Os Canídeos - Grupos e Organização Hierárquica

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ETOLOGIA I Sílvio Pereira* OS CANÍDEOS - GRUPOS E MATILHA - ORGANIZAÇÃO HIERÁRQUICA Os Canídeos. Supõe-se que o primeiro parente dos canídeos apareceu no Plioceno há cerca de 10 milhões de anos, mas o actual cão (canis familiaris) tem apenas 16 mil anos de idade. Há muitas teorias avançadas por prestigiados investigadores que defendem que o cão actual descende do Chacal, Lobo ou Coiote. No seu livro “Quando o Homem encontrou o Cão” Konrad Lorenz marca uma clara diferença entre as raças que descendem do Lobo (Pastor Alemão, Dobermann ou Boieiros) e das que descendem do Chacal Dourado (Collie, Dalmata, Caniche ou Labrador). Actualmente a maior parte dos investigadores estão em sintonia com o facto de que todas as raças de Cães descendem do Lobo (Canis Lupus), pois as duas espécies são idênticas e a sequência de ADN mitocondrial de ambas são iguais em 99,8%, enquanto que a comparação entre a do Lobo e do Coiote (Canis Latrans) coincidem somente em 96%. Nos estudos que existem sobre este tema encontra-se uma multiplicidade de especulações, mais ou menos científicas, mas em Etologia tomaremos sempre os padrões do Lobo como ponto de referência, para podermos compreender os comportamentos de uma espécie que foi domesticada pelo Homem no inicio da sua civilização. Apesar disso, por outro lado temos um grave problema em mãos: é que os padrões de conduta deste animal não podem ser enfocados através de um ponto de vista puramente etológico. O seu contacto diário com o Homem, a sua enorme capacidade de adaptação a um meio artificial, a sua falta de liberdade na Selecção Sexual e uma série de condicionantes mais, impossibilitam a publicação de estudos experimentais sobre esta espécie. Para podermos compreender o seu comportamento precisamos de nos apoiar na Etologia Aplicada, neste caso na canina, já que, apesar de todos os seus problemas, é uma espécie que, ainda que doméstica, apresenta um grande número de comportamentos que apresentaria em liberdade. Grupos e Matilha.

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Artigo sobre a organização social dos canídeos

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ETOLOGIA I

Sílvio Pereira*

OS CANÍDEOS - GRUPOS E MATILHA - ORGANIZAÇÃO HIERÁRQUICA

Os Canídeos.

Supõe-se que o primeiro parente dos canídeos apareceu no Plioceno há cerca de 10 milhões de anos, mas o actual cão (canis familiaris) tem apenas 16 mil anos de idade.

Há muitas teorias avançadas por prestigiados investigadores que defendem que o cão actual descende do Chacal, Lobo ou Coiote. No seu livro “Quando o Homem encontrou o Cão” Konrad Lorenz marca uma clara diferença entre as raças que descendem do Lobo (Pastor Alemão, Dobermann ou Boieiros) e das que descendem do Chacal Dourado (Collie, Dalmata, Caniche ou Labrador).

Actualmente a maior parte dos investigadores estão em sintonia com o facto de que todas as raças de Cães descendem do Lobo (Canis Lupus), pois as duas espécies são idênticas e a sequência de ADN mitocondrial de ambas são iguais em 99,8%, enquanto que a comparação entre a do Lobo e do Coiote (Canis Latrans) coincidem somente em 96%.

Nos estudos que existem sobre este tema encontra-se uma multiplicidade de especulações, mais ou menos científicas, mas em Etologia tomaremos sempre os padrões do Lobo como ponto de referência, para podermos compreender os comportamentos de uma espécie que foi domesticada pelo Homem no inicio da sua civilização. Apesar disso, por outro lado temos um grave problema em mãos: é que os padrões de conduta deste animal não podem ser enfocados através de um ponto de vista puramente etológico. O seu contacto diário com o Homem, a sua enorme capacidade de adaptação a um meio artificial, a sua falta de liberdade na Selecção Sexual e uma série de condicionantes mais, impossibilitam a publicação de estudos experimentais sobre esta espécie. Para podermos compreender o seu comportamento precisamos de nos apoiar na Etologia Aplicada, neste caso na canina, já que, apesar de todos os seus problemas, é uma espécie que, ainda que doméstica, apresenta um grande número de comportamentos que apresentaria em liberdade.

Grupos e Matilha.

Define-se matilha como sendo um grupo estável e duradouro que se mantém, salvo em muito raras excepções, no mesmo território. Portanto, a matilha obtém a sua variedade genética (o oposto da endogamia[1]) baseando-se na expulsão dos machos jovens, mantendo-se no território fêmeas com laços de parentesco e muito poucos machos.

Actualmente só existem em liberdade as seguintes espécies:

- Canis Lupos (Lobo) - Canis Latrans (Coiote) - Canis Aureus (Chacal) - Canis Hienae (Hiena) - Dingo Australiano ou Lobo Amarelo

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Como o Cão doméstico evoluiu do Canis Lupus o efeito da sua domesticação potenciou a sua variedade racial (assunto que iremos abordar em próximos artigos), o homem foi seleccionando e aperfeiçoando as raças em função das suas próprias necessidades. Apesar de existirem actualmente centenas de raças caninas o seu código genético é exactamente o mesmo quer sejam pinchers miniaturas ou Grand Danois. Os Cães Selvagens tendem ao sistema de emparelhamento monogâmico, mas o cão doméstico, devido Selecção artificial imposta pelo homem (nós é que escolhemos e impomos o/a parceiro/a), prevalece o sistema de poliginia[2]. Assim, e neste caso, os cuidados parentais são outorgados na sua totalidade pela fêmea, dado que os progenitores nunca têm a certeza da paternidade das ninhadas, pois enquanto que nos cães selvagens ou nos lobos, devido à sua organização social, o macho dominante, aquele que cobre todas as fêmeas, sabe que todos os jovens são filhos dele e, sendo assim, ajuda no desenvolvimento da ninhada, principalmente na protecção da mesma e na procura de alimento para a progenitora, no macho doméstico o facto de não investir na partilha da árdua tarefa de criar uma ninhada tem a ver com o desconhecimento por parte deste da paternidade da mesma.

A cadela, devido à domesticação, à abundância de alimento e não precisar de o procurar, à segurança transmitida pelo domesticador e à constância climática, apresenta dois ou três ciclos estrais por ano, contra um único da fêmea de Lobo (na Primavera), que tem contra ela os imponderáveis de ter que depender de si própria em todas as circunstâncias.

Organização hierárquica nos Cães Selvagens.

O conceito de hierarquia implica uma relação em “pirâmide” entre os membros de uma matilha. Os cães formam grupos estáveis e duradouros à semelhança do que acontece nas alcateias de Lobos. A autoridade absoluta é ostentada por um macho que normalmente é o que mais lutas tem travado e melhores resultados tem obtido. Secunda-o uma fêmea, subordinada ao macho mas que ocupa o segundo grau na hierarquia e que, no caso dos Lobos, só pode ser coberta pelo dominante. Depois destes dois “patriarcas” a pirâmide hierárquica completa-se com os machos e fêmeas subordinadas que, passado algum tempo, se convertem por sua vez, em dominantes quer pela disputa e vitória sobre o chefe, quer pela morte deste.

Nas últimas investigações levadas a cabo sobre uma alcateia de Lobos Canadenses, observou-se que era uma fêmea que liderava o grupo. Neste caso concreto o dimorfismo sexual[3] está a favor dessa fêmea como em todos os casos de fêmeas dominantes entre as hienas. Apesar disso, o normal é que a autoridade absoluta seja exercida pelo macho dominante.

Em Psicologia Experimental chama-se Alfa ao indivíduo dominante e Beta ao subordinado. O conceito de dominância implica uma relação assimétrica, entre dois indivíduos, que se manifesta em dois níveis de interacção. O Alfa, para se impor, produz a maior parte das comunicações agonísticas[4] e agressões que se manifesta entre os dois. Também quando se disputa uma fonte de recurso é o Alfa que invariavelmente a consegue obter. Uma vez estabelecidas as posições hierárquicas, a agressividade deixa de estar presente em quase todos os seus actos sociais. O stress é mais frequente nos indivíduos de menor nível social submetidos quase sempre, a uma contínua “luta” por uma valorização do seu posto na hierarquia. Pelo contrário nos dominantes, o nível de stress crónico diminui como consequência da falta de agressões que sofrem por parte dos subordinados.

Para manter estas relações sem necessidade de enfrentamentos directos e constantes, o cão desenvolveu uma linguagem corporal que estabelece claramente, “quem manda”, nas interacções quotidianas. O Beta demonstrará submissão quando se encontra em perigo de agressão cabendo ao Alfa a tarefa de tranquilizar o resto da matilha com a sua presença altiva e tranquila.

O cão, à semelhança do Lobo, tem uns mecanismos de inibição do acto final de dominância, quer dizer, quase nunca uma luta por posto ou status termina com a morte do vencido. Este

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desenvolveu toda uma comunicação de submissão que impede o vencedor de chegar à eliminação do contendor.

A dominância que exerce a fêmea Alfa sobre as demais, chega ao ponto de actuar com as suas feromonas para impedir o cio das fêmeas subordinadas optimizando desta forma o seu êxito reprodutor.

A hierarquia é tão forte entre eles que, inclusivamente para caçar, é o dominante que estabelece as tácticas venatórias[5] da matilha.

Esta forma de actuação dos cães em liberdade mantém-se nos domésticos de tal forma que, ao fazer-se a experiência de se libertar vários exemplares, passado muito pouco tempo, converteram-se no que eram há 16.000 anos atrás.

Glossário – [1] Endogamia - é o acasalamento dentro da própria família.

[2] Poliginia - Situação em que o macho ou a fêmea têm vários parceiras/os. O contrário de monogamia.

[3] Dimorfismo Sexual - é a presença de caracteres sexuais secundários que permitem distinguir o macho da fêmea correspondente.

[4] Comunicações agonísticas – Comunicações sonoras, visuais e odoríferas que visam a predisposição do exemplar para a luta.

[5] Venatória - relativo à caça.

* - Adestrador Especialista em Comportamento Canino - Formado em Etologia Canina Avançada pela “Associación para el Estúdio del Perro e su Entorno” (Esp.) - Responsável pela Área de Etologia do “Centro Canino de Vale de Lobos” - Criador da Raça Dobermann com o afixo “Ventos Uivantes” – Selecção de cães para Beleza e Trabalho - Moderador do Fórum da raça “Dobermann” do Portal dos Animais: “Arca de Noé”

www.dobermann-pt.com/ccvl