Os ciclonautas

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Narrativa ficcional em ritmo de aventura que conta o encontro de Ayon, ciclista de 72 anos, ex-campeão de ciclismo com onze ciclistas campeões. Eles são exilados e devem retornar a Konarak, terra incógnita de suas mentes. Ayon é o guia, que conhece o mistério da pedalada mágica que leva a apresentar o Portal Dourado. A partir do momento que o atravessam, os ciclistas se tornam ciclonautas.

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E.G.Boccara

NAUTASJogro e os doze Kríakos

ICLC OOS

Page 3: Os ciclonautas

1ª edição - 2013

Esta obra contempla o novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa

Impresso no Brasil

Printed in Brazil

nVersos editoraAv. Paulista, 949, 9º andar

01311-917 – São Paulo – SPTel.: 11 3567-5660www.nversos.com.br

[email protected]

© Ernesto G. Boccara, 2013Todos os direitos de publicação reservados à nVersos editora.

Diretor Editorial: Julio César BatistaEditor Assistente: Guilherme UdoDiretor de Arte: Julio César BatistaEditor de Arte: Athila Pereira PeláCapa: Erick Pasqua e Vinicius AppolariProjeto Gráfico e Editoração Eletrônica: Erick PasquaIlustrações: Ernesto G. BoccaraRevisão: Guilherme Santos, Karen Lahyer, Virgínia Marques

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Boccara, E. G.

Os Ciclonautas : Jogro e os doze Kríakos / E.

G. Boccara. -- São Paulo : nVersos, 2013.

1. Ciclismo 2. Ciclistas 3. Ficção brasileira

I. Título.

13-10718 CDD-869.93

Índices para catálogo sistemático:

1. Ficção : Literatura brasileira 869.93

ISBN 978-85-64013-71-1

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umárioS

Manifesto a todos os ciclistas do mundo ...6

Capítulo 1 ...............10Capítulo 2 ...............15Capítulo 3 ...............20Capítulo 4 ...............23Capítulo 5 ...............26Capítulo 6 ...............31Capítulo 7 ...............36Capítulo 8 ...............43Capítulo 9 ...............47Capítulo 10 .............56Capítulo 11 .............60Capítulo 12 .............65Capítulo 13 .............68Capítulo 14 .............73Capítulo 15 .............77Capítulo 16 .............82Capítulo 17 .............86Capítulo 18 .............89Capítulo 19 .............93Capítulo 20 .............97Capítulo 21 ...........101Capítulo 22 ...........106Capítulo 23 ...........111Capítulo 24 ...........118Capítulo 25 ...........121

Capítulo 26 ...........125Capítulo 27 ...........130Capítulo 28 ...........133Capítulo 29 ...........138Capítulo 30 ...........141Capítulo 31 ...........148Capítulo 32 ...........156Capítulo 33 ...........161Capítulo 34 ...........167Capítulo 35 ...........171Capítulo 36 ...........176Capítulo 37 ...........181Capítulo 38 ...........184Capítulo 39 ...........187Capítulo 40 ...........192Capítulo 41 ...........197Capítulo 42 ...........202Capítulo 43 ...........206Capítulo 44 ...........209Capítulo 45 ...........212Capítulo 46 ...........216

Capítulo 47 ...........222Capítulo 48 ...........226Capítulo 49 ...........232Capítulo 50 ...........236Capítulo 51 ...........242Capítulo 52 ...........247Capítulo 53 ...........252Capítulo 54 ...........256Capítulo 55 ...........261Capítulo 56 ...........264Capítulo 57 ...........271Capítulo 58 ...........275Capítulo 59 ...........279Capítulo 60 ...........283Capítulo 61 ...........288Capítulo 62 ...........293Capítulo 63 ...........300Capítulo 64 ...........303Capítulo 65 ...........308Capítulo 66 ...........312

Capítulo 67 ...........316Capítulo 68 ...........320Capítulo 69 ...........325Capítulo 70 ...........329Capítulo 71 ...........333Capítulo 72 ...........339Capítulo 73 ...........344Capítulo 74 ...........350Capítulo 75 ...........354Capítulo 76 ...........359Capítulo 77 ...........365Capítulo 78 ...........369Capítulo 79 ...........373Capítulo 80 ...........377Capítulo 81 ...........381Capítulo 82 ...........387Capítulo 83 ...........391

Capítulo 84 ...........395Capítulo 85 ...........400Capítulo 86 ...........406Capítulo 87 ...........410Capítulo 88 ...........416Capítulo 89 ...........422Capítulo 90 ......... 427Capítulo 91 ...........431Capítulo 92 ...........436Capítulo 93 ...........440

Capítulo 94 ...........445Capítulo 95 ...........449Capítulo 96 ...........453Capítulo 97 ...........458

Sobre o autor ......462

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Manifesto a todos os ciclistas do mundo

Meus caros e amados irmãos do pedal. Escrevi este livro em home-

nagem a vocês e como um agradecimento a tudo que o ciclismo me

deu ao longo desta vida pedalando. Meu corpo não termina em meus

pés, mas sim nas rodas de minha bike e no meu guidão. Eu só me senti

completo no dia em que sentei em cima de um selim. Eu só fui realmente

feliz com minha magrela, colada ao meu corpo. Sempre acreditei na

força criativa da imaginação. É minha única crença. Através dela pude

viver intensamente experiências sensoriais autênticas. Sem elas seria

impossível superar a limitação da nossa realidade material e de nossa

mecânica e rotineira vida coletiva. Então, eu criei Ayon. Ele é o ciclista

que se tornou um guia de ciclonautas recordados para retornar a Konarak

– a nossa pátria celeste. Não é um céu indecifrável, de um universo indi-

ferente e independente do homem, mas o reino absoluto da imaginação

em que tudo se torna mágico e possível para ele.

Sempre me maravilhei com o ser humano ao compreender sua con-

dição existencial. E ver como, apesar dela, ele cria significados e uma di-

reção a seguir. Mesmo quando se vê diante de uma debilitante sensação

de insignificância, inutilidade pessoal e do absurdo da própria realidade,

o homem tem um impulso para existir e uma vocação inata a ser livre

para tornar-se o rei de seu próprio reino. Não existe ser mais solitário do

que ele. Mesmo quando tem toda a torcida ao seu lado, vive encarcerado

em seu corpo submetido à inexorável força da gravidade. Como ciclista,

ele pode exercitar esta liberdade que lhe pertence como um bem que lhe

foi dado pela vida ao nascer. Pedalar é se conscientizar da potencialidade

do movimento que está sempre associado a ela. Quanto mais o ciclista

se move pedalando, mais vontade tem para se movimentar. É preciso

acertar a pedalada para não patinar e perder a tração. Temos que manter

os pés no pedal e os olhos fixos no horizonte de possibilidades. Os olhos

e o coração devem estar abertos para ver o grande vazio diante de nós.

O real, em uma prova ciclística, não está na saída nem na chegada, ele se

impõe na travessia. Conclamo vocês a uma heroica jornada de recusa a

acomodar-se a esta inaceitável falta de sentido cósmico.

Um ciclonauta é um ciclista que faz uma escolha consciente do que quer

ser. É um ser que se esforça para se tornar aquilo que deseja: um campeão

para si mesmo. Seu querer não é uma escolha individual egoísta, mas do

ser por si próprio, que o será por todos os homens. Ele pode se modelar

para se tornar o que imagina que todo homem deveria ser. Ele cria va-

lores a partir de seu exemplo, de sua experiência e de seus sentimentos.

Assim, torna-se responsável por ele e por todos os outros. Mas isto, sabe-

mos, não é fácil de ser alcançado. A autoconsciência e a compaixão pelo

outro sempre terá a resistência de nosso ego, que é uma defesa de nossa

natureza animal que quer continuar a viver a todo custo. Todo ciclista

que já pedalou contra o vento sabe como a resistência do ar o impedirá

de desenvolver maior velocidade durante os momentos mais tensos de

uma competição. Por isto, temos que desenvolver uma postura corporal e

uma concentração mental capaz de garantir uma aerodinâmica que corte

o ar de modo a permitir pedaladas mais rápidas com menos esforço. No

entanto, não podemos nos iludir, quanto mais rápido pedalarmos, maior

será a resistência do ar e mais energia será despendida. Para nós e a nossa

vontade, não existe um lugar tão baixo que não possamos entrar nem um

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lugar tão alto que não possamos escalar. Podemos atingir todos os níveis

da matéria em que este mundo foi forjado, dos abismos às estrelas mais

distantes, do mais fundo oceano ao extremo de nossas galáxias, chegan-

do ao centro de todo o mistério, iluminando com nossas consciências a

imensidão das trevas. Entre o fundo e o topo, não há parada, não há acam-

pamento base, continuamos a pedalar – para sempre.

A roda de uma bike tem vários pares de opostos quando gira. Tem o

movimento resultante da pedalada e a estabilidade de se manter perpen-

dicularmente ao solo. Tem o equilíbrio instável e, ao mesmo tempo, o

desequilíbrio que leva à queda. Tem o efêmero do instante que passa e o

desejo de ir além, de alcançar o infinito. Tem os limites da força da gra-

vidade e da resistência do ar e, em paralelo, o ideal de se mover além do

tempo, na eternidade. O movimento, gerado na periferia do aro externo,

na pele dura do pneu, é a sua razão de ser. Ele seria impossível sem a es-

tabilidade do centro fixo do eixo na forca. Em seu interior, definido pelo

raio do círculo, há um potencial vazio que pode nos levar onde nossa

imaginação desejar.

A humanidade é um colossal pelotão de bilhões de ciclistas correndo

contra o relógio da morte. A formação deste pelotão muda de acordo

com o vento – a evolução da consciência individual em contraponto à

consciência coletiva. Um forte vento contra exige um gasto de energia

maior, que espalha o pelotão.

Torna-o longo e esticado. Um vento suave e a favor torna-o mais com-

pacto e uniforme. Mas, se surgirem ventos laterais, o pelotão se fragmenta

formando franjas escalonadas. Temos que conhecer esta dinâmica para

disparar em uma fuga solitária, insuperável, para ir além dele e ser vi-

torioso. Os pés devem se sintonizar com as mãos e os braços. Estes de-

vem relaxar e flexionar ligeiramente para absorver com maior facilidade

o impacto do solo. É preciso encontrar o ritmo certo – a pedalada de

Okkham. E tudo se revelará...

Henry Kríakos

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Capítulo 1

yon, o velho visionário. Era assim que ele, um ciclista muito

experiente, era chamado. Quase um mito entre os fanáticos

esportistas dos mais concorridos tours da Europa, da Ásia e

dos Estados Unidos. Tinha 72 anos quando Jonahas dele se

aproximou, motivado pela lenda da pedalada de Okkham.

Era uma história que passava de boca em boca, sempre en-

volvida em uma misteriosa fantasia sobre uma passagem secreta que se

abria na mente de um ciclista por um determinado esforço muscular re-

petitivo. Esta abertura seria perceptiva e alteraria completamente a lógica

humana do espaço e do tempo. Exigia treinamento físico e intensa con-

centração mental.

Jonahas aproveitou o grande Giro d’Itália para a oportunidade de um

contato presencial com Ayon. Este tinha sido convidado para uma home-

nagem aos vencedores, pois sua presença, além de exemplo vivo, era um

conforto sensorial, pela paz que emanava de seus olhos de cor azul-vio-

leta. Os mais jovens ciclistas o respeitavam como um herói do passado.

Ayon era capaz de reconhecer um exilado de Konarak desde o pri-

meiro aperto de mão. Jonahas estremeceu ao ver o velho ali, em carne e

osso, o mito encarnado. Aquele que atravessou o Grande Portal Dourado

e voltou vivo e mentalmente sadio. O único ciclista que conhecia o misté-

rio da pedalada de Okkham. Teve vontade de realizar um gesto repetitivo

do condicionamento infantil, de quando passava diante de um templo:

curvar-se para um solene cumprimento diante da presença do Insondável.

Mas se conteve e inclinou-se para frente, insinuando um respeitoso e

afetuoso desejo de abraçá-lo.

– Venha comigo! – disse Ayon, de forma impositiva, segurando em

um dos braços de Jonahas. Levou-o para perto de uma bicicleta prateada,

entre muitas que estavam ali, no improvisado galpão de manutenção,

onde vários ciclistas engraxavam suas correias. Escolheu qualquer uma

ao acaso e fixou sua mão no guidão de aço carbono. Olhou firmemente

nos olhos de Jonahas:

– Este é seu apoio. Esta é sua base. Esta é uma boia no maremoto que

te aguarda. Não há lugar mais seguro no desespero, por mais que você

pedale, por mais longe que você corra... Este é o ponto de retorno, o

único lugar fixo na areia movediça ao seu redor.

Jonahas sentiu um calafrio que percorreu a extensão de sua colu-

na. A lembrança das narrativas de outros ciclistas, perdidos em regiões

desconhecidas dos tours, passou como um filme em sua mente. Pensou

sobre a pedalada de Okkham e o destino que tiveram aqueles que a pro-

curaram. Eles não suportaram o desvio para os caminhos paralelos que

se abriam involuntariamente, sempre que não havia confiança e firme-

za no pensamento ou qualquer sentimento de dúvida ou medo animal

diante do desconhecido.

O encontro com o velho recordado, como também era chamado Ayon,

tinha o sabor de uma evocação da memória ancestral. Um passado lon-

gínquo da era primordial. O foco original, de onde tudo emana, surgia

como uma convocação à responsabilidade nas atitudes por experimentar

um intenso contentamento visionário e a percepção do significado vital

que move toda a engrenagem do universo. A consciência da existência de

um véu espesso que cobria a única realidade e o vislumbre do surgimen-

to da Grande Roda da Ignorância e das Ilusões, que seduz as multidões a

movimentos repetitivos, falsos e vazios, manifestou-se como um punhal

cravado no crânio de Jonahas. Uma dor insuportável se instalou em suas

têmporas, assim como a presença da conhecida náusea, que muitas vezes

sentira ao longo de sua vida de homem solitário em busca de um sentido

para o que fazia no mundo.

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Ayon sabia o que se passava na mente de Jonahas e compartilhou com

ele este estado com a cumplicidade de quem já foi também um exilado e

agora é um recordado. Lembrou-se de Tarapoto, no Peru, e de sua inicia-

ção com o xamã Bibiano em plena selva amazônica.

Ayon tinha sido enterrado de pé, na terra úmida, em um buraco ci-

líndrico que apertava toda a extensão de seu corpo, liberando apenas a

cabeça a partir do pescoço.

Açoitado pelas dolorosas ferroadas de centenas de mosquitos carapanan,

ficou um longo tempo envolvido pelo zumbido constante deles, como o

soar de um mantra natural, a voz da selva. O calor aumentava até 52 graus

à sombra. No entanto, era apenas a antessala necessária para o que viria a

seguir. O silêncio criou uma invisível esfera de irremediável solidão. Não

perdera a consciência, mas a possuía de outra forma. Não se localizava

no espaço. Não era uma consciência de lugar, de situação do corpo com

relação a outros corpos ou coisas. Não era recordação de vivências regis-

tradas na memória. Era uma consciência de despojamento, mas não de

perda. Havia um consentimento deliberado de entrega sem resistência.

A sua natureza profunda era a de uma consciência centrada em si mes-

ma, mas difusa na amplitude de uma extensão sem descontinuidades.

Não existiam mais contornos ou fronteiras. Havia um conhecimento da

absoluta ausência de tudo e de todos. E tinha a sedução fascinante do

vazio. Uma vacuidade que se estendia para intervalos que se tornavam

cada vez maiores, mas sem nenhuma possibilidade de mensuração ou

comparação, pois não havia mais referências que as garantissem. Sentiu

uma obsessiva carência por matéria, uma espécie de fome animal. Era o

último reduto de resistência vinda diretamente das origens biológicas.

O universo não costuma oferecer algo sem receber nada em troca. Uma

inexorável lei de equilíbrio entrou em ação. Abriu-se lentamente, mas de

forma contínua, a comporta para a obscura região da Terra Incógnita de

sua mente.

Foi sendo invadido por um sono crepuscular. As pálpebras vedavam

os olhos e uma outra visão ia se conformando. Sua musculatura estria-

da, tensa pelo confinamento de seu corpo no buraco em que estava en-

terrado, relaxou devido à alteração química de oxigênio e hidrogênio

no sistema de enzimas do cérebro. Desta forma, garantiu-se das possí-

veis perturbações no hipotálamo por causa da interferência no trabalho

do córtex.

Na esfera mental, uma euforia antecedeu uma experiência além do

tempo e do espaço, além das muralhas da razão e, a seguir, um percurso

nas regiões mais remotas da consciência individual – a união com um

Subestrato Supremo. Ayon nada podia fazer, apenas esperar. Uma nova

forma de conhecimento, não traduzível por palavras ou imagens, foi se

manifestando. Um conhecimento sem posse, sem controle por recursos

tradicionais de poder humano. Algo que invade a mente sem autorização,

sem visibilidade, sem ordem, sem direção nem sentido. Uma invasão e

ocupação de direito por natureza, mas sem presença. Uma ausência ab-

solutamente imperceptível. Outro ser, sem personalidade, sem recortes

nem vestígios reconhecíveis. Outra consciência, independente da dele,

como uma duplicação de sua própria, mas incognoscível.

Ayon se sentiu observado por uma ausência. Participava dela por

instinto, recorrendo a forças movidas por energia vital, despertadas de

uma fonte primordial, mas não localizável. Rastejava por um solo sem

substância, como se fosse uma serpente cega conduzida por atrito de seu

corpo com outro de extensão infinita. Tudo isto cessou repentinamente,

como se uma dimensão inalcançável pela percepção fosse comprimida

em um invólucro orgânico duro. Ayon imaginou que se tratava de seu

próprio corpo encostando na superfície interna do buraco. No entanto,

era apenas um recurso de projeção mental inercial, querendo preservar

a imagem corporal dominante consolidada por anos de convivência com

o próprio corpo desde o nascimento. Uma escuridão úmida e um forte

cheiro de sal, combinado com o exalar de secreções de algas marinhas,

configuraram um ambiente conhecido.

Era o fundo do mar, com certeza. O confinamento era na estranha cara-

paça de uma ostra. Como teria cabido ali? Só poderia ser uma ostra gigante.

De fato, não havia lógica alguma de proporção. Por uma estreita e exígua

fresta, resultante de um deslocamento milimétrico entre as duas conchas

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da carapaça, por ação de fortes correntes marinhas, conseguiu perceber

uma fraca incidência luminosa vinda da superfície banhada pela luz solar.

Esta migalha de luz lhe deu algum alento e esperança de se libertar.

Tinha se tornado uma ostra. Este era o fato real ou imaginário. Pensou

na possibilidade de ter se tornado uma pérola em formação, toda branca

e polida. Uma preciosidade a ser libertada pela ganância mercantilista de

pescadores. Para isto, precisou crescer e deixar de ser uma gosmenta e

escura substância gelatinosa de proteínas e minerais. E teve que endure-

cer, concentrar-se em movimento circular ao redor de um eixo como as

rodas de uma bike. Precisou formar uma sólida esfera.

Sentia que havia uma forte razão em se tornar esta forma conhecida

e presente na conformação física de muitos elementos do universo. A

esfera concentraria em seu centro o eu do eu. E não permitiria trans-

bordamentos. Lá seria possível se afirmar, se fortalecer e crescer além

de si mesmo. O único caminho seria através da luz solar. Soltou-se do

fundo, lançando-se em alguma corrente ascendente para alcançar a

superfície do mar.

Assim, absorveu calor e energia do sol sem refrações, mas apenas in-

cidências luminosas diretas. Para conseguir isto, precisou, aos poucos, se

abrir para esta luz vinda do alto. O mundo ao seu redor transformou-se

em um inquietante esplendor de luzes.

Inicialmente, os raios solares encontraram uma superfície rugosa, mole

e escura, de modo a absorver a energia com poucas perdas. De dentro

para fora, esta absorção clareou e poliu a superfície da esfera para for-

mar a pérola. Após sucessivos dias de intensa ação solar, a umidade dessa

substância gelatinosa foi reduzida, desidratando-se e transformando-se

em grãos de silício. O endurecimento seguiu irreversivelmente. A esfera

se formou e, com mais incidência luminosa, iniciou um processo inver-

so: da absorção para a reflexão da luz. Ayon – a ostra – abriu-se totalmen-

te e liberou o esplendor e o brilho de sua pérola.

Ele se conscientizou de sua missão depois de absorver a luz. Estava

pronto para refleti-la a outros recordados. Tornou-se definitivamente

uma pérola.

Capítulo 2

ra comum ouvir de ciclistas experientes, premiados em tours

importantes, falar do mito da pedalada de Okkham como

algo raro de acontecer pela exigência de duas coisas funda-

mentais: preparo físico e concentração mental. A primeira

condição não seria difícil para qualquer atleta do pedal, mas

a segunda exigiria algo mais próprio de um recordado.

Ayon falava aos companheiros bikers sobre uma determinada veloci-

dade a ser alcançada através da combinação da periodicidade dos ciclos

dos pedais com a respiração e os batimentos cardíacos:

– A mente do ciclista deve, neste intervalo de tempo, ser esvaziada,

principalmente de qualquer traço de vaidade pessoal ou exibicionis-

mo. O foco é o caminho à frente. A mente tem que ficar em estado de

atenção. Ele é o resultado de uma função primitiva do cérebro de qual-

quer animal. A bicicleta deve ficar firmemente apoiada sobre a terra,

como as garras de uma raposa veloz, em fuga de uma possível caçada

humana. O corpo nesta circunstância recua à sua memória animal e

sintoniza com o conhecimento instintivo acumulado em todos os cor-

pos de animais que viveram ao longo de milhões de anos. Ele sabe

como proceder a cada movimento para manter o equilíbrio diante da

contínua ação da gravidade. Quando a velocidade aumentar com a ace-

leração progressiva, vários corpos de animais podem ser evocados. A

E

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águia ou o condor estará presente para que suas enormes asas suspen-

dam o ciclista para se apoiar o mínimo possível sobre o solo e assim

acelerar mais.

Ayon tinha consciência de como seu corpo armazenava experiências

vividas e incorporadas pela matéria e moldadas na vida animal ao longo

da evolução.

– O treinamento físico do ciclista não se realiza apenas na muscula-

tura e nos ossos dos quadris, dos braços e das pernas, mas sim através da

mente e dos sentimentos. Não há mente sem ações motoras. Uma parte

do funcionamento do sistema nervoso central evoca a memória social

histórica em que a tecnologia da mecânica e da cinemática, filtradas

pela razão analítica e pela razão prática, dão conta de procedimentos

técnicos da própria bicicleta. A outra parte, ao se esvaziar, evoca o passa-

do biológico do corpo. A mente, então, teria um espaço entre estas duas

forças para mover-se em direção aos planos imateriais, onde se abriria

a passagem secreta e apareceria o Grande Caminho e a moldagem da

bicicleta do ciclista com a bicicleta dourada.

Segundo Ayon, um percurso ciclístico pode ser realizado durante o

dia, quando a força masculina do sol distingue e define tudo com cla-

reza. Mas, num percurso à noite, teríamos a sutileza da lua. A força fe-

minina cuja luminosidade suave é capaz de misturar e fundir as coisas.

– Alcançar a pedalada de Okkham pode ser por meio de duas pos-

sibilidades. A primeira é acordado, vigilante, com preparo físico, con-

dicionando o corpo a movimentos determinados em uma sequência

rigorosamente repetida centenas de vezes. Em verdade, a base desta

pedalada é um ritmo cíclico que se sintoniza com a órbita da Terra ao

redor do Sol e, simultaneamente, com o universo. Trata-se de uma pul-

sação, um batimento cardíaco de um ser vivo que tem uma natureza a

ser conhecida e convivida com a consciência.

A outra possibilidade, tão intensa e eficiente quanto a primeira, é

um percurso para dentro, semelhante a uma meditação, concentran-

do-se o ciclista em um ponto imaginário no vazio da mente. Todo

pensamento não para nunca, enquanto estamos vivos, de falar dentro

da gente. Teria que ser desviado para um trilho racional e prático.

O ciclista o faria, por exemplo, através dos olhos, direcionando-os à

roda da frente, seguindo a forca, embaixo do guidão, acompanhando

centímetro por centímetro seu movimento, apoiado no percurso, a

estrada ou o caminho de terra. É a roda dianteira que guia a bicicleta.

A seguir, lentamente conduzindo a visão para a linha do horizonte.

Repetindo várias vezes, de volta para a roda e assim até conseguir

desviar a atenção do pensamento normal, que está associado a no-

ções de espaço e tempo. A roda de uma bike, ao girar, não cessa de

desenrolar possibilidades existenciais de forma interminável. Con-

templando-a, o ciclista percebe que a vida é um processo cósmico de

mistério e assombro.

O pensamento, por vezes, não nos conduz a parte alguma. É cí-

clico, como uma roda de bike girando na lama, no vazio. Em outras

palavras, leva-nos a toda parte, quando estimulado pela imagina-

ção. Há outros pensamentos que são construídos para rodarem em

trilhos da razão prática. Estes, por mais longa que seja a viagem,

encontrarão a estação ou a rotunda de locomotivas. É necessário o

sinal vermelho que os pare! Seria como derreter cubos de gelo, ex-

pondo-os a uma temperatura mais alta e, assim, transformando-os

em água, em um fluxo contínuo. Cada pensamento é como um cubo

de gelo, solidificado através de frases completas. É preciso dissolvê-

-las, derretê-las até se transformarem em uma corrente de água. Fei-

to isto, o vazio se instala. Imediatamente, o ciclista se entregaria à

procura do ponto de apoio.

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Este é o cruzamento de várias linhas de força, ou seja, de dire-

ções de diversos tipos de energia, que quando combinadas lançam

a mente humana para dentro do Grande Caminho. Abrem-se as

portas da percepção e as cortinas espessas da ilusão desaparecem,

dissolvendo-se no ar. O cenário da lógica cotidiana é desmontado

fio por fio e o ciclista se vê diante da única realidade existente: o

nada absoluto!

A sensação é de morte eminente, um progressivo frio sacode o

corpo em convulsões, como se um tecido de grossos e finos fios

fosse desmembrado milímetro por milímetro. O calor normal do

corpo não tem como ser contido, dissipando-se e baixando a tem-

peratura de forma rápida. Mas é um frio conhecido pelo instinto

animal: a ausência da circulação do sangue no instante inevitável

da morte.

Observando de fora, durante um tour no qual o ciclista estives-

se pedalando, o que veríamos seria apenas um corpo associado

a um mecanismo em movimento contínuo. Este seria um plano

de observação nas coordenadas de espaço e tempo. Mas o ciclis-

ta, enquanto ser imaterial, estaria em outros planos, pedalando a

bicicleta dourada, a única forma de acesso ao Grande Caminho. A

pedalada de Okkham suspenderia o corpo e a bicicleta. Acontece

que a aparência física tem uma continuidade, um peso, uma forma

limitada apenas em nossa mente, com o trabalhar da consciência

em estado de vigilância e de acordo com o pensamento coletivo

dominante, ou seja, estar de acordo é estar acordado. Atravessando

esta pele ilusória condicionada por noções históricas e geográficas

de tempo e espaço, não encontramos nada sólido, apenas conexões.

E além delas, quando se dissociam e se transformam somente em

possibilidades de ser, veremos que não há nada, apenas um imenso

vazio. Mas o recordado cujo estado de percepção tenha sido altera-

do não ficará retido em seu próprio e pequeno universo operacio-

nal. Ele sairá de si mesmo em contínua contemplação e se sentirá

pertencente a uma nova ordem dos fatos da existência, assumindo

ser o herdeiro do universo em que toda a força das águas de todos

os oceanos corre em suas veias e que as estrelas, os planetas e as

galáxias serão parte de seu organismo.

Ayon, quando se via diante deste momento de sua fala a um ci-

clista recordado em treinamento, sempre se empolgava e uma von-

tade de acompanhá-lo em suas tentativas de alcançar a pedalada de

Okkham era inevitável. Assim, ele se sentia em constante forma.

Era tomado por uma alegria feroz, sobre-humana – um contenta-

mento visionário.

Era um desejo de compartilhar o instante em que a razão entra

em pânico, não tendo como se apoiar em ideias consagradas e mui-

to práticas da vida humana, no plano físico. Como conviver com a

consciência do absurdo e do vazio?

Ayon sempre se preocupava com os ciclistas ansiosos para alcan-

çar a pedalada de Okkham apenas através do obsessivo e meticulo-

so treinamento físico. O maior perigo, que era comum entre eles,

era o desvio para os percursos obscuros e imprevisíveis do fana-

tismo e da arrogância. Alguns acabavam arremessados para o Vale

das Mentes Desvairadas, sendo tragados pelo vórtice da loucura e da

perda de controle de si mesmo, com um desequilíbrio psicológico

como consequência, a maioria das vezes, irreversível. Muitos en-

louqueciam, outros ficavam completamente alheios a tudo e aliena-

dos do convívio com outros seres humanos. Ayon já havia passado

por esta experiência trágica sozinho, sem ajuda externa. Teria, no

fim, não permitido que sua mente se distraísse, conseguido retor-

nar do Grande Vazio saudável e, assim, adquirido a sabedoria da

humildade e da paciência.

Page 12: Os ciclonautas

Capítulo 3

yon tinha lido muito em toda a sua vida. Gostava, des-

de criança, de exercitar a leitura de qualquer coisa que

caísse em suas mãos, até mesmo as bulas de remédio.

Divertia-se com aqueles nomes complicados e mis-

teriosos. Aos poucos, foi se defrontando com grossos

livros de filosofia e ciências. Os grandes mestres do

conhecimento tinham se tornado seus irmãos mais velhos. Filho

único de pai pastor, não era difícil entender como se cercava de uma

família imaginária, formada de sábios e guias para sua mente inquie-

ta. Seus preferidos eram Dharwyn e Karthesius.

O primeiro era o Grande Mestre do Universo como um Organis-

mo, e o segundo, o Grande Mestre do Universo como um Mecanis-

mo. Sem dúvida estes dois pensadores iriam moldar sua vida de

recordado. O terceiro vértice deste triângulo afetivo e intelectual

recaiu sobre a projeção da forte presença paterna no que se refe-

ria à ideia de um suposto ser insondável, inatingível, supremo

e criador em tudo que se relacionava com o plano invisível da

existência humana.

A infância de um recordado sempre tinha um traço ca-

racterístico: uma forte timidez e dificuldade de se relacio-

nar com os outros. Ele se isolava sempre que podia e se

escondia debaixo da sólida escrivaninha do pai, feita de

uma madeira escura e perfumada. Muitas vezes, sem ser

percebido pela chegada súbita do pai, continuava oculto, e

sob a proteção da tampa larga da escrivaninha, testemunha-

va o estranho diálogo do pai com uma autoridade sagrada

invisível, com a qual se detinha a resolver enigmas durante

várias horas.

Estes três componentes do conhecimento o conduziram

em uma escalada gradual à ascensão mental, da criança ao

adulto sábio que se tornou aos poucos.

Ao ler, ou devorar, a teoria da evolução do Grande Irmão

Dharwyn, Ayon teve um rápido momento de iluminação em

sua mente, sempre alerta ao estímulo de seus heróis. Entendeu

que seu corpo físico tinha uma memória de origem animal,

vegetal e mineral. Além desta consciência, começou a per-

ceber e observar o universo como um ser vivo em cons-

tante evolução, dotado da capacidade de pensar e se auto-

-organizar. Este poderia ser acessado através de recursos

físicos, mudando o ritmo de seu organismo e sintoni-

zando-o com os dele. Mas precisava de um acelerador,

algo que fosse intimamente ligado ao corpo e acionado

por ele. Foi assim que, entre tantos objetos mecânicos,

a bicicleta surgiu como a simbiose perfeita entre o or-

ganismo e o mecanismo. Desde então, não se separou

mais dela, que se tornou o meio para alcançar e pene-

trar em regiões insondáveis da mente humana. Come-

çou com a pequena bicicleta vermelha que ganhou

aos sete anos, em seu aniversário. Morava em uma

cidade pequena e ia de bicicleta para a escola. Isto

fez surgir uma forte intimidade com o pedal,

criando uma formação muscular de base.