A crise mundial de 2008 e suas consequências econômicas, sociais e geopolíticas
Os ciganos sob as mudanças geopolíticas do continente ... · Embora o anticiganismo esteja...
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Os ciganos sob as mudanças geopolíticas do continente europeu no final do
século XX e início do XXI: duas décadas de perseguições e falta de direitos
Jonathan Mendonça
Universidade do Estado do Rio de Janeiro
Resumo
O presente trabalho tem como objetivo analisar a vida dos ciganos em meio às mudanças
geopolíticas e sociais que movimentaram o continente europeu no final do século XX e início
do XXI. Se a queda do bloco socialista foi influenciadora numa perda de poucos direitos que
os ciganos galgaram nos países do leste europeu no período pós-segunda guerra mundial e
também perceber a importância que ONG’s tiveram junto aos ciganos numa busca de
melhores condições e direitos junto aos governos e posteriormente junto à União Europeia.
Palavras Chave:
Minorias étnicas, Ciganos no leste europeu, União Europeia, Nacionalismos e Sociedades,
Direitos Humanos.
Introdução
O século XX deixou marcas profundas no continente europeu, com duas guerras
mundiais, os horrores do nazismo e posteriormente a cortina de ferro que durante a Guerra
Fria dividia os países entre capitalistas e socialistas. Contudo, o final do referido século
também foi marcado por grandes transformações no cenário geopolítico europeu, a queda do
muro de Berlim e o fim da URSS, levou os países europeus do centro/leste que ora faziam
parte do bloco comunista começarem sua transição para o capitalismo e aproximação com
OTAN e Comunidade Europeia1.
É nesse plano de fundo que o trabalho aqui proposto se desenvolve. Já de início pode-
se notar que o termo “cigano”, deriva de uma palavra grega Atsingani (que significa não
toque/indesejáveis), foi muito utilizado para se referir a esta minoria no período bizantino.
Assim como as palavras Gitanos e Gypsy, que derivam de Egiptano e Egyptian (egípcio)
porque acreditava-se que os ciganos eram provenientes do Egito (GUIMARAIS, 2012). Os
1 A União Europeia (UE) só é instituída em 1992 com a assinatura do Tratado de Maastricht. Disponível em:
https://europa.eu/european-union/law/treaties_pt
ciganos desde que chegaram ao continente europeu por volta do ano 1.300 D.C. sofreram
perseguições e foram estigmatizados pela sociedade dominante. Todavia, no século XX foram
perseguidos e incluídos como povos indesejáveis assim como os judeus e cerca de 500 mil
ciganos foram mortos pelos nazistas nos campos de concentração, que ficou conhecido como
porajmos2.
Desde a segunda guerra a vida se manteve difícil para os ciganos nos países europeus,
no Oeste o nomadismo (uma das principais características dos povos ciganos) continuou
sendo permitido, contudo se tornou cada vez mais difícil de ser feito dado às leis opressivas
criadas por esses países. Mas na Europa Central e Oriental, em que maior parte dos países era
parte do bloco comunista, as condições eram muito piores e parte do processo de admissão
desses países na União Europeia dependia em parte da melhoria de condição de vida dos
povos ciganos que viviam em seu território.
O Fim da Guerra Fria
Com o colapso do comunismo e com o fechamento das indústrias pesadas, muitos
europeus dos ex-países comunistas perderam seus empregos, esse período histórico fez com
que a situação dos ciganos na Europa piorasse muito. Os ciganos foram os mais afetados por
essa instabilidade econômica que se instaurou nos países que ora eram comunistas. Eles não
tinham como competir no mercado de trabalho que estava se tornando cada vez mais exigente,
pois não tinha quase nenhuma qualificação, já que o antigo regime comunista não havia
conseguido leva-los ao mesmo nível de conhecimento do restante da população em termos
educacionais, por outro lado, porque as agências de recrutamento mantinha uma política de
discriminação com os ciganos (que marcavam com “C” de cigany os termos dos roma) para
alertar os muitos empregadores preferiram excluir os ciganos do mercado de trabalho (
GUIMARAIS 2012, pp. 44). Os Salários do período comunista foram substituídos pela
criação de auxílios sociais e pagamentos do seguro-desemprego, levanto a uma fomentação
dos ciganos como parasitas do sistema de bem estar social. Culminando num aumento da
pobreza e sentimento anticigano nesses países.
2 Porajmos é um termo cunhado pelos povos ciganos que significa literalmente devorar e se refere ao período
histórico do Holocausto. Disponível em: http://www.embaixadacigana.org.br/porrajmos_holocausto_cigano.html
Como referido acima, o fim do bloco comunista trouxe à tona um aumento do
anticiganismo nos países que formavam o bloco, a popularização do racismo contra ciganos
se espalharam por todas as camadas sociais dos países da Europa Centro Oriental:
Segregação, pogroms, agressões físicas e acusações das mais diversas formas. Margaret
Brearley (2001) afirma que após 1989 mais ciganos foram assassinados, perseguidos e
tiveram suas casas incendiadas do que todo o período comunista e o fim da segunda guerra
mundial. Em muitos dos linchamentos os policiais eram participantes ativos dos ataques3.
Na Bulgária no período inicial de transição do comunismo para o capitalismo as
tensões sociais entre búlgaros e ciganos foram atenuadas. Porém, os ciganos continuaram
sendo discriminados e a sofrer violência e o padrão dominante na sociedade búlgara voltou a
ser o desprezo e o tratamento como um povo inferior que deve conhecer o seu lugar
(MARUSHIAKOVA; POPOV, 2001). Contudo, muitos ciganos conscientes dos seus direitos
civis, se recusam a aceitar essa posição humilhante e discriminatória, acirrando o conflito com
os búlgaros que insistem em querer dominá-los, levando as relações sociais a uma nova fase
de desgaste.
Atualmente na Europa Centro Oriental uma onda da extrema direita ganha força e
cenário para perpetuar seu discurso de ódio e perseguição aos ciganos, seguido por um medo
de um possível domínio da região pelos ciganos, que segundo eles, que utilizariam meios
perigosos e clandestinos para obter poder. Utilizando termos como “violência cigana”
“explosão demográfica” e “máfia cigana”, racistas instigam seu ódio e fomentam a
segregação da comunidade romani.
Os ciganos retornaram ao status de párias que tinham antes do comunismo e a rejeição
na região tornou-se universal, pode-se dizer que há uma tensão real entre os ciganos e a
maioria da população e isso pode levar a conflitos interétnicos, levando muitos ciganos a
imigrar. Nesse período começou a terceira onda migratória, que ainda está em curso, que
levará a um novo quadro dos ciganos na Europa. As migrações ocorrem principalmente da
Europa Oriental para a Europa Ocidental, mas eles também buscam refúgio na América do
Norte. A chegada de ciganos nos países da Europa Ocidental levou a reações xenófobas das
3 Informação retirada do artigo de Margaret Brearley The persercution of Gypsies in Europe (2001, PP. 592-
593).
populações de Portugal e Irlanda, por exemplo, e na França e Itália levou a políticas
anticiganas.
Embora o anticiganismo esteja profundamente enraizado no continente europeu, o fim
da contenção do ódio pelo controle do estado comunista não é suficiente para explicar a
amplitude dos ataques contra os Roma e a abstenção das forças de segurança desses estados
contra os ataques. Não se deve entender que o fenômeno sempre esteve lá, mas foi contido
para a manutenção do estado comunista.
Os países do antigo bloco comunista passaram por diversas experiências políticas, de
separações pacíficas a guerras étnicas. Novos estados com ideologias capitalistas surgiram
com novas orientações geopolíticas. Alguns Estados que antes estavam sob a zona de
influência de Moscou passaram a fazer parte da União Europeia, tendo como centro
econômico e político as potencias europeias. Concomitante a isso, reapareceu nesse cenário o
nacionalismo com intensidade, como uma possível resposta à fragilidade geopolítica que se
encontravam esses Estados.
Como Nação e Estado geralmente não coincidem, esses estados procuraram fortalecer
suas formações homogêneas através da diferença entre Nação e Estado. Os ciganos
considerados estrangeiros teriam, de acordo com esse pensamento nacionalista e racista que
sumir. Simultaneamente, as representações racializadas das minorias a fim de isolá-las
contribuem para a construção da identidade nacional desses países.
O componente definidor da formação das nações no Leste Europeu passou a ser a
noção étnica e imutável e bem demarcada. Enquanto os mitos étnicos de uma origem comum
foram cultivados no Leste Europeu, no ocidente eles se debilitaram, possibilitando que cada
indivíduo possa ser parte da nação. Mas isso não significa que as sociedades ocidentais
tenham eliminado por completo o componente étnico de suas concepções de Estado-Nação.
Os ciganos são o exemplo de persistência de rejeição em relação ao “outro” e a abordagem de
multiculturalismo se refere, muitas vezes, a um conjunto de distintas categorias relacionadas a
aspectos raciais/étnicos.
A continuação do estereótipo cigano e a visão subalterna dentro da sociedade civil
europeia
O estereótipo cigano foi reforçado ao longo dos séculos e de certa forma já é algo que
está associado às sociedades europeias. Como já visto na seção anterior, com o fim da guerra
fria os Estados do centro/leste europeu não fizeram políticas que incluísse a já marginalizada
população de ciganos. De acordo com Angela Kózcé4 (1999), examinar as questões de poder
e posicionalidade em relação à classe, gênero, etnia e outros condutores de identidade são
fundamentais para uma compreensão mais sutil das hierarquias inseridas no domínio da
sociedade civil europeia. Pode-se destacar uma teoria importante nesse âmbito, o
construtivismo, que vê na linguística certa forma de construção da realidade social que resulta
em práticas discursivas que compõem as identidades e interesses dos agentes. Os Estados e
outros atores se guiam pelo autointeresse, contudo eles continuamente redefinem seu
significado dado que suas identidades podem sofrer alterações (ZEHFUSS, 2004).
A explicação construtivista explica o porquê da marginalização das populações
ciganas, a década de 1990 foi marcada nos países do Leste Europeu por uma reconstrução de
identidade e uma nova forma de enxergar o Sistema Internacional, concomitante a isso houve
o ressurgimento do nacionalismo e uma noção de que suas sociedades deviam ser
homogêneas. Onuf (1998) em sua teoria acredita que é através dos atos de fala5 que os agentes
fazem do mundo material uma realidade social aceitável enquanto seres humanos. O mundo
seria formado de duas esferas distintas, a material e a social que estão intimamente ligadas, ou
seja, a sociedade faz as pessoas e concomitante a isso as pessoas fazem a sociedade.
A teoria de Onuf se encaixa no caso de exclusão dos ciganos, pois na década de 1990
os governos e agentes governamentais reforçaram através do discurso o reinforcement da
imagem construída dos ciganos como seres inferiores, através dos atos de fala assertivos, que
informam os agentes sobre o mundo e sobre como eles funcionam, criando assim regras de
comportamento que leva a sociedade a agir de acordo com tais regras.
Pesquisas de opinião como a realizada pelo Institute for Jewish Policy Research and
American Jewish Committee6 em 1997, constatou que o ódio ou desprezo pelos ciganos nas
4 Angela Kozcé é uma especialista em estudos romani na CEU (Center European University) 5 Em seu livro publicado em 1998 Construtivism: A user manual, os atos de fala usados por Onuf são: Assertivos
(assertive Speech), Diretivos (diretive speech) e os de compromisso (comissive speech).
6 Organizações responsáveis por monitorar o antissemitismo no mundo, contudo em seu survey captou outras
minorias étnicas dos países europeus. Disponível em: https://www.jpr.org.uk/archive
sociedades dos antigos países comunistas é claro. Na Croácia os ciganos sãos o grupo étnico
mais rechaçado e na República Tcheca 875 dos entrevistados disse não querer ter nenhum
cigano como vizinho e cerca de 50% era a favor da expulsão dos ciganos do território tcheco.
Uma outra fonte importante que propaga ódio contra os ciganos são os meios de
comunicação. Embora desde o início da década de 1990 haja artigos ocasionais sobre a
angústia econômica dos ciganos ou aspectos românticos de sua cultura, como a música, a
maioria das reportagens sobre os assuntos ciganos é sensacionalista, exagerada e negativa
(BREARLEY, 2001, PP. 596). Muitas vezes a mídia retrata os ciganos como aptos a
cometerem crimes e vilões responsáveis por tudo de mal que acontece na sociedade. As
estatísticas de criminalidade nos jornais são sempre apresentadas em duas colunas, "Roma" e
"não-Roma", com taxas exageradamente elevadas para o crime de Roma (ANGUELOVA
apud BREARLEY). A mídia ta sempre preocupada em por a culpa nos ciganos e a inocência
nos não ciganos. Ainda de acordo com Brearley (2001), a mídia pouco se importa com os
aspectos positivos do cotidiano e cultura cigana.
Há poucos governos que se preocuparam em aprovar uma legislação para a proteção
dos ciganos como uma minoria nacional, um desses poucos casos é o da Hungria e a
Eslováquia. A Bulgária também procurou restaurar alguns direitos civis e políticos dos
ciganos. Por outro lado, alguns governos também batalharam para excluir e marginalizar o
máximo que pudessem as populações ciganas. Um exemplo notável disso foi o da Rep.
Tcheca (então Tchecoslováquia7) que tinha como objetivo enviar toda população cigana para
fora do seu território em direção do território eslovaco antes da dissolução do país em dois.
Ainda antes da dissolução, o governo tcheco criou leis de cidadania tão rígidas que cerca de
100.000 ciganos não conseguiram preencher os requisitos e foram deixados sem pátria e sem
direito a nenhum benefício social que fosse oferecido pelo estado (BREARLEY, 2001, pp.
595). Ainda em 1999 milhares de ciganos tchecos eram considerados apátridas.
Os governos do Oeste também seguiram padrões semelhantes aos dos países do Leste
no quesito deportação. A Áustria entre 1991 e 1993 criou novas leis de asilo e residência o
7 A Tchecoslováquia foi um país no centro europeu nos períodos de 1918-1938 e depois de 1945-1992 que
compreendia os territórios da atual Rep. Tcheca e da Eslováquia. A dissolução ocorreu em 1993 e ficou
conhecida como a separação de veludo (velvet divorce) por não ter acontecido nenhum conflito armado em sua
dissolução.
que permitiu que ciganos que viviam em seu território há muitos anos pudessem ser incluídos
nessas novas leis e pudessem ser deportados para seus países de origem, bem como todos os
ciganos que requeriam asilo (ERRC, 1997). Na Croácia e Bósnia a expulsão dos ciganos
aconteceu a nível nacional devido ao conflito que acontecia entre os países da antiga
Iugoslávia e procurava-se uma limpeza étnica de suas sociedades. Já na Alemanha o caminho
foi o inverso, centenas de ciganos oriundos de Romênia, Iugoslávia e diversos outros países
foram repatriados e considerados cidadãos alemães.
Muitos governos, nacionais ou locais da Europa também se valem de uma retórica de
que os ciganos são cognitivamente menos desenvolvidos que os seus cidadãos nacionais. Em
1993 o então primeiro ministro da Eslováquia descreveu os ciganos como “antissociais”,
“retardados” e “socialmente inaceitáveis” e propôs uma redução nos pagamentos da
previdência social e outros benefícios estatais para que segundo ele, os ciganos parassem de
se reproduzir (FAKETTE; WEBER apud BREARLEY). Os discursos dos partidos de direita e
extrema-direita também são responsáveis pela inflamação do ódio pelos ciganos. Na Itália,
onde seis crianças ciganas morreram em conflitos graves desde 1994 e várias outras ficaram
gravemente feridas, um membro do parlamento da Liga Norte descreveu os acampamentos
ciganos fora de Florença como "uma reunião de ladrões e prostitutas, assaltantes e
estupradores" e pediu que os ciganos fossem proibidos de entrar em Florença (Institute of
Race Relations European Race Audit apud BREARLEY, 2001). Em outros lugares como
Romênia, Rússia, Alemanha e Polônia, os partidos nacionalistas e ultranacionalistas tem um
discurso anti-ciganos semelhante. Assim como eles, os skinheads e alguns governos europeus
desejavam que os ciganos emigrassem em massa de seus territórios.
Os skinheads são a principal fonte dos crimes de ódios cometidos contra os ciganos no
continente europeu. Os grupos que se denominam skinheads existem agora na maioria dos
antigos estados do bloco comunista, não são muito numerosos, todavia gozam de um grande
apoio das populações locais. Eles possuem uma forte ligação com outras facções de skinheads
ao redor da Europa e também com partidos políticos de extrema-direita. Eles possuem um
viés nazista, racista, nacionalista e xenófobo. Para eles a Europa de uma supremacia branca
não teria lugar para os ciganos de pele “negra” e chegam até difundir slogans como "Roma to
the gas chambers" (European Centre for Research and Action, 1994, pp. 19). Mesmo que
persigam e mate indianos, turcos e outros imigrantes, a maioria de suas vítimas são os
ciganos. Alguns estudos mostram que no ano de 1991 pelo menos nove ciganos foram
assassinados por skinheads na atual Rep. Tcheca. E centenas de outros foram assassinados na
Bulgária, Eslováquia e Sérvia (ERRC, 1997).
O boom das ONG’s para direitos dos ciganos e a construção de Políticas na União
Europeia antes do alargamento
Há uma concordância de fenômenos que representam o aumento significativo de
ONG’s de Direitos Humanos preocupadas com os direitos dos ciganos da década de 1990. O
primeiro deles, como já dito acima, foi às transformações geopolíticas e socioeconômicas dos
países do antigo bloco socialista que gerou um grande retrocesso aos poucos direitos que os
ciganos tinham dentro desses Estados, como por exemplo, a grande onda de desemprego que
afligiu essa parcela da população e também uma maior marginalização. Apenas um pequeno
número de empresários ciganos se saiu bem sob os regimes recém-liberalizados. O
empobrecimento generalizado e crescente dos ciganos aprofundou ainda mais a hostilidade
anti-cigana e exacerbou as percepções da sociedade sobre os ciganos como um povo que é
"por natureza" tímido em relação ao trabalho e se envolve em benefícios de fraude e outras
atividades ilegais (TREHAN, 2010). Ainda na década de 1990 houve uma ênfase nas
identidades nacionais e o ressurgimento das fronteiras etnoculturais encabeçadas pelas elites
políticas. Esse status quo político excluiu os ciganos de participarem como um “corpo
político” tornando-os ainda mais marginalizados. No caso Hungria, por exemplo, as
ideologias políticas que emergiram dos partidos nacionalistas - como o partido de extrema
direita Partido da Justiça e da Vida da Hungria (MIÉP)8, um movimento abertamente
antissemita e anti-cigano - e os liberais, que celebravam a "diferença étnica", criaram um
ambiente no qual a consciência étnica se acentuava e marginalizava parcelas da população
que não fossem consideradas de uma linhagem puramente húngara. Kovats (2001) observou
que os governos húngaros pós-socialistas focaram nesse aumento das diferenças culturais, em
detrimento de políticas e inclusão de todos os cidadãos do Estado, fossem eles de origem
húngara ou não. Para esses governos, apenas a primeira parcela importava.
Em segundo lugar, pode-se dizer que os desgastes e o repúdio ao socialismo de Estado
produzidos na década de 1980 geraram um vácuo ideológico. Esse espaço ideológico foi
8 O Partido da Justiça e da Vida da Hungria (Magyar Igazság és Élet Partja – MIÉP) é um partido político
nacionalista na Hungria, fundado por István Csurka em 1993.
preenchido em uma narrativa complexa vis à vis a adoção de ideologias liberais de direitos
humanos na região (TREHAN, 2010, pp. 58). Os direitos econômicos e sociais no espectro
neoliberal que a região do leste europeu vivenciava ficou em segundo plano. Pode-se dizer
que as economias globalizantes e os paradigmas neoliberais fizeram um desserviço aos grupos
subalternos que viviam no continente europeu que continuaram a sofrer as mais diversas
formas de privações sociais e econômicas. Os impulsos ideológicos anticomunistas também
estavam presentes nas fundações privadas norte-americanas empreendedoras dos direitos
humanos (Human Rights Watch, Open Society Institute – OSI, Project on Ethnic Relations-
PER) essas instituições enfatizaram a questão de segurança nos países da Europa pós-
socialista. Esses empreendedores de direitos humanos e seus parceiros da Europa Oriental
foram fundamentais para as definições de agendas políticas das comunidades ciganas. O
ponto visto acima sobre o vácuo ideológico deixado pela transição dos países comunistas para
um espectro neoliberal permitiu que essas instituições privadas e filantrópicas pudessem
apoiar ONG’s que tivessem a sua mesma filosofia neoliberal sobre o progresso através da
democratização, ou seja, significava uma ênfase no fortalecimento do emergente padrão das
sociedades civis e dos direitos humanos naqueles países.
O papel das ONG’s se reforçou quando em meados da década de 1990 após desilusões
de lideranças ciganas progressistas com os partidos políticos e cenários eleitorais nacionais, as
ONG’s passaram a ser o principal veículo que pleiteava os direitos humanos dos ciganos no
continente europeu. Segundo Kovats (1998), o apelo para o terceiro setor na Europa pós-
socialista mostra um fracasso da integração política e dos representantes ciganos nos
principais partidos políticos. Os ciganos que estavam na carreira política eram frágeis e
contenciosas. A maioria desses poucos políticos ciganos não engatou nem mesmo um
segundo mandato, e em meados da década a euforia inicial de democracias pluralistas decaiu
cada vez mais enquanto o etnonacionalismo se tornou cada vez mais visível nas recém-
democracias do centro e leste europeu. Assim os ativistas e intelectuais ciganos viam no setor
das ONG’s uma arena alternativa para levar suas queixas e ter alguma influência na esfera
pública, concomitante a isso chegaram à Europa oriental e central organizações filantrópicas
ocidentais interessadas na democracia e fortalecimento da sociedade civil e apoiaram o
desenvolvimento das ONG’s. Essas entidades filantrópicas com seu capital ideológico e
generosidade financeira chegou a rivalizar com as políticas do Estados no final da década de
1990 em termos de influência, especialmente na área de direitos para os ciganos. Esses fatores
acabaram levando à uma “NGOization” dos direitos dos ciganos (TREHAN, 2010, pp. 60).
Em meados dos anos 1990 na União Europeia o termo Roma9 passou a ser utilizado ao
invés do nome estereotipado “cigano”. Ganhou característica de minoria e a questão do
discurso geográfico de fronteiras foi mais uma vez redesenhado em torno da Europa Oriental.
A questão dos Roma ficou cada vez mais proeminente após a sua incorporação nos relatórios
da Comissão Europeia durante o processo de alargamento do bloco para o leste europeu.
Desde o surgimento do termo Roma nas instituições da UE isso gerou uma mudança de
comportamento e maior inclusão, e os países que estavam prestes a investir candidaturas ao
bloco europeu passaram a se preocupar com a nova terminologia, o que possibilitou que
novos limites fossem traçados. A responsabilidade pelos contornos desse limite ficaria
incumbido aos próprios Roma, já que o termo se origina da língua romani, os próprios
deveriam delimitar as definições dos seus conceitos e necessidades.
Os Critérios de Copenhagen10 mostraram um novo interesse no contexto da UE, os
países que estivessem interessados em aderir ao bloco deveriam demonstrar uma preocupação
e respeito em proteção às minorias. E desde metade da década de 90 os ciganos era
considerados uma das principais minorias do continente. Então os países que estavam
interessados deveriam mostrar alguma política e preocupação de integração dos ciganos em
suas sociedades. Como resultado da presença abrangente e da legitimidade do discurso sobre
as minorias nos dias de hoje, a conceituação étnica dos ciganos como "minoria" prevaleceu
9 Os ciganos não podem ser entendidos como um povo homogêneo, eles possuem diversas denominações como,
Sinti, Caló e os Roma. Essa última denominação é como os povos ciganos oriundos do centro e leste europeu se
autodenomina; os Sinti são os da península itálica e os Caló da Península ibérica e em sua maioria do continente
sul-americano.
10 O Tratado da União Europeia define as condições (artigo 49.º) e os princípios (artigo 6.º, n.º 1) que qualquer
país que pretenda aderir à União Europeia (UE) deve respeitar. Para serem aceitos, os países têm de cumprir
determinados critérios. Estes critérios (também designados critérios de Copenhagen) foram formulados pelo
Conselho Europeu de Copenhagen em 1993 e reforçados pelo Conselho Europeu de Madrid em 1995. Os
critérios são: a estabilidade das instituições que garantem a democracia, o Estado de direito, os direitos humanos e o respeito pelas minorias e a sua proteção; uma economia de mercado que funcione efetivamente e a
capacidade de fazer face à pressão concorrencial e às forças de mercado da UE; a capacidade para assumir as
obrigações decorrentes da adesão, incluindo a capacidade de aplicar eficazmente as regras, normas e políticas
que compõem o corpo legislativo da UE (o acervo) e a adesão aos objetivos de união política, económica e
monetária.
sobre as alternativas, como a categoria social "grupo desfavorecido" (SIMHANDL, 2010, pp.
81-82).
A evolução dos discursos na União Europeia às vésperas do alargamento foi
descontinuo e marcado por duas fases diferentes. O primeiro é um padrão característico dos
ciganos como um povo nômade e sem vínculos territoriais e nacionais e o segundo se baseia
nos ciganos como uma minoria étnica do continente europeu. Contudo, o nomadismo foi
sendo desconstruído e deixou de ser um ponto de referência para os povos ciganos. Os países
do oeste e fundadores e já membros do bloco europeu procuraram colocar o problema cigano
como algo correlacionado à Europa oriental e um dos possíveis problemas com o alargamento
para esses países, concomitante a isso, eles escondiam seu pouco caso com os ciganos,
fazendo com que os ciganos em seus países fossem invisíveis e o problema estivesse apenas
nos países do leste.
Conclusão
Como pôde ser visto, a década de 1990 foi mais uma vez um período de
transformações e perseguições para os ciganos. Com as turbulentas transições dos países
comunistas para uma economia de mercado, toda uma tentativa de se reencontrar e se
formular como países e o fortalecimento de um ultranacionalismo daninho à sociedade civil
que ao invés de unir procurou segregar e excluir todos aqueles que não se encaixavam nos
padrões adequados de uma sociedade homogênea. Houve toda uma ajuda da mídia e também
dos governos em aumentar a ojeriza aos ciganos, pois eram vistos como o mal da nação. A
entrada de algumas ONG’s e atuações de empresas filantrópicas foi um start na batalha de
direitos para essa minoria tão segregada e expurgada que há séculos sofre as mazelas de uma
exclusão preconceituosa promovida na idade média e que se perpetua até hoje.
A UE mesmo com seus critérios de Copenhagen e uma promoção de quê os futuros
membros devessem se preocupar com questões de direitos humanos e promover políticas que
procurassem proteger e incluir minorias, como é o caso dos ciganos, nunca teve um discurso
continuo. Muitas vezes esse discurso era embasado em questões que não favoreciam os
ciganos em nada. Houve uma grande preocupação no problema que os ciganos poderiam
causar com a adesão desses novos países depois do alargamento, mas nunca uma preocupação
efetiva de integrar os ciganos à sociedade e criar um combate efusivo de discriminação contra
eles. Os próprios países europeus ocidentalizados fecham os olhos para o dilema dos ciganos
em seus territórios. Os ciganos avançaram em algumas questões sociais graças ao trabalho das
organizações de direitos humanos, mas ainda estão longe de uma inclusão efetiva. E agora
após o alargamento cabe aos órgãos da União Europeia cobrar que seus membros melhorem a
condição de vida dessa minoria e propor sanções aos Estados que segregam e criam leis que
marginalizem ainda mais os ciganos.
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