Os conceitos de representação e recursividade na obra do ... Rick... · Palavras-chave:...

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Gustavo Rick Amaral Os conceitos de representação e recursividade na obra do jovem Peirce DOUTORADO EM TECNOLOGIAS DA INTELIGÊNCIA E DESIGN DIGITAL Tese apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de Doutor em TECNOLOGIAS DA INTELIGÊNCIA E DESIGN DIGITAL sob a orientação do Professor Doutor Winfried Nöth. SÃO PAULO 2014

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  • PONTIFCIA UNIVERSIDADE CATLICA DE SO PAULO

    PUC-SP

    Gustavo Rick Amaral

    Os conceitos de representao e recursividade na obra do jovem Peirce

    DOUTORADO EM TECNOLOGIAS DA INTELIGNCIA E DESIGN DIGITAL

    Tese apresentada Banca Examinadora da Pontifcia

    Universidade Catlica de So Paulo, como exigncia

    parcial para obteno do ttulo de Doutor em

    TECNOLOGIAS DA INTELIGNCIA E DESIGN DIGITAL

    sob a orientao do Professor Doutor Winfried Nth.

    SO PAULO

    2014

  • BANCA EXAMINADORA

    _____________________________________

    _____________________________________

    _____________________________________

    _____________________________________

    _____________________________________

  • Este trabalho dedicado a Paula Salazar,

    exemplo de fora e vida

  • Agradecimentos

    Ao professor e orientador Winfried Nth,

    pelo rigor germnico e por ser um orientador "padro Fifa"

    (no"pas da CBF")

    professora Lucia Santaella,

    por ter me apresentado e me guiado pela densa selva dos

    escritos peirceanos e especificamente por ter elaborado, ao

    longo de trinta anos, uma abordagem semitica de Peirce

    que criou um norte para esta pesquisa

    Ao professor Edlcio Gonalves de Souza,

    cujas aulas e seminrios a respeito de lgica e teoria de

    conjuntos tornaram possvel parte considervel das anlises

    desenvolvidas nesta pesquisa

    Ao professor Jorge de Albuquerque Vieira,

    pela magnificncia com a qual consegue formar pontes sobre

    o abismo que separa a mentalidade reinante na rea "das

    exatas" daquela que reina na rea "das humanas"

    A Paula Salazar,

    pela pacincia, companhia e apoio ao longo desses quatro

    anos de pesquisa e, sobretudo, pelo exemplo de superao e

    coragem oferecido a todos que testemunharam sua vitria

    contra uma das maiores adversidades que um ser humano pode

    encontrar nesta vida.

    famlia que deixei em Braslia,

    minha me, meu pai e meu irmo,

    sempre presentes mesmo estando longe.

    famlia que me acolheu quando cheguei na cidade grande

    Tia Rosa, Manu e Maurcio,

    Aos amigos de Braslia,

    que sempre nos obrigam a pensar diversas vezes em

    retornar cidade natal.

    Aos amigos de So Paulo,

    principalmente, Marcelo Santos e Tarcsio Cardoso,

    por ainda terem, depois de alguns anos, pacincia

    para ouvir minhas divagaes tericas.

    E tambm Poliana e ao Caio.

    Aos Gatos,

    Chico Legi, Branquinha, Amelie, Zuzu, Toninho,

    Lechuga e Maria Eduarda,

    pela inseparvel companhia.

    Devo agradecer ainda ao corpo docente do TIDD

    Um agradecimento especial a Edna, pela infinita pacincia e presteza, e CAPES, pela concesso da

    bolsa de estudos.

  • Palavras-chave: representao, recursividade, interpretante, cognio, semitica, Peirce.

    Resumo: Esta tese versa sobre o tipo de definio ou caracterizao que Peirce utilizou

    para construir um conceito central dentro de sua semitica: o conceito de representao.

    As anlises que foram desenvolvidas para sustentar esta tese se limitam aos escritos

    peirceanos do final da dcada de 1860, poca em que o pensamento de Peirce comea a

    se afastar de sua matriz kantiana e ganhar contornos prprios. O foco de toda a pesquisa

    realizada para a sustentao desta tese o elemento lgico do sistema filosfico de

    Charles S. Peirce, i.e., a estruturao argumentativa desenvolvida pelo filsofo para

    validar as teorias que so oferecidas como respostas a problemas filosficos.

    De modo diverso das abordagens didicas desenvolvidas para explicar o funcionamento

    de um processo de representao, a concepo de representao elaborada por Peirce

    dentro da semitica tridica e esta diferena est longe de ser meramente numrica.

    Nossa tese que, com a introduo desse terceiro elemento (o interpretante), a

    caracterizao do conceito de representao (elaborado dentro da semitica peirceana)

    torna-se necessariamente recursiva e este tipo de caracterizao uma exigncia interna

    da teoria que Peirce planeja oferecer como resposta ao que considerou ser o problema

    central da filosofia: como so possveis os raciocnios sintticos (i.e., ampliativos) ou,

    sob outro ngulo, como possvel haver crescimento do conhecimento?

    Com intuito de provar esta (nossa) tese a respeito da necessidade deste tipo de

    caracterizao conceitual dentro do projeto filosfico peirceano, dedicamos parte

    considervel deste texto tarefa de estabelecer no apenas que a semitica central

    para tal projeto, mas tambm estabelecer que algumas teses centrais dentro da semitica

    so decorrncia direta do fato do conceito de representao ter sido definido ou

    caracterizado de forma recursiva. Estas teses centrais foram denominadas de teses

    elementares da semitica: "no h primeiro signo (num processo interpretativo)" e

    "no h ltimo signo (num processo interpretativo)". Ento, para que seja sustentvel a

    soluo terica encontrada por Peirce para o (que considera o) problema central da

    filosofia, estas duas teses elementares acima referidas tm que ser estabelecidas dentro

    da teoria semitica (desenvolvida pelo prprio Peirce), e o estabelecimento destas teses

    depende da recursividade que encontrada dentro da concepo de signo ou de

    processo representativo (e introduzida pelo conceito de interpretante). Portanto, a

    nossa tese justamente que a caracterizao ou definio do conceito de representao

    que est no corao do conceito de signo da semitica peirceana necessariamente

    recursiva, pois sem esta recursividade, simplesmente no seria possvel derivar as duas

    teses elementares da semitica.

  • Key words: Representation, recursion, interpretant, cognition, semiotics, Peirce.

    Abstract: This thesis addresses the type of definition or characterisation used by Peirce

    to formulate a central concept within his semiotics: the concept of representation.

    Analyses carried out to support this thesis are limited to Peirce's texts from the end of

    the 1860s, an era in which Peirce's thinking begins to detach itself from his Kantian

    matrix and take on its own features. The focus of all research conducted in support of

    this thesis is the logical element of Charles S. Peirces philosophical system, i.e. the

    argumentative structuring developed by the philosopher to validate the theories offered

    as responses to philosophical problems.

    Differently from dyadic approaches developed to explain the workings of a

    representation process, the conception of representation elaborated by Peirce within

    semiotics is triadic and such difference is far from merely numerical. Our thesis is that,

    with the introduction of this third element (the interpretant), characterisation of the

    concept of representation (elaborated within Peircean semiotics) becomes recursive by

    necessity and such characterisation is an in-built requirement of the theory that Peirce

    intends to offer as an answer to what he considered to be the central issue of

    philosophy: how is synthetic (i.e. ampliative) reasoning possible or, from another angle,

    how is it possible for knowledge to grow?

    With a view to proving our thesis in respect of the necessity for this type of conceptual

    characterisation within the Peircean philosophical project, we have dedicated a

    significant part of this text to the task of establishing not only that semiotics is central to

    such a project, but also to demonstrating that some central semiotic theses are a direct

    result of the fact that the concept of representation has been defined or characterised in a

    recursive manner. These central theses were termed elementary theses (of semiotics):

    "there is no first sign (in an interpretative process)" and there is no last sign (in an

    interpretative process)". Therefore, to render the theoretical solution found by Peirce

    sustainable for the (what he considered to be) central issue of philosophy, the two

    elementary theses referred to above must be established within semiotic theory

    (developed by Peirce himself), and their establishment depends on the recursion found

    within the concept of a sign or of a representative process (and introduced by the

    concept of interpretant). Our thesis is, therefore, precisely that the characterisation or

    definition of the concept of representation at the heart of the Peircean semiotics sign

    concept is necessarily recursive, because without such recursion it would simply be

    impossible to derive the two elementary theses of semiotics.

  • SUMRIO

    Introduo Geral......................................................................................................................................... 2

    CAPTULO 1 - Semitica: a respeito das origens................................................................................. 11

    CAPTULO 2 - Lgica e as razes da semitica..................................................................................... 23

    2.1 - Sntese: de Hume a Kant............................................................................ ............................. 27

    2.2 - Sinai: de Kant a Peirce............................................................................................................ 42

    2.3 - Sntese: a distncia entre Kant e Peirce................................................................................... 52

    CAPTULO 3 - O problema das fundaes............................................................................................ 58

    3.1 - O projeto cartesiano da fundao ltima do conhecimento fsico-matemtico....................... 61

    3.2 - A impossibilidade do projeto das fundaes seguras.............................................................. 80

    3.3 - Um modelo lgico da mente.................................................................................... ............... 87

    CAPTULO 4 - Introduo anlise do texto "Questes concernentes a certas faculdades

    reivindicadas para o homem" (QFCM) e anlise da primeira questo............................................ 97

    4.1 Anlise (da primeira parte) da Q1: Sobre a capacidade intuitiva de distinguir intuies........ 104

    4.2 Anlise (da segunda parte) da Q1: sobre a capacidade intuitiva de distinguir intuies......... 129

    CAPTULO 5 - Anlise da segunda e da terceira questes do texto "Questes concernentes a certas

    faculdades reivindicadas para o homem"............................................................................................. 147

    5.1 Anlise da Q2: sobre a autoconscincia intuitiva................................................................. ... 148

    5.2 Anlise da Q3: sobre elementos subjetivos de diferentes tipos de cognies......................... 168

    CAPTULO 6 - Anlise da quarta questo do texto "Questes concernentes a certas faculdades

    reivindicadas para o homem"................................................................................................................ 180

    6.1 Anlise da Q4: sobre a capacidade de introspeco................................................................ 181

    6.2 Excurso: o problema do segundo tipo de intuio.................................................................. 194

    CAPTULO 7 - Anlise da quinta questo do texto "Questes concernentes a certas faculdades

    reivindicadas para o homem"................................................................................................................ 208

    7.1 Anlise (da primeira parte) da Q5: sobre a capacidade de pensar sem signos........................ 209

    7.2 Anlise (da segunda parte) da Q5: sobre a capacidade de pensar sem signos......................... 225

    CAPTULO 8 - Anlise da sexta e da stima questes do texto "Questes concernentes a certas

    faculdades reivindicadas para o homem"............................................................................................. 236

    8.1 Anlise da Q6: sobre o significado do incognoscvel.............................................................. 237

    8.2 Anlise da Q7: sobre as origens.................................................................. ............................ 247

  • CAPTULO 9 - Resultados da anlise do texto "Questes concernentes a certas faculdades

    reivindicadas para o homem"................................................................................................................ 273

    9.1 Primeiro movimento argumentativo geral do QFCM: o estabelecimento da tese-base da

    semitica......................................................................................................................................276

    9.2 Segundo movimento argumentativo geral do QFCM: o estabelecimento da tese a respeito das

    origens do processo cognitivo......................................................................................................290

    CAPTULO 10 - Anlise do texto "Sobre uma nova lista de categorias" (ONLC).......................... 298

    10.1 Primeira parte da anlise do ONLC: conceitos-chave........................................................... 302

    10.2 Segunda parte da anlise do ONLC: mtodo de exposio hipottico-construtivo.............. 316

    10.3 Terceira parte da anlise do ONLC: mtodo de exposio hipottico-desconstrutivo.......... 320

    10.4 Quarta parte da anlise do ONLC: a sntese no contexto argumentativo.............................. 327

    CAPTULO 11 - Anlise da definio de interpretante dentro do texto "Sobre uma nova lista de

    categorias" (ONLC).................................................................................................................. .............. 335

    11.1 A primeira definio de Interpretante dentro do modelo tridico de signo........................... 337

    11.2 Anlise dos exemplos que acompanham a primeira definio de Interpretante dentro do

    modelo tridico de signo................................................................................................................ 340

    11.3 Excurso: alguns modelos de interpretao do conceito peirceano de representao............. 353

    CAPTULO 12 - Interpretante e recursividade................................................................................... 357

    12.1 Anlise do trecho de Savan a respeito da relao entre interpretante e recursividade...........359

    12.2 A caracterizao recursiva do conceito de representao na semitica peirceana.................368

    12.3 Recursividade e a stima questo do QFCM..........................................................................377

    CAPTULO 13 - Recursividade e a concepo de representao como fluxo................................... 385

    13.1 As teses elementares da semitica..........................................................................................387

    13.2 A recursividade como condio necessria............................................................................403

    13.3 A Hiptese da priso lingustica.............................................................................................413

    Consideraes finais ............................................................................................................................... 434

    Referncias............................................................................................................................................... 441

  • 2

    Introduo Geral

    A ideia de representao na semitica peirceana

    Precisamente, esta tese de doutorado trata do tipo de definio ou caracterizao que

    Peirce utilizou para construir um conceito central na sua teoria semitica: o conceito de

    representao. Nossa tese que, com a introduo do terceiro elemento (denominado

    interpretante) na definio peirceana de signo, a caracterizao do conceito de

    representao torna-se necessariamente recursiva e este tipo de caracterizao uma

    exigncia interna da teoria que Peirce planeja oferecer como resposta ao que considerou

    ser o problema central da filosofia: como so possveis os raciocnios sintticos (i.e.,

    ampliativos) ou, sob outro ngulo, como possvel haver crescimento do conhecimento?

    O que pretendemos provar nas prximas centenas de pginas que esta caracterizao

    recursiva uma condio necessria para a sustentao do projeto filosfico elaborado

    pelo jovem Peirce na dcada de 1860, poca em que o pensamento peirceano comea a se

    afastar de sua matriz kantiana e ganhar contornos prprios. Portanto, as anlises e

    argumentos que desenvolveremos a seguir recobrem apenas a fase inicial da construo

    do sistema filosfico peirceano, embora acreditemos que as principais teses defendidas no

    interior da semitica bem como esta caracterizao recursiva da representao so

    elementos essenciais ao pensamento semitico de Peirce, o que nos leva a acreditar (sem

    obviamente poder estabelecer [nesta tese] este ponto) que tais elementos permaneceram

    sob todas as reformulaes s quais o prprio Peirce submeteu seu sistema filosfico ao

    longo do tempo1. A estrutura geral e os principais componentes deste projeto filosfico

    elaborado pelo jovem Peirce na dcada de 1860 sero apresentados no primeiro captulo.

    Nossa tese central pode ser expressa da seguinte forma:

    TESE de Doutorado - A caracterizao do conceito de representao (interno

    teoria semitica peirceana) necessariamente recursiva.

    As descries de Peirce sobre processos de significao e as definies de signo2

    invariavelmente incluem trs elementos: o signo (propriamente dito), o objeto e o

    1 Esta tese qual aludimos (sem querer alimentar a esperana no leitor de que teremos a oportunidade de

    defend-la) afirma apenas que algumas teses e algumas caractersticas da teoria semitica elaborada ao final

    da dcada de 1860 no foram alteradas em verses posteriores. Isto muito diferente de afirmar que no

    houve mudana alguma na semitica e mesmo na filosofia peirceana (ao longo da carreira de Peirce). Por

    exemplo, de conhecimento at do reino mineral que, entre o perodo de 1870 - 1885, Peirce desenvolveu

    um novo aparato para anlise lgica que passou a chamar de "lgica dos relativos" (que consiste justamente

    na introduo do uso de quantificadores e variveis ligadas na anlise lgica e seria equivalente ao que hoje

    entendemos por lgica de primeira ordem). Este novo aparato teve um impacto considervel, pois a partir

    dele que Peirce reorganiza seu sistema de categorias (que est na base de seu sistema filosfico). 2 Como veremos no dcimo segundo captulo, h um interminvel debate entre os estudiosos da obra

    peirceana se, de fato, Peirce denominou de signo a relao tridica como um todo (i.e., a relao entre

  • 3

    interpretante. Em termos gerais, o signo um conceito que Peirce utiliza para descrever

    um processo representacional em que um primeiro elemento (o signo propriamente

    dito), para representar um segundo elemento (o objeto da representao), deve

    necessariamente produzir um terceiro elemento (denominado de interpretante) que

    possui funo mediadora. A recursividade essencial a este modo de explicar o

    funcionamento de um processo de representao est no modo como este terceiro

    elemento definido. Como, para haver representao entre os dois primeiros elementos,

    necessrio que o terceiro elemento entre em cena e este terceiro elemento ele mesmo

    uma representao (um novo primeiro elemento, ou seja, um novo signo), ento ele

    deve necessariamente produzir um quarto elemento (i.e., um novo terceiro elemento, ou

    seja, um novo interpretante) e assim por diante. O modo recursivo como foi definido o

    terceiro elemento do signo cria, dentro da semitica, uma noo de sequncia ou

    processo. Como veremos, uma sequncia de interpretantes ou um processo

    interpretativo. O conceito de representao, dentro da semitica peirceana, captado

    por esta noo de sequncia ou processo interpretativo (introduzida na teoria pelo

    terceiro elemento acima mencionado). A nossa tese central que a noo geral de

    recursividade fundamental no apenas para os campos da matemtica, da lgica e,

    mais recentemente, da computao, mas tambm para a semitica (no caso, peirceana).

    A ideia de correlacionar este conceito peirceano de interpretante com o conceito de

    recursividade nos foi sugerida por uma breve passagem de um texto de David Savan3.

    Nesta passagem, Savan afirma que o "o que h de caracterstico de quase todas

    definies peirceanas de interpretante (...) que o terceiro relatum uma instncia ou

    uma rplica de uma regra de recurso" (Savan, 1986, p. 133). A definio de

    recursividade da qual Savan lana mo para esclarecer o que Peirce entende por

    interpretante est presente no livro "Mathematical logic" do filsofo e lgico norte-

    americano W. Quine. Na verdade, no trecho do livro de Quine, citado por Savan,

    encontramos uma definio do que uma definio recursiva ou uma caracterizao

    recursiva de um conceito. De acordo com a definio fornecida por Quine,

    "qualquer noo geral que resolvida numa sequncia infinita de casos especiais dita

    recursivamente caracterizada quando explicamos o primeiro caso e adicionamos uma

    regra geral que descreva (i+1)-simo caso, para cada i, em termos dos primeiros i casos"

    (Quine, 1981, p. 86). Vejamos um exemplo para que esta noo de recursividade se

    torne mais palpvel.

    Na verdade, no to palpvel assim, uma vez que escolhemos um exemplo proveniente

    do campo da matemtica mesmo sabendo que, com isso, devemos perder nas prximas

    signo, objeto e interpretante) ou ele apenas reservou o termo "signo" para se referir primeira posio

    dentro dessa relao tridica. 3 Como veremos com mais detalhes no catulo 12, na poca em que Peirce estava lanando os

    fundamentos de sua semitica (ao final da dcada de 1860), o conceito de recurisividade ainda no havia

    sido plenamente desenvolvido e definido de forma precisa, embora os lgicos e matemticos deste

    perodo j tivessem alguma noo (ainda que vaga) do procedimento de recursividade. De acordo com

    Fraenkel, Bar-Hillel e Levy, o prprio Peirce parece ter sido o responsvel pela primeira definio

    recursiva que se tem notcia sem, no entanto, ter estabelecido formalmente o que vem ser uma definio

    recursiva (cf. Fraenkel, Bar-Hillel e Levy, 1973, p. 299)

  • 4

    linhas parte de nossos leitores. Na matemtica, o fatorial de um nmero qualquer uma

    certa operao definida como o produto de todos os nmeros que sejam iguais ou

    menores que o nmero em questo. Esta operao representada pelo smbolo " ! ".

    Assim, o fatorial de um nmero n representado como n! e o resultado desta operao

    " n x (n - 1)! ", ou seja, o valor resultante da operao fatorial aplicada sobre o nmero n

    o nmero n multiplicado pelo fatorial de seu antecessor. Por exemplo, para que

    saibamos o resultado do fatorial do nmero 3 necessrio que calculemos o seguinte

    produto: 3 x 2 x 1. Obviamente, o resultado da operao 3! 6.

    Como acreditamos que esta operao j esteja minimamente esclarecida, passemos a fazer

    algumas observaes sobre o modo como ela foi definida, que o ponto que efetivamente

    nos interessa neste texto introdutrio. No pargrafo anterior, afirmamos que o valor

    resultante da operao fatorial aplicada sobre o nmero n o nmero n multiplicado pelo

    fatorial de seu antecessor, ou seja, o resultado da operao n! n x (n - 1)! . Isto significa

    que o resultado desta operao depende do resultado desta mesma operao para um caso

    anterior. A ideia de recursividade est presente justamente no fato desta operao recorrer

    uma referncia a ela mesma para poder ser definida. A definio no circular, como

    veremos, pois esta recorrncia sempre efetuada para um caso anterior da aplicao da

    operao definida. Este caso anterior dado por uma sequncia.

    Podemos apresentar esta definio ou caracterizao recursiva da operao fatorial com

    apenas duas clusulas. As duas clusulas ou regras que compem esta definio

    recursiva funcionam como um algoritmo que serve para que encontremos o resultado da

    operao fatorial aplicada sobre algum nmero especfico.

    Caracterizao recursiva da operao fatorial

    Clusula n1 (clusula base) --> Se o nmero (diante do smbolo que representa a

    operao fatorial) for menor ou igual a 1, ento o valor da operao fatorial 1.

    Clusula n2 (regra geral) --> Caso o nmero (diante do smbolo que representa a

    operao fatorial) tenha outro valor que no seja menor ou igual a 1, ento o

    valor da operao fatorial o valor do nmero multiplicado pelo valor da

    operao fatorial aplicada sobre o antecessor deste nmero.

    Por exemplo, calculemos a operao 4! . O primeiro passo olhar para o nmero que

    est na frente smbolo que representa a operao fatorial. Neste caso o nmero 4.

    Vejamos se devemos aplicar a este nmero a primeira ou segunda clusula. No difcil

    perceber que no podemos aplicar a primeira delas, pois a condicionante desta clusula

    nos diz que ela s deve ser aplicada a nmeros que forem menores ou iguais a 1.

    Obviamente o 4 no cumpre esta condicionante. Assim, temos que nos encaminhar para

    a segunda clusula (uma vez que o nmero tem um valor que no igual nem menor que

    1). De acordo com a segunda clusula, devemos pegar o nmero 4 e multiplic-lo pelo

    resultado da operao fatorial aplicada sobre aquele nmero que antecede o nmero 4.

  • 5

    Ora, o nmero que antecede ao nmero 4 o nmero 3. Logo, o que a segunda clusula

    nos pede para fazer multiplicar o nmero 4 pelo resultado da operao fatorial

    aplicada sobre o nmero 3. Em smbolos, o que a segunda clusula nos solicita fazer

    encontrar o valor de 4 x 3! . Isto significa que, para encontrarmos o valor de 4!,

    preciso, antes, encontrar o valor de 3!. E de onde vamos tirar o resultado da operao

    fatorial 3! ? Simples, basta que apliquemos a esta operao a segunda clusula (uma vez

    que, como o nmero 3 no menor ou igual a 1, ento ele tambm no cumpre a

    condicionante da primeira clusula). Aplicar a segunda clusula significa isolar o

    nmero 3 e multiplic-lo pelo resultado da operao fatorial aplicada sobre o seu

    antecessor, que o nmero 2. Ento, o que temos que o valor de 3! dado pela

    operao 3 x 2! . E, assim, estamos diante de outro fatorial: a operao 2! . Mais uma

    vez, perguntemo-nos o que pode ser feito para encontrar o valor de 2! ? Claro est que

    devemos aplicar a segunda clusula novamente, pois o nmero 2, como o 3 e o 4,

    tambm no cumpre a condicionante expressa na primeira clusula. Ao aplicar a

    segunda clusula ao nmero 2, descobrimos que o valor de 2! 2 x 1! (pois o nmero q

    o antecessor de 2). E isto nos pe novamente diante de outro fatorial: a operao 1!.

    Entretanto, esta a ltima delas, pois, pela primeira vez, estamos diante de uma

    operao fatorial feita sobre um nmero que igual ou menor que 1. Isto significa que

    est cumprida a condio para aplicarmos a primeira clusula. Logo, o valor de 1! 1.

    Note que, ao contrrio de todos os outros passos anteriores esta operao ( 1! ) no nos

    apresentou como resultado outro fatorial.

    Revisemos nossos passos. Comeamos nos perguntando pelo valor de 4! . Descobrimos

    que 4! = 4 x 3! . Ento nos perguntamos pelo valor de 3! e descobrimos que 3! = 3 x 2! .

    Com isso, sabemos que o valor de 4! , na verdade, 4 x 3 x 2! . Porm, o valor de 2! 2

    x 1! . Logo, o valor de 4! 4 x 3 x 2 x 1! . Mas, deve-se recordar que o valor de 1! (pela

    primeira clusula) 1. Assim, o que temos que 4! tem como valor o resultado da

    seguinte multiplicao: 4 x 3 x 2 x 1 . Logo, o valor de 4! 24.

    Por qual motivo esta definio apresentada da operao fatorial denominada

    recursiva? A recursividade est justamente no fato de que, segundo esta definio, para

    saber o resultado da aplicao desta operao sobre um nmero n temos que recorrer ao

    resultado desta mesma operao aplicada sobre o antecessor do nmero n (i.e., o nmero

    n - 1) e esta recorrncia feita at que se atinja um ponto de parada. Da mesma forma,

    as definies que Peirce oferece de signo tambm possuem tal noo geral de

    recursividade. Na semitica, conforme a sugesto de Savan (que citamos acima), a

    recursividade fica patente na definio do terceiro elemento do signo, o interpretante. O

    terceiro elemento possui um papel de mediao essencial em qualquer processo de

    representao. Para haver representao, deve sempre haver produo de interpretante.

    Dentro dos limites da semitica peirceana, uma coisa no pode representar outra sem

    produzir um interpretante, i.e., sem recorrer a um terceiro elemento mediador. Um signo

    A apenas pode representar um objeto B caso seja produzido um interpretante C, que, por

    sua vez, um novo signo do mesmo objeto B. Porm, se afirmamos que C um novo

    signo, ento ele deve produzir um novo interpretante D (que, por sua vez, ser um novo

  • 6

    signo para o mesmo objeto B) e, assim, ele tambm deve produzir (por ele mesmo)

    outro interpretante E. Tal processo de representao continua indefinidamente. Porm,

    deve-se chamar ateno para uma importante caracterstica (das definies de signo de

    Peirce), o resultado de uma representao especfica tambm depende de uma

    representao anterior. Claro est que, neste exemplo, comeamos pelo signo A.

    Entretanto, este signo deve ser entendido como resultado de uma representao anterior

    ainda que no tenhamos nos referido a ela diretamente.

    Na semitica peirceana, a relao de representao entre o signo e objeto

    necessariamente produz um interpretante e esta relao ela mesma necessariamente

    resultado de algum interpretante anterior. Assim, toda representao entre um signo e

    um objeto deve desencadear um processo interpretativo e deve ela mesma ser resultado

    de um processo interpretativo anterior. Isto significa que no h um ponto de origem

    para o processo de representao. como se estivssemos diante de um processo

    definido recursivamente para o qual no h clusula base. No h um ponto de partida,

    nem um ponto de chegada pr-estabelecido. O que h fluxo. Isto nos leva a uma

    estranha teoria que entende a representao como um processo que necessariamente

    ocorre numa espcie de fluxo.

    Estrutura da tese

    Para que possamos provar esta (nossa) tese a respeito da necessidade do tipo de

    caracterizao conceitual mobilizada dentro do projeto filosfico peirceano, seremos

    obrigados a estabelecer, em primeiro lugar, que a semitica uma teoria central neste

    projeto e, em segundo lugar, que algumas teses centrais dentro da semitica so

    decorrncia direta do fato de o conceito de representao ter sido definido ou

    caracterizado de forma recursiva. Estas teses centrais sero denominadas de teses

    elementares da semitica (e sero explicadas de forma mais detalhada no nono

    captulo).

    Teses elementares da semitica peirceana

    Tese_1 da semitica --> No h primeiro signo (num processo interpretativo).

    Tese_2 da semitica --> No h ltimo signo (num processo interpretativo).

    Assim, podemos resumir da seguinte forma a ligao entre todas estas ideias (i.e., entre

    as teses defendidas pelo prprio Peirce em seus escritos e a nossa tese acerca da

    semitica peirceana): para que seja sustentvel a soluo terica encontrada por Peirce

    para o (que considera o) problema central da filosofia, estas duas teses elementares

  • 7

    acima apresentadas tm que ser estabelecidas dentro da teoria semitica (desenvolvida

    pelo prprio Peirce), e o estabelecimento destas teses depende da recursividade que

    encontrada dentro da concepo de signo ou de processo representativo (e introduzida

    pelo conceito de interpretante). Se, por um lado, como pretendemos provar, estas duas

    teses so condies necessrias para a sustentao do projeto filosfico peirceano, por

    outro lado, como tambm pretendemos provar, a caracterizao recursiva de

    representao (mobilizada por Peirce para definir a relao entre signo, objeto e

    interpretante) uma condio necessria para o estabelecimento das duas teses

    elementares. Portanto, a nossa tese justamente que a caracterizao ou definio do

    conceito de representao que est no corao do conceito de signo da semitica

    peirceana necessariamente recursiva. Sem esta recursividade, simplesmente no seria

    possvel derivar as duas teses elementares da semitica: "no h primeiro signo num

    processo interpretativo" (Tese_1 da semitica) e "no h ltimo signo num processo

    interpretativo" (Tese_2 da semitica). Como veremos no ltimo captulo, se

    concebermos uma teoria semitica alternativa quela proposta por Peirce, i.e., sem a

    caracterizao recursiva de representao, no seria possvel garantir que, em todo

    processo interpretativo, no haja ponto originrio ou ponto de chegada preestabelecido.

    Isto significa que a teoria da representao que est subentendida no projeto filosfico

    peirceano necessariamente mobiliza um conceito de "representao como fluxo". Como

    teremos a oportunidade de explicar detalhadamente, o conceito de interpretante

    (proveniente da semitica) deve ser entendido como uma espcie de princpio que

    instaura um processo representacional (uma cadeia de interpretantes) que ocorre num

    fluxo, sem ancoragem alguma, sem ponto de partida ou chegada absoluto.

    Como nossa tarefa consiste em mostrar que a recursividade uma condio necessria

    para o projeto filosfico peirceano, ou seja, para as solues tericas propostas por

    Peirce em seu sistema filosfico, ento teremos que comear pela explicao e

    contextualizao deste projeto. Por este motivo, antes mesmo de nos voltarmos para as

    anlises dos argumentos elaborados por Peirce e para a argumentao de nossa tese

    (propriamente dita), parte considervel de nosso texto dedicada a apresentar o

    surgimento da semitica nos escritos peirceanos da dcada de 1860. Assim, optamos

    por dividir nosso texto em trs grandes partes: I) o panorama histrico do surgimento da

    semitica no pensamento peirceano e a relao da filosofia de Peirce com outros

    sistemas filosficos, como o de Kant e de Descartes (captulos 1,2 e 3); II) as anlises

    do texto peirceano (captulos 4 - 11)4; III) as argumentaes para sustentao da tese

    propriamente dita (captulo 12 e, sobretudo, 13): "a caracterizao do conceito de

    representao (interno teoria semitica peirceana) necessariamente recursiva".

    4 Aproveitemos este texto introdutrio para esclarecer o significado de algumas abreviaes de ttulos ou

    coletneas de textos elaborados por Peirce que devero aparecer ao longo desta tese: CP Collected

    Papers; NEM The New Elements of Mathematics; EP Essential Peirce; MS Manuscritos da

    Houghton Library. As referncias aos Collected Papers sero feitas pela numerao relativa ao volume

    e ao pargrafo (e no s pginas). Por exemplo, uma citao cuja referncia bibliogrfica esteja CP 2.101

    quer dizer que tal trecho pertence ao pargrafo de nmero 101 do segundo volume dos Collected

    Papers. As referncias ao "Essential Peirce" sero feitas pela numerao relativa ao volume seguida de

    uma numerao para as pginas. Por exemplo, "EP2, p.44" significa que o trecho em questo est na

    pgina 44 do segundo volume do "Essential Peirce".

  • 8

    Algumas observaes sobre metodologia

    O foco deste trabalho o elemento lgico do sistema filosfico de Charles S. Peirce. E

    por elemento lgico entendemos a estruturao argumentativa da obra que constitui e

    valida as teorias apresentadas pelo filsofo como respostas a problemas (filosficos)

    estabelecidos internamente, i.e., dentro de seu prprio sistema filosfico, ou

    externamente, i.e., pela tradio. Assim, procuramos organizar toda a exposio a ser

    feita do pensamento peirceano (e tambm das anlises e interpretaes acerca dele) em

    torno do que pode ser considerado o problema central da filosofia de Peirce: a

    possibilidade das snteses (ou, em outros termos, a possibilidade da ampliao do

    conhecimento, de um sistema de crenas). De acordo com Martial Gueroult (2007

    [1957]), considerar que tambm a atividade filosfica (como a cientfica) procura

    resolver problemas por meio de teorias entender a filosofia a partir da noo de

    problemtica.

    Sendo, como a cincia, um esforo para conhecer e compreender o real, a

    filosofia institui, como ela, uma problemtica. Todas as grandes doutrinas

    podem se caracterizar a partir de problemas: problema do uno e do mltiplo

    entre os pr-socrticos; problema da possibilidade da cincia e da predicao

    em Plato; problema das causas primeiras, da demonstrao, do mtodo

    geral das cincias da natureza em Aristteles; problema do fundamento da

    fsica matemtica em Descartes; problema do fundamento da possibilidade

    das cincias e da metafsica como cincia em Kant; problema dos vnculos

    entre a histria e o racional em Hegel, etc.

    Como a cincia, a filosofia deve, ao instituir problemas, respond-los atravs

    de teorias. Ora, toda teoria s vlida na medida em que demonstrada. A

    demonstrao no visa simplesmente que a teoria seja imposta a outrem,

    mas que faa nascer em toda inteligncia, incluindo na de seu protagonista,

    a inteleco do problema e de sua soluo.

    por isso que o elemento lgico deve assumir em toda filosofia, no uma

    funo de traduo (de uma paisagem mental ou de uma intuio), mas uma

    funo de validao e at de constituio.

    (Gueroult, 2007 [1957], p. 235)

    Ao longo de nossa exposio do pensamento peirceano daremos pouca ateno a fatores

    externos ao sistema filosfico como as (denominadas) condicionantes histricas ainda

    que saibamos serem elas relevantes para determinados tipos (bem habituais) de

    abordagem da obra de um filsofo. Da mesma forma, pouca ateno ser dada a outros

    tipos de fatores externos como condicionantes pessoais, psicolgicas, culturais, sociais,

    etc. . Fortemente inspirados por uma abordagem estruturalista, consideraremos o texto

    peirceano um objeto autnomo, como um conjunto de teses e movimentos

    argumentativos que devem ser subtrados do tempo histrico e entendidos dentro de um

    tempo lgico (cf. Goldschmidt, 1970 [1949], p. 139). Com isso, no pretendemos, de

    forma alguma, depreciar anlises que tambm levem em conta estes fatores (que aqui

  • 9

    denominamos de) externos. Porm, trs motivos podem ser arrolados para justificar a

    desconsiderao desses fatores externos na presente tese. Os dois primeiros motivos so

    carncias: de espao e de competncia. Em primeiro lugar, como o leitor notar, a

    anlise somente de "fatores internos" ao texto peirceano nos tomou tantas pginas

    (centenas delas) que nos falta espao para desenvolver anlises de qualquer outro tipo.

    Em segundo lugar, falta-nos competncia para elaborar anlises mais rigorosas (que

    valeriam a pena serem publicadas) acerca desses fatores externos citados. Deixemos

    esta tarefa para especialistas (historiadores, psiclogos, socilogos, antroplogos, etc.).

    O terceiro e mais importante dos motivos que esta desconsiderao decorre de uma

    opo metodolgica. Para esclarecer este posicionamento metodolgico preciso

    observar que a sustentao da tese que pretendemos defender depende de uma

    interpretao global do sistema filosfico peirceano (ao menos dos seus primeiros

    desenvolvimentos). No s a sustentao de nossa tese propriamente dita, mas tambm

    o estabelecimento de grande parte dos passos intermedirios (que nela desembocam) s

    faz sentido a partir de uma interpretao global do sistema filosfico peirceano. A

    afirmao de que "a caracterizao do conceito de representao (interno teoria

    semitica peirceana) necessariamente recursiva" s pode ser justificada na

    dependncia de algum quadro interpretativo. O que pretendemos, com esta tese,

    simplesmente oferecer uma interpretao de um conceito central ao pensamento

    peirceano com o objetivo de enxergar o seu papel dentro do sistema como um todo, ou

    seja, sua funo na resoluo do problema maior da filosofia peirceana (aquele relativo

    s possibilidades das snteses).

    A ltima observao a ser feita diz respeito ao modo de expresso que utilizamos ao

    longo da tese. Como o enfoque de nossas anlises o movimento argumentativo dentro

    de textos peirceanos e nossa preocupao est voltada nica e exclusivamente para o

    que chamamos de elemento lgico destes textos, os valores que nortearam a escrita

    desta tese so clareza e preciso. Por diversas vezes sacrificamos o "estilo" e certa

    elegncia da escrita em nome da clareza e preciso. Por exemplo, praticamente

    abolimos o uso de pronomes (principalmente os pessoais e, nalguns casos, tambm os

    demonstrativos). Optamos por repetir palavras ou expresses algumas vezes dentro de

    um curto espao de texto somente para evitar a possibilidade de ambiguidade que

    sempre acompanha o uso de pronomes. No confiamos ao contexto a tarefa de fixar

    referncias (de termos substitudos). Com intuito de garantir que o sentido captado pelo

    leitor seja efetivamente aquele que intencionamos, optamos tambm por apresentar

    algumas ideias, que julgamos mais relevantes, sob mais de um aspecto ou sob mais de

    uma forma ainda que isso tenha tornado o texto redundante nalguns trechos. Em nossas

    exposies, no faltaram pares de frases que guardam entre si uma relao de sinonmia

    que marcada pelo uso das seguintes expresses: "ou seja", "i.e.", "em outras palavras",

    "em resumo", etc. Isto aumenta consideravelmente o nvel de redundncia de um texto,

    mas tambm cria vias mais seguras para que se possa interpret-lo. Todas estas medidas

    so desaconselhveis para qualquer pessoa que queira elaborar um texto que possa ser

    lido de forma minimamente agradvel. Na verdade, neste texto, comportamo-nos menos

    como escritores e mais como escreventes, escriturrios ou escrives. Assim, para que

  • 10

    no nos alonguemos, o resultado geral um texto repetitivo e burocrtico. Uma clara

    exceo regra (alm deste texto introdutrio) so as primeiras pginas do primeiro

    captulo (e, em menor medida, a ltima seo do ltimo captulo).

  • 11

    CAPTULO 1

    Semitica: a respeito das origens

    No sem a companhia de alguma perturbao que surgem, aos mortais, questes e

    reflexes relativas a origens. A fonte desta perturbao parece ser o fato de que, quando

    se busca um ponto originrio corre-se o risco de encontrar a prova da finitude daquilo

    cuja origem foi encontrada. O ponto de fuga da busca pela origem da espcie humana

    estabelecer, de uma vez por todas, a prova da finitude do homem e a atribuio de um

    carter histrico a tudo que lhe disser respeito. Entretanto, e isto soa paradoxal, embora

    o questionamento a respeito das origens seja fonte de perturbao, mais perturbador

    ainda o estado de total desconhecimento das origens. E, seguindo uma gradao, mais

    perturbador do que essa situao de total desconhecimento o estado no qual tomamos

    conhecimento da impossibilidade de se perguntar sobre as origens com esperana de

    obter alguma resposta minimamente aceitvel. Por um lado, se a busca pelas origens nos

    perturba por evidenciar nossos limites, tambm devemos reconhecer que ela nos

    conforta ao oferecer a possibilidade de algum espao originrio ao qual podemos

    pertencer. Por outro lado, a impossibilidade de se fixar uma origem no parece ter

    nenhuma contraparte confortante, pois ela provoca um sentimento eterna e

    constantemente renovado de desenraizamento. No campo da epistemologia, um dos

    resultados mais notveis dos argumentos peirceanos (que esto envolvidos no

    estabelecimento de um pensamento propriamente semitico) nos levar a crer que no

    possvel se fixar uma origem para os nossos processos de conhecimento. No h

    fundao possvel para nosso sistema de crenas.

    inegvel que haja algo de perturbador nos escritos de Peirce. A filosofia peirceana

    possui um componente fortemente aversivo aos brios da civilizao, ao culto da

    estabilidade e, no campo da epistemologia, ao enaltecimento da razo como provedora

    de repostas definitivas. Este componente, ao qual nos referimos com a metfora um

    tanto vaga do fluxo, pode ser responsabilizado por este sentimento de incmodo. Este

    componente seria a marca da impresso de que h algo fora do lugar. No pretendemos

    nesta tese traar correlaes da filosofia peirceana com processos da histria humana

    contados em larga escala de tempo (como a marcha civilizatria que torna nosso

    passado nmade cada vez mais remoto) ou com processos evolutivos cuja ocorrncia se

    distribui por um intervalo maior ainda de tempo (como a histria evolutiva que levou

    nossos crebros ao vcio da busca por padres, regularidades, estabilidade, etc.). Nem

    pretendemos, por meio de comparaes quase sempre inusitadas, encaixar Peirce dentro

    do clima ps-moderno de fins de sculo XX: a era do pensamento mole. Nossas

    intenes so bem mais humildes e precisas. Como deve ter ficado claro j no nosso

    texto introdutrio, nesta tese, pretendemos apresentar um panorama do surgimento da

  • 12

    semitica peirceana para dentro dela localizar o conceito de interpretante, que, de

    acordo com nossa interpretao, deve ser correlacionado noo de recursividade ou

    regra recursiva.

    Como veremos, a semitica e tambm a epistemologia em torno da qual ela construda

    tm como um dos principais objetivos sustentar a seguinte tese: todo processo de

    conhecimento que termina por estabelecer alguma crena sempre falvel e este estado

    de crena resultante sempre provisrio. De acordo com as linhas argumentativas

    desenvolvidas por Peirce (e que analisaremos nas prximas centenas de pginas), o

    motivo deste falibilismo a tese tambm peirceana de que sempre h um resduo de

    incerteza contido em qualquer crena que possamos obter. Em linhas gerais, a semitica

    est inserida num corpo terico que funciona (dentro do sistema filosfico peirceano)

    como uma retumbante lio de humildade epistemolgica. O problema que, a partir de

    algumas perspectivas mais habituais, esta lio s parece poder ser assimilada como

    uma derrota da razo. Se partirmos do pressuposto que o conjunto de nossas faculdades

    cognitivas deveria nos permitir, em determinadas condies, obter conhecimento

    absoluto acerca do mundo, bvio que uma teoria que estabelea que, na prtica, nosso

    conhecimento provisrio e falvel deve ser interpretada como uma derrota da razo.

    Os resultados de uma teoria falibilista, neste contexto, so claramente decepcionantes.

    Por isso, no incomum que sintamos certo incmodo na leitura de passagens da obra

    peirceana. Nos escritos que vamos analisar, notaremos que Peirce investe grande parte

    de sua energia para desmontar estes pressupostos que nos impedem de aceitar o

    falibilismo exceto como um fracasso da razo5.

    Como estamos numa regio introdutria deste texto, esta localizao nos permite um

    pouco de liberdade com relao ao modo de expresso. Tentemos algumas comparaes

    mais metafricas para que comecemos a esclarecer por qual motivo os escritos

    peirceanos, ainda que levem a noo de incerteza para dentro da teoria do

    conhecimento, no devem ser lidos como um elogio incerteza, ao erro, ou seja, uma

    apologtica da irracionalidade. Que a espcie humana tenha pavor do estado de

    incerteza nos parece fora de discusso. Prova disso que nos ltimos tempos, para

    cercar o acaso, acu-lo, domin-lo, temos inventado enormes sistemas de previdncia

    social (que os estados nacionais mal conseguem sustentar) e os mais incrveis sistemas

    privados de seguro e contrasseguro projetados para nos proteger contra doenas, pestes,

    epidemias, roubos, assaltos, sequestros, atentados, acidentes de trnsito, terremotos,

    tsunamis, erupes vulcnicas e qualquer outro evento que parea estar nas mos do

    acaso. O combate contra o acaso permanente e a vitria definitiva contra a fonte

    geradora de incertezas parece ser uma questo de honra para uma espcie que ostenta

    um crebro to grande, pesado e caro do ponto de vista evolutivo. Aprendemos a

    5 De acordo com interpretao de Santaella, a concepo de razo que emerge dos escritos de Peirce

    muito distinta daquela que pode ser encontrada noutros sistemas propostos por filsofos modernos. Para

    Santaella, a concepo peirceana de razo muito distante daquela elaborada, por exemplo, no

    pensamento hegeliano, uma vez que, para Peirce, no h um ponto de fuga pr-estabelecido na forma do

    Absoluto, mas a mudana a essncia inalienvel prpria da "razo, que, sem perder nunca a interao com

    os fatos brutos do mundo, est sempre em estado de incompletude, num processo cujo fim est

    permanentemente em aberto" (Santaella, 1994, p. 195).

  • 13

    acreditar piamente que foi por isso mesmo que fizemos uma revoluo cientfica h

    algum tempo atrs. As concepes mais instrumentais de cincia (essas, mais fceis e

    palatveis, que ensinamos para as crianas nas escolas) nos dizem que conhecimento

    serve para que nos emancipemos da tirania de uma natureza que s capaz de evoluir

    (aparentemente) de forma lenta e cega, como se caminhasse lentamente para prolongar

    seu deleite dos sabores do acaso. Ao contrrio da natureza, temos pressa e sabemos

    onde queremos chegar (ao menos esta a imagem que temos feito de ns mesmos).

    Como estamos em combate permanente com o estado de incerteza, entrar num estado no

    qual a incerteza a nica constante, ainda que residual, perturbador. Para exemplificar

    como a constncia de um estado de incerteza perturbadora para seres humanos,

    podemos apresentar um caso proveniente da psicologia. altamente desaconselhvel

    comear com um exemplo de psicologia a sustentao de uma tese que pretende se

    concentrar no elemento lgico da obra de um filsofo que se definia como lgico (e que

    pode ser considerado um dos primeiros a defender uma viso anti-psicologista da

    lgica). Entretanto, as vaguezas contidas nas metforas, s vezes, sugerem com

    facilidade o que a preciso dos argumentos s parece conseguir expressar mediante

    esforo colossal do intelecto. Alm do mais, como afirmamos, a regio do texto em que

    nos encontramos nos concede margem para manobras (puramente) retricas.

    Que se observe ou ao menos que se imagine o esprito em permanente estado de

    perturbao de pais cujos filhos desapareceram nalgumas tragdias histricas (das quais,

    alis, o sculo XX esteve repleto) como guerras, ditaduras, genocdios, etc. H uma

    distncia considervel entre constatarmos que uma pessoa est morta e imaginarmos

    que ela o esteja por causa de sua ausncia, de seu desaparecimento em condies que

    nos levam a crer que ela esteja morta. possvel que parte da importncia de nossos

    ritos fnebres esteja justamente neste ato de constatao. Ao contrrio da morte

    confirmada por alguns de nossos ritos fnebres, como o enterro ou a cremao, quando

    uma pessoa desaparece em condies que nos levam a crer que ela esteja morta,

    aparentemente nossa imaginao se sente mais vontade para alimentar a esperana de

    que o desaparecido retorne algum dia. As ditaduras instaladas na Amrica Latina na

    segunda metade do sculo XX (dentro do contexto da Guerra Fria) utilizaram o

    desaparecimento como estratgia poltica para controlar setores mais revoltosos da

    populao. Por estes dias, sistemtica e institucionalmente torturava-se, matava-se e

    privavam-se famlias do direito ancestral de enterrar seus mortos. Imagine os

    pensamentos que "percorrem" de tempos em tempos as circunvolues do crebro de

    uma me cujo filho desapareceu nestas condies. de se supor que, se a esta me fosse

    dada a oportunidade de ver e enterrar o corpo de seu filho, ela poderia ter certeza de que

    nunca mais voltaria a v-lo. Porm, sem a materialidade do corpo, como se a morte

    no se concretizasse para a mente daqueles que conheciam a pessoa e, assim, o corao,

    na contramo da razo, envia para o crebro mensagens para que este inclua em seus

    clculos (que projetam cenrios e futuros possveis) a possibilidade de que aquela

    pessoa desaparecida retorne. Por menor que seja (de um ponto de vista racional), esta

    probabilidade parece muito grande toda vez que nela se pensa. Isto mantm a mente

    inquieta. No h estado de repouso. A fonte de perturbao justamente o fato de que

  • 14

    esta possibilidade permanece eternamente aberta. O mecanismo que faz funcionar esta

    espcie de tortura continuada est justamente no fato de que esta porta no parece poder

    ser fechada nunca.

    Embora seja moralmente execrvel, deve-se reconhecer que esta "estratgia do

    desaparecimento" altamente eficiente para os fins para os quais foi desenvolvida, a

    saber, perpetuar o sofrimento (que inicialmente apenas) de um indivduo para alm de

    sua morte, atingindo pessoas que lhe so prximas com o intuito de disseminar o medo

    dentro (de alguns setores) de uma sociedade. O princpio maquiavlico por trs desta

    estratgia no nenhuma novidade: planta-se medo para colher obedincia. De

    atrocidades a histria humana no carece. O que foi novidade no sculo XX foi a escala

    em que as atrocidades foram cometidas e o maquinrio institucional, calculadamente

    construdo pela engenhosa razo humana, para comet-las, o que explica a eficincia.

    Ainda que tenhamos introduzido este exemplo como um caso de psicologia, provvel

    que a eficincia desta "tortura do desaparecimento" no possa ser explicada somente por

    algumas especificidades, algumas fraquezas da estrutura psquica humana, mas este

    lamentvel sucesso parece residir no fato de tal violncia ser capaz de atingir

    coletivamente seres humanos e feri-los numa regio muito sensvel do "corpo social":

    um direito adquirido to logo nos tornamos isso que somos. Se levarmos em

    considerao que ritos fnebres so um dos primeiros traos comportamentais a nos

    distinguir de outros animais e tambm considerarmos a incontvel quantidade de

    camadas simblicas que viemos sobrepondo durante todos esses milnios a estes ritos,

    notaremos sem muita dificuldade que negar ao homem a oportunidade de enterrar seus

    mortos um crime cometido contra a espcie (e no somente contra indivduos espao-

    temporalmente situados). Esta tortura continuada, esta perturbao constantemente

    renovada um dos efeitos de longo prazo mais nocivos dessas ditaduras, espcie de

    efeito letal da radiao que vai atravessar geraes. Antes de abandonarmos este

    exemplo, notemos que o que tortura aquela me cujo filho desapareceu (naquelas

    condies descritas) o pensamento renitente acerca da possibilidade de seu retorno. O

    mecanismo responsvel pela tortura funciona justamente porque esta possibilidade

    mantida aberta. como se a porta da casa dessa famlia no pudesse ser fechada. Ela

    permanece sempre aberta ou, que seja, entreaberta. Nunca totalmente fechada.

    A perturbao no esprito provocada pela aceitao de algumas teses peirceanas parece

    funcionar segundo este mesmo mecanismo da "porta eternamente entreaberta". O

    incmodo em aceitar a tese de que no h fundao completamente segura para o

    conhecimento humano est no pressuposto de que deveria haver alguma fundao desse

    tipo. Aceitar a tese de que a incerteza uma espcie de resduo irredutvel de qualquer

    crena s parece desconfortvel para aqueles que pressupem a possibilidade do

    conhecimento certo e seguro. Bem no incio de sua carreira filosfica, uma das

    primeiras tarefas s quais Peirce se dedicou (como veremos) foi questionar estes

    pressupostos e provar que era possvel estabelecer teorias que explicassem as faculdades

    cognitivas do homem sem recorrer nem sequer possibilidade de conhecimento

    absolutamente certo e seguro. Um dos primeiros movimentos da filosofia peirceana

  • 15

    fechar esta porta. Da perspectiva peirceana, enquanto nos movermos nos interiores de

    teorias que nos permitem sistematicamente alimentar a esperana de alcanar um ponto

    originrio, uma fundao inabalavelmente segura para o conhecimento humano, sempre

    teremos nosso esprito invadido por um mal-estar toda vez que percebemos que ainda

    no atingimos este ponto. como se todas as nossas crenas fossem ilegtimas.

    Sentiremo-nos mal toda vez em que percebemos que nossos edifcios (por mais

    imponentes e complexos que sejam) no possuem fundaes seguras. Observada do

    ponto de vista de um projeto fundacionalista como aquele defendido por Descartes nos

    primeiros dias da modernidade, a filosofia peirceana uma vertigem.

    Demos este volteio retrico s para informar que, durante os primeiros trs captulos

    desta primeira parte da tese, vamos tratar das origens da semitica no desenvolvimento

    do pensamento peirceano. E, como o leitor deve ter percebido, origem um tema caro a

    Peirce. Pode-se estabelecer como data oficial para o nascimento da semitica peirceana

    a publicao do artigo "Questes concernentes a certas faculdades reivindicadas para o

    homem". A tese central deste artigo uma proposio que equaciona o conceito de

    pensamento ao conceito de signo: "todo pensamento pensamento em signos" (CP

    5.253 [1868])6. Este artigo o primeiro de uma srie de trs textos que compem o que

    os estudiosos da obra peirceana passaram a chamar de "srie sobre a cognio" ou

    simplesmente "srie cognitiva". Este conjunto de textos constitui uma estrutura

    argumentativa nica cujo propsito ltimo fornecer uma resposta pergunta que

    Peirce formulou como problema filosfico maior: como so possveis as snteses, como

    possvel o raciocnio sinttico? Transcrevemos a seguir a formulao deste problema7

    pelas prprias palavras do filsofo:

    De acordo com Kant, a questo central na filosofia "como so possveis os

    juzos sintticos a priori ?" Porm, antes desta pergunta, vem a questo como

    so possveis os juzos sintticos, em geral, e de forma mais geral ainda,

    como o raciocnio sinttico possvel? Quando a resposta a este problema

    geral tiver sido obtida, aquele problema particular ser comparativamente

    mais simples. Este a fechadura na porta da filosofia.

    (CP 5.348 [1868])8

    Dez anos mais tarde, Peirce volta a tratar este problema como central.

    Ao final do ltimo sculo, Immanuel Kant levantou a questo "como so

    possveis os juzos sintticos a priori ?" Por juzos sintticos, ele se referia A

    juzos que afirmam fatos positivos e no so questo de mero arranjo; em

    resumo, estes so os juzos do tipo produzido por raciocnio sinttico e que os

    raciocnios analticos no podem produzir. Por juzo a priori, ele se refere

    6 No original: "all thought is in signs". A traduo para o portugus que Santaella oferece em suas obras

    sobre semitica peirceana a seguinte: "todo pensamento se d em signos" (cf. Santaella, 1994, p. 44). 7 Este trecho foi retirado do segundo artigo da srie cognitiva.

    8 No original: " According to Kant, the central question of philosophy is "How are synthetical judgments

    a priori possible?" But antecedently to this comes the question how synthetical judgments in general, and

    still more generally, how synthetical reasoning is possible at all. When the answer to the general problem

    has been obtained, the particular one will be comparatively simple. This is the lock upon the door of

    philosophy".

  • 16

    queles juzos que afirmam, por exemplo, que todos os objetos externos esto

    no espao, todo evento tem uma causa, etc., proposies que, de acordo com

    ele, no podem ser inferidas da experincia. No tanto por sua resposta, mas

    simplesmente por ter levantado tal questo, toda a filosofia de seu tempo foi

    estilhaada, destruda e uma nova poca na histria da filosofia nasceu.

    Entretanto, antes de ter feito tal pergunta, ele deveria ter feito uma pergunta

    mais geral: "Como so possveis os juzos sintticos, em geral?" Como

    possvel que um homem possa observar um fato e, em seguida, pronunciar

    um juzo a respeito de outro (distinto) fato que no esteja envolvido no

    primeiro? Este um paradoxo estranho. O abade Gratry afirma ser um

    milagre; e que toda induo verdadeira uma inspirao imediata das alturas.

    Respeito esta explicao muito mais que outras tentativas pedantes de

    resolver a questo a partir de malabarismos com probabilidades, com formas

    de silogismos, o que deixa de ser. Respeito porque esta explicao demonstra

    uma apreciao da profundidade do problema, porque ela atribui uma causa

    adequada e tambm porque ela est intimamente concectada como uma

    verdadeira explicao deve estar com uma filosofia geral do universo. Ao

    mesmo tempo, no aceito este tipo de explicao, pois uma explicao deve

    nos revelar como algo feito, e afirmar a existncia de um milagre perptuo

    parece ser um abandono de toda esperana de fazer isso [revelar como algo

    feito], sem justificativas que sejam suficientes.

    (CP 1.690 [1878])9

    A semitica nasce associada a uma teoria da cognio que foi apresentada por Peirce

    como uma alternativa s teorias epistemolgicas que, ao recorrerem ao conceito de

    intuio, tornam-se incapazes de fornecer uma explicao aceitvel a respeito do

    funcionamento e da possibilidade do raciocnio sinttico. Construir um corpo terico

    livre (ou quase livre) do conceito de intuio custou a Peirce algumas dezenas de

    pginas de paciente anlise e minuciosa desconstruo dos posicionamentos

    epistemolgicos dominantes na filosofia moderna, aos quais se referia com a rubrica

    "cartesianismo" ou "esprito do cartesianismo", e custou-lhe tambm um esforo

    descomunal para operar um deslocamento de perspectiva que o permitisse explicar

    9 No original: Late in the last century, Immanuel Kant asked the question, "How are synthetical

    judgments a priori possible?" By synthetical judgments he meant such as assert positive fact and are not

    mere affairs of arrangement; in short, judgments of the kind which synthetical reasoning produces, and

    which analytic reasoning cannot yield. By a priori judgments he meant such as that all outward objects

    are in space, every event has a cause, etc., propositions which according to him can never be inferred

    from experience. Not so much by his answer to this question as by the mere asking of it, the current

    philosophy of that time was shattered and destroyed, and a new epoch in its history was begun. But before

    asking that question he ought to have asked the more general one, "How are any synthetical judgments at

    all possible?" How is it that a man can observe one fact and straightway pronounce judgment concerning

    another different fact not involved in the first? Such reasoning, as we have seen, has, at least in the usual

    sense of the phrase, no definite probability; how, then, can it add to our knowledge? This is a strange

    paradox; the Abbe Gratry says it is a miracle, and that every true induction is an immediate inspiration

    from on high. I respect this explanation far more than many a pedantic attempt to solve the question by

    some juggle with probabilities, with the forms of syllogism, or what not. I respect it because it shows an

    appreciation of the depth of the problem, because it assigns an adequate cause, and because it is

    intimately connected--as the true account should be--with a general philosophy of the universe. At the

    same time, I do not accept this explanation, because an explanation should tell how a thing is done, and to

    assert a perpetual miracle seems to be an abandonment of all hope of doing that, without sufficient

    justification" (trecho retirado de um captulo do Lgica crtica [critical logic]; stimo captulo, intitulado a

    probabildiade da induo [the probability of induction]).

  • 17

    todas as faculdades cognoscitivas que as teorias adversrias explicavam e ainda explicar

    aquilo que, de acordo com sua crtica, os recursos conceituais das teorias adversrias

    tornavam inexplicvel: a possibilidade de sntese10

    .

    De forma bem geral, a semitica pode ser entendida como um aparato conceitual que

    tornou possvel esse deslocamento de perspectiva. Uma teoria da cognio baseada no

    conceito de signo (e no no conceito de intuio) uma teoria que explica a ligao

    entre (a abstrao na mente de) o sujeito cognoscente e o objeto como uma relao

    sgnica, uma relao de representao, portanto uma relao indireta. Como

    pretendemos demonstrar nas prximas centenas de pginas, justamente esta teoria

    semitica da cognio (cuja tese central o equacionamento entre o conceito de

    pensamento e o conceito de signo) que permite a Peirce encontrar uma soluo para o

    problema do raciocnio sinttico. Entretanto, para poder enunciar sua soluo para tal

    problema, Peirce reorganizou as posies das peas do jogo epistemolgico redefinindo

    algumas das funes de cada uma delas. Quase nenhum conceito relevante do campo

    epistemolgico passou inclume a deciso peirceana de se lanar numa cruzada contra

    as epistemologias de base intuicionista e de se propor a erigir uma teoria sobre base

    diversa. Dentro deste quadro terico e em consequncia de sua tese central, Peirce

    precisou propor alteraes (s vezes, drsticas e profundas) em conceitos como o de

    sujeito cognoscente, objeto, verdade, realidade, pensamento, conscincia, etc. As

    consequncias do estabelecimento de uma teoria semitica da cognio so

    apresentadas nos dois outros artigos que compem a srie cognitiva: "Algumas

    consequncias das quatro incapacidades" ("Some Consequences of Four Incapacities"),

    publicado em 1868; e "Fundamentos da validade das leis da lgica: outras

    consequncias das quatro incapacidades" ("Grounds of Validity of the Laws of Logic:

    Further Consequences of Four Incapacities"), publicado em 1869.

    Neste terceiro artigo ("Fundamentos da validade das leis da lgica: outras

    consequncias das quatro incapacidades"), Peirce defende uma teoria acerca dos

    raciocnios ampliativos (o que inclui, para a filosofia peirceana, uma teoria da induo e

    10

    Esta verso da histria do desenvolvimento da semitica no pensamento peirceano que apresentamos

    neste captulo ignora uma espcie de "pr-histria" da semitica (na filosofia antiga e medieval). Na

    verdade, de acordo com alguns historiadores, a semitica nasce,de fato, como doutrina dos signos, no

    pensamento escolstico. Com relao a este perodo de gestao da doutrina dos signos no ventre do

    pensamento escolstico, podemos indicar dois livros do semioticista norte-americano John Deely:

    Introduo semitica Histria e Doutrina (1995) e Semitica bsica (1990). Deely tem realizado

    h dcadas um admirvel esforo para trazer luz uma poca, por ele e por outros (cf. Randall apud

    Deely, 1995, p.59), considerada como o perodo menos conhecido da histria da filosofia ocidental.

    Esta terra incognita vai de 1350 (ano da morte de Guilherme de Ockham que representa um dos

    pontos culminantes da filosofia escolstica [latina] e um dos ltimos pensadores considerados pela

    historiografia oficial como filosoficamente relevante) at 1650 (ano da morte de Descartes pensador

    ps-latino e pai da filosofia moderna). So nestas terras que so plantadas, de acordo com as pesquisas

    e os levantamentos histricos realizados por Deely, as primeiras sementes de um pensamento

    propriamente semitico. Em outros textos (1986, p.5), o semioticista trata este perodo como aquele que

    favoreceu um lento processo de coalescncia da conscincia semitica embora tenha sido apenas na

    passagem entre os sculos XIX e XX que Peirce obteve uma viso geral e sistmica do territrio da

    semitica (em toda a sua extenso e capacidade revolucionria de constituir-se num novo incio para toda

    a empresa da filosofia [1995, p.79 e 1986, p.16]). No lhe faltaram motivos, como veremos, para

    denominar a compreenso peirceana da semitica de A Grande Viso (Deely, 1996, p. 45).

  • 18

    da hiptese) segundo a qual o raciocnio indutivo pode ter sua validade fundamentada se

    for observada uma condicionante bsica: tal raciocnio deve ser aplicado por um tempo

    indefinidamente longo por uma comunidade indefinida de pesquisadores. Esta soluo

    oferecida ao que considera ser o problema maior da filosofia, s se torna disponvel a

    partir de duas reformulaes conceituais efetuadas no segundo dos artigos da srie

    ("Algumas consequncias das quatro incapacidades"). A primeira dessas reformulaes

    conceituais aquela que torna o sujeito cognoscente uma espcie de sujeito coletivo ao

    substituir a noo de indivduo por uma noo de comunidade indefinida de

    pesquisadores e a segunda delas a reformulao do conceito de realidade, que passa a

    ser um ser in futuro, i.e., um ponto de convergncia ao qual tendem todas as linhas de

    investigao levadas a cabo por aquela comunidade indefinida de pesquisadores. Como

    todas essas teorias esto encaixadas dentro de uma estrutura nica de argumentao que

    tem o objetivo de fornecer uma resposta para o problema dos raciocnios ampliativos ou

    sintticos, estas reformulaes (do conceito de sujeito cognoscente e de realidade) so

    consequncias diretas da teoria da cognio defendida no primeiro artigo da srie

    ("Questes concernentes a certas faculdades reivindicadas para o homem"). Assim,

    podemos resumir da seguinte forma esta estrutura nica de argumentao por trs dos

    artigos que compem a srie cognitiva: a teoria peirceana sobre a fundamentao das

    leis da lgica e, em particular, sua teoria acerca dos raciocnios ampliativos (i.e.

    sintticos), apresentadas no terceiro artigo da srie, so uma consequncia da teoria

    peirceana da realidade, apresentada no segundo artigo; esta ltima, por sua vez, uma

    consequncia da teoria peirceana da cognio, elaborada, principalmente, no primeiro

    artigo da srie (mas que tambm foi desenvolvida no segundo artigo).

    Portanto, a semitica surge dentro do quadro terico da srie cognitiva como uma

    espcie de teoria generalizada das representaes elaborada com o intuito de explicar

    como so possveis as snteses (como possvel o raciocnio sinttico em geral). O

    cerne da explicao fornecida por Peirce nestes trs textos que a sntese depende de

    um processo de representao que possui uma estrutura na qual entra certo nmero de

    elementos indispensveis para que o mecanismo de sntese funcione adequadamente.

    Tanto a estrutura desse processo de representao (o mecanismo que lhe subjacente)

    como quantos e quais eram seus elementos tinham sido descritos por Peirce num artigo

    intitulado "Sobre uma nova lista de categorias" ("On a New List of Categories"),

    publicado no ano de 1867 no Proceedings of the American Academy of Arts and

    Sciences. Neste artigo, Peirce apresenta sua teoria de categorias (que so conceitos

    universais presentes em toda experincia) e, a partir destas, consegue estabelecer a

    estrutura tridica do signo (ou do processo representativo) e, assim, fixar o papel de

    cada um de seus elementos durante o processo de representao. justamente neste

    artigo que Peirce consegue atingir uma definio formal e precisa do terceiro elemento

    do signo, o interpretante, o que o permite descrever o mecanismo de representao que,

    de sua perspectiva terica, capaz de explicar o funcionamento das snteses (do

    raciocnio sinttico). Portanto, a partir da teoria exposta neste artigo, Peirce tem sua

    disposio aquele maquinrio conceitual (os princpios bsicos ou, ao menos, o

    mecanismo do conceito bsico de sua semitica [que a ideia de representao]) que

  • 19

    ser mobilizado durante a srie cognitiva para fornecer uma resposta ao problema

    filosfico das snteses. Ainda que consideremos que o nascimento oficial da semitica

    peirceana seja a enunciao da tese central do primeiro artigo da srie cognitiva, no se

    pode deixar de notar que j estava presente em escritos muito anteriores e acabou por

    tomar forma (praticamente definitiva11

    ) na teoria das categorias o mecanismo sgnico ou

    representacional pelo qual a semitica, em geral, e o conceito de signo, em particular,

    viriam a se tornar ferramentas tericas indispensveis para se explicar as faculdades

    cognoscitivas e, ao mesmo tempo e em ltima instncia, tornar possvel a validao do

    raciocnio ampliativo ou sinttico.

    J no ano de 1865, quando convidado para uma srie de palestras em Harvard (W1;

    165-301), Peirce, em meio a reflexes sobre Kant, Boole, Mill e tambm sobre os

    fundamentos da induo, dedica um considervel espao para marcar enfaticamente

    posio contra uma viso psicologista da lgica e propor que a lgica fosse entendida

    como uma espcie de "cincia das representaes em geral" (W1; 169 [1865]). neste

    contexto que Peirce toma emprestado o termo "semitica", cunhado por Locke no

    "Ensaio sobre o entendimento humano" (obra publicada 1690)12

    . Nestas palestras, j

    aparecem as primeiras classificaes sgnicas (cf., por exemplo, W1; 237 [1865]) e

    alguns temas fundamentais para o pensamento peirceano que posteriormente seriam

    englobados pela semitica, como a tese a respeito do crescimento dos smbolos (que o

    modo como Peirce trata o problema da ampliao de um sistema de conhecimento). Por

    exemplo, ainda nestas palestras ministradas em Harvard em 1865, Peirce apresenta uma

    "lgica da informao" justamente para abrigar uma teoria a respeito do crescimento

    dos smbolos (W1; 272).

    No ano seguinte, quando convidado para uma srie de palestras no Lowell Institute,

    em Boston (W1; 358-504 [1866]), Peirce continua a desenvolver muitas destas ideias e

    j comea a se aproximar da definio de signo desenvolvida no Sobre uma nova lista

    de categorias (em 1867). Na stima destas palestras (outubro-novembro de 1866),

    pode-se notar que Peirce j utiliza o termo interpretante (W1, 465 [1866]) para

    designar aquele elemento que resultado de um processo de representao13

    . Este termo

    j tinha sido introduzido alguns meses antes, em maro de 1866 (W1; 347), numa

    11

    A estrutura tridica dentro da qual o signo definido neste artigo e tambm as funes de cada um de

    seus elementos seguiram praticamente inalteradas durante todo o desenvolvimento do pensamento de

    Peirce. Acreditamos que as mudanas que o conceito de signo e tambm o conceito de representao (que

    mobilizado pela definio peirceana signo) sofreram ao longo do tempo no alteraram a essncia dessas

    concepes. Estas mudanas funcionaram como uma evoluo direcionada, como um aprofundamento.

    Para um timo histrico da evoluo do conceito de representao em Peirce, consultar o artigo de

    Winfried Nth (2011b) intitulado "Da representao Terceiridade e do Representamen ao Medium: a

    evoluo de termos-chave e tpicos-chave peirceanos ("From Representation to Thirdness and

    Representamen to Medium: Evolution of Peircean Key Terms and Topics"). 12

    cf. captulo XXI ("sobre a diviso das cincias") do quarto livro ("sobre conhecimento e

    probabilidade") do Ensaio de Locke. 13

    Nesta palestra, o conceito de interpretante, embora ainda esteja fora da estrutura tridica (na qual ser

    encaixado posteriormente) j definido com a funo de substituio ("surrogate"). Neste contexto, o

    interpretante entendido como um segundo termo que se apresenta como equivalente a um primeiro

    termo. O trecho em questo (Lowell Lecture VII W1, 464-5 [1866]) ser apresentado e analisado no

    texto introdutrio ao dcimo segundo captulo.

  • 20

    anotao sobre as partes que compem um argumento, embora neste trecho Peirce no

    oferea definio do que entende por interpretante. De acordo com um levantamento

    feito por Max Fisch (texto introdutrio do W1,1982, p. xxxiii), se observamos os

    escritos de Peirce poca, notaremos que ele experimenta, por algum tempo, alguns

    termos como "sujeito" ("subject") ou "correspondente" ("correspondent") e, ao se

    aproximar do fim do ano de 1866, quando provavelmente nota que a novidade

    subjacente ao conceito que pretendia nomear exigia um nome novo, acaba por cunhar o

    termo "interpretante".

    Acreditamos que a histria da origem da semitica dentro pensamento peirceano ou a

    histria de como a semitica passou a ser central para toda a sua filosofia pode ser

    contada como uma narrativa a respeito do modo como Peirce, ao longo da dcada de

    1860, vai gradualmente se afastando da matriz kantiana na qual seu pensamento foi

    (inicialmente) moldado. Esta afirmao acerca deste afastamento pertence a um tema

    muito debatido entre os estudiosos da obra peirceana, pois h uma corrente de

    intrpretes que sustentam a tese de que existem "dois Peirces", h uma tenso no-

    resolvida entre transcendentalismo e naturalismo. A formulao clssica desse problema

    relativo a esta tenso no pensamento peirceano pode ser encontrada no livro "O

    empirismo de Charles Peirce" ("Charles Peirce's empiricism") de Justus Buchler (1939)

    e tambm no livro "O pensamento de C. S. Peirce" ("The Thought of C. S. Peirce) de

    Thomas Goudge (1969 [1950]). No pretendemos entrar neste debate mais amplo por

    dois motivos: primeiro, porque a inteno desta parte inicial de nossa exposio

    simplesmente apresentar o cenrio (do pensamento peirceano) para que localizemos

    nossa tese central; segundo, ainda que quisssemos, no teramos "munio" suficiente.

    Embora o artigo seminal "Sobre uma nova lista de categorias" tenha sido produzido sob

    uma inegvel influncia kantiana, nossa tese (com relao a este ponto) que a teoria

    peirceana das categorias j no se encaixa dentro dos limites do que geralmente se

    entende por filosofia kantiana14

    no apenas pelo fato das listas de categorias destes dois

    filsofos serem bastante distintas, mas pelo fato de a prpria derivao (peirceana) das

    categorias j ser fruto de uma concepo semitica da lgica que inviabiliza um dos

    principais recursos conceituais utilizados por Kant na "Crtica da Razo Pura": o

    conceito de intuio. verdade que alguns termos emprestados da "Crtica da Razo

    Pura" ainda so empregados na exposio que Peirce fez de sua lista de categorias.

    Tambm verdade que o ponto de partida deste artigo uma teoria kantiana (aquela, "j

    estabelecida", segundo a qual a funo dos conceitos reduzir a multiplicidade das

    impresses dos sentidos unidade cf. CP 5.545 [1867]) e tambm no deixa de ser

    verdade que a prpria formulao do problema a ser resolvido tem um teor kantiano

    ("como so possveis as snteses?"). Entretanto, o artigo "Sobre um nova lista de

    categorias" pode at ser considerado kantiano na letra, mas j peirceano no esprito.

    14

    Alguns autores consideram o afastamento de Peirce com relao a Kant uma condio para o

    estabelecimento da "nova lista de categorias". Por exemplo, Andre De Tienne (1989, p. 389-90) entende

    que a busca peirceana pelas categorias levada a cabo sobre uma teoria da cognio que, por sua vez, s

    pde ser construda a partir da rejeio de algumas doutrinas tradicionais dentro da epistemologia. Dentre

    estas doutrinas rejeitas por Peirce, de acordo com De Tienne, est o transcendentalismo.

  • 21

    O que pretendemos mostrar com este breve panorama (acompanhado de algumas

    poucas anlises) que a semitica peirceana pode ter suas origens esclarecidas quando

    passamos a elencar os motivos que levaram Peirce a abandonar o projeto kantiano

    enunciado na Crtica. Nossa tese que estes motivos so essencialmente lgicos. Estes

    motivos foram se acumulando graas a descobertas realizadas no nico "laboratrio" do

    qual se pode dizer que Peirce trabalhou durante toda sua vida, o campo da lgica. Como

    se sabe, por trs do sistema de categorias de Kant est um sistema de funes lgicas.

    Cada categoria pertencente lista de categorias kantianas derivada de alguma funo

    lgica pertencente lista de funes lgicas (do juzo). O progressivo afastamento de

    Peirce com relao a Kant parece ter sido motivado por descobertas no campo da lgica

    que resultaram de algumas pesquisas que se estendem do ano de 1864 at 1866.

    Acreditamos que este afastamento comea quando, em 1864 (cf. MS 477), Peirce

    descobre o primeiro problema numa das trades das funes lgicas (mobilizada por

    Kant para derivar suas categorias) e se prova irreversvel quando, j ao final de 1866,

    publica um artigo sobre silogismo aristotlico15

    em que fica claro que sua concepo de

    lgica no pode ser conciliada com aquela que Kant mobilizou para derivar as

    categorias. So estas descobertas no campo da lgica que o leva a propor sua prpria

    lista de categorias.

    Quando afirmamos que a semitica nasce da separao do pensamento peirceano da

    matriz kantiana no significa que Peirce tenha resolvido se exilar em "terras pr-

    crticas". No parece haver uma linha nos escritos que nos permita afirmar que o projeto

    filosfico de Peirce a partir 1867 seja reverter a Revoluo Copernicana operada por

    Kant no campo da epistemologia. Como tal afastamento se d por conta daquilo que

    Peirce denominou de "avanos mais recentes nas pesquisas no campo da lgica" (cf.

    W1, p. 352 [1866]) e a lgica que est por trs das categorias que permitiram o

    movimento de inverso copernicana, pode-se afirmar que o conflito (entre o pensamento

    peirceano e kantiano) que origina a semitica peirceana ocorre nos bastidores da

    revoluo copernicana da "Crtica da Razo Pura". No por outro motivo que, em seu

    estudo clssico sobre o desenvolvimento do sistema filosfico de Peirce, Murray

    Murphey denomina o pensamento peirceano de "fenomenalismo semitico" (1993

    [1961], p. 90).

    Antes de passarmos ao panorama histrico e filosfico acima anunciado, devemos

    apresentar de forma esquemtica um resumo do desenvolvimento do pensamento

    peirceano. Como nestes captulos nosso intuito reconstruir a estrutura lgica do

    pensamento peirceano nesta fase de surgimento semitica, bvio est que a ordem

    preconizada neste esquema uma ordem lgica (e que no precisa coincidir com a

    ordem cronolgica). Outro ponto que deve ser enfatizado (do qual j tratamos no texto

    introdutrio) que, por opo metodolgica, organizamos toda a exposio a ser feita

    do desenvolvimento do pensamento peirceano a partir do que o prprio Peirce

    considerou como problema central filosofia.

    15

    "Notas sobre o silogismo aristotlico" ("Memoranda concerning the Aristotelian Syllogism") - ( W1,

    505-14 [1866])

  • 22

    Passos lgicos construo inicial do sistema filosfico peirceano

    I) Descobertas no campo da lgica (entre 1864 e 1866) levam ao questionamento

    das categorias kantianas.

    II) Elaborao de uma nova lista de categorias.

    III) A terceira categoria proveniente da nova lista de categorias leva ao

    questionamento de todas as teorias epistemolgicas que posicionam a intuio

    como conceito responsvel por explicar as fundaes do conhecimento.

    IV) O questionamento de todas as teorias epistemolgicas que colocam o conceito

    de intuio naquela "posio fundacional" leva elaborao de uma nova teoria

    da cognio.

    V) A elaborao de uma teoria da cognio (condizente com a teoria das

    categorias e alternativa quelas teorias que recorrem intuio) leva a uma

    reformulao do conceito de realidade e o estabelecimento de uma teoria da

    realidade que considerada compatvel com as descobertas na rea da lgica e

    com a epistemologia de base semitica (inaugurada por Peirce).

    VI) A reformulao do conceito de realidade torna possvel a proposio de uma

    teoria que funciona como uma validao ( prazo) para o raciocnio sinttico (ou

    ampliativo).

    Apresentados de forma esquemtica os primeiros passos do desenvolvimento do

    pensamento peirceano, passemos a expor nosso roteiro para o estabelecimento de nossa

    tese. O movimento geral de nossa exposio partir do macro para o micro.

    Comeamos (nos captulos 2 e 3) por pintar um quadro geral da filosofia peirceana para

    nela localizar o surgimento da semitica. Dentro desse quadro geral, pretendemos

    colocar em evidncia a relao de Peirce com outros filsofos dos quais teve maior

    influncia ou com os quais entrou em debate mais direto. O passo seguinte analisar os

    prprios textos peirceanos. Iniciamos estas anlises (nos captulos 4 - 9) pelo primeiro

    artigo da srie cognitiva, texto no qual Peirce comea a expor sua teoria semitica ou

    inferencial da cognio. Este o nascimento "oficial" de um pensamento propriamente

    semitico dentro do sistema filosfico peirceano. Depois de examinado cuidadosamente

    este primeiro artigo, voltaremos (no captulo 10) nossa ateno ao texto imediatamente

    anterior srie cognitiva e