OS CONTOS-DE-FADAS E A REALIDADE -...

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__________________________________________________________________________________ Revista Eletrônica Saberes da Educação/ano 2018 Faculdade de Administração e Ciências Contábeis OS CONTOS-DE-FADAS E A REALIDADE Ligia Maria Cameschi 1 , FAC-UNINOVE Delly Danitza Lozano Carvalho 2 , FAC-UNINOVE Resumo O presente trabalho consiste num estudo bibliográfico acerca dos contos de fadas na formação e aprendizagem das crianças. Tomando como referência o conto "O Patinho Feio" de Hans Christian Andersen, realiza-se uma interpretação psicanalítica apoiada nas obras de Sigmund Freud com a intenção de elucidar a importância da ciência da Psicanálise na construção do sujeito em formação. A análise do conto é o centro desta tarefa, que nos possibilita relacionar a literatura infantil com os principais conceitos psicanalíticos que estruturam a constituição do aparelho psíquico logo no período da primeira infância. Vale ressaltar que a abordagem pelo viés da teoria da psique humana nos possibilita a percepção dos pontos fundamentais que estão intrínsecos nas histórias utilizadas em sala de aula, o que nos dá a oportunidade de utilizá-los em favor da Pedagogia para uma melhor aplicação e construção do Eu da criança. Palavras-chave: Psicanálise. Contos-de-Fadas. Criança. Introdução Qual criança não se encanta quando o professor abre o livro e começa a narrar uma daquelas maravilhosas histórias infantis? Os olhares atentos e as inúmeras questões que somente os pequenos conseguem formular rapidamente são observados na sala de aula. Diante tais situações surgiu o interesse pelo tema deste trabalho, onde realizarei uma abordagem mais aprofundada sobre os contos de fadas e as influências que eles podem causar na formação da criança e no quanto eles podem auxiliar o pedagogo em seu trabalho. A partir de uma pesquisa bibliográfica, sobretudo nas obras de Sigmund Freud, tentarei demonstrar através de uma perspectiva psicanalista que os contos estão muito além de uma simples narrativa dentro da literatura infantil e que suas estruturas refletem diretamente na vida da criança, que vê na história e nas suas personagens centrais uma imagem ideal com a qual deve realizar-se. Além disso, a construção do Eu é de suma importância nesse projeto, cuja intenção atravessa a temática não apenas como um momento onde as crianças assistem ou ouvem a contação de histórias, mas ao mesmo tempo, a percepção do afloramento dos elementos do inconsciente onde ficam situados as fantasias, desejos e emoções de difícil controle. 1 Lídia Maria Cameschi é Licenciada em Pedagogia pela FAC-UNINOVE. E-mail: [email protected]. 2 Delly Danitza Lozano Carvalho, Mestre em Psicologia Escolar pela UNIFIEO, e Docente da FAC-UNINOVE São Roque-SP, orientou as pesquisas que resultaram neste artigo. E-mail: [email protected].

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Faculdade de Administração e Ciências Contábeis

OS CONTOS-DE-FADAS E A REALIDADE

Ligia Maria Cameschi1, FAC-UNINOVE

Delly Danitza Lozano Carvalho 2, FAC-UNINOVE

Resumo

O presente trabalho consiste num estudo bibliográfico acerca dos contos de fadas na formação e

aprendizagem das crianças. Tomando como referência o conto "O Patinho Feio" de Hans Christian

Andersen, realiza-se uma interpretação psicanalítica apoiada nas obras de Sigmund Freud com a

intenção de elucidar a importância da ciência da Psicanálise na construção do sujeito em formação. A

análise do conto é o centro desta tarefa, que nos possibilita relacionar a literatura infantil com os

principais conceitos psicanalíticos que estruturam a constituição do aparelho psíquico logo no período

da primeira infância. Vale ressaltar que a abordagem pelo viés da teoria da psique humana nos

possibilita a percepção dos pontos fundamentais que estão intrínsecos nas histórias utilizadas em sala

de aula, o que nos dá a oportunidade de utilizá-los em favor da Pedagogia para uma melhor aplicação

e construção do Eu da criança.

Palavras-chave: Psicanálise. Contos-de-Fadas. Criança.

Introdução

Qual criança não se encanta quando o professor abre o livro e começa a narrar uma

daquelas maravilhosas histórias infantis? Os olhares atentos e as inúmeras questões que

somente os pequenos conseguem formular rapidamente são observados na sala de aula.

Diante tais situações surgiu o interesse pelo tema deste trabalho, onde realizarei uma

abordagem mais aprofundada sobre os contos de fadas e as influências que eles podem causar

na formação da criança e no quanto eles podem auxiliar o pedagogo em seu trabalho.

A partir de uma pesquisa bibliográfica, sobretudo nas obras de Sigmund Freud,

tentarei demonstrar através de uma perspectiva psicanalista que os contos estão muito além de

uma simples narrativa dentro da literatura infantil e que suas estruturas refletem diretamente

na vida da criança, que vê na história e nas suas personagens centrais uma imagem ideal com

a qual deve realizar-se. Além disso, a construção do Eu é de suma importância nesse projeto,

cuja intenção atravessa a temática não apenas como um momento onde as crianças assistem

ou ouvem a contação de histórias, mas ao mesmo tempo, a percepção do afloramento dos

elementos do inconsciente onde ficam situados as fantasias, desejos e emoções de difícil

controle.

1 Lídia Maria Cameschi é Licenciada em Pedagogia pela FAC-UNINOVE. E-mail: [email protected].

2 Delly Danitza Lozano Carvalho, Mestre em Psicologia Escolar pela UNIFIEO, e Docente da FAC-UNINOVE

São Roque-SP, orientou as pesquisas que resultaram neste artigo. E-mail: [email protected].

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Para isso estruturaremos tal tarefa em três partes onde:

Na primeira pretendemos demonstrar o caminho utilizado por Freud para alcançar o

resultado que lhe permitiu edificar seu pensamento em uma ciência psicanalítica que abriu as

portas para novas formulações de entender-se o mundo em suas mais diversas possibilidades.

Já na segunda procuraremos adentrar em um dos conceitos centrais que estruturam o

pensamento de Freud, a transferência/contratransferência, no qual me apoiarei para aplicar as

modalidades psicanalíticas no contexto dos contos de fadas utilizados na sala de aula e a

relevância que pode ter na construção do Eu individual na relação aluno/professor.

Aplicando o modelo psicanalítico da personalidade humana, os contos de fada transmitem importantes mensagens à mente consciente, à pré-consciente, e à inconsciente, em qualquer nível que esteja funcionando no momento. Lidando com problemas humanos universais, particularmente os que preocupam o pensamento da criança, estas estórias falam ao ego em germinação e encorajam seu desenvolvimento, enquanto ao mesmo tempo aliviam pressões préconscientes e inconscientes.” (BETTELHEIM,1980, p. 14).

E por último, na terceira, com a ajuda da psicanálise e sua aplicação dela nos estudos

dos contos de fadas, analisaremos o conto O Patinho Feio do autor Hans Christian Andersen e

procuraremos realizar uma compreensão dos desejos e afetos que podem ser desenvolvidos

diante o contato da criança com a história em questão, observando de maneira objetiva o

processo que a psicanálise conceitua como transferência/contratransferência e que age de

modo significativo na construção social, política e psicológica do indivíduo em formação.

Revisitando a Psicanálise

Escrever sobre a história da Psicanálise se torna uma tarefa difícil uma vez que

existem várias versões de como foi criada, além disso, também vale ressaltar que ao dissertar

sobre a criação da ciência ou teoria da alma é praticamente inevitável que não se adentre na

própria vida de seu criador. Também é de suma importância relacionarmos os fatos sociais e

históricos que aconteciam na época em que Freud viveu. Uma Viena que rivalizava com

grandes centros culturais, artísticos e intelectuais estava prestes a declinar e as perdas

militares sofridas pela Dinastia Habsburgo trazia à capital austríaca um crescente clima de

decadência, mas ao mesmo tempo permanecia em seu elevado patamar criativo, o que

resultaria em uma típica confrontação neurótica.

Filho de pai judeu e mãe austríaca, Sigmund Schlomo Freud nasceu na cidade de

Freiberg (Pribor) na Moravia, no dia 6 de maio de 1856. Foi uma criança muito inteligente e

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esperta; aprendeu a andar com apenas nove meses de idade e demonstrava muito apego e

ciúmes de sua mãe, não gostando que ninguém se aproximasse dela, nem mesmo os próprios

irmãos.

No ano de 1859, com apenas 3 anos de idade, viu seu pai passar por dias ruins pois era

comerciante e com a guerra-italiana, que nada fora satisfatória para as forças do Império

Central, a inflação elevou-se a índices proibitivos. Com todo o caos instalado por conta da

econômia financeira do local, começaram a surgir sentimentos de ódio e rancor entre a

população prevalentemente tcheca, a qual começava a se manifestar contra o governo central

de Viena.

Em 1865, já com 9 anos, Sigmund foi aprovado para ingressar no ginásio e logo foi se

destacando entre os colegas devido sua inteligência e sua versatilidade. Já aos doze anos tinha

uma espantosa facilidade em assimilar outros idiomas, aprendia simultaneamente o alemão, o

latim, o grego, o francês, o inglês e também o hebraico.

Em junho de 1873 graduou-se com a distinção “summa cum laude” (com a maior das

honras). Em outubro do mesmo ano entrou para a Universidade de Viena para cursar

Medicina, onde seu currículo universitário continha as matérias de anatomia, botânica,

química, microscopia e mineralogia, porém os cursos que ele mais se aproximou foram

“biologia e darwinismo” e “fisiologia da voz e da educação” contudo durante os seus dois

primeiros anos na Universidade, Freud era visto como apenas um aluno anônimo entre tantos

outros que como ele não tinham ideias e ambições específicas. Dedicava parte de suas horas

curriculares para dissecação anatômica, zoologia, física e fisiologia, frequentando

constantemente seminários de Filosofia.

Alguns anos mais tarde (1876-1877) Freud conhece Joseph Breuer, médico e

fisiologista que iria ser de grande importância para a elaboração dos princípios psicanalíticos.

Durante o tempo em que esteve na companhia de Breuer, Freud presenciou o tratamento de

Ana. O. (Bertha Pappenheiem), uma jovem de 21 anos que fora diagnosticada como

depressiva e hipocondríaca (neurótica). Neste caso, Breuer se utiliza de seu método catártico,

causando em Freud uma grande impressão de como o paciente conseguia retornar a seu estado

normal enquanto submetido ao modelo hipnótico do método catártico.

Conduzíamos a atenção do paciente diretamente para a cena traumática na qual o sintoma surgira e nos esforçávamos por descobrir o conflito psíquico envolvido naquela cena, e por liberar a emoção nela recalcada. Ao longo deste trabalho, descobrimos o processo psíquico, característico das neuroses, que chamei depois de “regressão. (FREUD, 1914, p.3)

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Foi em conjunto com Joseph que Freud escreve seu primeiro livro, “Estudos sobre a

Histeria” (Studien uber Hysterie), onde são relatados uma série de casos clínicos tratados por

eles com o objetivo de demonstrar que os sintomas neuróticos permanecem sufocados pela

memória e necessitam serem trazidos à luz, o que pode ser realizado através da catarse

hipnótica. O grande problema dessa teoria é que nem todos os pacientes que são submetidos à

esse método conseguem realmente regressarem ao ponto original de seu trauma, o que faz

Freud e Breuer passarem a se confrontar em determinados posicionamentos teórico-práticos,

como nos revela o próprio Freud em sua História do Movimento Psicanalítico:

Minha primeira divergência com Breuer surgiu de uma questão relativa ao mecanismo psíquico mais apurado da histeria. Ele dava preferência a uma teoria que, se poderia dizer, ainda era até certo ponto fisiológica; tentava explicar a divisão psíquica nos pacientes histéricos pela ausência de comunicação entre vários estados mentais (“estados de consciência”, como os chamávamos naquela época), e construiu então a teoria dos “estados hipnóides” cujos produtos se supunham penetrar na “consciência desperta” como corpos estranhos não assimilados. Eu via a questão de forma menos científica; parecia discernir por toda parte tendências e motivos análogos aos da vida cotidiana, e encarava a própria divisão psíquica como o efeito de um processo de repulsão que naquela época denominei de “defesa”, e depois de “recalque. (FREUD, 1914, p.14)

Contudo o que levou a uma ruptura total sobre seus desenvolvimentos clínicos foi a

questão da sexualidade, onde Freud traz em público a certeza de que os “transtornos

neuróticos possuem como origem a vida sexual”. Algum tempo depois o próprio Breuer

interrompe a utilização de seu método catártico e Freud decide-se dedicar ao trabalho clínico,

onde irá retornar ao método que aprenderá com Breuer mais sobretudo irá transformá-lo no

que viria a ser conhecido como “associações livres”.

Antes dessa nova formulação de uso clínico, Freud viaja para Paris onde conhece o

que ele mesmo denominaria como seu grande mestre, Jean-Martin Charcot, médico e

neurologista francês e um dos mais brilhantes professores da época. Freud então instala-se no

Hospital psiquiatríco da Salpetriere em Paris, onde aproximadamente 5 mil mulheres com

diagnósticos de histerias estão internadas e demonstram a loucura do mundo. Um verdadeiro

laboratório da neurose, onde agora Freud dedicara seus estudos. Encantado pelas aulas do

mestre Charcot, Freud aprende o que de mais avançado existe na área da hipnose. Agora

influenciado pelas ideias de Charcot somadas as suas teorias da sexualidade na origem dos

traumas histéricos, Freud retorna à Viena onde abre seu próprio consultório clínica, mas ainda

continua a utilizar os métodos de regressão hipnóticos.

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Foi então que Freud analisou os conflitos existentes em alguns pacientes, os quais

bloqueavam determinados acessos à uma regressão ainda mais para trás, demonstrando

resistência, a qual era ocultada pelo método hipnótico, e onde os pacientes agiam como se

tivessem perdido a memória; foi então que Freud deslocou o método de hipnose para o de

associação livre, permitindo que o paciente, deitado no divã, tivesse a possibilidade de falar

sobre seus problemas. O próprio Freud determina que foi esse o instante em que a Teoria da

Psicanálise foi criada.

A teoria do recalque é a pedra angular sobre a qual repousa toda a estrutura da psicanálise. É a parte mais essencial dela e todavia nada mais é senão a formulação teórica de um fenômeno que pode ser observado quantas vezes se desejar se se empreende a análise de um neurótico sem recorrer a hipnose. Em tais casos encontra-se uma resistência que se opõe ao trabalho da análise e, a fim de frustrá-lo, alega falha de memória. O uso da hipnose ocultava essa resistência; por conseguinte, a história da psicanálise propriamente dita só começa com a nova técnica que dispensa a hipnose. A consideração teórica, decorrente da coincidência dessa resistência com uma amnésia, conduz inevitavelmente ao princípio da atividade psíquica inconsciente, peculiar à psicanálise, e que também a distingue muito nitidamente das especulações filosóficas em torno do inconsciente. Assim talvez se possa dizer que a teoria da psicanálise é uma tentativa de explicar dois fatos surpreendentes e inesperados que se observam sempre que se tenta remontar os sintomas de um neurótico a suas fontes no passado: a transferência e a resistência. (FREUD, 1914, p. 8)

Assim, poderíamos definir a Psicanálise como um modelo que permite ao paciente

expressar-se sobre seus tormentos, sobre suas angústias e sobre seus esquecimentos. É por

meio dela que se realiza a volta ao passado trazendo à consciência os traumas escondidos no

inconsciente. Com a Psicanálise as dores da alma passam a ser ouvidas, as neuroses do Ser

verbalizadas, os fatos do inconsciente se transformam em linguagem.

A partir de 1902 era criada a Sociedade Psicanalítica de Quarta-feira, onde todas as

quartas feiras um grupo de intelectuais e seguidores de Freud se reuniam e debatiam sobre as

possibilidades e novos caminhos a serem tomados pela nova teoria do século XX. A partir

dessas reuniões a Psicanálise passa a ser difundida através de artigos, jornais, revistas e

congressos, sendo aplicada em outras áreas do conhecimento, como por exemplo a arte e a

filosofia, mas sempre tendo como centro de seus questionamentos os sintomas histéricos

desenvolvidos pelo indivíduo e também pela sociedade. Seis anos mais tarde essa sociedade

passa a ter o nome de Associação de Psicanálise de Viena.

Mas foi em 1900, data da publicação da obra A interpretação dos Sonhos (Die

Traumdeutung), que Freud chegou ao seu "xeque-mate" para solidificar sua ciência. Para

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muitos, aliás, é essa a obra essencial que dá origem a Psicanálise. Foi na análise dos sonhos

que Freud encontrou uma porta que o levava diretamente ao campo do inconsciente,

conseguindo assim defrontar-se com os impulsos que são satisfeitos através das fantasias

oníricas. Para ele, “todo sonho se revela como uma estrutura psíquica que tem um sentido e

pode ser inserida num ponto designável nas atividades mentais da vida de vigília” (FREUD,

1900, pg.13), assim, os sonhos possuíam como principal característica a libertação de prazeres

e desprazeres adquiridos durante o cotidiano. O próprio psicanalista se submeteu à autoanálise

de seus sonhos, tendo no conhecido sonho de Irma a certeza de que ele estava no caminho

certo em relação a sua teoria. Uma das principais ideias de Freud foi distanciar-se das antigas

formulações que eram atribuídas aos sonhos, os quais eram qualificados como sendo

premonições ou mensagens místicas, e ter passado a crer que os sonhos eram eles próprios

desejos escondidos e relacionados com a infância. Freud também atribui aos sonhos uma

linguagem simbólica, associando assim objetos e imagens que aparecem nos sonhos com

possíveis relações diretas feitas pelo sonhador com essas figurassem algum momento de sua

vida. Porém o ponto chave dessa teoria dos sonhos foi a estruturação freudiana do aparelho

psíquico, onde o psicanalista organiza tal aparelho de modo ao qual podemos "visualizar" o

funcionamento deste. O próprio Freud em carta a Fliess relata que “a mais crucial das

descobertas dadas ao mundo em A Interpretação dos Sonhos foi a distinção entre os dois

diferentes modos de funcionamento psíquico, os Processos Primário e Secundário” (FREUD,

1900, p. 06).

Nesta reformulação da mente, ele nos traz os elementos de Id, Ego e Superego, onde o

Id é o que temos como inato ao nosso ser, e onde nossos desejos primitivos estão

armazenados, além disso os outros elementos também tem origem no ID. O Ego, é o elemento

de equilíbrio entre o ID e o Superego, age como regulamentador do Id, mantendo com que as

pessoas não percam a sanidade. O superego por sua vez é o mecanismo que atua como fonte

moral do indivíduo, alertando o Ego os limites e os valores aceitos diante da sociedade.

Assim, Freud passa a ver na Interpretação dos sonhos uma fórmula altamente

confiável para a cura de seus pacientes clínicos, uma vez que ele vê nos sonhos o

deslocamento de uma relação emocional já formada em vigília para um objeto ou figura

onírica que será transportada do inconsciente para o consciente em forma de fantasia. Isso lhe

deu vazão para a formulação de dois outros conceitos fundamentais em sua ciência

psicanalítica, a transferência e a contratransferência.

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1. A transferência no contar de contos

Freud utilizou o conceito de Transferência pela primeira vez em sua obra " A

Interpretação dos Sonhos", publicada em 1900. Foi analisando os sonhos que o pai da

psicanálise percebeu que o inconsciente transfere para eles todos os afetos, alegria, tristeza e

angústias vivificados durante o período em que se está acordado como uma maneira de

realocar essas experiências.

De acordo com o Dicionário de Psicanálise (ROUDINESCO), a palavra Transferência

‘designa um processo constitutivo do tratamento psicanalítico mediante o qual os desejos

inconscientes do analisando concernentes a objetos externos passam a se repetir’, ou, nas

próprias palavras de Freud:

Transferências são reedições, reduções das reações e fantasias que, durante o avanço da análise, costumam despertar-se e tornar-se conscientes, mas com a característica de substituir uma pessoa anterior pela pessoa do médico. Dito de outra maneira: toda uma série de experiências psíquicas prévias é revivida, não como algo do passado, mas como um vínculo atual com a pessoa do médico. Algumas são simples reimpressões, reedições inalteradas. Outras se fazem com mais arte: passam por uma moderação do seu conteúdo, uma sublimação. São, por tanto, edições revistas, e não mais reimpressões. (FREUD, 1969, p. 109)

Foi observando que os pacientes transmitiam os desejos do passado para a figura do

analista do presente que Freud concluiu que nesse processo os analisados projetavam para o

presente os desejos sexuais formados já na primeira infância. Enquanto no processo de

formação do indivíduo este possui como personagens centrais em seus primeiros anos aqueles

que estão à sua volta, sobretudo nas figuras paternas e maternas, e os direciona todos os teus

sentimentos na neurose de transferência o que se dá é a projeção desses mesmos afetos para

personagens novos que surgem com o tempo. Assim podemos dizer que existe uma espécie de

substituição das figuras que recebem e doam os desejos adquiridos logo cedo, e numa relação

mútua realizam uma transferência desses afetos que ocorre repetidamente no decorrer de toda

vida. Para Freud, a figura paterna é a mais importante para a criança, pois ela vê nele o ideal e

o poder constituídos, tomando a ‘imago materna’ como figura objeto, o que irá sofrer uma

inversão com os anos, pois o pai se transformará em um obstáculo para os desejos do filho,

formando assim o que conhecemos por Complexo de Édipo. Deste modo, com o passar do

tempo os sentimentos da criança vão se exteriorizando e com isso novas formulações sobre

aqueles que ela tomava como ideal e exemplar vão se esvaindo e se tornando fragilizadas,

dando abertura assim para que novas figuras tenham a capacidade de substituí-los. O mais

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conhecido caso clínico em que foi observado a neurose da transferência é de Ana O., onde

Joseph Breuer decide encerrar o caso e dá-lo como solucionado por estar afetando diretamente

a vida do analista, porém a interrupção do tratamento ocasionou novos sintomas neuróticos,

neste caso uma gravidez inexistente; o que fez com que Freud compreendesse o impacto que

pode ser produzido entre as relações de transferência e contratransferências dos inconscientes

envolvidos.

Desse modo, é mais frequente observarmos que os elementos de

transferência/contratransferência se dão dentro do consultório clínico uma vez que nesse

ambiente o paciente supõe que encontrará as respostas para todas as suas angústias. O

paciente vai de encontro ao analista em busca de todas as soluções, pois pensa que nele estão

concentradas todas as explicações possíveis, sem saber que na realidade o que ele procura está

dentro de si.

Com isso o analisado vê na figura do clínico um ente querido, como um pai, mãe,

marido, em quem possa confiar os teus mais profundos segredos, tornando assim do analista

uma pessoa confidencial onde poderá externalizar todo o conflito existente em seu interior. É

nesse momento que o analista percebe que surge a contratransferência, pois agora o

psicanalista já possui a intimidade suficiente para adentrar o mais fundo possível, do

consciente para o inconsciente, sem necessariamente quebrar a relação que fora construída,

permitindo que o analisado se sinta confortável e seguro diante dos acontecimentos que serão

expostos no momento da consulta.

No consultório clínico o paciente que se depara com uma pessoa compreensível,

simpática e que a transmita uma segurança tende a se comunicar com muito mais facilidade,

passando ao médico todos os sintomas que está sentindo. Até mesmo o paciente que se

encontra em estado crítico quando encontra na figura do analista alguém confiante, mesmo

sem ter trocado nenhuma palavra, passa a se comportar de uma maneira mais amena. Porém

se essas primeiras experiências se efetuarem por um processo negativo, há grande

possibilidade de haver um rompimento entre todos os envolvidos no tratamento, se tornando

um enorme obstáculo para o psicanalista uma vez que o paciente, diante disso, pode bloquear

todos os sentimentos, recalcando em seu inconsciente todas as suas lembranças e não

permitindo que importantes revelações sejam acessadas pelo analista,

É importante ressaltar que a transferência, ou a neurose da transferência, não é um

caso particular entre analista e paciente, podendo então aparecer em qualquer forma de

relação, pois uma vez que o ser humano é uma espécie relacionável se torna praticamente

impossível viver em completo isolamento social. Freud vê na relação professor-aluno um

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grande exemplo de transferência, pois o professor possui poder sobre o aluno e com isso

existe toda uma relação de afetos profundos, como o próprio Freud diz:

Os professores passam a ser nossos pais substitutos. Foi por isso que, embora ainda bastante jovens, impressionaram-nos como tão maduros e tão inatingivelmente adultos. Transferimos para eles o respeito e as expectativas ligadas ao pai onisciente de nossa infância e depois começamos a tratá-los como tratávamos nossos pais em casa. Confrontamo-los com a ambivalência que tínhamos adquirido em nossas próprias famílias, e, ajudados por ela, lutamos como tínhamos o hábito de lutar com nossos pais em carne e osso. (FREUD, 1914, p. 161)

Na sala de aula o professor(a) utiliza a transferência/contratransferência a favor do

aluno, fazendo com que este sinta prazer em estar ali e aprenda com mais facilidade,

apresentando em relação ao aluno um sentimento materno ou paterno, o que muitas vezes leva

o aluno a uma confusão e ao invés deste também criar um vínculo de relação materna/paterna,

acaba por sua vez construindo em sua cabeça uma paixão platônica pelo professor(a), sendo

muito importante a percepção do docente nestas circunstâncias e aproveitando-se disso para

usar em benefício do próprio estudante.

Outros importantes meios em que os elementos de transferência/contratransferência

são praticados se dão pelo viés dos personagens inseridos nas mais variadas formas

apresentadas no processo de desenvolvimento e aprendizado. É no âmbito escolar que a

criança passa a ter uma relação mais abrangente com outras pessoas que não aquelas que as

rodeavam até o presente momento de sua vida. Assim, elas veem nas figuras dos professores

os substitutos imediatos dessas personagens primárias. Os professores por sua vez necessitam

utilizar dos mais diversos materiais para auxiliá-los em suas funções de educadores, e são

geralmente na exposição de músicas, lendas e histórias que se torna perceptível essa relação

de substituição de figuras para as crianças, sobretudo na primeira infância, onde a estrutura do

pensamento ainda está dando seus primeiros passos.

Nos contos-de-fadas são claramente reconhecidos os vínculos criados, quase que

imediatamente, entre as crianças e os protagonistas de cada história narrada. Desta maneira,

elas passam a se comportarem da mesma maneira que o personagem ao qual se identificaram.

Geralmente essa aproximação entre o Eu da criança em formação e o conto-de-fada se dá com

os personagens mais frágeis, pois ela vê nas dificuldades desses personagens semelhanças

concretas com as mesmas dificuldades que ela mesma tenha experienciado.

Assim, é visível como a criança pode sofrer uma vasta quantidade de alterações no

decorrer de sua própria formação. Alterações essas muitas vezes não captadas pelo

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mecanismo mental que ainda está se desenvolvendo o que nos deixa um claro alerta de como

o pedagogo deve refletir e analisar sobre os contos e os seus respectivos personagens a serem

levados à sala de aula.

Psicanálise de ‘Um Patinho Feio’

Depois de refletir nas partes um e dois, estudo e reflexão por parte do pedagogo sobre

o material que será exposto em sala de aula, assim, as probabilidades de se incorrer em erros

são muito menores. Questionar e se aprofundar nas atividades que serão exercidas ajudam

para que a aula tenha uma maior qualidade, atinja seus objetivos e uma maior aceitação por

parte das crianças.

Muitos acham que a escolha de histórias e contos-de-fadas são feitos de maneira

totalmente aleatória, nos dando uma conotação de superficialidade do ponto de vista

pedagógico em que uma exposição é construída. Assim, utilizando o viés psicanalítico

propomos nessa parte a análise de um conto, o qual muitos, senão todos nós já ouvimos

inúmeras vezes mas nunca nos atemos aos verdadeiros elementos que estão intrínsecos na

narrativa.

O que para muitos não passa de uma simples história infantil na verdade nos traz uma

infinidade de elementos que nos permitem compreender a importante relação

criança/personagem que se dá no processo de desenvolvimento do Eu psicológico de cada

um.

Aqui nesta parte trazemos para nossa reflexão o conto “O patinho Feio” do escritor

dinamarquês Hans Christian Andersen.

O Conto Original

O Mito de Hefesto

A obra O Patinho Feio foi escrita em 1843 pelo escritor dinamarquês Hans Christian

Andersen. Único filho sobrevivente de seus pais, Hans possuiu uma infância marcada pela

pobreza e com a morte do pai, quando ainda tinha 11 anos, foi obrigado a abandonar a escola.

Essas questões o possibilitaram, logo cedo, se confrontar com a dura realidade em que a

Dinamarca passava, e os contrastes sociais foram de suma importância e influência em suas

futuras histórias. Além disso, o escritor era feio, narigudo, desengonçado e alto demais para

sua idade, o que faz com que muitos historiadores e críticos de suas obras relacionem O

Patinho Feio como uma autobiografia do autor.

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Outros historiadores veem na mitologia grega a fonte de inspiração para o autor de

contos infantis, e que colocam a figura de Hefesto, Deus do fogo, como a inspiração para o

conto moderno do Patinho Feio. Hefesto, deus do fogo na mitologia grega foi rejeitado por

sua mãe, Hera, conforme podemos ver no resumo abaixo:

Hefesto, deus do fogo, teria nascido muito feio e com aparência de anão, pois tinha

problemas na perna. E, por esse motivo a sua mãe Hera muito envergonhada teria o jogado ao

mar. Mas com muita generosidade foi recolhida pela deusa Tétis por quem é criado. Aprendeu

a trabalhar com metal, e a fazer joias também. Um dia sua mãe Hera viu uma de suas joias e

gostando muito, quis saber quem as fazia, foi quando soube que era seu filho rejeitado. Ainda

muito furioso pela rejeição da mãe, ele fabrica um trono que a aprisiona e de onde nenhum

deus conseguiria soltá-la. Não restando outra opção aos deuses do Olimpo, ao senão de acatar

suas exigências a primeira era de a voltar a viver no Olimpo e a segunda era a de se casar com

a deusa mais linda de todas, Afrodite. Obrigada à deusa se casou com o Hefestos, mas não era

fiel a ele o traindo com o seu irmão Ares. (Resumo adaptado do Mito grego de Hefesto, in:

https://www.infoescola.com/mitologia-grega/hefesto/)

O Conto Moderno

O Patinho Feio

Foi em 1843 que Hans Christian Andersen formula o conto O patinho Feio da forma a

qual conhecemos em nossa cultura moderna, e o qual podemos ler resumidamente a seguir:

Era uma vez uma pata que estava a chocar alguns ovos. Os dias foram-se passando e chegou o momento dos patos nascerem. Mas havia um pato que era diferente de todos os outros. Era gordo e muito feio, a pata não gostava dele e só lhe dava desprezo. Os dias foram-se passando e os patinhos iam crescendo, o patinho já não aguentava mais que os outros irmãos gozassem mais com ele. Até lhe deram o no de “Patinho feio”. Um dia a pata mandou-o embora e disse-lhe que ele era a vergonha da família e ele foi. Teve algum tempo a viver sozinho ao pé de um lago, até que um dia encontrou alguns cisnes e começaram a falar ele disse que era feio. E descobriram que eram irmãos disseram-lhe que ele era muito bonito. E na verdade o patinho feio já estava muito bonito e era um lindo cisne. Então os outros cisnes levaram o patinho feio à mãe. Ela pediu-lhe desculpas e ficaram todos felizes. (Resumo adaptado da obra de Hans Christian Andersen)

Considerações Finais

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Conforme descrito acima, existem diferentes interpretações quanto a fonte inspiradora

para o autor do Patinho Feio, assim, ressalto que para os fins deste trabalho, farei uma análise

baseada no ponto de vista autobiográfico do conto.

O conto em análise nos traz a possibilidade de pensar nas grandes dificuldades

encontradas pela criança em sua formação do Eu. Ele nos mostra uma situação real em que a

criança vive, a primeira relação ser/pertencer, o que se estabelece como um grande dilema

para uma mente ainda em formação, podendo criar uma confusão interior propícia ao

surgimento de neuroses que possam a vir a afetar diretamente a criança.

Figura 01 - Hefesto

Escultura Grega – Museu do Louvre, Paris.

O conto em análise nos traz a possibilidade de pensar nas grandes dificuldades

encontradas pela criança em sua formação do Eu. Ele nos mostra uma situação real em que a

criança vive, a primeira relação ser/pertencer, o que se estabelece como um grande dilema

para uma mente ainda em formação, podendo criar uma confusão interior propícia ao

surgimento de neuroses que possam a vir a afetar diretamente a criança.

Uma criança pobre e feia de acordo com o padrão de beleza exigida por uma

sociedade pode sofrer profundamente com as diferenças encontradas no dia-a-dia.

Vislumbrada com os modelos estéticos que aparecem em todos os lugares, dos comerciais da

TV até aos panfletos do semáforo, com os brinquedos caros e que nunca terá ou com o tênis

do momento mas que nunca usará pois os pais não possuem condições nem te sustentar a

própria casa, a criança vê na personagem do Patinho Feio a tua própria existência. Um

animalzinho com a cabeça maior do que o corpo, da cor diferente do resto da família, com as

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penas não padronizadas como os demais da sua volta, assim se sente a criança que não contém

as possibilidades iguais em um mundo de confrontações sociais.

Como Andersen nos mostra em seu conto, há uma grande rejeição e abandono, não

apenas no ninho onde foi inserido, mas no próprio meio em que se vive. Assim, a criança

passa se sentir diferente, concebendo-se características que a determinam como diferentes e o

que faz com que ela se sinta rejeitada. Em uma sociedade excludente, essas características de

anormalidade são de interesse direto da análise psicanalítica, para que através das distinções

observadas entre os indivíduos, seja possível a formação sem nenhum vestígio psíquico.

Outro elemento que podemos sublinhar no conto em questão é o abandono, pois a

nova mãe não identifica o filho diferente e isso resulta na falta de acolhimento e em um

tratamento de distanciamento em relação aos demais patinhos. Existem incontáveis casos em

que este é o principal fator para os sintomas adquiridos na primeira infância. Uma mãe que

engravida e que é obrigada a abandonar o filho(a) por não ter as mínimas condições de

sustentá-lo. Assim podemos pensar no ovo deixado no ninho da mamãe pata, em que ao ser

chocado traz ao mundo um corpo aberrante que causa o estranhamento da nova mãe, fazendo

com que ela o rejeite e não exerça o afeto materno biológico, deixando o filhote fragilizado

por não receber a segurança e a proteção nos primeiros momentos da vida. Essa circunstância

nos dá a possibilidade de refletir sobre o Eu isolado e sobre a percepção de uma vida vazia de

carinho e amor podendo incorrer em uma profunda tristeza que afetará diretamente o

indivíduo em sua formação.

Figura 02 - O Patinho Feio

O Patinho Feio, Ilustração de 1939, Disney Pictures.

O lago em que o Patinho Feio necessita viver é como a realidade repleta de crueldade

e obstáculos. A travessia dele sob o desamparo da vigilância da mãe é como viver em meio a

sociedade egoísta e violenta, onde o medo é propagado e a falta do conforto familiar nos leva

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a pensar nas crianças que sobrevivem sob a miséria das ruas. O lago também nos remete a

ideia de um espelho, em que a imagem refletida permite ao patinho observar-se e se defrontar

com sua própria aparência exterior, podendo assim o fazer lembrar de tudo o que disseram a

seu respeito e essa confrontação pode levá-lo a recalcar os afetos negativos que lhe foram

atribuídos incorrendo na possibilidade de uma futura neurose.

Porém esse conflito com seu próprio Eu é de suma importância para a formação da

criança, pois também lhe possibilita interagir com seu interior e lhe permite perceber os

valores que estão intrínsecos ao teu Ser. Assim a narrativa também nos presenteia com uma

reviravolta, apresenta-nos uma metamorfose do monstro em belo, do feio em bonito, do

patinho em um cisne indescritivelmente maravilhoso. Aí se dá a valorização do Eu, o interior

em detrimento do exterior, o sentimento sobrepõe-se ao sentido, o pensamento ao corpo.

Assim como Quasímodo, o Patinho Feio demonstra-se acima do que a sociedade impõe como

belo, agradável e organizado. Nessa valorização a criança se inspira em permanecer ativa

enquanto indivíduo e em lutar em busca de suas próprias conquistas, demonstrando um

fortalecimento do mecanismo mental que a permitirá encarar as dificuldades da vida.

São nesses conflitos que a psicanálise vê a trajetória da formação do sistema psíquico,

e nessa relação criança-personagem, nos dá a dimensão de quão importante pode ser o contato

com a obra. O patinho como figura de um anti-heroi, promove uma alteração nos princípios

de beleza estipulado pela sociedade e recria assim a possibilidade dessa criança, outrora

excluída e abandonada, de superar os problemas sociais, estéticos e psicológicos com os quais

se confrontam desde o seu nascimento.

Referências Bibliográficas

ANDERSEN, Hans Christian – O Patinho Feio – tradução Roda Freire d’Aguiar, Cia das Letrinhas, 2008.

BETTELHEIN, Bruno – A psicanálise dos Contos de Fadas, Ed. Paz Terra, 1979.

FREUD, Sigmund. História do Movimento Psicanalítico, artigos sobre a Metapsicologia e outros trabalhos, Ed.Imago, 1976.

______. Os Pensadores, Obras Incompletas – tradução Victor Civita, Editora Abril, São Paulo, 1978.

______. Obras Completas, vol X – tradução de Paulo César Souza, Cia das Letras, 1911.

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Faculdade de Administração e Ciências Contábeis

_______________. Obras Completas, vol XII – tradução de Paulo César Souza, Cia das Letras, 1914.

_______________. Obras Completas, vol XIII– tradução de Paulo César Souza, Cia das Letras, 1916.

_______________. Obras Completas, Versão digital Le Livros. Localizado em: http://lelivros.love/book/obras-completas-dr-sigmund-freud/ (acessado em 20-11-

2017) ROUDINESCO, Elisabeth – Dicionário de Psicanálise – tradução Vera Ribeiro, Lucy

Magalhães, Ed. Zahar, Rio de Janeiro, 1998.

Sites consultados: PSICANÁLISE. tautonomia.blogspot.com12015/01/oqueepsicanalise (acessado em 10-11-

2017)

HEFESTO. https://www.infoescola.com/mitologia-grega/hefesto/ (acessado em 21-03-2018) _________. https://pt.wikipedia.org/wiki/Hefesto (acessado em 22-03-2018)

https://www.youtube.com/watch?v=ph3Q8bs3ny8