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Versão On-line ISBN 978-85-8015-076-6Cadernos PDE
OS DESAFIOS DA ESCOLA PÚBLICA PARANAENSENA PERSPECTIVA DO PROFESSOR PDE
Artigos
ATÉ QUE A MORTE NOS SEPARE: A implementação da Lei Maria da Penha no
Município de São Mateus do Sul / PR
Patrícia Jonson1
Dulceli de Lourdes Tonet Estacheski2
Resumo: O presente artigo tem como objetivo relatar a implementação do Projeto de Intervenção Pedagógica no Colégio Estadual do Campo Professor Eugênio de Almeida, localizado no Distrito de Fluviópolis no Município de São Mateus do Sul/PR, com os estudantes da 3ª série A do Ensino Médio através da aplicação da Produção Didático-Pedagógica – Unidade Didática. O texto produzido apresenta os motivos que desencadearam a pesquisa sobre gênero, violência de gênero e Lei Maria da Penha, trazendo para o ambiente escolar a reflexão que possibilitará uma mudança de comportamento a fim de banir do cotidiano os pensamentos e as ações preconceituosas e discriminatórias relacionadas às mulheres. Há um detalhamento das atividades realizadas com os estudantes que tiveram como objetivo promover um diálogo sobre a temática apresentando os resultados para a comunidade escolar externa que muitas vezes está isolada desse tipo de discussão ficando apenas no senso comum dos casos de maior repercussão no município. Palavras-chave: Gênero. Violência de gênero. Lei Maria da Penha.
1 Introdução
Este artigo foi elaborado como requisito final para o Programa de
Desenvolvimento Educacional do Estado do Paraná (PDE-PR) e é resultado da
aplicação do Projeto de Intervenção Pedagógica na Escola, elaborado no ano de
2013, juntamente com a produção didático-pedagógica – Unidade Didática, que
apresenta um roteiro detalhado sobre as ações que foram desenvolvidas, no
primeiro semestre de 2014, com os alunos da 3ª série A do Ensino Médio, do
Colégio Estadual do Campo Professor Eugênio de Almeida – EFM, localizado no
Distrito de Fluviópolis em São Mateus do Sul / PR.
O Projeto de Intervenção Pedagógica na Escola tem como tema A
implementação da Lei Maria da Penha no Município de São Mateus do Sul / PR. Tal
tema se mostrou relevante a partir dos noticiários policiais veiculados nas rádios
1 Especialista em História: múltiplas abordagens pela Faculdade Estadual de Filosofia, Ciências e
Letras de União da Vitória. Email: [email protected] 2 Mestra em História pela Universidade Federal do Paraná. Email: [email protected]
locais, os quais, quase que diariamente, trazem casos de mulheres vítimas de
violência doméstica e familiar. O cotidiano escolar do referido Colégio também
apresenta situações em que ocorre a discriminação de gênero, ou seja, nos
deparamos com piadinhas que desqualificam as mulheres, a utilização de palavras
de baixo calão por parte de alguns alunos para classificar as alunas, sendo assim,
são várias as situações em que as mulheres são colocadas em posição de
inferioridade com relação aos homens. Este comportamento discriminatório que se
reproduz ao longo do tempo é que motiva, em muitos casos, a violência de gênero,
pois ao incorporarem a ideia de superioridade em relação às mulheres alguns
homens levam este pensamento de dominação ao extremo convertendo-o em
palavras ou ações violentas. Isso nos motivou a pensar sobre a necessidade de um
trabalho mais profundo sobre os temas gênero, violência de gênero e a
implementação da Lei Maria da Penha no referido município.
O título do artigo faz referência em primeiro lugar, ao pensamento católico
cristão que influenciou a concepção dos papéis sociais das mulheres e de
casamento ao longo do tempo, tendo na frase „até que a morte nos separe!’ a ideia
de uma união indissolúvel, pois o casamento é um sacramento da Igreja Católica e a
união considerada pelos católicos abençoada por Deus não pode ser rompida pelos
homens. Tomamos a expressão aqui como uma forma de refletir sobre a situação
extrema de violência doméstica e familiar em que, infelizmente, muitas mulheres
vivem, e que por diferentes motivos não conseguem romper com estas relações e
acabam morrendo vítimas de tal violência. Em segundo lugar, percebeu-se a
necessidade de levantar e verificar os dados de como está acontecendo a
implementação da Lei Maria da Penha no município de São Mateus do Sul,
discutindo com os alunos e alunas a percepção que os mesmos têm dessa situação
e de como isso afeta nossa sociedade, tendo em vista o aumento dos casos de
violência contra as mulheres, principalmente dentro de seus lares.
Sendo assim, é necessário instigar os alunos e alunas a discutirem sobre
gênero e violência de gênero visando o rompimento com concepções machistas que
geram tal violência e sobre a implementação da Lei Maria da Penha como
mecanismo de defesa e de garantia de direitos das mulheres.
As atividades elaboradas na Produção Didático-Pedagógica seguiram o
modelo de Unidade Didática e tiveram como objetivo promover a reflexão sobre
situações de discriminação, preconceito e violência às quais as mulheres estão
submetidas. Tal escolha justifica-se pelo fato de ser a Unidade Didática um
[...] esquema didático organizado em unidades, para garantir o domínio, a permanência, a duração e a aplicação do conhecimento em atividades reais proporcionadas pela vida. Nesse esquema, cabe ao professor: identificar o conhecimento do aluno sobre o novo conteúdo de estudos; apresentar a nova matéria e direcionar os estudos; verificar os resultados de aprendizagem do aluno e, se necessário, reprogramar o novo ensino visando a novas aprendizagens (Carvalho, 1969). Em outras palavras, o Ensino por Unidades significa: estruturar o conteúdo numa totalidade coerente; promover adaptações de aprendizagens; desenvolver experiências e estudos de uma maneira que garanta a atuação do conteúdo na vida do aluno. (DAMIS, 2006, p. 119-120).
Nesse sentido as atividades individuais e coletivas foram elaboradas a fim de
proporcionar uma aprendizagem significativa, permitindo aos/as estudantes
vivenciarem experiências. A aplicação da Produção Didático-Pedagógica ofereceu
aos/as estudantes condições para que fosse possível uma mudança de mentalidade,
a fim de diminuir os casos de discriminação, preconceito e violência contra as
mulheres.
Na Unidade Didática as atividades seguiram as orientações das Diretrizes
Curriculares da Educação Básica do Paraná – História (2008), a qual se baseia no
pensamento do historiador Jörn Rüsen e aponta para a necessidade da aula de
História partir da narrativa prévia dos/as estudantes, para que no decorrer das
explicações, das atividades, das pesquisas e entrevistas realizadas essa narrativa
vá se modificando e a construção do conhecimento e o desenvolvimento da
consciência histórica de cada indivíduo fique evidente na narrativa final do tema
trabalhado.
Segundo o historiador Jörn Rüsen (2001, p. 58), a consciência histórica é o conjunto “das operações mentais com as quais os homens interpretam sua experiência” da mudança temporal “de seu mundo e de si mesmos, de tal forma que possam orientar, intencionalmente, sua vida prática no tempo”. É, portanto, a “constituição do sentido da experiência do tempo” expressa pela narrativa histórica [...] a narrativa histórica é a forma de apresentação desse conhecimento e se refere à comunicação entre os sujeitos (PARANÁ, 2008, p. 57-58).
É a partir do entendimento de que a consciência histórica é uma manifestação
da aprendizagem histórica que a avaliação das atividades propostas na Unidade
Didática foi realizada. A participação oral, as produções narrativas, a utilização do
material pesquisado para elaboração de slides e posterior apresentação dos
resultados para os/as demais estudantes do Colégio e da Comunidade Escolar
foram reflexo do pensamento histórico dos/as estudantes.
É importante destacar que a sociedade, em seus diferentes tempos e
espaços, tem construído relações sociais, familiares, afetivas, de trabalho e, sendo
assim, os indivíduos elaboram ideologias que passam a ser dominantes, as quais
interferem nas formas como as mesmas ocorrem. Deve-se atentar para o fato de
que as ideologias influenciam também na organização das instituições sociais,
jurídicas, religiosas, econômicas, que se expressam através de leis, normas e
atitudes, portanto, indivíduos e instituições se inter-relacionam e interferem uns nos
outros. Um dos segmentos da sociedade que vem sofrendo com a ação de
ideologias discriminatórias baseadas na diferença de gênero que criam tratamentos
que geram a desigualdade são as mulheres.
A proposta do projeto de intervenção pedagógica na escola consistiu em
sensibilizar os/as alunos/as para o contato com material teórico e prático sobre o
tema, a fim de promover o conhecimento e a reflexão sobre o significado do termo
gênero, os tipos de violência doméstica e familiar e em que contexto ela ocorre e em
pesquisar o processo de implementação da Lei Maria da Penha no Município de São
Mateus do Sul/PR. Conhecer a lei e compreender sua relevância significa
reconhecer a existência de mulheres vítimas de violência.
Gênero e violência de gênero: construções sociais
A violência contra as mulheres está pautada numa ideologia masculina
construída ao longo de séculos justificada pela fragilidade física das mulheres em
relação aos homens, construindo assim uma realidade pautada nas “[...] diferenças
biológicas que parecem assim estar à base das diferenças sociais” (BOURDIEU,
2002, p. 17). A concepção de uma suposta fragilidade física feminina contribuiu para
que também surgisse a concepção de sua suposta fragilidade emocional e isso
contribuiu para que a dominação masculina fosse justificada, é preciso lembrar que
ainda hoje esses argumentos estão presentes quando se quer justificar a dominação
dos homens sobre as mulheres. Ao se entender os homens como indivíduos mais
fortes e mais seguros emocionalmente, aqueles que deveriam prover e proteger as
mulheres cria-se a ideia de legitimação do exercício do poder sobre elas, o qual por
vezes poderia extrapolar quaisquer limites resultando na ação violenta.
No decorrer dos períodos históricos os estudos têm mostrado o papel
desempenhado pelas mulheres nas diferentes sociedades. O que se percebe é que
na maioria das vezes as mulheres são apresentadas como seres inferiores. De
acordo com Tôrres (s/d) em algumas cidades-estado da Grécia Antiga às mulheres
era reservado o espaço privado (gineceu), ficando restritas à casa, aos afazeres
domésticos, ao cuidado com as crianças, não podendo inclusive sair
desacompanhadas. Uma cidade-estado peculiar no tratamento dado às mulheres foi
Esparta, que por ser uma sociedade voltada para a guerra, oferecia às mulheres
treinamento militar e exercícios físicos a fim de prepararem o corpo para gerarem
filhos saudáveis. Tinham maior liberdade para sair de casa, mas isso não deve ser
confundido com maior valorização da mulher, mas sim como uma forma para que as
mulheres ajudassem a “[...] fortalecer a comunidade de guerreiros em detrimento da
esfera privada [...]” (TÔRRES, s/d).
De acordo com Cechinel (2009, p. 10) já em Roma houve a divisão entre os
sexos legalizada pelo sistema jurídico daquele período, pois “[...] as mulheres eram
consideradas naturalmente fracas, inferiores e sua capacidade intelectual era
limitada [...]” (CECHINEL, 2009, p. 10).
A sociedade medieval que se estruturou a partir da queda do Império Romano
(século V) foi fortemente influenciada pelos hábitos de alguns povos como celtas,
germânicos e romanos, inclusive na concepção do papel das mulheres nessa
sociedade que se organizou entre os séculos V ao XV, e as instituições que se
estruturam nesse período também reproduziram o pensamento acerca desse
assunto.
A sociedade brasileira que se organizou a partir da colonização (1532) foi
profundamente marcada pela ideologia europeia cristã recém saída do longo período
histórico denominado Idade Média, que percebia as relações e os indivíduos de uma
forma peculiar, como foi dito anteriormente. Dentre essas percepções uma que se
constitui como importante para este trabalho é a forma como se entendia o papel
dos indivíduos, principalmente a distinção do que era considerado apropriado para
os homens e para as mulheres desse período. Neste contexto convém destacar que
a história do Brasil produzida a partir do século XVI foi escrita partindo do
entendimento dos homens sobre o papel das mulheres (CATELLI JUNIOR, 2009, p.
222).
Um dos exemplos que se pode utilizar para demonstrar a visão masculina das
mulheres é a Bíblia Sagrada Cristã, em especial o Livro do Gênesis em que a
mulher aparece como sedutora, traidora, e aquela que induz o homem ao pecado.
Esse pensamento perpassou a Antiguidade e a Idade Média trazendo resquícios
para outros tempos históricos como a Idade Moderna e Contemporânea, embora
nesse último período já se encontrem registros feitos pelas mulheres de sua própria
história.
A frase „até que a morte nos separe!’ repetida nas promessas feitas durante a
cerimônia de matrimônio da Igreja Católica, refere-se ao pensamento cristão que
influenciou a concepção de casamento ao longo do tempo. De acordo com Amaral
(s/d), na Idade Média, o objetivo do casamento era a procriação e o controle do
comportamento da sociedade, entendendo a mulher carne como pertencente ao
homem e a mulher espírito como pertencente a Deus.
Tal era o poder o marido que lhe era permitido até castigar fisicamente a mulher pelos excessos cometidos: „E vós, esposo, não batais na vossa esposa quando ela estiver grávida, pois há nisso grande perigo. Reparai que não digo: nunca lhe batais; mas escolhei o momento‟”. (AMARAL, s/d, p. 6)
Em seu texto Amaral (s/d, p. 10-11) refere-se a São Tomás de Aquino, padre
dominicano, teólogo e filósofo da Idade Média, o qual afirmava que apesar de Deus
ter criado o homem e a mulher à sua imagem e semelhança, a mulher possuía
qualidades negativas e estava abaixo do homem, sendo assim por natureza
submissa.
De acordo com Moraes (2005, p. 500-501) nas primeiras décadas do século
XX, no Brasil, percebe-se a existência de regras morais que propagavam a ideia de
casamentos indissolúveis e da concepção de muitos filhos para se constituir uma
família. As mulheres que se separavam dos maridos eram estigmatizadas e a sua
sexualidade sem fins reprodutivos era condenada. Havia uma rigidez na divisão dos
papéis e o homem era considerado chefe da família e a mulher apenas sua auxiliar
principal e essa realidade gerava o que chamamos de inferioridade jurídica.
Essa concepção de diferença entre homens e mulheres contribui para que se
construam determinados conceitos de gênero e de violência de gênero na
sociedade. Segundo Joan Scott (1995, p. 86)
[...] Esses conceitos estão expressos nas doutrinas religiosas, educativas, científicas, políticas e jurídicas e tomam a forma típica de uma oposição binária fixa, que afirma de maneira categórica e inequívoca o significado do homem e da mulher, do masculino e do feminino [...].
Joan Scott entende gênero com sendo uma construção social a partir da qual
ocorrem percepções hierarquizadas das diferenças sexuais, ou seja, nas diferenças
entre sexos opostos um exerce poder sobre o outro, caracterizando-se assim como
uma relação de poder, e geralmente, são relações de poder desiguais. Sendo assim
é necessário entender como os significados culturais se constroem, dando sentido
às diferenças sexuais entre os indivíduos. Falar da necessidade de uma análise
mais aprofundada sobre gênero é buscar a profundidade na construção dos sentidos
sobre o universo masculino e feminino, entendendo-os não como categorias fixas,
mas sim como elementos que se modificam, se auto definem e se inter-relacionam.
Nas análises sobre gênero realizadas por Scott (1995) verifica-se o
surgimento de três elementos de análise. Primeiro, é através do gênero que
atribuímos sentido para tudo (cores específicas para homens e mulheres); segundo,
é por meio do gênero que as relações sociais se organizam (brincadeiras diferentes
para meninos e meninas, roupas); e terceiro, é através do gênero que se estrutura a
identidade pessoal (homens, mulheres, meninos, meninas).
Gênero por se constituir como uma relação de poder muitas vezes desigual
possibilita que essa desigualdade se expresse através da violência e muitos
historiadores tem se utilizado da expressão violência de gênero para tratar dessas
questões. A violência de gênero aqui abordada refere-se à violência contra as
mulheres na sociedade brasileira.
Podemos conceituar genericamente violência de gênero como sendo a
violência exercida de um sexo sobre outro, nesse caso referimo-nos à violência
contra as mulheres. Segundo Oliveira (2010)
O fenômeno da violência, na modalidade ora estudada, pode ser explicada como uma questão cultural que se situa no incentivo da sociedade para que os homens exerçam sua força de dominação e potência contra as mulheres, sendo essas dotadas de uma virilidade sensível. Dessa forma, as violências física, sexual e moral não ocorrem isoladamente, visto que estão sempre relacionadas à violência emocional.
Portanto podemos afirmar que a violência de gênero é uma construção social,
sendo assim é possível desconstruí-la, e caracteriza-se por toda conduta que cause
morte, dano ou sofrimento (físico, psicológico e sexual) na vida pública ou privada
das mulheres.
A violência à qual as mulheres brasileiras estão submetidas pode ser
explicada pela característica patriarcal da nossa sociedade que concede ao homem
o direito de dominar e controlar as mulheres e esse controle muitas vezes se
apresenta na forma de violência.
Os estudos sobre a história das mulheres e de um olhar feminino sobre a
história ganhou força a partir do século XX, e faz parte daquilo que a Escola dos
Annales, em 1929, chamou de história de longa duração, devido ao fato de se poder
“[...] estabelecer relações de permanência e ruptura acerca do papel da mulher [...]”
(CATELLI JÚNIOR, 2009, p. 223).
Ainda no século XX, mais especificamente no início da década de 1980, no
Brasil, inicia-se uma forte mobilização das mulheres com relação à temática da
violência.
As mulheres brasileiras, discriminadas e oprimidas, como na maior parte das sociedades, constituem, entretanto, um dos segmentos que mais se destacam na luta pela universalização dos direitos sociais, civis e políticos. [...] a sociedade em que nascemos, com seus usos, costumes e valores que definem o ser homem e o ser mulher [...] Nesse sentido é preciso conhecer como o sistema familiar, a organização econômica, os sistemas jurídicos e religiosos concebem o lugar que a mulher deve ocupar na sociedade. (MORAES, 2005, p. 495)
Essa postura feminina de mobilização possibilitou a busca de parcerias com o
Estado resultando em diversas conquistas no decorrer dos anos. Para que a
conscientização sobre a violência de gênero ocorra é necessário que ela seja
estimulada desde os anos iniciais nas escolas e com isso ocorrerá a desconstrução
de atitudes, pensamentos e sentimentos com relação à inferioridade das mulheres e
possibilitará que relações saudáveis de igualdade se efetivem em nossa sociedade.
De parcerias com o Estado as mulheres viram surgir uma série de medidas
protetivas. Uma das mais significativas é a Lei nº 11.340/2006, conhecida com Lei
Maria da Penha. A Lei recebeu esse nome em homenagem a Maria da Penha Maia
Fernandes, farmacêutica bioquímica, esposa de Marco Antonio Heredia Viveiros,
professor universitário, o qual, devido ao ciúme doentio, em 1983, tentou assassiná-
la por duas vezes. A primeira tentativa foi utilizando um revólver com o qual ele
desferiu um tiro que acertou sua esposa na coluna deixando-a paraplégica. A
segunda foi uma tentativa de eletrocussão e afogamento. Somente após a segunda
tentativa é que Maria da Penha tomou coragem e denunciou o agressor. Até a
condenação do marido foram cerca de dezenove anos, quando precisou lutar contra
o descaso das leis e do governo brasileiro, até que em 1998 ela denunciou tal
descaso à Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos
Estados Americanos. De acordo com Fernandes (2012, p. 15) a referida Comissão
responsabilizou o governo brasileiro por “[...] negligência e omissão em relação à
violência doméstica [...]”. Mesmo assim somente em 2002 o marido de Maria da
Penha foi preso.
Segundo Pinafi (2007) a Lei determina que
[...] a Autoridade Policial deve garantir a integridade física da mulher, encaminhá-la ao hospital, fornecer-lhe e aos seus dependentes o transporte quando se fizer necessário e acompanhar-lhe ao domicílio para a retirada dos pertences [...] encaminhamento de mulheres em situação de violência e seus dependentes à programas e serviços de proteção [...] também é garantida assistência jurídica gratuita, bem como acompanhamento jurídico em todos os atos processuais.
A Lei Maria da Penha garante que as mulheres vítimas de violência doméstica
tenham seus Direitos Humanos e sua proteção assegurados. Deve-se lembrar que
não cabe somente às autoridades policiais e ao Estado combater a violência de
gênero, essa é também uma responsabilidade de toda a sociedade, ou seja,
denunciar demonstrando assim as situações inaceitáveis a que muitas mulheres
estão submetidas. O intuito é não permitir que apenas a morte violenta separe as
mulheres de uma relação de dominação e maus tratos.
No município de São Mateus do Sul a população pode obter informações
sobre a implementação da Lei Maria da Penha através dos noticiários policiais
veiculados nos jornais impressos e nas rádios Am e Fm. Diariamente são noticiados
atendimentos por parte da Polícia Militar e dos Bombeiros às mulheres vítimas de
violência. Quando surgem comentários na sala de aula sobre as notícias envolvendo
violência de gênero, percebe-se que a maioria dos alunos e alunas conhecem a Lei
de forma superficial necessitando, portanto de um trabalho mais aprofundado sobre
essa temática possibilitando assim a construção de um novo entendimento sobre as
relações de gênero, as formas de violência existentes e os meios pelos quais as
mulheres podem garantir seus direitos e sua proteção.
Reflexões sobre a prática escolar
O Projeto de Intervenção Pedagógica na Escola foi desenvolvido, como já
exposto acima, na 3ª série A, do Colégio Estadual do Campo Professor Eugênio de
Almeida – EFM, no Distrito de Fluviópolis em São Mateus do Sul/PR, partindo de
uma conversa inicial com os estudantes para explicar a finalidade da implementação
do Projeto de Intervenção. Em seguida foi realizada uma pesquisa com a turma para
diagnosticar o entendimento dos indivíduos sobre gênero, violência de gênero e
sobre a Lei Maria da Penha. Para isso, foi solicitado aos estudantes que
produzissem um pequeno texto sobre o que sabiam sobre as temáticas
apresentadas sendo perceptível que todos e todas já possuíam algumas
informações sobre a Lei Maria da Penha e sobre violência de gênero, e que seria
necessário aprofundar mais o tema sobre gênero. Nesse momento houve a
separação dos estudantes em grupos, os quais analisaram os casos de violência
noticiados em várias edições do Jornal Aconteceu3 e socializaram na classe as
informações obtidas. Os estudantes relataram casos das comunidades em que
vivem e que não foram noticiados, ou que aconteceram em tempos passados. Essa
atividade foi importante, pois os jovens durante a análise perceberam que
frequentemente as edições do jornal noticiavam um ou dois casos de violência
doméstica e familiar contra as mulheres no município, inclusive destacaram que em
2013 uma jovem estudante de 15 anos foi vítima de homicídio e no ano de 2014
3 Jornal do município de São Mateus do Sul/Paraná.
outra jovem nessa faixa etária sofreu tentativa de homicídio, os estudantes
destacaram que ambas foram vítimas de seus ex-namorados, os quais por um
motivo ou outro não se conformaram com a separação.
Na sequência foi entregue aos alunos o Texto 1: Maria da Penha Maia
Fernandes, que trouxe a biografia da Maria da Penha e as circunstâncias que
levaram ela a processar o ex-marido por violência doméstica e familiar, e o Texto 2:
Surgimento da Lei 11.340/2006 – Lei Maria da Penha, que apresenta as
circunstâncias e os atores sociais que deram origem à Lei. Após a leitura dos textos
e reflexão sobre o conteúdo os estudantes responderam por escrito algumas
questões pontuais sobre os textos, as quais foram socializadas pelos estudantes.
Em seguida foi entregue à eles algumas perguntas a serem respondidas a partir do
documentário em vídeo Silêncio das Inocentes, que trouxe depoimentos de
mulheres vítimas de violência doméstica e familiar, intercalando falas de senadoras,
juízas, psicólogas, delegadas, entre outras. Os estudantes mostraram-se bastante
sensibilizados com um dos depoimentos no qual a vítima teve boa parte do corpo e
do rosto queimado pelo ex-marido.
Outra atividade realizada com os estudantes foi o lançamento de questões
sobre gênero e violência de gênero que deveriam ser respondidas oralmente. Alguns
estudantes se arriscaram a verbalizar o que entendiam sobre o que estava sendo
questionado. A partir dessa atividade os estudantes viram alguns slides sobre gênero
e eles foram orientados a copiar os conceitos dos diferentes tipos de violência de
gênero. As discussões surgidas com a apresentação dos slides foram bem
importantes, pois trouxe à tona as raízes profundas das desigualdades entre homens
e mulheres, as quais contribuíram para legitimar a violência dos homens com
relação às mulheres. Foi passado para os estudantes o vídeo Era uma vez uma
outra Maria que retrata a forma como a sociedade nos diz o que é ser mulher e o
que é ser homem e quais papéis cabem à esses indivíduos, complementando as
discussões trazidas pelos slides. Antes de o vídeo ser projetado foram entregues aos
estudantes algumas questões que deveriam ser respondidas, por escrito e
posteriormente socializadas, a partir do que foi observado pelos mesmos. Para
aprofundar as questões sobre os papéis sociais dos homens e mulheres na
sociedade foi entregue o Texto 3: Mitos de feminilidade e de masculinidade.
Foi realizado um trabalho de análise de músicas sobre os estereótipos criados
sobre as mulheres. As músicas escolhidas foram Ai, que saudades da Amélia de
Ataulfo Alves, escrita há mais de 70 anos e a música Desconstruindo Amélia da
cantora Pitty, composta em 2009. Foram entregues aos estudantes, divididos em
duplas, questões que deveriam nortear as análises das músicas. Após fazerem as
análises os alunos apresentaram suas conclusões para a classe. A música é um
bom recurso a ser utilizado com os estudantes, pois há uma ligação muito forte entre
ambos, foi perceptível o interesse pelo ritmo do samba da música cantada por
Ataulfo Alves, no início acharam diferente e até meio “feio”, “esquisito”, segundo as
palavras utilizadas por eles, mas após analisarem a letra, conhecerem a época e o
contexto histórico em que ela foi escrita passaram a vê-la com uma manifestação
musical importante para o período.
Outra atividade realizada com os estudantes foi a apresentação do vídeo
Discriminação de gênero e a violência a partir do qual os estudantes responderam
oralmente algumas questões. Na sequência foi entregue o Texto 4: Gênero e
violência de gênero, o qual foi lido e discutido com os estudantes que responderam
algumas questões sobre o conteúdo. A partir da leitura e discussão do Texto 5:
Mecanismos da Lei 11.340/2006 os estudantes responderam questões e
socializaram suas conclusões sobre o conteúdo.
Os estudantes foram divididos em grupos os quais receberam partes da Lei
11.340/2006 e para cada parte questões que foram respondidas e apresentadas
para que todos tomassem conhecimento dos artigos da Lei Maria da Penha. No final
os estudantes comentaram sobre a relevância da Lei e sobre a importância de levar
ao conhecimento da comunidade sua existência.
Uma das etapas de aplicação do Projeto consistiu em auxiliar os estudantes a
elaborarem questões a serem entregues às autoridades que trabalham com a
implementação da Lei Maria da Penha no município de São Mateus do Sul. Os
estudantes decidiram entrevistar o Delegado Nagib Nassif Palma, o Prefeito Clóvis
Genésio Ledur, a Promotora Fernanda Basso Silvério Bordignon, a Escrivã Rafaeli
de Lima Langaro responsável pelo Setor de Atendimento Especializado para
Mulheres (Saem) e a Assistente Social Simone Aléia Nadolny responsável pelo
Centro de Referência Especializado de Assistência Social (Creas). As questões
foram entregues aos entrevistados que tiveram duas semanas para respondê-las.
Após o recebimento das entrevistas os grupos montaram slides com as informações
obtidas os quais foram apresentados para as famílias e demais alunos do Colégio
Estadual do Campo Professor Eugênio de Almeida – EFM. A atividade de entrevista
motivou muito os estudantes, foi perceptível a empolgação em elaborar questões
que permitiram conhecer a realidade local com relação à implementação da Lei
Maria da Penha.
O trabalho de apresentação realizado pelos grupos foi muito elogiado pelas
famílias e pelos colegas. A partir de tudo que foi trabalhado os estudantes foram
orientados a retomar o texto escrito no início da aplicação do projeto e complementar
com os conhecimentos obtidos ao longo do tempo em que tiveram contato com os
materiais (textos, vídeos, músicas, slides, etc.) disponibilizados, construindo uma
nova narrativa histórica4.
Partir do conhecimento histórico prévio dos estudantes foi como preparar
“terreno” para a construção de uma narrativa histórica na qual os estudantes
acrescentaram os conhecimentos construídos ao longo das aulas e assim puderam
ter um entendimento maior sobre as nuances que envolvem as relações entre
homens e mulheres em nossa sociedade, como é perceptível em algumas narrativas
históricas produzidas pelos estudantes.
Em sua narrativa inicial o estudante A5 afirmou sobre a Lei Maria da Penha:
“É uma lei que foi criada para proteger as mulheres que são agredidas por seus companheiros que são brutalmente agressivos por ciúmes, ou distúrbios mentais ou viciados em drogas ou álcool. Muitas mulheres denunciam seus companheiros por medo de morrer, mas deveriam denunciar para que o agressor seja punido.”
Este mesmo estudante A declarou em sua narrativa final que:
“Com a lei está a tentativa de ajudar as mulheres que não conseguem se defender pois ainda sentem muito medo. Poucas denunciam, mas elas ficam marcadas para toda a vida, seja psicologicamente ou fisicamente,pois jamais será apagado da memória dela essa barbaridade que fizeram com ela o mal desnecessário. Pela luta de uma mulher chamada Maria da Penha
4 A DCE/PR de História (2008) apresenta uma matriz disciplinar baseada no pensamento de Jörn
Rüsen, o qual aponta para a necessidade de conduzir os alunos para a construção de uma narrativa histórica. Para Rüsen a narrativa histórica é “[...] a habilidade da consciência humana para levar a cabo procedimentos que dão sentido ao passado, fazendo efetiva uma orientação temporal na vida prática presente por meio da recordação da realidade passada”. (SCHMIDT; BARCA; MARTINS, 2010, p. 59). 5 Optamos por preservar a identidade dos estudantes apresentando-os apenas por estudante A e B
ao invés de indicar seus nomes. Optamos também por preservar a grafia dos estudantes
Maia Fernandes [...] Muitas mulheres sofrem com isso, agüentam caladas os abusos que são feitos contra elas, mas isso aos poucos vai mudar, com as mulheres conhecendo melhor a lei e sabendo que elas serão amparadas se saírem de casa abandonando esses homens [...]”
Já o estudante B, em sua narrativa inicial, declarou:
“Essa lei foi criada para ajudar as mulheres que sofrem agreções dos maridos, namorados ou companheiros, ela pune o companheiro, mas muitas vezes essas mulheres que sofrem agreções tem medo de denunciar porque acham que eles podem voltar e se vingar.”
Posteriormente, após o estudo do tema durante a intervenção pedagógica, o
estudante B amplia sua narrativa:
“Ela foi criada depois de diferentes momentos de mulheres para combater a violência doméstica e familiar. Essa lei aconteceu depois que Maria da Penha denunciou seu marido que por várias vezes tentou a matar, logicamente que essa lei não foi elaborada já após sua denúncia, mas ela juntamente com demais mulheres lutaram juntas até conseguir decretar uma lei amparase as mulheres que sofrem agressões. [...] a lei define como violência doméstica e familiar e estabelece suas formas: violência física, psicológica, sexual e moral que podem ser praticadas juntas ou individualmente.”
É possível perceber pelos relatos acima que os estudantes possuíam
algumas informações sobre a Lei Maria da Penha e durante a aplicação do Projeto
de Intervenção na Escola os conhecimentos foram sendo ampliados oportunizando
aos mesmos construírem seus saberes sobre os temas abordados.
Considerações finais
Com a implementação do Projeto de Intervenção na Escola foi possível
sensibilizar os estudantes para a reflexão sobre os temas propostos contribuindo
para a ampliação dos conhecimentos acerca do que foi trabalhado. Utilizar diversos
recursos didáticos e diferentes metodologias facilitou o processo de ensino-
aprendizagem.
Conseguimos alcançar os objetivos propostos no Projeto, principalmente no
que diz respeito às informações referentes à implementação da Lei Maria da Penha
no município de São Mateus do Sul. Os dados foram obtidos a partir das entrevistas
realizadas pelos estudantes junto às pessoas escolhidas citadas anteriormente.
Os estudantes constataram, de acordo com as informações obtidas através
da entrevista com a Promotora, que não há levantamento de dados sobre violência
doméstica e familiar contra as mulheres no município de São Mateus do Sul a não
ser os que são obtidos a partir dos boletins de ocorrência feitos na Delegacia.
Segundo análise dos estudantes um dos fatores que dificulta a obtenção dos dados
é a inexistência da Delegacia da Mulher a qual se pauta no fato de que o município
não possui o porte nem demanda necessária para a construção de uma delegacia
especializada. Existe na Delegacia de Polícia Civil o Saem – Setor de Atendimento
Especializado para Mulheres, o qual se encontra sob a responsabilidade de uma
escrivã da Polícia Civil e visa preferencialmente o atendimento às mulheres vítimas
de violência doméstica e familiar. Segundo o Delegado de Polícia um dos motivos
que levam os homens a agredirem suas companheiras é o fator cultural a partir do
qual eles se julgam proprietários delas que são consideradas objetos, as quais não
devem contrariá-los ou desobedecê-los. No primeiro semestre de 2014, de acordo
com informações do Delegado, já se contabilizam 87 inquéritos policiais, nos quais
os agressores serão punidos pela Justiça, isso sem contar os boletins de ocorrência
registrados diariamente na Polícia Civil e Polícia Militar sem representação criminal,
ou seja, as vítimas apenas comunicam ao Estado que estão sendo importunadas
sem, no entanto, processar o agressor.
A partir da análise da entrevista à Assistente Social do Creas – Centro de
Referência Especializado de Assistência Social e ao Prefeito Municipal, os
estudantes puderam perceber que nos casos de agressão contra as mulheres os
agressores estavam sob efeito de álcool fato este que consta nas queixas
registradas pelas mulheres. Um fato que despertou o interesse dos estudantes foi
que nas queixas o pedido feito pelas mulheres é a de tratamento para os
companheiros agressores e não necessariamente uma punição. A Assistente Social
destacou que quando chega até o Creas uma mulher vítima de violência que
precisou ser retira do ambiente familiar esta é colocada na casa de familiares ou
amigos e em último caso vão para a Casa de Passagem São Vicente de Paula, pois
não há um abrigo específico para essas mulheres. O Creas é responsável por
colocar as mulheres vítimas de violência em contato com uma equipe multidisciplinar
(assistente social, psicólogo, médico, advogado) que apoiará as mulheres nesse
momento específico de sua vida, portanto é objetivo do Creas oferecer apoio,
orientação e acompanhamento, não só mulheres vítimas de violência, como também
a todo e qualquer indivíduo independente de gênero, ou idade, que se encontre em
situação de ameaça e violação de seus direitos.
Diante do exposto acima é perceptível que o Município de São Mateus do Sul
tem se empenhado em oferecer às mulheres vítimas de violência doméstica e
familiar o apoio necessário previsto em lei. Ainda há muito para ser feito, mas com o
empenho de toda sociedade conseguiremos alcançar uma redução considerável nos
casos de violência de gênero e um dos passos é trazer para o ambiente escolar a
discussão e a reflexão sobre essa temática estendendo esta ação para a
comunidade escolar externa buscando banir o preconceito e a discriminação contra
as mulheres ainda tão presente em nossa sociedade machista.
Referências
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