, depois de Boy eWill e da violência estúpida com eram tratados, bem como damaneira que tiveram encerradas as suas lidas, eu passei a imaginarque para alguns não existe diferença entre viver ou morrer. E por

mim mesmo conclui que a vida não valia a pena.

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Capítulo (

)n*im+ o ,esadelo 

tempo se passava e o Papai não mudavaseus olhos a Mamãe era como a emprQuanto a mim, continuava sendo um zer

Praticamente não existia comunicação entre nós doium lado ele me evitava e costumava passar a maior pentre o trabalho e as contínuas viagens, por outro, e

condia, dando sempre um jeito de cair no mundo saparecia em casa, retornando apenas quando tinha abde que não o encontraria mais.

Também nunca deixou de aprontar das suas, já qmantendo relacionamentos extraconjugais. Tinha pelamantes e eu o sabia muito bem. A Mamãe, apesadesfrutado da sua atenção, parecia não entender qu

entre os dois há muito que havia se acabado e que elda a criar todos os filhos que ele quisesse lhe dar.cinco, e ela de todos cuidava com igual apego e esEu contava com pouco mais de doze anos, mas pardezesseis. Era desenvolvido, alto, forte e inteligentede maturidade superava a todos os meninos da minha

Decerto que fui a primeira pessoa a perceber que

nossos pais não se protelaria por muito mais tempo,

em nada. Aosgada do lar.

o à esquerda.s, pois se porarte do tempou dele me es-

  mpre que elesoluta certeza

e continuavao menos duasde nunca tero casamento

a estava fada-  gora éramoserado amor.

cia já ter unse em questãofaixa etária.

separação de

haja vista eu

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ter lido nas entrelinhas que o meu genitor estava mantendo umrelacionamento secreto com a sua secretária. Ora, a senhora Gina

tinha dois filhos ainda pequenos, e como não fosse casada, deduzique estes fossem frutos da união entre ela e o meu pai. O tempoconseguiu provar que as minhas suspeitas estavam certas, mas eunada participei à Mamãe, uma vez que na minha confusa cabeça jamais permiti que ocorresse a idéia de ver o casamento dos dois irpor água abaixo.

O mais incrível de tudo, porém, foi descobrir que a falta de

escrúpulos de meu pai, bem como a deficiência do seu caráter nãotinham equivalentes, pois que ao mesmo tempo em que ele seenvolvia com a sua secretária, estava se encontrando às escondidascom a senhorita Angelina Atinks, que era filha do seu sócio nafábrica de móveis. A moça era incrivelmente bonita, mas nãopassava de uma patricinha com não mais que dezessete anos.

Esse relacionamento mais que secreto estava virando a cabeça

do Papai. Agora ele vivia alegre e cantarolando. Mas à mesmaépoca passou a beber com maior freqüência, chegando em casaembriagado pelo menos três vezes por semana. Em tais ocasiõeseram comuns as discussões entre ele e a Mamãe, mas princi-palmente se estivessem à mesa. O Papai sempre encontrava algodo que pudesse reclama. Era a batata frita que não estava crocante,a carne com sal em excesso ou então era a macarronada que já

esfriara. Em tudo, porém, eu notava que o que desejava eraencontrar um motivo pelo qual pudesse provocar a ruptura nocasamento.

Conclui que ele estava enfrentando algum tipo de dificuldadefinanceira, já que a nossa qualidade de vida estivesse mudandorapidamente para pior. A mesa já não era tão farta e até algunsmóveis e eletrodomésticos ele começou a vender para quitar pe-

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quenas dívidas. De sorte que veio o tempo em que ele chegou a sedesfazer até do próprio fogão da cozinha.

Obviamente, eu sabia o que estava acontecendo com o Papai.Era a patricinha que estava virando a sua cabeça e fazendo-operder o tino, de modo que conseguia arrancar-lhe todo e qualquertostão que possuísse. Ele estava fascinado pela moça e não mediaesforços ou conseqüências no afã de realizar todos os seus capri-chos. Em meio às confusões da sua mente, ele um dia disse para aMamãe que estava a dois passos do paraíso, pois a sua vida iria dar

uma guinada de trezentos e sessenta graus. Com isso ele queriadizer que estava fechando vantajoso contrato com uma corporaçãomultinacional. Isso significava que no prazo máximo de oito mesesnós estaríamos ricos!

A notícia agradou a todos e o olhar da Mamãe ficou iluminadoao imaginar que enfim poderia dar aos filhos o tipo de vida quesempre desejou. A coisa parecia possuir algum poder maravilhoso,

conquanto o comportamento do Papai houvesse mudado total-mente para melhor da noite para o dia. Estávamos falidos, era ver-dade, mas a transação com a multinacional avançava a cada dia eisso tornava o nosso pai hiper radiante.

Era uma novidade a cada dia, até que certa noite ele nosapareceu dizendo que havia acontecido. O contrato estava fechado.Agora ele teria de viajar por alguns dias e quando retornassetrataria logo de nos comprar uma casa nova e muito mais acon-chegante, onde cada membro da família possuiria o seu próprioquarto. Foi sob essa promessa que ele nos deixou por uma semanae ao retornar, contou para a Mamãe que havia adquirido uma belamansão em Los Angeles, para onde deveríamos nos mudar embreve.

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Havia um contratempo, todavia: a nossa atual morada tinha deser vendida, pois era com o dinheiro dessa aquisição que ele

haveria de dar a entrada na compra da sonhada mansão. A Mamãelogo concordou e em menos de dez dias a nossa velha casa jápertencia a outros donos. O Papai agiu com presteza e conseguiualugar um casebre no qual nos enfiamos para passar uns poucosdias enquanto ele voltava de Los Angeles para levar-nos à novamorada.

A residência provisória era pequena demais, mas isso não nos

incomodava, porquanto houvéssemos de permanecer ali por nãomais do que quinze ou vinte dias. Além do mais, estávamosdeveras contentes, já que o Papai tinha deixado significativaquantia de dinheiro com a nossa mãe e ela usou parte dele para nosfazer a alegria, comprando roupas, calçados, brinquedos e ummonte de coisas gostosas.

Enfim chegou a data em que o Papai deveria vir para nos

buscar, porém ele não apareceu. Ficamos um pouco frustrados,mas não o suficiente para nos arrefecer os ânimos. Uma semanamais e ele ainda não havia retornado. Então soubemos que o TioPrescott estava vindo nos visitar e ficamos apreensivos. Era umamanhã de Domingo e eu jogava futebol com os amigos quando oTom correu para me dizer que o irmão de nosso pai estava emcasa. Eu adorava o Tio Prescott, pelo que deixei o futebol para

depois e segui imediatamente para casa. Eu acreditava que eletrazia boas notícias da parte do Papai.

Preciso confessar, querida, que não sou tão insensível quantopareço, mas aconteceu que naquela ensolarada manhã de Domingonão encontrei mais o Tio Prescott, pois ele não demorou senão otempo que precisava para entregar à Mamãe uma carta de nossopai. Ele, após ter lido a dita carta diante da Mamãe (já que ela

nunca aprendera a ler ou escrever), se retirou. Assim, quando

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cheguei em casa me deparei com a cena que trarei para sempregravada na memória. A Mamãe estava caída ao chão sobre uma

poça de lágrimas. Eu já a tinha visto chorar outras vezes, mas opranto que então presenciei foi de cortar o coração. Ela gemia esoluçava de uma maneira que eu jamais t testemunhara. Então, aoperceber que eu me aproximava, levantou-se e correu para meabraçar. Francamente, eu não sabia o que estava se passando comela e nem tive tempo de imaginar a causa da sua angústia. O quesei ao certo é que quando me abraçou eu estava desprovido dequalquer sentimento ou afeição. Ela tinha uma carta amarrotada namão quando me disse entrecortadamente:

_ Nós estamos sozinhos, Johnny! O seu pai nos abandonou e fugiucom outra mulher!

Poderia ter sido em outra ocasião, mas naquele justo instante eunão conseguia pensar em outra coisa senão na minha infelizcondição no mundo a partir de então. Faltou-me o chão sob os pés,

 já que a coisa que eu menos desejava nesta vida era exatamente aseparação física dos meus pais, conquanto para fins conjugais eles já estivessem separados havia muito tempo. Ademais, eu senti,como que em um  flash, que estávamos reduzidos à imediatafalência e à total miséria, considerando-se que o nosso pai, além denos privar da própria casa, houvesse vendido praticamente todosos móveis que possuíamos. Enquanto a Mamãe chorava a sua dor,

eu amaldiçoava àquele dia, principalmente por entender que oPapai havia nos abandonado. E mais do que isso: ele tinha nostraído e roubado ao levar consigo não apenas o dinheiro pelo qualvendera a nossa casa, mas também por nos haver privado da poucadignidade que ainda nos restava.

Senti um ódio enorme de ter vindo ao mundo para ser um entetão desditoso. Eu estava destruído e precisava descarregar a minha

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fúria sobre alguém. Foi por isso que sem pensar, e para a minhaeterna vergonha, exclamei ante o olhar angustiado da minha mãe:

_ A gente sempre colhe o que planta.

Era o suficiente para magoá-la profundamente, mas a minhaatitude posterior sem sombra de dúvidas haverá de ser a culpa daqual jamais me perdoarei, pois eu me soltei dos seus braços, lhedei as costas e sumi da sua vista sem acrescentar palavras.

Quanto ao conteúdo da carta que o Papai lhe enviou, nada mepergunte, pois jamais me interessei em saber do teor das palavrasque nela continha.

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Capítulo -

 %s spere.as da Vid

 

Papai sumiu de casa para ir morar cAtinks, a patricinha, filha do seu então sóde móveis. Nunca viemos saber ao certo p

fugido, pois não tivemos dele notícias senão depois já que não se dignava de escrever-nos para saber colevando a vida sem a sua assistência.

Passávamos por todos os tipos de privações, dMamãe, para não nos ver sofrendo à míngua, foi procomo faxineira. O que ganhava era pouco e não dametade das despesas, sendo suficiente recordar queseis bocas que precisavam fazer pelo menos três refO Pastor Watson e sua pequena igreja nos ajudavampossível, e foi a senhora Erickson, uma de suas mais

lhas, quem se prontificou a arcar com os meses deMamãe não pôde pagar. Também devo contar da sepois teve o altruísmo e a gentileza de cuidar dos meque eu pudesse arrumar trabalho e assim contribuir nda casa.

Mas não demorou para que recebêssemos boa ajua Vovó Susan tivesse vendido algumas vacas e com

comprasse a casa em que estávamos vivendo. Agora

om Angelinacio na fábricara onde haviae oito meses,o estávamos

modo que acurar trabalhoa para cobriragora éramosições diárias.na medida doassíduas ove-

  aluguel que ahora Aniston,s irmãos paraa manutenção

a, conquantodinheiro nos

nós ao menos

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nos abrigávamos sob um teto que era propriamente nosso. Mesmoassim, as dificuldades eram enormes. O Edwards era bastante ape-

gado a mim e eu o amava profundamente. Daí que ele sentia muitoa minha ausência e ficava quase que o dia inteiro plantado à portada casa da senhora Aniston, chorando até que me visse retornar.Eu igualmente sofria, pois desejava muito permanecer ao seu ladoe me divertir com as suas brincadeiras, mas estava sendo obrigadoa trabalhar para evitar que o pior lhe sobreviesse.

A verdade é que eu vivia deprimido. Abandonei a escola para

poder trabalhar em tempo integral. Mas acima de tudo, eu sofriacom a vergonha da extrema pobreza em que estávamos vivendo. Anossa comida era escassa e só nos vestíamos de roupas velhas queo pessoal da igreja doava à nossa mãe. Quanto à nossa casa,possuía apenas três cômodos, além de um banheiro mal-acabado,sendo que eu dormia sobre uma cama cujo colchão não passava dealgumas camadas de rústicos papelões. Não possuíamos mais a

velha e boa televisão e até a caduca geladeira que nos restava pifoue acabou se transformando em guarda-roupa.

Nesse tempo eu tinha uma namoradinha na escola, mas dela meafastei para sempre, pois não queria que soubesse do meu men-dicante estado. Por estar num vai-vem de desilusões, acabei per-dendo o sabor da vida, de sorte que passei a pensar em bobagenstais como me atirar no mundo da marginalidade ou então cometer

suicídio. Alimentei tais intenções por várias semanas seguidas ehoje confesso que se não dei cabo da minha vida foi por causa doEdwards, pois quando as confusões suicidas atormentavam à mi-nha mente era nele que eu pensava, do quanto precisava de mim ede quão dura seria a sua existência sem as minhas mãos para am-pará-lo. Assim, ele também passava a ser minha única fonte de ale-gria em tão sombrio universo, e a maneira com que sorria, despre-zando a nossa miséria, mostrava-me o paraíso e me dava a certeza

de que eu precisava sobreviver.

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Lembro-me de uma noite em que fiquei sozinho a contemplaras estrelas nos fundos de nossa casa. Naquele dia eu havia rece-

bido o meu pequeno salário e passado quase que integralmente àsmãos da Mamãe. Com o pouco que me havia restado, comprei vá-rios tipos de doces e os distribui entre irmãos, mas ao Edwards eutrouxera uma deliciosa barra de chocolate. Então, estando eu alisentado a contemplar a imensidão do céu, ele se aproximou com amão estendida a me oferecer da guloseima que eu lhe trouxe. Deiuma leve mordida e fiz-lhe carinho na cabeça. Ele levou a gulo-seima à boca e me falou:

_ Ainda vai demorar até que o Papai volte?

Pensei rapidamente e respondi:

_ O Papai deve estar muito ocupado, Edwards...

Deu nova mordida na barra de chocolate e voltou a falar:

_ Quando virá para nos buscar?

_ Ele há de vir tão logo o possa. Mas por que me pergunta sobre oPapai? Tem saudades?

Para a minha surpresa, ele assim me respondeu:

_ Eu não tenho saudade do Papai, mas fico muito triste quando

você não está aqui. Eu queria que você fosse meu pai.

Isso me comoveu profundamente. Tomei-o nos braços e o aper-tei contra o peito; levantei os olhos ao céu mais uma vez e agradecia Deus pelo sentimento de paz que naquele instante a minha almaexperimentava. Verdadeiramente, eu precisava muito escutar algotão puro e espontâneo, pelo que tive maior certeza de que o

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Edwards houvera se tornado a minha grande razão de viver e queenquanto ele estivesse sorrindo eu não seria totalmente infeliz.

Nesse mundo, porém, nada é tão ruim que não possa piorar.Certo dia, ao retornar do trabalho, me deparei com a Mamãe queestava sentada à entrada de nossa casa com um garotinhodormindo em seu colo. A expressão do seu rosto era sem graça edenunciava a preocupação que lhe fustigava a alma. Ao me apro-ximar mais, fui logo reconhecendo aquele rostinho rubicante aesbanjar serenidade enquanto adormecia nos braços de uma estra-

nha. Era um dos filhos que o Papai havia engendrado com a suaex-secretária.

Até onde me era permitido saber, a Mamãe jamais desconfiaradaquele relacionamento e eu não podia imaginar a razão pela qualaquela criança viera parar no seu colo. Mas havendo adentrado edeparando-me com o outro filho da senhora Gina (era uma lindagarotinha), tudo ficou esclarecido. Fato é que a ex-secretária, e por

vez, amante do Papai, sentindo-se igualmente traída e abandonadaquando de sua fuga com Angelina Atinks, aguardou algum tempoaté tomar a coragem que precisava para ir à nossa morada e, ao noslocalizar, deixou-nos os seus dois filhinhos como quem se livra deindesejável fardo para em seguida desaparecer no mundo. A des-culpa que nos deu foi que não tinha condições de cuidar de doisfilhos e trabalhar ao mesmo tempo e que a sua esperança era que o

Papai viesse para assumir as responsabilidades pelas duas crianças.Evidentemente que isso nunca veio a acontecer. De modo que a

nossa vida que já não era boa, conseguiu ficar ainda pior. Desdeentão passamos a ser oito bocas famintas dentro de um casebreaonde o pão nunca vinha sem muitas dificuldades. Ademais, está-vamos sendo obrigados a carregar a cruz que não era propriamentenossa. Então tudo se tornou mais difícil e tanto eu quanto a mamãe

tivemos de nos privar de algumas refeições para que os demais

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pudessem se alimentar regularmente. Deste modo, tornaram-seincontáveis as vezes que fomos trabalhar sem tomarmos a primeira

refeição do dia. E essa era apenas parte dos novos problemas, umavez que as duas crianças passassem a noite inteira chorando aausência da verdadeira mãe. Eu sofria grande conflito interior, poisem virtude de nos sobrecarregarem com mais essa responsabili-dade, desejei odiá-las, embora no meu coração compreendesse queeram inocentes e, que, como eu mesmo, haviam se tornado refénsda irresponsabilidade do Papai.

Como já não estivesse freqüentando a escola, considerei queseria uma boa idéia se descobrisse alguma atividade lucrativadurante a noite para acrescentar um pouco de pão à nossa mesa.Consegui um carrinho de pipocas com um simpático velhinho quevendia na praça, e, por orientação do mesmo, fui instalar-me naentrada de um antigo cinema. Não deu outra; o negócio estourou epassei a ganhar em média três dólares por noite. O dono do carri-

nho também era generoso e me permitia ficar com o que eventual-mente sobrava. Mas acima de tudo, eu obtive a certeza de que aomenos o pão não nos faltaria mais a cada manhã.

A Mamãe ficou deveras feliz em saber que eu estava me saindobem na tarefa de prover o básico para a alimentação diária, massofria por entender que a infância e a adolescência estavam sendotiradas de mim. Ela tentou me confortar várias vezes, dizendo que

ainda haveria de me recompensar por todo apoio que lhe davamesmo a custo de tantos sacrifícios. Dizia-me também que eu era amelhor coisa que lhe havia acontecido em todos aqueles anos e queestava orgulhosa de mim.

Mas já diziam os pessimistas que o que é bom dura pouco. Edeve ser mesmo verdade, pois outra noite, estando eu com o meucarrinho diante do cinema, fui surpreendido pela aparição de

alguém cuja lembrança hei de abominar para sempre. Era Carson,

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o “Patrão”, aquele mesmo indivíduo que havia violentado ospobres Boy e Will. Estremeci ao me deparar com a imagem do

demônio a sorrir com sua malícia de serpente. Mas para a minhailusória felicidade, naquela noite ele se limitou a comprar umsaquinho de pipocas.

Na noite seguinte, porém, lá estava ele de novo. Dessa vezpediu dois sacos de pipocas e me entregou uma nota de dezdólares. Quando fui lhe passar o troco de nove dólares ele acenoucom a mão, sorriu e disse que eu podia ficar com o dinheiro. Na

verdade eu fiquei sem reação; sabia que não podia ficar comaquela grana suja e ao mesmo tempo entendia que seria inútil ten-tar devolvê-la. Mas senti-me aliviado ao perceber que Carson nãoera freqüentador assíduo daquele cinema. Isso, todavia, nãosignificaria nada ante a realidade das coisas.

Uma semana após, retornando eu dessa mesma atividade,encontrei a Mamãe a conversar gentilmente com o traficante bem

diante da nossa porta. Senti-me ofendido com a sua presença epassei pelos dois sem lhes dirigir uma só palavra. Depois queCarson se foi e a Mamãe entrou, veio a me indagar se não a tinhavisto no momento em que estava chegando. Respondi que sim,mas que não havia lhe falado porque não queria ser simpático comaquele indivíduo abjeto. Um minuto depois, ela me explicava queconhecia Carson desde a infância e que o Papai e ele havim sido

bons amigos.Não gostei nem um pouco de saber desse fato, pois não

conseguia imaginar que um ente tão asqueroso pudesse ter ligaçõesamistosas com a minha família. Durante essa conversa o Edwardsacordou e quis ficar comigo. Ora, eu estava muito cansado, masminha alma tinha profunda afeição por ele e não pude lhe negarum pouco de atenção. Daí que nos pusemos a brincar. Até que a

Mamãe lhe falou:

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_ Então, Ed, não vai contar para o Johnny sobre o seu presente deaniversário?

Verdade! O pequeno Edwards completaria cinco anos naquelasemana. Assim, abri um sorriso e lhe falei:

_ Então, já sabe o que vai querer ganhar esse ano?

Ele sorriu, permitindo que duas covinhas se formassem no seurosto. Logo respondeu:

_ Quero um bolo dos grandes!

Dei-lhe um leve aperto no nariz e falei:

_ Que seja. Agora volte para a cama, pois preciso ir tomar banho.

Ele seguiu para a cama e eu fui para a cozinha. A Mamãe veiono meu encalço para me dá a seguinte notícia:

_ Recebi uma carta do Charlie hoje.

A declaração me apanhou de surpresa.

_ O Papai nos escreveu?! – perguntei sem refletir.

_ Isso mesmo. Não contou muita coisa, mas mandou-nos algumdinheiro e disse que estará enviando cinqüenta dólares a cada mês

para ajudar na manutenção da casa. Não é muito, mas para quemtem sete filhos para sustentar...

Respirei fundo e nada comentei de imediato. Quando resolvifalar, ela já me antecipava:

_ Estive pensando, Johnny. Caso se confirme e o seu pai continueenviando esse dinheiro a cada mês, você poderá retornar aos

estudos.

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Em resposta eu apenas murmurei:

_ Não podemos confiar no Papai.Ela nada acrescentou à minha afirmação, mas no seu silêncio

entendi que sonhava. Ela ainda amava o Papai e continuava a es-perar por ele. Percebendo então que mantinha um punhado deventura interior, comentei:

_ A senhora parece feliz...

Ao que me respondeu:

_ Eu precisava disso. Nada melhor do que uma boa notícia depoisde um dia cheio de frustrações.

_ E o que a senhora quer dizer com “cheio de frustrações?”

_ Que passei algumas humilhações neste dia.

Agora ela falava como se alguma vez na vida as coisas hou-vessem sido diferentes. Mas para não deixá-la sozinha no seuraciocínio, supliquei:

_ Pode me contar a respeito?

Imediatamente ele passou a me contar os acontecimentos maisimportantes daquele dia.

_ Trabalhei o dia inteiro a troco de dois míseros dólares. A casaera enorme. Lavei, passei, cozinhei e fiz faxina. Quando veio ahora de receber o combinado, a minha contratante disse que preci-sava descontar o almoço que me deu e até a energia que consumipara passar a sua própria roupa. Para não lhe dizer que estavasendo ultrajada, tentei convencê-la de que o combinado já estava

bem abaixo do justo. Como não se comovesse, supliquei, dizendo-

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lhe que tinha sete filhos para sustentar, mas me respondeu que nãoera problema seu. Irredutível, entregou-me dois dólares e apontou

para a porta da rua. Assim humilhada, rumei para casa pensandono que eu poderia fazer com tão insignificante esmola...

Pensei nas razões da Mamãe e concordei que não seria má idéiase naquela noite fôssemos dormir completamente despreocupadosquanto à provisão dos próximos dias. Não podia, entretanto, deixarde sentir-me ofendido com a miserável avareza que rege as almasde algumas pessoas.

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Capítulo /

 Meus Limites 

o atingir quinze anos de idade eu já haviapelo menos cinco vezes, mas na dita oc

aconteceram as coisa que agora hei de naevitado ao máximo o contato com as bebidas alcoóllmente porque o pequeno Edwards não gostava dedeprimente estado.

Carson, o temido traficante do bairro, passounossa rua e vez por outra eu o encontrava a convmente com a minha mãe. Tinha mil razões para

encontros, mas atentando bem para o passado, acho qme irritava era o ciúme, já que não conseguia imamãe se envolvendo com outro homem que não o Pap

  Veio, porém, o dia em que todos os abismossorrindo para mim, pois presenciei ferrenha discussãe a Mamãe, depois de ter dado um tapa no rostoentrou em casa e bateu com fúria a porta às suas cost

final de uma tarde de Sábado, quando me preparavanema vender as minhas pipocas. Ah! Aquilo me dei

  Mas não desconfiava do mal que estava reservnaquela inesquecível noite. Fiz o trabalho de sempralternado caminho ao retornar para casa, empurrandopipocas. Numa rua pouco iluminada, mas nem por isabordado por um grupo de rapazes que diziam qu

mercadoria. Expliquei-lhes que já não as tinha,

A

e embriagadosião em que

rar, eu haviacas, principa-  e ver em tão

freqüentar arsar folgada-

  epudiar estes

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para ir ao ci-  ou feliz!

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seguinte noite poderiam me procurar na frente do cinema. Entãoum deles sorriu e me falou:

_ Ora, se vendeu tudo, então está com dinheiro... E aí, onde está odinheiro?

Senti um aperto no peito, pois entendia o que estava por vir. Sónão conseguia pensar em uma maneira de escapar da embaraçosasituação. Nem conseguiria, conquanto outro rapaz houvesse sacadomão de um canivete que num gesto habilidoso veio parar na minha

garganta, enquanto ele mesmo vociferava:_ O dinheiro! Passa todo o dinheiro!

Entreguei-lhe a carteira e ele retirou tudo o que havia dentro.Depois apanhou um punhado de moedas e as atirou no chão,gritando ao meu ouvido:

_ Apanha elas para mim.

Inocente, me abaixei para catar as moedas, quando um delesveio por trás e chutou-me as nádegas e caí de cara no chão. Comoestivessem no controle da situação, eles riram à beça. Naqueleinstante pensei em firmar os pés e sair correndo, e sabia que seassim fizesse eles jamais me alcançariam, uma vez que eu houverasido o maior velocista da escola. Mas eu não podia sair dali sem o

meu carrinho de pipocas. Imaginando então como escaparia daenrascada, escutei outro rapaz a dizer:

_ Veja Mark, ele tem uma fotografia na carteira!

Verdade. Tratava-se de uma fotografia do Edwards, encomen-dada por mim na ocasião do seu último aniversário. Naquele mo-mento a foto não representava nada além de uma banal recordação,mas depois de alguns dias aquele pedaço de papel teria se

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transformado na mais formidável lembrança que teríamos doEdwards, posto que ele viesse a ser vítima de um atropelamento

que o confinaria para sempre a uma cadeira de rodas. Portanto,essa fotografia viria a ser o único registro que teríamos do tempoem que o Edwards podia andar com as próprias pernas.

Mas até isso a vida resolveu arrancar de mim! E aqueles ines-crupulosos trombadinhas a tomaram quando levaram a minhacarteira. E apesar de tudo, o pior ainda estava por vir, porquerecebi um soco no estômago e me encurvei, ao mesmo tempo em

que me chutaram a cabeça. Caí meio tonto e fiquei estrebuchandode dor. Então se aproximaram dois deles e me puseram de pé. Na-quele momento imaginei que sofreria nova investida, mas em vezdisso, fui amordaçado e depois me puseram uma venda nos olhos.Também amarram as minhas mãos para trás e me fizeramcaminhar para onde eu nem podia imaginar.

Acredito que me arrastaram por cerca de cinco minutos. Eu

nem cogitava aonde me levariam, por isso me entreguei a fazertodas as orações que Vovó Susan tinha me ensinado, embora aminha súplica se limitasse apenas em escapar dali com vida. Eutremia muito. Acho que ficamos parados por cerca de meia hora.Até que pude escutar o som do motor de um carro que pareceuestacionar não longe do lugar em que estávamos.

Logo escutei o som de uma porta a se destravar. Então meordenaram a que ficasse de joelhos e isso fez sentir múltiploscalafrios, pois a única coisa que me veio à mente foi aquela cenade cinema em que alguém é obrigado a se ajoelhar para receberuma bala na cabeça! Tive um estremecimento e me pus a chorar,sentido por certo que a minha hora havia chegado. Mas a pessoaque tinha saído do interior do carro se aproximou e disse aos rapa-zes que haviam me seqüestrado:

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_ Arranquem a roupa dele!

Quase tive um desmaio, pois reconheci aquela voz imedia-tamente. Era Carson, e sendo conhecedor do tratamento que nopassado havia dispensado aos meus amigos Boy e Will, me pus asoluçar ainda mais. A essas alturas já tinha perdido todas asesperanças, e em vez de pedir a Deus pela minha vida com todahumildade, eu chorava e praguejava no meu coração, pois entendiaque Ele não iria dar a mínima para mim.

Minhas roupas foram literalmente arrancadas e fiquei comple-tamente nu. Escutei um estalar de dedos e logo em seguida meacertaram um soco no rosto que me fez catapultar para trás e cairde costas contra o chão. Ouvi a voz de Carson a dizer que me pu-sessem deitado com o rosto em terra e que aguardassem o seu sinalpara que pudessem terminar o “trabalho”, que nesse caso signifi-cava quebrarem a minha coluna vertebral...

Não sei o que aconteceu. O motor do carro voltou a funcionar efoi se perdendo aos poucos na distância. Depois disso, um dos ra-pazes se aproximou e urinou sobre a minha cabeça. Então soltarama corda que me prendia as mãos e se afastaram sem dizer nada.Abalando e chorando muito, me livrei da mordaça e da venda,quando descobri que estava em um terreno baldio e que as minhasroupas estavam feitas em retalhos. Eu estava acabado!

Fui socorrido por vizinhos que me vestiram e me levaram paracasa. Em lá chegando, não encontrei a Mamãe, que só apareceu demadrugada, chorando aos cântaros e dizendo que havia sido infor-mada do meu rapto e que estivera a me procurar até àquelemomento. Verdade seja dita: ela estava aflita, mas passou a chorarde alegria ao saber que eu já não corria perigo. Desde então,cobriu-me de beijos e agradeceu a Deus por ter-me poupado a

vida.

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Para ser franco, ao descobrir o que realmente estava sepassando, eu reclamei a Deus e lhe perguntei por que não havia me

deixado morrer naquela noite. Destarte, eu não teria sido obrigadoa conviver com semelhante vergonha! A Mamãe mentiu para mimao contar que tinha me procurado pela cidade noite adentro tãologo soubera do meu seqüestro. A verdade é que ela havia saído decasa para se encontrar com Carson, pois estava tendo um casoamoroso com ele. Justamente com o criminoso que eu mais detes-tava e temia.

Não foi por acidente que cheguei a esse conhecimento depoisde dois dias. A Mamãe estava se arrumando, como costumavafazer todas as notes que ia à igreja. Acontece que escutei um carroa buzinar na frente de nossa casa e fui à rua para saber do que setratava. E lá estava Carson, braços cruzados a sorrir. A Mamãeveio em seguida e se despediu. Entrou no carro com ele e se foi.Retornou bem tarde e me encontrou de malas prontas.

_ Querido, o que significa isso? – perguntou-me com espanto.

_ Estou indo embora – respondi secamente.

Ela então cobriu o rosto com as mãos e se pôs a chorar. Depoisveio me abraçar, mas me esquivei e lhe disse:

_ Fique longe de mim. Você não presta mesmo! Bem fez o Papai

ao abandoná-la para ir morar com outra._ Filho, você não entende... é tudo tão embaraçoso!

_ Nem tente explicar, sua vadia! Como consegue ser tão vulgar?

Disse isso e rumei para a rua, arrastando duas malas. Eu jásabia do paradeiro do Papai e iria ver se ele me aceitaria em suacasa. Não tinha muitas esperanças, mas podia ser que desse certo.

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Evitei olhar para trás e ainda escutei a Mamãe a dizer em meio aopranto:

_ Deus! O que foi que eu fiz?

O Papai não me aceitou mui alegremente, mas a sua patricinhaprecisava de companhia para as vezes que ele tinha de viajar paratratar de negócios, daí que por orientação sua ele me permitiuficar. Em menos de duas semanas, porém, Vovó Susan foi meprocurar para convencer-me a voltar para casa, porquanto a Ma-

mãe estivesse precisando muito de mim. Eu lhe disse que nãoexistia a menor chance de voltarmos a viver debaixo do mesmoteto, mas ela tinha um argumento ao qual eu não podia resistir. Eiso que me disse:

_ Edwards sofreu grave acidente e corre o risco de perder a vida.

O chão sumiu sob os meus pés. Edwards era o meu alter ego.

Era como se fosse um coração que eu tinha fora do corpo. Por isso,apanhado pela surpresa, disparei:

_ O que houve com ele?

E pausadamente ela foi me explicando:

_ Ele foi apanhado por um carro em alta velocidade e agoramesmo está sob tratamento intensivo. Os médicos dizem que podeser que não morra, mas que certamente perderá todos os movimen-tos da cintura para baixo. Venha comigo, Johnny. Agora, mais doque nunca, precisamos unir as forças.

Completamente desorientado, deixei-me convencer e retorneicom ela. Mas a minha relação com a Mamãe jamais voltaria a sercomo antes, muito embora ela houvesse rompido toda e qualquercomunicação com Carson. Quanto ao Edwards, sobreviveu ao

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“acidente”, mas como os médicos haviam prognosticado, estáconfinado à cadeira de rodas até ao dia de hoje.

Bem, minha adorável Natalie, agora você sabe a razão pela qualperdi a afeição que um dia tive pela Mamãe. E se ainda pensaserem poucos os motivos pelos quais a tenho evitado, devo acres-centar que se o Edwards hoje está paraplégico é por culpa sua, poisfoi o próprio Carson quem o atropelou propositalmente depois deuma briga que tiveram.

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Capítulo 10

 Mentiras inceras

atalie estava a contemplar o meu rostolágrimas ao término da longa narrativa.olhar um misto de compaixão e surp

revelações que eu havia feito. Evidentemente acabara razão pela qual eu relutava em não me reconcilmente com a Mamãe. Ela se preparava para tecertário quando ouvimos o buzinar de um carro lá fora.das persianas da janela e murmurei:

_ Antony!

Era ele mesmo. Estava outra vez parado diante dNaquele instante os meus olhos estavam rubros e o mera dos melhores, mas fui atendê-lo pela segundamarchava para abrir o portão, ele sorria, me dizendo:

_ Johnny! Acho que deixei a minha carteira no sofá.para mim?

Abri o portão e permiti que ele mesmo viesse àpelo objeto que houvera esquecido ali. Ele me acofato encontrou a carteira no sofá da sala. Tomou-enfiou no bolso imediatamente. Natalie se aproximavdar ao meu lado. Antony então estalou com os dedos

_ A propósito, Johnny, tenho algo que você certaver.

Nmolhado de

Havia no seuresa ante as

de descobririar completa-

  lgum comen-  Olhei através

meu portão.eu humor nãoez. Enquanto

Pode conferir

sala procurarpanhou e de

a, mas não aa para se que-

  e disse:

ente adorará

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Nisso, abriu a carteira e retirou um pedaço de grosso papel jádesbotado pelo tempo e pelo uso. À primeira vista, imaginei que se

tratasse de outro cartão de visitas. Ele o estendeu para mim e disse:

_ Pegue-o. Já te pertenceu no passado.

Estendi a mão e o recebi, porém, ao me inteirar do que se tra-tava, fiquei automaticamente lívido. Meus olhos marejaram e mepus a gaguejar:

_ C-como conseguiu isso?Eu não podia acreditar no que estava vendo. Aquele pedaço de

papel velho era a mesma fotografia de Edwards que haviamarrancado de mim na noite em que fui assaltado pelo bando deCarson. Estava tão perfeita quanto o havia sido há quase duasdécadas! Mas estando eu a cogitar sobre a aparição da dita foto-grafia, uma luz se acendeu na minha memória. Então retruquei:

_ Já entendi... É óbvio que entendi. Foi a Mamãe, não foi? Sópode ter sido ela a te entregar essa fotografia, pois sendo amantedaquele traficante estúpido, conseguiu recuperá-la quando os ban-didos a levaram de mim!

O olhar de Antony, entretanto, denunciava o quanto eu podiaestar equivocado. E na sua reprovação ele me falou:

_ Por que será que só consegue imaginar o pior da sua mãe, meurapaz? As possibilidades são tantas e tão maravilhosas, mas tudo oque consegue pensar se traduz em incontido ódio!

Não me importando com a sua intervenção em favor da Ma-mãe, eu respondi:

_ Conheço a minha mãe melhor do que qualquer um.

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Ao que ele reagiu com veemência:

_ Não sabe de nada, garoto. Aliás, como poderia conhecer algo aoqual tem ignorado por todos esses anos?

_ Não tem idéia do que está falando, Antony – retruquei.

Mas ele me aguçou aqueles olhos profundamente azuis. Era umolhar que parecia perscrutar-me a alma e senti que estava nu dianteda sua argüição. Aí me falou num tom tão terno que jamais saberei

explicar:_ Eu sei de tudo, meu filho... até daqueles detalhes que você porvergonha ou por ressentimento jamais se aventurou a contar.

Abaixei a cabeça e evitei encarar o seu olhar, pois nele existiauma luz que parecia expor até os cômodos mais sombrios daminha alma, trazendo à tona as cenas que eu por vergonha nãoousava sequer relembrar. Assim, intimidado pelo olhar que medenunciava, perguntei:

_ O que está com isso pretendendo, Antony?

_ Nada, filho. Quero apenas revelar as verdades que você porrelutante ignorância abandonou pelo tortuoso caminho de sua tãoconturbada existência. Poderia ao menos dessa vez escutar a vozde um amigo?

Nada lhe respondi, mas minha esposa veio e segurou forte aminha mão, transmitindo-me ânimo. Então deixei que ele sedesdobrasse.

_ O que sabe a respeito de Amy Wilkerson? Aliás, o que sabe arespeito de si mesmo, Johnny? Decerto não sabe de nada! Entãocomeçarei por revelar que a Amy não é a sua mãe. Na verde, ela

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não deu a luz a nenhum dos filhos que o seu pai botou no mundo.Se tiver dúvidas, puxe pela memória, garoto. Afinal, nunca se

perguntou a razão pela qual sempre que era levado para passar unstempos em casa da sua avó, sempre encontrava um novo irmão emcasa ao retornar? Consegue se lembrar de haver visto a Amygestante ao menos vez na vida? - E ainda assim, ela lhe deu quatroirmãos!

É significativo, pois ela, sendo estéril, teve de criar cada um dosfilhos que o seu pai gerou na rua. E apesar de não poder dar a luz a

filhos, ela amou a todos, tendo maior apego a você. E sabe porque, Johnny? – Porque dentre todos os filhos que Charles gerou,você é o único que tinha laços de sangue com ela. Acaso não selembra de que o seu pai costumava dizer que você tinha os “olhosda Tia Corie”? Gostaria de saber o real motivo pelo qual não secansava de repetir isso? – É porque você realmente tem os olhosda Tia Corie, pois não podia ser diferente, uma vez que ela foi a

sua verdadeira genitora.O seu pai havia se casado com a Amy, mas ela não conseguia

ter filhos. Então ele seduziu a pobre Corie, que sendo portadora dedeficiência mental, veio a engravidar. Mas Charles odiava ima-ginar a possibilidade de haver engravidado aquela “louca”, etentou de todas as maneiras provocar um aborto. Foi aí que a Amyrevelou a nobreza do seu coração e aceitou criar um filho que era

fruto da vil traição do marido. Aconteceu que Corie teve compli-cações no parto e veio a falecer. Você sobreviveu e foi recebidoem casa com alegria. Amy o amou ternamente e o criou comolegítimo filho. Quanto a sua avó Susan, te venerava com todas asforças da alma.

Agora já sabe a causa pela qual Charles o odiava tanto, afinal,você era o único filho que ele desejou que não tivesse vindo ao

mundo, conquanto no dia em que resolveu se envolver com a

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pobre Corie foi simplesmente por causa do seu caráter pervertido.Em contrapartida, Amy te amava em dobro, pois o considerava

como o filho que tanto sonhara ter. Fique sabendo, portanto, que aAmy não é a sua verdadeira genitora, embora siga que com elavocê tenha uma eterna dívida de gratidão.

Mas há outra coisa sobre a qual devo abrir-lhe os olhos, pois naobstinada ignorância você insiste em culpá-la por todos os infor-túnios que lhe sobrevieram, mais principalmente pela tragédia daqual Edwards se fez vítima.

Por isso, saiba que se de fato existiu um culpado nessa história,e esse alguém foi você. Porque aconteceu, caro Johnny, quenaquela noite em que você foi seqüestrado pelos asseclas de Car-son, quando te lançaram ao pútrido chão, despido e amordaçado, aintenção que tinham e a ordem que haviam recebido foi para que tequebrassem a coluna vertebral e que em seguida fosse molestadosexualmente.

A infeliz Amy estava bem ali, pois era refém de Carson, e atudo assistia horrorizada, mas sem nada poder fazer. O abjetohomem pretendia por todos os meios transformá-la em uma desuas prostitutas, mas ela se negou veementemente, mantendo ahonra que no berço havia recebido. Mas ao entender que o seuamado filho estava por ser molestado diante dos seus olhos, e queacima de tudo, haveria de ficar para sempre inválido, não tevealternativa senão ceder à chantagem. Ela vendeu a própria alma eabriu mão da dignidade para que você fosse poupado.

Foi então que você reconheceu a voz de Carson, e posterior-mente entendeu que a sua mãe estava mantendo relações amorosascom ele, por isso decidiu abandonar a sua casa e passou a odiá-lacom todas as forças. Amy ficou desesperada, pois sabia que havia

perdido o amor do seu filho para sempre. Daí tomou a ousada deci-

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são de romper com o temido traficante e ver se com esse gestoconseguiria se reconciliar com você.

Mas Carson não ia deixar a afronta sem a devida correção, enaquele mesmo dia tentou atropelar Amy enquanto ela seguia parao mercado em companhia do pequeno Edwards. O bandido tentouapanhá-la com o seu carro, mas o menino foi o único a ser atingidoe arremessado para longe. Amy teve apenas alguns arranhões,Edwards, porém, ficou paraplégico. E sabe a razão pela qual issoveio acontecer? – Foi porque Amy, na ânsia de outra vez tê-lo em

casa, não mediu as conseqüências de haver dito “não” ao rei dotráfico. Ela de antemão sabia que seria errado se envolver com ele,mas por outro lado, entedia que de nada valeria manter a honraenquanto você estivesse sendo molestado. Assim, dos males quetinha de escolher, ela optou por aquele que julgou ser o menor. Porisso, Johnny, quando tiver de trazer à memória a imagem da suavelha mãe, tente pensar nela como um anjo para quem são todas as

dores e lágrimas.E não pense que aqui vim por orientação dela, pois a sua alma é

de uma dignidade tão grande que não lhe permite esse tipo deapelo. E se aceitou sofrer em silêncio por todos esses anos foi poracreditar que o ódio que te alimenta tem sido a única fonte da qualextrai algum prazer de viver. Não pretende, portanto, te privar dosabor da vingança, ainda que em tudo tenha sido inocente. Mas ela

não desistiu de você, Johnny, e se ainda alimenta algum sonho,esse deve consistir apenas em que lhe dê a oportunidade de exporo quanto o ama. É tudo o que ela quer de você, meu rapaz. Pensebem, Johnny. O ódio já te trouxe muitas moléstias. Mas você nãoprecisa prolongar esse sofrimento por mais tempo.

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Capítulo 11

 % rande urpresa 

ão logo Antony Watson deixou a nossa casa,de profunda compunção e me atirei às lágri

remorso, trazendo consigo a depressão que pso vazio em minha alma. Angustiado, me pergunteiviria a me redimir de semelhante vergonha, pela cgrande mal que havia causado à minha pobre mãe.

Mas compreendi que acima de tudo, eu sofria coda minha verdadeira identidade, já que nunca havia iAmy Wilkerson não pudesse ser minha a genitora

insegurança, vergonha. Fiquei confuso e deverasmodo que não consegui dormir naquela noite. E aencontrar uma saída, busquei um bar em plena maentorpecer a alma com vários tipos de bebidas alcoóli

  Retornei para casa ao amanhecer, pois Natalietratou de me convencer de que deveria encontrar ude nada valeria tentar me esconder de mim mesmo.

vazio no peito. Um vazio do tamanho da minha mseu perdão é que poderia preenchê-lo. Mas quemqueria ser perdoado? Aliás, eu não merecia ser perdo

  Natalie, porém, conseguiu me mostrar que aindpara reescrever a história e que seria maravilhosomundo para a chegada de nossa filhinha. Isso signinão poderia me entregar ou desistir de viver por c

que me massacrava a alma.

T

fui acometidoas. Aí veio o

oduziu imen-  se algum diaonsciência do

a revelaçãoaginado que

. Senti medo,

erturbado, desim, por nãodrugada e fuicas.

me buscou ea saída e queEu tinha um

e, e apenas odisse que eudo!

havia temporepararmos oficava que euusa da culpa

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Ainda assim, eu só tomei coragem para reagir depois depassados mais dois dias, quando os efeitos do álcool já não

operavam em mim. Todavia, não foi fácil fincar os pés e assumirque precisava procurar a Mamãe a fim de corrigir uma vida inteirade erros que eram só meus. Então ocorreu à minha doce Natalie aidéia que me pareceu brilhante. Ela sugeriu telefonar para o pastorWatson e pedir-lhe que intermediasse na reconciliação. Dei-lhe omeu assentimento e ela logo tomou o telefone, mas ao ligar paraAntony Watson, tivemos uma maravilhosa surpresa. Foi algo quemexeu profundamente com as nossas vidas e me conferiu a cora-gem de que precisava para começar uma nova história junto daMamãe. Eis, portanto, a maneira com que reagiu o pastor ao saberque era a minha esposa que estava ao telefone:

_ Que adorável surpresa! Então o Johnny está aí. Será que possofalar com ele?

Ela me passou o telefone, e ainda inseguro, eu balbuciei:

_ Olá, Antony. Como tem passado?

Do outro lado da linha a sua voz era doce e jovial, não deno-tando o menor sinal daquela preocupação que demonstrou quandoesteve em nossa casa. Mas abandonei a inicial impressão e me pusa escutá-lo:

_ Então, Johnny. Como estão as coisas por aí? É maravilhoso quetenha me telefonado, pois preciso mesmo falar com você.

Respirei fundo e fui direto ao assunto:

_ Antony, tenho pensando bastante desde que esteve aqui e achoque devo me reconciliar com a Mamãe. Gostaria de saber se possocontar com a sua ajuda nesse negócio.

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Mas a maneira com que reagiu às minhas palavras me deixoubastante preocupado. No começo imaginei que estivesse brin-

cando, mas como insistisse em afirmar o contrário, permiti que oespanto me surpreendesse:

_ Do que você está falando, Johnny? – argüiu ele, demonstrandoestranheza.

De imediato, não o entendi, e por isso prossegui:

_ Preciso da sua ajuda, Antony. A minha cabeça tem estadoconfusa desde que você apareceu aqui e me declarou todas aquelascoisas...

E novamente ele reagiu com estranheza a tudo que lhe tinhadito:

_ Não o estou compreendendo, Johnny. Está dizendo que estive nasua casa?!

Sorri mesmo sem achar nenhuma graça e falei:

_ Há três dias, Antony...

Foi então que me interrompeu a voz:

_ Johnny, tem certeza que está tudo bem com você? Eu juro que

estou começando a ficar preocupado. O seu falar é típico dealguém que enfrenta sérios problemas! Você bebeu?

_ Antony... Está tudo relativamente bem comigo. Eu só nãoentendo porque você está reagindo como se nada houvesseacontecido. Há três dias você esteve em minha casa para me dar anotícia da morte do Vovô Ben, e...

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_ Johnny, eu não estive aí! Na verdade, até pretendo visitá-loassim que me for possível, mas estou bastante ocupado com as

preparações para o congresso anual de nossa igreja. Em dez oudoze dias, porém, devo procurá-lo para tratarmos de coisas refe-rentes à sua mãe. Estive pensando em trazê-la para morar conoscoe gostaria de saber se isso será realmente necessário. Sabe, ela temvários filhos, e...

Eu tremia muito, pois estava deveras assombrado. Sabia queAntony não estava mentindo, mas também sabia que havia rece-

bido uma visita sua em minha casa havia três dias. Confuso,larguei o telefone e me pus a chorar. Mas em seguida estavareconfortado e tive a mais completa certeza de que Deus existe eque se preocupa comigo, pois havia enviado um de seus anjos àminha casa para curar todos os meus traumas e me ajudar acorrigir os erros que na vida cometi.

c

Procurei a minha mãe e lhe confessei o quanto estava arre-pendido de tê-la feito sofrer no abandono. Contei-lhe que sabia detudo e que estava muito envergonhado, mas que dali em diante ascoisas deveriam mudar entre nós. Natalie estava comigo e foi pororientação sua que convidei a Mamãe para vir morar conosco. Elaaceitou e ficou imensamente feliz. Então nos abraçamos e chora-

mos juntos. E maior felicidade a invadiu quando lhe dissemos quehavíamos mudado de idéia e que a nossa filha levaria o seu nome eque ela mesma se encarregaria de criar a netinha.

Voltei-me para o meu querido Edwards, preso à sua cadeira derodas. Com isso as lágrimas retornaram aos meus olhos, poisreconhecia que ele estava lidando com a sina que devia ter sido

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minha. Mas ele, entendendo bem as coisas que estavam se pas-sando na minha cabeça, olhou no fundo dos meus olhos e disse:

_ Não tem de se martirizar por isso, Johnny. Foi a sábia vontadede Deus. Ele efetivamente sabia que o fardo seria pesado demaispara um só carregar, por isso dividiu-o entre nós três. Outrora eulamentava bastante a falta das minhas pernas, mas hoje não maisreclamo, antes, compreendo que essa foi a parte que me coube.Deveria fazer o mesmo.

Liberei a voz do embargo que a reprimia e disse:_ Então você já sabe...

Ele acenou com a cabeça e afirmou:

_ Eu sempre soube, Johnny. A Mamãe nunca o escondeu de mim,e teria feito o mesmo a você se tivesse lhe dado uma chance de seexplicar. Mas retenhamos essas coisas ao passado e vivamos anova vida que nos é proposta. E eu gostaria de saber a razão pelaqual você ainda não veio me dar um abraço. Há muito tempo queespero por isso, cara.

Ao ouvir isso, eu me precipitei na sua direção e lhe dei o abraçomais forte e mais caloroso de que me lembro. Chorei muitonaquele instante, pois quando abandonei a Mamãe em extrema

pobreza, submeti o meu irmãozinho a mais angustiante calami-dade. Quando a lucidez enfim chegou para mim, não tive coragemde voltar atrás e corrigir aquele erro, já que me sentia indigno dereceber o seu perdão. Mas agora que o meu coração estava sendocurado, eu lhe falei com toda a sinceridade:

_ Meu querido irmão! Há quanto tempo tenho esperado por essemomento! Foi difícil ter de abandoná-lo naquela situação, mas foi

muito mais difícil voltar para reconquistá-lo.

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Ele beijou o meu pescoço e confessou:

_ Tive muito medo de que isso jamais viesse acontecer, Johnny,mas agora que voltou, eu só penso em aproveitar o máximo da suacompanhia. Nunca neguei que você sempre foi o pai que eusonhava ter.

Ficamos assim abraçados por mais alguns instantes. Eu deixavao pensamento fluir e voar livremente no tempo através das páginasda minha vida. Como em um  flash, foram se passado todas as

cenas infelizes que vivemos, mas agora me pareciam fantasmasque já não podiam assustar. E uma vez que estivesse reconquis-ando as coisas mais preciosas que o ser humano possa ter, chegueia doce conclusão de que os anjos não choram em vão.

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