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OS DESAFIOS DO DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL NO SÉCULO XXI Cláudia Maria da Costa Gonçalves 1 Thiago Allisson Cardoso de Jesus 2 Jean Carlos Nunes Pereira 3 RESUMO O crescimento econômico desordenado pautado na falsa ilusão de desenvolvimento e pelos postulados contumazes da cultura da insaciabilidade, do consumo irresponsável e da exploração predatória dos recursos demarcam na atualidade as relações antropocêntricas de dominação do ser humano sobre a natureza. A humanidade, então, não usufrui apenas das conquistas e das benesses do desenvolvimento; mas, também, dos efeitos indesejáveis produzidos por este, como as desigualdades sociais, a degradação ambiental e a fragilização do sentimento de coletividade, de alteridade e de segurança (BECK, 2006). A emergência de tantos riscos e incertezas é, pois, contradição face à modernidade e consequência direta desta. Neste sentido, configuram-se um ambiente social de riscos e incertezas (CASTEL, 2005) e o fenômeno da modernização reflexiva (GIDDENS, 2010) como consequências de um desenvolvimentismo sem estratégias viáveis para a sustentabilidade e descomprometido com a solidariedade intergeracional (AGAMBEN, 2005). À luz do atual redimensionamento do conceito de soberania dos estados nacionais (FERRAJOLLI, 2007), considerando as relações entre o plano internacional e o plano interno, tomam-se como marco empírico as Diretrizes das Nações Unidas para a proteção do consumidor (1985), o Protocolo de Ushuaia sobre o Compromisso Democrático no Mercosul, Bolívia e Chile (1998), a Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica), os diversos acordos que constituíram o Protocolo de Quioto (1999), a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 e o arcabouço jurídico- normativo infraconstitucional em matéria ambiental. Objetiva-se, pois, analisar, por meio de uma exposição compartilhada e problematizadora, a multidimensionalidade do conceito de sustentabilidade e a (in)viabilidade da efetivação do direito ao futuro. Os paradigmas do politicamente ético, economicamente viável, socialmente justo, culturalmente diverso e ambientalmente ecológico, utilizando-se do método crítico-dialético com o fito de desnudar as aparências das distintas práticas sociais, revelando a essência da histórica dominação humana sobre o ambiente (SINGER, 2006) e a subserviência deste aos postulados antropocêntricos de exploração irracional e desmedida (OST, 1997), contextualmente situado na crise global de escassez e racionamento dos recursos naturais face às políticas ineficientes de gestão serão os conteúdos específicos enfrentados pelos 03 participantes da presente proposta de Mesa Temática. 1 Doutora. Universidade Federal do Maranhão (UFMA). E-mail: [email protected] 2 Doutorando. Universidade Estadual do Maranhão (UEMA). E-mail: [email protected] 3 Mestre. Universidade Estadual do Maranhão.

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OS DESAFIOS DO DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL NO SÉCULO XXI

Cláudia Maria da Costa Gonçalves1

Thiago Allisson Cardoso de Jesus2

Jean Carlos Nunes Pereira3

RESUMO

O crescimento econômico desordenado pautado na falsa ilusão de desenvolvimento e pelos

postulados contumazes da cultura da insaciabilidade, do consumo irresponsável e da

exploração predatória dos recursos demarcam na atualidade as relações antropocêntricas

de dominação do ser humano sobre a natureza. A humanidade, então, não usufrui apenas

das conquistas e das benesses do desenvolvimento; mas, também, dos efeitos indesejáveis

produzidos por este, como as desigualdades sociais, a degradação ambiental e a

fragilização do sentimento de coletividade, de alteridade e de segurança (BECK, 2006). A

emergência de tantos riscos e incertezas é, pois, contradição face à modernidade e

consequência direta desta. Neste sentido, configuram-se um ambiente social de riscos e

incertezas (CASTEL, 2005) e o fenômeno da modernização reflexiva (GIDDENS, 2010)

como consequências de um desenvolvimentismo sem estratégias viáveis para a

sustentabilidade e descomprometido com a solidariedade intergeracional (AGAMBEN,

2005). À luz do atual redimensionamento do conceito de soberania dos estados nacionais

(FERRAJOLLI, 2007), considerando as relações entre o plano internacional e o plano

interno, tomam-se como marco empírico as Diretrizes das Nações Unidas para a proteção

do consumidor (1985), o Protocolo de Ushuaia sobre o Compromisso Democrático no

Mercosul, Bolívia e Chile (1998), a Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de

San José da Costa Rica), os diversos acordos que constituíram o Protocolo de Quioto

(1999), a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 e o arcabouço jurídico-

normativo infraconstitucional em matéria ambiental. Objetiva-se, pois, analisar, por meio de

uma exposição compartilhada e problematizadora, a multidimensionalidade do conceito de

sustentabilidade e a (in)viabilidade da efetivação do direito ao futuro. Os paradigmas do

politicamente ético, economicamente viável, socialmente justo, culturalmente diverso e

ambientalmente ecológico, utilizando-se do método crítico-dialético com o fito de desnudar

as aparências das distintas práticas sociais, revelando a essência da histórica dominação

humana sobre o ambiente (SINGER, 2006) e a subserviência deste aos postulados

antropocêntricos de exploração irracional e desmedida (OST, 1997), contextualmente

situado na crise global de escassez e racionamento dos recursos naturais face às políticas

ineficientes de gestão serão os conteúdos específicos enfrentados pelos 03 participantes da

presente proposta de Mesa Temática.

1 Doutora. Universidade Federal do Maranhão (UFMA). E-mail: [email protected]

2 Doutorando. Universidade Estadual do Maranhão (UEMA). E-mail: [email protected]

3 Mestre. Universidade Estadual do Maranhão.

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HOMEM E NATUREZA: uma falsa dualidade

– As árvores, meu filho, não têm alma! E esta árvore me serve de empecilho...

É preciso cortá-la, pois, meu filho, Para que eu tenha uma velhice calma!

Meu pai, por que sua ira não se acalma?! Não vê que em tudo existe o mesmo brilho?! Deus pôs almas nos cedros... no junquilho...

Esta árvore, meu pai, possui minh’alma! (ANJOS, 2011, p. 97).

Cláudia Maria da Costa Gonçalves4 Ana Caroline Silva Santos5

Antonia Regina Ribeiro6 Kaio Whalisson Barbosa Mascarenhas 7

RESUMO

Estudo que analisa importantes contradições do antropocentrismo no

interior das relações ecológicas. Discutem-se algumas consequências

danosas do consumo exacerbado sobre a natureza. Expõem-se os

mais graves desastres ambientais que ocorreram a partir da segunda

metade do século XX e seus impactos ecológicos. Analisam-se os

novos paradigmas que devem reger o Estado Socioambiental.

Palavras-chaves: Proteção Ambiental. Consumo. Desastres

Ambientais. Estado Socioambiental.

ABSTRACT

This study analyzes important contradictions of anthropocentrism

within the ecological relationships. We discusse some harmful

consequences of exacerbated consumption on nature. We show the

most serious environmental disasters that have occurred from the

second half of the twentieth century and their ecological impacts.We

analyze the new paradigms must rule the Socio-environmental state.

Keywords: Environmental protection. Consumption. Environmental

disasters. Socio-environmental state.

4 Doutora. Universidade Federal do Maranhão (UFMA). E-mail: [email protected]

5 Aluna de Ciências Biológicas-Licenciatura. Centro Universitário Leonardo da Vinci

6 Aluna de Ciências Biológicas-Licenciatura. Centro Universitário Leonardo da Vinci

7 Aluna de Ciências Biológicas-Licenciatura. Centro Universitário Leonardo da Vinci

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1 INTRODUÇÃO

Neste início de século, ainda assistimos, com certo estranhamento e surpresa,

que o domínio humano, quase absoluto, não conseguiu – e não poderia conseguir - sozinho

a resolução de novos e velhos problemas, a exemplo da fome, da concentração de riquezas,

da violência, da segregação, da intolerância e da devastação ambiental.

Por certo, os dogmas do Iluminismo desenharam um mundo racional mais pleno.

O passar dos séculos, contudo, mostrou-nos que avançamos, é certo, mas,

contraditoriamente, não deixamos de pensar nas centralidades absolutas da terra e do

homem, embora saibamos que somos apenas uma das inúmeras espécies que habitam os

muitos biomas deste frágil planeta que, bem pensado, é apenas mais um na imensa

vastidão do universo.

Ademais, o excesso de antropocentrismo, bem como os apelos de uma

economia cada vez menos comprometida com os valores ambientais, esqueceram-se da

justa medida, como ensina Boff (2010, p. 69-73):

A cultura imperante é em tudo excessiva. Não tem o sentido da autolimitação

nem o senso da justa medida. Por isso está em crise perigosa para seu

próprio futuro. O desafio é: qual é a justa medida que preserva o capital

natural e a sobrevivência da biosfera?

A justa medida é o ótimo relativo, o equilíbrio entre o mais e o menos [...].

Aprendamos dos antigos como sanar a crise civilizacional: vivendo sem

excesso, na justa medida e no cuidado essencial para com tudo o que nos

cerca.

Vivemos, portanto, em uma sociedade de risco, segundo Beck (1992, 2002), que

oculta os estragos ambientais com relativismos insustentáveis. Veja-se a análise de

Carvalho (2014, p. 179):

Assim como Chernobyl marca a entrada da Sociedade Contemporânea na

era do risco global, Fukushima parece estabelecer o início de uma nova era

em que tais realidades são ainda mais potencializadas por eventos de

colapso socioambientais (com causas naturais e humanas) de enorme

capacidade destrutiva para o meio ambiente, patrimônio e vidas humanas.

Não se trata de catastrofismo, mas do incremento das indeterminações que

envolvem os processos de tomada de decisão na Sociedade

Contemporânea.

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Por outro lado, o antropocentrismo exacerbado devasta o sentido da vida das

outras espécies animais e vegetais. Assim, seja permitido reiterar: vivemos uma crise ética

e, por conseguinte, as ciências passam, também, por uma crise de paradigmas na qual os

dogmas absolutos do antropocentrismo são postos em xeque:

A mudança de paradigma traz soluções simples para problemas

aparentemente complexos, mas a própria modificação paradigmática é um

processo traumático e complexo, porque mexe com valores, muitas vezes, já

inseridos na personalidade de cada indivíduo e no contexto cultural de uma

determinada sociedade.

[...]

O paradigma antropocêntrico comprovadamente não consegue mais resolver

os problemas ambientais. Paira constantemente sobre a humanidade o temor

egocêntrico da destruição do planeta. A crise ética acordada no último século

em relação à exploração animal também não encontrou soluções no

paradigma atual.

[...]

O biocentrismo é o novo modelo paradigmático proposto pela filosofia e pelo

direito. Se é ideal e eterno não se sabe com exatidão, de certo é,

momentaneamente, o melhor (NOGUEIRA, 2012, p. 174-176).

Com efeito, é falsa a dualidade homem versus natureza, pois não somos

senhores ou meros espectadores do ambiente, somos parte dele. Parece estar em curso

então uma virada de paradigma: do Estado de Bem Estar Social para o Estado de Bem

Estar Socioambiental. Estudar as possibilidades e contradições dessa nova categoria é o

que nos move na realização desta breve pesquisa.

Frente à necessidade de delimitar o tema para a construção do objeto de

estudo, apresentamos os seguintes questionamentos que pretendemos responder com

o desenvolvimento da pesquisa. São eles:

a) Como tem sido academicamente retratada a relação homem versus

natureza?

b) Quais as consequências do antropocentrismo quando se trata das relações

ecológicas?

c) Quais princípios devem reger as relações homem versus natureza,

considerando-se, de um lado, a finitude dos recursos ambientais e, de

outro lado, a ética da vida?

Com efeito, tem-se como objeto de estudo da pesquisa que pretendemos

realizar a discussão acerca da falsa dualidade homem e ambiente.

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Ressaltamos, ainda, que a presente pequisa tem os seguintes objetivos:

1.1 Objetivo geral

Analisar, os princípios que, no interior do Estado Socioabiental, devem reger

as relações homem e natureza e suas contradições na sociedade de risco.

1.2 Objetivos específicos

a) Discutir como tem sido percebida a relação homem versus natureza nos

aspectos econômico, social, cultural e ecológico;

b) Estudar algumas das mais importantes contradições e consequências do

antropocentrismo, quando se trata das relações ecológicas;

c) Analisar os novos paradigmas que regem o Estado Socioambiental e suas

contradições na sociedade de risco.

A pesquisa será documental, realizada através de leituras, discussões e

fichamentos de obras científicas referentes ao objeto de estudo, ou seja: os princípios

que, no interior do Estado Socioabiental, devem reger as relações homem versus

natureza e suas contradições na sociedade de risco.

A metodologia será fundamentada em Bourdieu, com as noções de campo,

profissional e profano, saber relacional, dúvida radical.

Serão discutidas categorias de Ost (1995, p. 235-270), tais como crise do vínculo e

crise do limite: “ [...] uma crise de paradigmas, sem dúvida. Crise do vínculo: já não

conseguimos discernir o que nos liga ao animal, ao que tem vida, à natureza; crise do limite: já

não conseguimos discernir o que dela nos distingue.”8 A posição em destaque será importante

para estabelecermos um diálogo com o autor, contudo, advertimos, desde logo, que , embora

defendendo os vículos e os limites que, respectivamente aproximam e apartam homem versus

natureza, compreendemos que esse binômio é ilusório, pois não somos apenas parceiros,

protetores ou antagônicos da natureza, mas parte integrante desta, no interior da qual ,

processam-se, aliás, múltiplas interações ecológicas com outras espécies.

8 Não concordamos com todas as formas de ver do autor, sobretudo no que concerne aos direitos dos animais

não humanos, pois, aqui, defendemos que esses direitos emanam da dignidade própria dos animais e não exclusivamente dos deveres humanos, como sustenta Ost (1995).

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A categoria sociedade de risco de Beck (2011), também, fundamentará a

presente pesquisa.

2 DO ARTESANATO ÀS FÁBRICAS: antropocentrismo criado

O antropocentrismo é uma condição biológica ou culturalmente construída ao

longo da História? Principiamos com essa instigante questão , pois, como sabido, desde o

final do século XVI, iniciou-se todo um processo lento, porém gigantesco, de centralidade

do homem nas variadas relações ecológicas. Arendt (1995, p. 237) explica: “pois a ‘boa

nova’ cristã da imortalidade da vida humana individual invertera a antiga relação entre o

homem e o mundo, promovendo aquilo que era mais mortal, a vida humana, à posição de

imortalidade ocupada até então pelo cosmo.”

A modernidade, contudo, relativizou as centralidades que caracterizavam o

mundo medieval:

[...] quando o homem olha o céu, ele descobre que a terra não era o centro

do universo. Em segundo lugar, quando efetua a circunavegação, ele

descobre que a Europa não era o centro da Terra. E finalmente, quando

realiza a Reforma Protestante, ele descobre que a Igreja Católica Romana

não era ( mais) o centro cultural da civilização. Se antes era fácil decidir como

agir, bastando imitar, mimetizar os comportamentos prescritos pelo centro, na

Modernidade, não há mais um centro a ser imitado (SAMPAIO, 2001, p. 50).

Assim, embora o homem saiba – ou deveria saber - que não é o centro da terra

e que o nosso planeta não é o centro do universo, ainda vivemos como se o poder humano

pairasse solitário e pleno por toda infinita vastidão do cosmo.

Para isso muito contribuíram os postulados da Revolução Industrial que, sempre

ciosa por crescentes lucros, transformou homens e mulheres em meros consumidores.

Do fordismo9 aos dias de hoje, o mercado não apenas cria produtos para

satisfação das necessidades básicas, mas busca e reproduz consumidores absolutamente

9 Sobre fordismo, Cf. GRAMSCI (2008); FORD, (1964).

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envolvidos pelo fascínio construído do ter. Em outras palavras, vivemos, cada vez mais, o

contraditório processo de reificação ou fetichismo da mercadoria10.

O consumo assim praticado - quase como um dogma de fé – desconhece a

fragilidade humana e o direitos dos outros seres vivos. As relações sociais vivenciadas

dessa forma desconhecem, portanto, a ideia básica da justa medida.

Semprini (1999, p. 111-112) lembra: “Sobretudo, a noção de classe média

americana ultrapassa os parâmetros objetivos. Ela é principalmente um estado de espírito,

um estilo de vida, uma identidade comum, um sistema de valores partilhados, uma vontade

de participar do sonho americano.”

O antropocentrismo, por conseguinte, é mais do que a centralidade do homem na

terra – o que em si já é ecologicamente desproporcional -, mas representa, na verdade, a

supremacia do homem consumidor. Os dados abaixo ajudam-nos a pensar o tema:

[...] a geração de e-lixo quase alcançou a marca de 49 milhões de toneladas

em 2012, o que representa 7 kg por habitante. Se continuar nesse ritmo, o

planeta terá que suportar 65,4 milhões de toneladas de lixo eletrônico em

2017, que dariam para encher 200 edifícios como o Empire State, nos EUA.

[...]Segundo o E-waste World Map, os EUA foram os que mais geraram

resíduos eletrônicos no ano pasado [2012]: foram 9,4 milhões de toneladas, o

que representa 29,8 kg por habitante - seis vezes mais do que a China, que

aparece na segunda posição do ranking.

Já na América Latina, o Brasil aparece em posição de destaque. Nosso país

produziu 1,4 milhão de toneladas de e-lixo - o equivalente a média global de 7

kg por habitante - e só perdeu para o México, que gerou 9 kg por pessoa

(LUNDERS; GALLUP, 2015, não paginado).

Cabem agregar, ainda, os seguintes dados:

Milhões de celulares, câmeras digitais, computadores, tablets e outros

gadgets eletrônicos acabam a cada ano no lixo comum, o que representa um

enorme perigo para a saúde e para o meio ambiente, segundo adverte as

Nações Unidas.

E o problema só cresce. Se no ano 2000 foram produzidas cerca de 10

milhões de toneladas de resíduos eletrônicos, agora são 50 milhões,

equivalente a oito vezes o peso da pirâmide egípcia de Gizé.

Esse número significa que cada habitante do planeta produz em média sete

quilos de lixo tecnológico e os cálculos da ONU preveem que nos próximos

três anos esses resíduos aumentarão em um terço.

10

A análise sobre reificação ou fetichismo da mercadoria pode ser encontrada na obra de Karl Marx: “Uma relação social definida, estabelecida entre os homens, assume a força fantasmagórica de uma relação entre coisas”. (MARX, 1989,p.81).

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O lixo per capita produzido varia de acordo com a riqueza e consciência

ambiental de cada país, e vai desde os 63 kg gerado por um cidadão do

Catar, passando pelos quase 30 de um americano, os 23 de um alemão, os

18 de um espanhol, os sete de um brasileiro ou os 620 gramas de um

malinês.

[...]

Materiais como chumbo, mercúrio, cádmio e zinco podem ser uma fonte

contaminante no longo prazo se não forem reciclados de forma adequada.

Isso só acontece com uma parte mínima de todo esse lixo, denunciam a ONU

e grupos de proteção do meio ambiente.

O Escritório das Nações Unidas para o Desenvolvimento Industrial (ONUDI),

com sede em Viena, calcula que, em 2016, os países em desenvolvimento

produzirão mais lixo eletrônico que os industrializados.

Um desafio ainda maior porque essas nações contam com menos meios para

abordar o problema (AGÊNCIAS, 2014, não paginado).

A exacerbação do consumo e a consequente cultura do descarte, imperante em

tempos que se seguem, foram, em Encíclica recente , enfrentadas pelo Papa Francisco:

Produzem-se anualmente centenas de milhões de toneladas de resíduos,

muitos deles não biodegradáveis: resíduos domésticos e comerciais, detritos

de demolições, resíduos clínicos, electrónicos e industriais, resíduos

altamente tóxicos e radioactivos. A terra, nossa casa, parece transformar-se

cada vez mais num imenso depósito de lixo. Em muitos lugares do planeta,

os idosos recordam com saudade as paisagens de outrora, que agora veem

submersas de lixo. Tanto os resíduos industriais como os produtos químicos

utilizados nas cidades e nos campos podem produzir um efeito de

bioacumulação nos organismos dos moradores nas áreas limítrofes, que se

verifica mesmo quando é baixo o nível de presença dum elemento tóxico num

lugar. Muitas vezes só se adoptam medidas quando já se produziram efeitos

irreversíveis na saúde das pessoas (LIBRERIA EDITRICE VATICANA, 2015,

não paginado).

Portanto, tendo como parâmetro a noção de dúvida radical11, defendida por

Bourdieu, conclui-se que, embora o homem tenha particularidades físicas e sobretudo

intelectuais que o têm ajudado a impor seu domínio em um misto de força e fragilidade, a

exacerbação do antropocentrismo não decorre unicamente de sua condição biológica, mas

advém de relações culturais, históricas e materialmente construídas e reiteradas, em

especial, quando se trata do mundo do consumo em tempos pós-modernos.

11

“Nada é mais universal e universalizável do que as dificuldades”. ( BOURDIEU,, 2001. p. 14).

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3 DESASTRES AMBIENTAIS: biocentrismo esquecido

A era contemporânea, encartando os paradoxos do crescimento econômico e

suas consequentes avarias nas relações ecológicas, continua assistindo e protagonizando

desastres ambientais de larga repercussão que irremediavelmente abalam animais

humanos, não humanos e toda extensa natureza que os circunscreve. Vejamos os dados

abaixo acerca dos maiores desastres ambientais da história:

10 – Three Mile Island

Conhecido como “Pesadelo Nuclear”, o desastre ocorreu em 9 de abril de

1979. O reator da usina nuclear “Three Mile Island”, na Pensilvânia, [...]

lançou gases e efluentes radioativos em um raio de 16 Km. A população não

foi informada sobre o acidente, havendo a evacuação da população apenas

dois dias após o ocorrido. Não houve mortes relacionadas ao acidente.

[...]

9 – Doença de Minamata

Em 1954, em Minamata, uma ilha localizada no sudoeste do Japão os

moradores começaram a observar um comportamento estranho nos animais,

principalmente os gatos que começavam a ter convulsões e saltar no mar,

inicialmente foi chamada de ‘Doença da Dança do Gato’. Em 1956, a doença

se manifestou no primeiro humano, sendo conhecida como ‘Doença de

Minamata’, causando convulsões, perda e descontrole das funções motoras.

Dois anos após, estudos concluíram que a doença estava relacionada ao

envenenamento das águas com mercúrio e outros metais pesados,

infectando peixes e mariscos que eram a principal fonte de alimentação da

população local.

[...]

8 – Nuvem de Dioxina em Seveso

Em 10 de julho de 1976, em Seveso, no norte da Itália, houve uma explosão

em uma fábrica de produtos químicos, lançando uma espécie de nuvem

composta de dioxina, que se estacionou sobre a cidade. Inicialmente, a

população não deu importância ao efeito. Os primeiros impactos foram

observados nos animais que começaram a morrer gradativamente. Um

agricultor que encontrou seu gato morto, ao ver que em apenas um dia o

grau de deterioração do animal estava muito avançado,

acionou os órgãos responsáveis que constataram que o gato tinha se desfeito

como se tivessem lhe jogado ácido, sobrando apenas seu crânio.

Dois dias após, foram relatados efeitos em humanos (feridas na pele,

desfiguração, náuseas e visão turva).

[...]

7 – O Mar de Aral

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O que já foi o 4º maior lago de água salgada do mundo, localizado na Ásia-

Central, hoje é uma espécie de ”cemitério de navios”. Devido à

crise econômica enfrentada pela região, a mesma foi abandonada, deixando

um vasto rastro de impactos, causando a desertificação do lugar.

Atualmente, o Cazaquistão vem levantando esforços para superar

esse desastre, mas as expectativas são desanimadoras devido

à magnitude da interferência que houve, sendo considerado um dos maiores

desastres feitos pela ação do homem até hoje.

[...]

6 – Usina Nuclear de Tokaimura

Em 30 de setembro de [1999], no nordeste de Tóquio, em um usina de

processamento de urânio, operário manuseavam uma solução líquida quando

ocorreu um acidente expondo centenas de pessoas a diferentes níveis de

radiação. Dentro de minutos os operários mais próximos ao local

tiveram náuseas, além de terem o rosto, mãos e outras partes do corpo

queimados.

[...]

5 – O Exxon Valdez

No dia 24 de março de 1989, o navio petroleiro Exxon Valdez encalhou

nas águas do Alasca, despejando 10,8 milhões de galões de óleo nas águas,

que rapidamente se espalhou por cerca de 500 quilômetros, matando

milhares de animais. Cerca de 11.000 pessoas e 1.000 embarcações se

mobilizaram para conter e reverter o impacto.

[...]

4 – Love Canal

Em 1978, em um vilarejo localizado em Nova York, toneladas de lixo

começaram a borbulhar em quintais, porões e encanamentos

das residências. O problema ocorreu devido a 21.000 toneladas

de resíduos tóxicos industriais que haviam sido enterrados por uma empresa

local nas décadas de 40 e 50. Centenas de famílias abandonaram o local,

algumas apresentando sinais de intoxicação.

[...]

3 – Petróleo em Chamas no Kuwait

Em 1991, motivado por questões politicas e disputas

territoriais, Saddam Hussein perdeu o território de Kuwait. Em resposta,

ordenou seus homens que invadissem a região, com o intuito de explodir os

poços de petróleo. Cerca de 600 poços foram incendiados, queimando por

cerca de sete meses, lançando ao Golfo uma fumaça venenosa, com fuligem

e cinzas, criando em seguida a ‘Chuva Negra’, formando lagos de óleo.

Milhares de animais morreram intoxicados.

[...]

2 – Bhopal

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No dia 2 de dezembro de 1984, um acidente em uma fábrica de pesticidas

em Bophal, na Índia, lançou 45 toneladas de metil isocianato na atmosfera.

Em poucas horas, milhares de pessoas morreram, nos meses seguintes mais

pessoas morreram devido a complicações geradas pela contaminação.

São contabilizadas aproximadamente 15.000 mortes, mas, no total, cerca de

500.000 pessoas foram afetada (por cegueira, falência dos órgãos, má

formação em fetos e defeitos congênitos), a população sofre até hoje com os

efeitos.

[...]

1 – Chernobyl

Em 26 de abril de 1986, em Chernobyl, na Ucrânia, ocorreu o que é

considerado o pior desastre nuclear da história. Um dos reatores da usina

nuclear instalada no local explodiu enviando enormes quantidades de

radiação para atmosfera, se espalhando por toda Rússia e parte da Europa.

O número de pessoas afetadas pelo acidente é incalculável. O caso mais

comum relatado são incidências de câncer de tiroide em

crianças. Atualmente, uma área de quase 20 quilômetros perto da planta

permanece desativada. O reator que explodiu permanece selado em uma

espécie de sarcófago de concreto, embora estudos apontem sua deterioração

gradual, o que pode acarretar em novos impactos no futuro (EDUCAÇÃO

GLOBO, 2013, não paginado).

Passados pouco mais de 60 anos da contaminação das águas da ilha japonesa

de Minamata por mercúrio e outros metais pesados, avançou-se, é verdade, na disciplina

normativa da proteção ambiental. Contudo, a questão não pode ser resolvida somente por

leis e tratados internacionais – que são importantes, mas não suficientes. É necessário

mais; é preciso discutir os desastres ecológicos não apenas de forma planfetária.

Precisamos também análisá-los a partir das reponsabilidades do homem no contexto da

produção e consumo exacerbados de bens, muitos deles, como já demonstrado, supérfluos

e incompatíveis com as múltiplas dimensões do desenvolvimento sustentável.

Neste sentido, uma análise sistêmica dos desastres privilegia a análise da

perda da estabilidade do sistema atingido, diminuindo a ênfase à distinção

entre desastres naturais e antropogênicos. Na verdade, o dualismo

cartesiano (homem/natureza), bem como um monismo naturalista, consistem,

como bem menciona Frainçois Ost em A Natureza à Margem da Lei: a

ecologia à prova do direito, em posições ‘potencialmente mortíferas’, vez que

excluem o terceiro. Para este, o terceiro consiste numa síntese das relações

havidas entre homem-natureza, um contínum híbrido, entre social e natural.

Os desastres detém uma condição ímpar à Sociedade Contemporânea, servir

de instrumento de re-inclusão (re-entry) deste terceiro excluído, uma noção

híbrida das relações entre sistema social e ambiente natural.

Os desastres trazem, desta forma, à tona tudo o que a sociedade global se

esforça em ocultar, as vulnerabilidades e os vulneráveis, as negligências

estatais (em fiscalizar, prover e – muitas vezes – se abster), as

desigualdades crescentes, o colapso ambiental mundializado pela ganância e

desinformação, o descaso com o ‘outro’ (seja ele animal ou humano)... Os

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desastres desnudam o rei, em suas vestes e, sobretudo, o tapete aonde tudo

foi sendo colocado lenta e gradualmente e, acabam por responder, na cadeia

retroalimentada, com sinergia e violência [...] (CARVALHO, 2014, p. 245-246,

grifo nosso).

4 ESTADO DE BEM-ESTAR SOCIOAMBIENTAL: alteridade e compromissos

As relações ecológicas, enquanto uma das dimensões dos direitos fundamentais,

implicam no respeito aos seguintes princípios, adiante analisados a partir das obras de Ost

(1995), Machado (1998), Freitas (2009, 2012), Singer (2010), Giddens (2010), Beck (2011)

e Irving e Oliveira (2012):

a) A satisfação das necessidades humanas básicas12, como por exemplo,

dignidade, educação e solidariedade, é uma das dimensões do

desenvolvimento sustentável.

Nesse sentido, ressalte-se o primeiro princípio da Declaração de Estocolmo sobre

o Meio Ambiente Humano:

Princípio 1

O homem tem o direito fundamental à liberdade, à igualdade e ao desfrute de

condições de vida adequadas em um meio ambiente de qualidade tal que lhe

permita levar uma vida digna e gozar de bem-estar, tendo a solene obrigação

de proteger e melhorar o meio ambiente para as gerações presentes e

futuras. A este respeito, as políticas que promovem ou perpetuam o

apartheid, a segregação racial, a discriminação, a opressão colonial e outras

formas de opressão e de dominação estrangeira são condenadas e devem

ser eliminadas (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 1972, não

paginado).

Por outro lado, a Declaração sobre o Direito ao Desenvolvimento, ainda em 1986,

já estabelecia:

Artigo 1

1. O direito ao desenvolvimento é um direito humano inalienável em virtude

do qual toda pessoa humana e todos os povos estão habilitados a participar

do desenvolvimento econômico, social, cultural e político, a ele contribuir e

dele desfrutar, no qual todos os direitos humanos e liberdades fundamentais

possam ser plenamente realizados.

2. O direito humano ao desenvolvimento também implica a plena realização

do direito dos povos de autodeterminação que inclui, sujeito às disposições

12

Sobre necessidades humanas básicas, Cf. DOYAL, GOUGH, 1991; PEREIRA, 2000.

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relevantes de ambos os Pactos Internacionais sobre Direitos Humanos, o

exercício de seu direito inalienável de soberania plena sobre todas as suas

riquezas e recursos naturais

Artigo 8

1. Os Estados devem tomar, a nível nacional, todas as medidas necessárias

para a realização do direito ao desenvolvimento e devem assegurar

igualdade de oportunidade para todos em seu acesso aos recursos básicos,

educação, serviços de saúde, alimentação, habitação, emprego e distribuição

eqüitativa da renda. Medidas efetivas devem ser tomadas para assegurar que

as mulheres tenham um papel ativo no processo de desenvolvimento.

Reformas econômicas e sociais apropriadas devem ser efetuadas com vistas

à erradicação de todas as injustiças sociais.

2. Os Estados devem encorajar a participação popular em todas as esferas,

como um fator importante no desenvolvimento e na plena realização de todos

os direitos humanos (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 1986, não

paginado).

Preceitua, ainda, a Declaração do Rio Sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento.

Princípio 1

Os seres humanos estão no centro das preocupações com o

desenvolvimento sustentável. Têm direito a uma vida saudável e produtiva,

em harmonia com a natureza (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS,

1992, não paginado).

Ademais, da Declaração de Joanesburgo sobre Desenvolvimento Sustentável

consta:

1. Nós, representantes dos povos do mundo, reunidos durante a Cúpula

Mundial sobre Desenvolvimento Sustentável em Joanesburgo, África do Sul,

entre 2 e 4 de setembro de 2002, reafirmamos nosso compromisso com o

desenvolvimento sustentável.

2. Assumimos o compromisso de construir uma sociedade global humanitária,

eqüitativa e solidária, ciente da necessidade de dignidade humana para

todos.

3. No início desta Cúpula, as crianças do mundo nos disseram, numa voz

simples porém clara, que o futuro pertence a elas e, em conseqüência,

instaram todos nós a assegurar que, por meio de nossas ações, elas

herdarão um mundo livre da indignidade e da indecência causadas pela

pobreza, pela degradação ambiental e por padrões de desenvolvimento

insustentáveis.

4. Como parte de nossa resposta a essas crianças, que representam nosso

futuro coletivo, todos nós, vindos de todos os cantos do mundo, formados por

diferentes experiências de vida, estamos unidos e animados por um

sentimento profundo de que necessitamos criar, com urgência, um mundo

novo e mais alegre de esperança.

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5. Por conseguinte, assumimos a responsabilidade coletiva de fazer avançar

e fortalecer os pilares interdependentes e que se sustentam mutuamente do

desenvolvimento sustentável - desenvolvimento econômico, desenvolvimento

social e proteção ambiental - nos âmbitos local, nacional, regional e global

19. Reafirmamos nossa promessa de aplicar foco especial e dar atenção

prioritária à luta contra as condições mundiais que apresentam severas

ameaças ao desenvolvimento sustentável de nosso povo. Entre essas

condições estão: fome crônica; desnutrição; ocupações estrangeiras; conflitos

armados; problemas com drogas ilícitas; crime organizado; corrupção;

desastres naturais; tráfico de armamentos; tráfico humano; terrorismo;

intolerância e incitamento ao ódio racial, étnico e religioso, entre outros;

xenofobia; e doenças endêmicas, transmissíveis e crônicas, em particular

HIV/AIDS, malária e tuberculose (DECLARAÇÃO..., 2002).

Importante observar, portanto, que o desenvolvimento sustentável não pode ser

analisado, ou melhor, aferido, exclusivamente a partir de dados econômico-contábeis, tais

como o Produto Interno Bruto (PIB). Explica Irving e Oliveira (2012, p. 92-94):

Assim, amplia-se, mundialmente, a percepção de que o crescimento

econômico, medido pelo aumento do Produto Interno Bruto (PIB),

denominado também Produto Nacional Bruto (PNB), não é capaz de traduzir

o grau de desenvolvimento de um determinado país, uma vez que não

incorpora todas as demandas e aspirações humanas. Portanto, a tradicional

forma de fazer a conta do progresso, anualmente, com base no acúmulo de

riquezas nacionais, vem sendo cada vez mais questionada. [...]

É nesse contexto que surge um índice inovador denominado Felicidade

Interna Bruta (FBI), que incorpora nove dimensões: bem-estar psicológico,

saúde, uso equilibrado do tempo, vitalidade comunitária, educação, cultura,

resiliência ecológica, goverrnança e padrão de vida – que traduzem uma

nova forma de perceber o ser humano em sua relação com o mundo.

b) O equilíbrio ecológico pressupõe a solidariedade entre gerações e entre

espécies. O citado postulado encontra fundamento nas seguintes

Declarações Internacionais concernentes ao Desenvolvimento Sustentável:

DECLARAÇÃO SOBRE O DIREITO AO DESENVOLVIMENTO 1986

Artigo 2

2. Todos os seres humanos têm responsabilidade pelo desenvolvimento,

individual e coletivamente, levando-se em conta a necessidade de pleno

respeito aos seus direitos humanos e liberdades fundamentais, bem como

seus deveres para com a comunidade, que sozinhos podem assegurar a

realização livre e completa do ser humano, e deveriam por isso promover e

proteger uma ordem política, social e econômica apropriada para o

desenvolvimento.

3. Os Estados têm o direito e o dever de formular políticas nacionais

adequadas para o desenvolvimento, que visem o constante aprimoramento

do bem-estar de toda a população e de todos os indivíduos, com base em

sua participação ativa, livre e significativa no desenvolvimento e na

distribuição equitativa dos benefícios daí resultantes.

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Artigo 3

1. Os Estados têm a responsabilidade primária pela criação das condições

nacionais e internacionais favoráveis à realização do direito ao

desenvolvimento.

2. A realização do direito ao desenvolvimento requer pleno respeito aos

princípios do direito internacional relativos às relações amistosas e

cooperação entre os Estados em conformidade com a Carta das Nações

Unidas.

3. Os Estados têm o dever de cooperar uns com os outros para assegurar o

desenvolvimento e eliminar os obstáculos ao desenvolvimento. Os Estados

deveriam realizar seus direitos e cumprir suas obrigações de modo tal a

promover uma nova ordem econômica internacional baseada na igualdade

soberana, interdependência, interesse mútuo e cooperação entre todos os

Estados, assim como a encorajar a observância e a realização dos direitos

humanos (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 1986, não paginado).

Declaração de Estocolmo sobre o Meio Ambiente Humano1972

Princípio 8

O desenvolvimento econômico e social é indispensável para assegurar ao

homem um ambiente de vida e trabalho favorável e para criar na terra as

condições necessárias de melhoria da qualidade de vida (ORGANIZAÇÃO

DAS NAÇÕES UNIDAS, 1972, não paginado).

Declaração sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (Rio de Janeiro,

1992)

Princípio 3

O direito ao desenvolvimento deve ser exercido, de modo a permitir que

sejam atendidas equitativamente as necessidades de gerações presentes e

futuras.

Princípio 4

Para alcançar o desenvolvimento sustentável, a proteção ambiental deve

constituir parte integrante do processo de desenvolvimento, e não pode ser

considerada isoladamente deste (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS,

1992, não paginado).

Declaração de Joanesburgo sobre Desenvolvimento Sustentável

11. Reconhecemos que a erradicação da pobreza, a mudança dos padrões

de consumo e produção e a proteção e manejo da base de recursos naturais

para o desenvolvimento econômico e social são os principais objetivos e os

requisitos essenciais do desenvolvimento sustentável.

12. O profundo abismo que divide a sociedade humana entre ricos e pobres

juntamente com a crescente distância entre os mundos desenvolvidos e em

desenvolvimento representam uma grande ameaça à prosperidade, à

segurança e à estabilidade do planeta (DECLARAÇÃO..., 2002, p. 2-3).

Declaração Universal dos Direitos dos Animais, 1978

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Art. 1º - Todos os animais nascem iguais perante a vida e têm os mesmos

direitos

à existência.

Art. 2º

1. Todo o animal tem o direito a ser respeitado.

2. O homem, como espécie animal, não pode exterminar os outros animais

ou explorá-los violando esse direito; tem o dever de pôr os seus

conhecimentos ao serviço dos animais.

3. Todo o animal tem o direito à atenção, aos cuidados e à proteção do

Homem (DECLARAÇÃO..., 1978, não paginao).

Bem por isso, Freitas (2012, p. 53, grifo nosso) defende o paradigma

sustentabilidade nos seguintes termos:

A sustentabilidade implica a prática da equidade, na relação com as gerações

futuras e, ao mesmo tempo, a realização da equidade no presente,

cumprindo o papel de, em parceria e de maneira coordenada, erradicar a

miséria e as discriminações (inclusive de gênero), promover a segurança e a

reeducação alimentar, universalizar a prevenção e a precaução em saúde

pública, induzir o consumo lúdico [...], regularizar a ocupação segura do solo

e garantir o acesso a trabalhos decentes.

Quanto ao dever de alteridade em relação às outras espécies, na década de 70

( do século XX ), Singer (2010, p. 139-195) escreve emblemática obra em defesa dos

direitos dos animais não humanos.

Uma pedra não tem interesses porque não sofre. Nenhum modo de atingi-la

fará diferença para o seu bem-estar. A capacidade de sofrer e de sentir

prazer, entretanto, não apenas é necessária, mas também suficiente para

que possamos assegurar que um ser possui interesses de não sofrer. Um

camundongo, por exemplo, tem interesse em não ser chutado na estrada,

pois, se isso ocorrer, sofrerá.

[...]

Se um ser sofre, não pode haver justificativa moral para deixar de levar em

conta esse sofrimento. Não importa a natureza do ser; o princípio da

igualdade requer que esse sofrimento seja considerado da mesma maneira

como o são os sofrimentos semelhantes – na medida em que comparações e

aproximações possam ser feitas - de qualquer outro ser. Caso um ser não

seja capaz de sofrer, de sentir prazer ou felicidade, não há a ser levado em

conta. Portanto, o limite da senciência (usando o termo como uma redução

conveniente, talvez não estritamente preciso, para a capacidade de sofrer

e/ou experimentar prazer) é a única fronteira defensável de preocupação com

os interesses alheios.

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c) Os Estados, no Direito interno, bem como nas relações internacionais, são

responsáveis, quer por ação ou omissão, pelos danos ambientais, potenciais

ou efetivos, que lhes couber evitar ou prevenir.

Em harmonia com o princípio acima, citem-se os dispositivos das seguintes

Declarações Internacionais:

Declaração de Estocolmo sobre o Meio Ambiente Humano 1972

Princípio 7

Os Estados deverão tomar todas as medidas possíveis para impedir a

poluição dos mares por substâncias que possam pôr em perigo a saúde do

homem, os recursos vivos e a vida marinha [...] (ORGANIZAÇÃO DAS

NAÇÕES UNIDAS, 1972, não paginado).

DECLARAÇÃO SOBRE O DIREITO AO DESENVOLVIMENTO, 1986

Artigo 3

1. Os Estados têm a responsabilidade primária pela criação das condições

nacionais e internacionais favoráveis à realização do direito ao

desenvolvimento.

2. A realização do direito ao desenvolvimento requer pleno respeito aos

princípios do direito internacional relativos às relações amistosas e

cooperação entre os Estados em conformidade com a Carta das Nações

Unidas.

3. Os Estados têm o dever de cooperar uns com os outros para assegurar o

desenvolvimento e eliminar os obstáculos ao desenvolvimento. Os Estados

deveriam realizar seus direitos e cumprir suas obrigações de modo tal a

promover uma nova ordem econômica internacional baseada na igualdade

soberana, interdependência, interesse mútuo e cooperação entre todos os

Estados, assim como a encorajar a observância e a realização dos direitos

humanos.

Princípio 7

Os Estados devem cooperar, em um espírito de parceria global, para a

conservação, proteção e restauração da saúde e da integridade do

ecossistema terrestre. Considerando as distintas contribuições para a

degradação ambiental global, os Estados têm responsabilidades comuns

porém diferenciadas. Os países desenvolvidos reconhecem a

responsabilidade que têm na busca internacional do desenvolvimento

sustentável, em vista das pressões exercidas por suas sociedades sobre o

meio-ambiente global e das tecnologias e recursos financeiros que controlam.

Princípio 11

Os Estados devem adotar legislação ambiental eficaz. Padrões ambientais,

objetivos e prioridades, em matéria de ordenação do meio ambiente, devem

refletir o contexto ambiental e de desenvolvimento a que se aplicam. Padrões

utilizados por alguns países podem resultar inadequados para outros, em

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especial países em desenvolvimento, acarretando custos sociais e

econômicos injustificados.

Princípio 12

Os Estados devem cooperar para o estabelecimento de um sistema

econômico internacional aberto e favorável, propício ao crescimento

econômico e ao desenvolvimento sustentável em todos os países, de modo a

possibilitar o tratamento mais adequado dos problemas da degradação

ambiental. Medidas de política comercial para propósitos ambientais não

devem constituir-se em meios para a imposição de discriminações arbitrárias

ou injustificáveis ou em barreiras disfarçadas ao comércio internacional.

Devem ser evitadas ações unilaterais para o tratamento de questões

ambientais fora da jurisdição do país importador. Medidas destinadas a tratar

de problemas ambientais transfronteiriços ou globais devem, na medida do

possível, basear-se em um consenso internacional.

Princípio 14

Os Estados devem cooperar de modo efetivo para desestimular ou prevenir a

realocação ou transferência para outros Estados de quaisquer atividades ou

substâncias que causem degradação ambiental grave ou que sejam

prejudiciais à saúde humana.

Princípio 16

Tendo em vista que o poluidor deve, em princípio, arcar com o custo

decorrente da poluição, as autoridades nacionais devem promover a

internacionalização dos custos ambientais e o uso de instrumentos

econômicos, levando na devida conta o interesse público, sem distorcer o

comércio e os investimentos internacionais.

Princípio 17

A avaliação de impacto ambiental, como instrumento nacional, deve ser

empreendida para as atividades planejadas que possam vir a ter impacto

negativo considerável sobre o meio ambiente, e que dependam de uma

decisão de autoridade nacional competente.

Princípio 18

Os Estados devem notificar imediatamente outros Estados de quaisquer

desastres naturais ou outras emergências que possam gerar efeitos nocivos

súbitos sobre o meio-ambiente destes últimos. Todos os esforços devem ser

empreendidos pela comunidade internacional para auxiliar os Estados

afetados (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 1986, não paginado).

d) Os Estados devem promulgar leis e editar atos administrativos visando à

responsabilização de terceiros pelos danos ambientais. O princípio citado

relaciona-se aos dispositivos das seguintes Declarações Internacionais:

Declaração de Estocolmo sobre o Meio Ambiente Humano, 1972

Princípio 13

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Com o fim de se conseguir um ordenamento mais racional dos recursos e

melhorar assim as condições ambientais, os Estados deveriam adotar um

enfoque integrado e coordenado de planejamento de seu desenvolvimento,

de modo a que fique assegurada a compatibilidade entre o desenvolvimento

e a necessidade de proteger e melhorar o meio ambiente humano em

benefício de sua população (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 1972,

não paginado).

DECLARAÇÃO SOBRE O DIREITO AO DESENVOLVIMENTO, 1986

Artigo 10

Os Estados deverão tomar medidas para assegurar o pleno exercício e

fortalecimento progressivo do direito ao desenvolvimento, incluindo a

formulação, adoção e implementação de políticas, medidas legislativas e

outras, a níveis nacional e internacional (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES

UNIDAS, 1986, não paginado).

Declaração sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (Rio de Janeiro,

1992)

Princípio 13

Os Estados devem desenvolver legislação nacional relativa a

responsabilidade e indenização das vítimas de poluição e outros danos

ambientais. Os Estados devem ainda cooperar de forma determinada para o

desenvolvimento de normas de direito ambiental internacional relativas à

responsabilidade e indenização por efeitos adversos de danos ambientais

causados, em áreas fora de sua jurisdição, por atividades dentro de sua

jurisdição ou sob seu controle (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS,

1992, não paginado).

Mais uma vez, as lúcidas observações de Freitas (2012, p. 210):

Dito em outras palavras, imprescindível assumir, em todos os campos, a

responsabilização, sem ilusões cognitivas, pelas condutas omissivas e

comissivas em decorrência da falta significativa ( não apenas residual ) de

observância dos deveres de prevenção e de precaução. A pouco e pouco,

progredir-se-á da gestão passiva e cúmplice para uma sincrônica gestão

tempestivamente interruptora do nexo de causalidade de dramas e tragédias

perfeitamente evitáveis.

e) O princípio da precaução ensina que a falta de comprovação científica não

pode ser um álibi para para a omissão de medidas e políticas de

sustentabilidade. Há mais: quando existirem dúvidas sobre as consequências

ambientais, não devem ser autorizados empreendimentos ou projetos com

potenciais de lesividade.

O princípio da precaução encontra-se igualmente previsto nas seguintes

Declarações:

Declaração de Estocolmo sobre o Meio Ambiente Humano, 1972

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Princípio 18

Como parte de sua contribuição ao desenvolvimento econômico e social

deve-se utilizar a ciência e a tecnologia para descobrir, evitar e combater os

riscos que ameaçam o meio ambiente, para solucionar os problemas

ambientais e para o bem comum da humanidade (ORGANIZAÇÃO DAS

NAÇÕES UNIDAS, 1972, não paginado).

Declaração sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (Rio de Janeiro,

1992)

Princípio 15

De modo a proteger o meio ambiente, o princípio da precaução deve ser

amplamente observado pelos Estados, de acordo com suas capacidades.

Quando houver ameaça de danos sérios ou irreversíveis, a ausência de

absoluta certeza cientifica não deve ser utilizada como razão para postergar

medidas eficazes e economicamente viáveis para prevenir a degradação

ambiental (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 1992, não paginado).

Considerando-se, por outro lado, que o enfrentamento dos graves problemas

ambientais não prescinde da atuação dos poderes públicos, cabe lembrar que os princípios

da precaução e da prevenção – de pálidos limites - impõem ao conjunto da administração

uma série de responsabilidades, como bem analisa Freitas (2009, p. 102-103):

No caso do princípio da precaução, nas relações administrativas em geral

cuida-se do dever da administração pública de motivadamente evitar, nos

limites das suas atribuições e posibilidades orçamentárias, a produção do

evento que supõe danoso, em face de fundada convicção ( juízo de

verossimilhança e de forte probabilidade ) quanto ao risco de, se não for

interrompido tempestivamente o nexo de causalidade, ocorrer prejuízo

desproporcional, isto é, manifestamente superior aos custos da eventual

atividade interventiva. […].

No cotejo, pois, com o principio da prevenção,

a diferença sutil reside no grau estimado de probabilidade da ocorrência do

dano (certeza versus verossimilhança). Como quer que seja, ao tratar da

precaução, a administração pública, no exercício de suas competências,

igualmente precisa agir na presunção de que a interrupção do nexo de

causalidade consubstancia, no plano concreto, atitude mais adequada que a

liberação do liame.

Contudo, a precaução deve se fundamentar em critérios racionais e não em

suposições meramente emotivas e desarrazoadas.

A administração política dos riscos tem que trilhar um caminho difícil entre o

alarmismo e a tranquilização. Creio que não devemos julgar o pensamento

apocalíptíco pelas aparências. Ao contrário, devemos vê-lo como um

conjunto de histórias de advertências. Ele diz respeito ao que pode dar errado

se não ficarmos atentos em tomarmos as medidas corretivas apropriadas

(GIDDENS, 2010, p. 55).

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O princípio da precaução é sobretudo importante na sociedade de risco na qual

vivemos: “En la modernidade avanzada, la producción social de riqueza va acompanhada

sistematicamente por la producción social de riesgo.” (BECK, 2006, p. 29).

As questões ambientais, hoje, não podem ser avaliadas apenas pelo viés da

produção fabril (o que não é pouco), mas devem também ser percebidas, em tempos de

acelerado avanço tecnológico, pela forma execessiva do consumo, muito distante, aliás,

dos padrões responsáveis propostos pelas Diretrizes das Nações Unidas para a Proteção

do Consumidor. Nesse mesmo contexto, devemos refletir sobre os danos ambientais não

somente de um produto específico, mas sobre a totalidade dos riscos a que estão sujeitas

as muitas espécies que compõem o meio ambiente.

Um problema especialmente grave é que investigações voltadas unicamente

a substâncias tóxicas isoladas jamais podem dar conta das concentrações

tóxicas no ser humano. Aquilo que pode parecer “inofensivo” num produto

isolado talvez seja consideravelmente grave no “ reservatório do consumidor

final”, algo em que o ser humano acabou por se converter no estágio

avançado da mercantilização total. […] (BECK, 2011, p. 31).

f) O princípio da responsabilidade pecuniária do poluidor não significa,

absolutamente, a mercantilização ambiental, pois, em hipótese alguma, pode

ser concedida autorização para poluir mediante pagamento prévio. Isso seria,

aliás, a negação do princípio da precaução. Assim, o princípio em tela

significa, em síntese, o seguinte: aquele que poluir e causar danos ou

desastres ambientais deve ser responsabilizado nas esferas cabíveis ( civil,

criminal e administrativa ), conforme o Direito pátrio de cada país.

Explica, assim, Machado (2006, p. 61): “O investimento efetuado para prevenir o

dano ou o pagamento do tributo, da tarifa ou do preço público não isentam o poluidor ou

predador de ter examinada e aferida sua responsabilidade residual para reparação do dano.”

O princípio 16 da Declaração do Rio Sobre Meio Ambiente estabelece:

Princípio 16

Tendo em vista que o poluidor deve, em princípio, arcar com o custo

decorrente da poluição, as autoridades nacionais devem promover a

internacionalização dos custos ambientais e o uso de instrumentos

econômicos, levando na devida conta o interesse público, sem distorcer o

comércio e os investimentos internacionais (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES

UNIDAS, 1992, não paginado).

g) As informações ambientais devem ser regidas pelos princípios da publicidade

e da transparência. Citados princípios geram obrigações não apenas para os

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particulares, mas também para o Estado Administração a quem cabe, nas

palavras de Freitas (2009, p. 22) “evitar a opacidade”.

O princípio da publicidade em matéria ambiental encontra-se consagrado nas

seguintes Declarações Internacionais:

Declaração de Estocolmo sobre o Meio Ambiente Humano, 1972

Princípio 19

É indispensável um esforço para a educação em questões ambientais,

dirigida tanto às gerações jovens como aos adultos e que preste a devida

atenção ao setor da população menos privilegiado, para fundamentar as

bases de uma opinião pública bem informada, e de uma conduta dos

indivíduos, das empresas e das coletividades inspirada no sentido de sua

responsabilidade sobre a proteção e melhoramento do meio ambiente em

toda sua dimensão humana. É igualmente essencial que os meios de

comunicação de massas evitem contribuir para a deterioração do meio

ambiente humano e, ao contrário, difundam informação de caráter educativo

sobre a necessidade de protegê-lo e melhorá-lo, a fim de que o homem

possa desenvolver-se em todos os aspectos (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES

UNIDAS, 1972, não paginado).

Declaração sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (Rio de Janeiro,

1992)

Princípio 19

Os Estados devem prover oportunidades a Estados que possam ser

afetados, notificação prévia e informações relevantes sobre atividades

potencialmente causadoras de considerável impacto transfronteiriço negativo

sobre o meio-ambiente, e devem consultar-se com esses tão logo quanto

possível e de boa fé (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 1992, não

paginado).

h) O princípio da democracia ambiental assegura aos cidadãos e às

organizações não governamentais o direito de participarem das ações e

políticas de proteção ambiental e desenvolvimento sustentável.

O princípio democrático não se compadece com uma compreensão estática

de democracia. Antes de mais, é um processo de continuidade transpessoal,

irredutível a qualquer vinculação do processo político a determinadas

pessoas. Por outro lado, a democracia é um processo dinâmico inerente a

uma sociedade aberta e activa, oferecendo aos cidadãos a possibilidade de

desenvolvimento integral, liberdade de posição crítica no processo político,

condições de igualdade econômica, política e social [...] (CANOTILHO, 1998,

p. 279).

O princípio da participação democrática encontra-se defendido, em termos

gerais, por Sem (2011, p. 283-286):

[...] O meio ambiente não é apenas uma questão de preservação passiva,

mas também de busca ativa.

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[...] Se a importância da vida humana não reside em nosso padrão de vida e

satisfação das necessidades, mas também na liberdade que desfrutamos,

então a ideia de desenvolvimento sustentável tem de ser

correspondentemente reformulada. Nesse contexto, ser consistente significa

pensar não só em sustentar a satisfação de nossas necessidades, mas, de

forma mais ampla, na sustentabilidade – ou ampliação – de nossa liberdade

(incluindo a liberdade de satisfazer nossas necessidades). Assim

recaracterizada, a liberdade sustentável pode ser ampliada a partir das

formulações propostas por Brundtland e Solow para incluir a preservação e,

quando possível, a expansão das liberdades e capacidades substantivas das

pessoas de hoje “sem comprometer a capacidade das gerações futuras” de

ter liberdade semelhante ou maior.

Para usar uma distinção medieval, não somos apenas ‘pacientes’ cujas

necessidades merecem consideração, mas também ‘agentes’ cuja liberdade

de decidir o que valorizar e a forma de buscá-lo pode se estender muito além

de nossos próprios interesses e necessidades. O significado de nossa vida

não pode ser colocado na caixinha de nossos padrões de vida ou da

satisfação de nossas necessidades. As necessidades manifestas do

paciente, por mais importantes que sejam, não podem eclipsar a relevância

vital dos valores arrazoados do agente.

Em se tratando da questão ambiental, o princípio da participação popular

encontra-se consagrado na Declaração do Rio Sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento:

Princípio 20

As mulheres desempenham papel fundamental na gestão do meio-ambiente

e no desenvolvimento. Sua participação plena é, portanto, essencial para a

promoção do desenvolvimento sustentável.

Princípio 21

A criatividade, os ideais e a coragem dos jovens do mundo devem ser

mobilizados para forjar uma parceria global com vistas a alcançar o

desenvolvimento sustentável e assegurar um futuro melhor para todos.

Princípio 22

As populações indígenas e suas comunidades, bem como outras

comunidades locais, têm papel fundamental na gestão do meio ambiente e no

desenvolvimento, em virtude de seus conhecimentos e práticas tradicionais.

Os Estados devem reconhecer e apoiar de forma apropriada a identidade,

cultura e interesses dessas populações e comunidades, bem como habilitá-

las a participar efetivamente da promoção do desenvolvimento sustentável

(ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 1992, não paginado).

A democratização em matéria ambiental consta também da Convenção de

Aarhus, firmada na Dinamarca, em 25 de junho de 1998:

Artigo 1.º

Objectivos

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De forma a contribuir para a protecção do direito que qualquer indivíduo, das

gerações actuais ou futuras, tem de viver num ambiente adequado à sua

saúde e bem-estar, cada Parte garantirá os direitos de acesso à informação,

participação do público no processo de tomada de decisão e acesso à justiça

em matéria de ambiente, de acordo com as disposições desta Convenção

(CONVENÇÃO..., 1998, não paginado).

i) O direito à paz é uma das exigências do desenvolvimento sustentável, de

acordo com o que se observa nas seguintes Declarações Internacionais:

Declaração de Estocolmo sobre o Meio Ambiente Humano, 1972

Princípio 26

É preciso livrar o homem e seu meio ambiente dos efeitos das armas

nucleares e de todos os demais meios de destruição em massa. Os Estados

devem-se esforçar para chegar logo a um acordo – nos órgãos internacionais

pertinentes- sobre a eliminação e a destruição completa de tais armas

(ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 1972, não paginado).

Declaração sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (Rio de Janeiro,

1992)

Princípio 24

A guerra é, por definição, contrária ao desenvolvimento sustentável. Os

Estados devem, por conseguinte, respeitar o direito internacional aplicável à

proteção do meio ambiente em tempos de conflito armado, e cooperar para

seu desenvolvimento progressivo, quando necessário.

Princípio 25

A paz, o desenvolvimento e a proteção ambiental são interdependentes e

indivisíveis.

Princípio 26

Os Estados devem solucionar todas as suas controvérsias ambientais de

forma pacífica, utilizando-se meios apropriados, de conformidade com a

Carta da Nações Unidas.

Princípio 27

Os Estados e os povos devem cooperar de boa fé e imbuídos de um espírito

de parceria para a realização dos princípios consubstanciados nesta

Declaração, e para o desenvolvimento progressivo do direito internacional no

campo do desenvolvimento sustentável (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES

UNIDAS, 1992, não paginado).

Declaração de Joanesburgo sobre Desenvolvimento Sustentável

35. Assumimos o compromisso de agir juntos, unidos por uma determinação

comum de salvar nosso planeta, promover o desenvolvimento humano e

alcançar a prosperidade e a paz universais (DECLARAÇÃO..., 2002, p. 5).

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Diante de todos os princípios analisados, não há dúvida que o desenvolvimento

sustentável é uma das dimensões dos direitos fundamentais:

A proteção do meio ambiente e a proteção humana se constituem em

prioridades inequívocas da agenda internacional hodierna, onde a luta pela

proteção do meio ambiente acaba se identificando em grande parte com a

luta pela proteção dos direitos humanos, quando se tem em mente a melhoria

das condições de vida (FACHIN, 2000, p. 120).

5 CONCLUSÃO

Diante do estudo realizado, podemos destacar algumas observações finais. São

elas:

a) O antropocentrismo , para além das particularidades biológicas, também foi e

é uma criação histórica, na qual o homem assume, de modo solitário e, bem

por isso, egoístico, a supremacia de todos os biomas.

b) Nessas condições, o antropocentrismo é irreal e suas consequências, na

maioria das vezes, têm levado a um extremo desequilíbrio das relações

ecológicas, com graves consequências para os múltiplos aspectos da

proteção ambiental.

c) Os desastres ambientais não são meros caprichos de uma natureza inquieta.

Antes pelo contrário, são, respostas de uma natureza viva que o

antropocentrismo exacerbado tenta ocultar. São ainda parte de uma natureza

que morre e, com ela, todos, direta ou indiretamente morremos um pouco.

d) Ferrajoli (2007) tem defendido que, nas relações internacionais, devem

prevalecer não apenas a vontade e os argumentos dos Estados soberanos,

mas também a autonomia dos povos. Em que pesem os argumentos do

filósofo, o que temos observado, na prática, inclusive e sobretudo nas

questões ambientais, é um imenso déficit democrático na comunidade

internacional, com reduzidos espaços de poder e visibilidade dos movimentos

populares de proteção ambiental.

e) Vivemos - não por particularidades biológicas, mas por condições históricas

concretas - uma verdadeira crise de pertencimento, na qual , nós humanos,

criamos uma artificial dicotomia homem versus natureza para ocultarmos o

que nos parece inquestionável: não pairamos sobre, mas somos parte da

natureza.

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ENSAIO SOBRE A EFETIVAÇÃO DO DIREITO AO FUTURO NAS SOCIEDADES DE

RISCO CONTEMPORÂNEAS

Thiago Allisson Cardoso de Jesus13

RESUMO:

A efetivação do direito ao futuro nas sociedades de risco

contemporâneas. O presente artigo discute a problemática da

efetivação do direito ao futuro na sociedade ocidental

contemporânea, estruturalmente marcada pelo sistema de produção

capitalista e pelos descompassos existentes entre o desenvolvimento,

consumo e meio ambiente. Para tanto, após revisão de literatura, far-

se-á uma análise crítica das relações existentes, considerando o

marco teórico do antropocentrismo, os movimentos da soberania no

plano internacional e as contradições que perpassam a efetivação do

direito em questão.

Palavras-chave: Direito ao futuro. Sociedade de riscos. Efetivação.

THE EFFECTIVENESS OF THE RIGHT TO THE FUTURE OF CONTEMPORARY RISK’S

SOCIETIES

ABSTRACT

The effectiveness of the right to the future of contemporary risk’s

societies. This article aims to discuss the issues of realization of the

right to a future in contemporary Western society, structurally marked

by the capitalist production system and the existing imbalances

between development, consumption and the environment. For that,

the literature review, a critical analysis of relationships, considering

the theoretical framework of anthropocentrism, the movements of

sovereignty at international level and the contradictions that pervade

the realization of the right in question.

Keywords: Right to the future. Society of risks. Effective.

INTRODUÇÃO

13

Doutorando. Universidade Estadual do Maranhão (UEMA). E-mail: [email protected]

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Com o advento do Iluminismo, a pessoa humana adquiriu o status de fim último

de toda existência no universo. Assim, ela deve ser percebida não só pelo fato de existir,

mas também de como existe. O sentido da dignidade da pessoa é traduzido nesta célebre

passagem do paradigma antropocêntrico14 ao anunciar que

[...] todos os seres humanos, quaisquer que sejam, são igualmente dignos de

respeito, sendo que o traço distintivo do Homem, como um ser racional, está

no fato de existir como um fim em si mesmo. Por esta razão, ele não pode ser

usado como simples meio, o que limita, nessa medida, o uso arbitrário desta

ou daquela vontade (p.68) (KANT, 1995, p.68)

Partindo do pressuposto do atributo da racionalidade e da autonomia da vontade

que deve informar a existencialidade concreta do homem, Kant sustentou que

o Homem e, duma maneira geral, todo o ser racional, existe como um fim em si mesmo, não simplesmente como meio para o uso arbitrário desta ou daquela vontade. Pelo contrário, em todas as suas ações, tanto nas que se dirigem a outros seres racionais, ele tem sempre de ser considerado simultaneamente como um fim [...] Portanto, o valor de todos os objetos que possamos adquirir pelas nossas ações é sempre condicional. Os seres cuja existência depende, não em verdade da nossa vontade, mas da natureza, tem contudo, se são seres irracionais, apenas um valor relativo como meios e por isso se chamam coisas, ao passo que os seres racionais se chamam pessoas, porque a sua natureza os distingue já como fins em si mesmos, quer dizer, como algo que não pode ser empregado como simples meio e que, por conseguinte, limita nessa medida todo arbítrio ( e é um objeto de respeito) (1995, p. 134-135).

Por este marco teórico15, demarca-se a relação de dominação, em contínuo

fortalecimento16, existente entre o homem e meio ambiente, demonstrada na subserviência e

14

Coadunando com este paradigma, Reale (1963) anuncia [...] toda pessoa é única e nela já habita o

todo universal, o que faz dela um todo inserido no todo da existência humana; que, por isso, ela deve

ser vista antes como centelha que condiciona a chama e a mantém viva, e na chama a todo instante

crepita, renovando-se criadoramente, sem reduzir uma à outra; e que, afinal, embora precária a

imagem, o que importa é tornar claro que dizer pessoa é dizer singularidade, intencionalidade,

liberdade, inovação e transcendência, o que é impossível em qualquer concepção transpersonalista,

a cuja luz a pessoa perde os seus atributos como valor-fonte da experiência ética para ser vista como

simples “momento de um ser transpessoal” ou peça de um gigantesco mecanismo que, sob várias

denominações, pode ocultar sempre o mesmo “monstro frio”, “coletividade”, “espécie”, “nação”, “raça”,

“idéia”, espírito universal”, ou “consciência coletiva” (p. 69 e 73).

15 Para Sarlet, as bases kantianas serviram para a delimitação do próprio conceito de dignidade do

homem, expressando a história sendo narrada a partir da visão de um dos seres vivos, o homem e traduzindo em seu próprio bojo a contradição do excesso de antropocentrismo. Neste sentido, o autor afirma que “é justamente no pensamento de Kant que a doutrina jurídica mais expressiva- nacional e alienígena- ainda hoje parece estar identificando as bases de uma fundamentação e, de certa forma, de uma conceituação da dignidade da pessoa humana. Até que ponto, contudo, tal concepção

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submissão do que fora reduzido a bem jurídico pertencente ao seu titular e proprietário (o

homem), ratificada nas práticas avassaladoras e nos casuísmos violentos que reafirmam a

supremacia do homem sobre todas as demais criaturas.

Neste sentido, o presente artigo almeja enfrentar a problemática da efetivação

do multidimensional direito ao futuro em sociedades cujo contexto é demarcado por riscos e

incertezas, considerando progressos científicos que não coadunam, concretamente, com o

desenvolvimento econômico.

A metodologia utilizada parte do abstrato para o concreto, por meio de um

exercício interessado em trazer à tona os interesses e racionalidades subjacente às diversas

práticas que movimentam o plano nacional e internacional para a concretização do objeto

em questão. Portanto, utilizar-se-á das categorias analíticas da sociologia reflexiva, de

análise relacional, dialogando com as categorias que envolvem o método crítico-dialético.

Comprometidas com os valores que protegem amplamente a pessoa humana,

na sua perspectiva ontológica e patrimonial, as formas pelas quais se manifestam a

proteção ambiental, como faceta do direito ao futuro, são oscilantes e paradoxais, sobretudo

quando se reconhece que esta política de tratamento é condicionada a coexistência de

distintas influências e interesses, relativas aos movimentos do plano nacional e

internacional, que a delineiam em uma seara de riscos e contradições.

Em um contexto de dominação, estas influências refletem até na produção de

conhecimento científico sobre estas políticas pois, segundo Weigel (2009, p.122), “a

consciência ingênua leva os cientistas à ilusória convicção de constituírem um grupo

privilegiado, ou seja, uma elite, que está acima dos problemas que afetam o restante da

efetivamente poderá ser adotada sem reservas ou ajustes na atual quadra da evolução social, econômica e jurídica constitui, sem dúvida, desafio fascinante [...] Assim, poder-se-á-afirmar que tanto o pensamento de Kant quanto todas as concepções que sustentam ser a dignidade atributo exclusivo da pessoa humana- encontram-se, ao menos, em tese, sujeitas à crítica de um excessivo antropocentrismo, notadamente naquilo em que sustentam que a pessoa humana, em função de sua racionalidade, ocupa um lugar privilegiado em relação aos demais seres vivos” (SARLET, 2009, p. 37-38). 16

Ao clássico lockiano Segundo Tratado sobre o Governo, remetemos a historicidade da relação homem e meio ambiente, uma verdadeira relação contínua de dominação. Neste sentido, “no princípio, o homem se contentava quase exclusivamente com aquilo que a natureza, sem sua ajuda, oferecia às suas necessidades. Com o tempo, porém, em alguns lugares do mundo- onde o aumento da população e da riqueza, estimulados pelo uso do dinheiro, provocara certa escassez e valorização da terra- as comunidades humanas fizeram limites aos respectivos territórios e, pelas leis, regulamentaram as propriedades dos indivíduos dentro da sociedade, desse modo, por meio de acordos e pactos, ratificaram a propriedade que o trabalho e a indústria tinham começado a definir” (LOCKE, 2010, p.48).

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sociedade. O próprio processo de formação dos cientistas ajuda na construção dessa

convicção e os problemas específicos de cada especialidade cientifica, basicamente

teóricos e abstratos, colaboram para o estabelecimento de uma rotina de reflexão sobre o

mundo que passa distante dos problemas do cotidiano ou que não consegue estabelecer as

necessárias ligações entre os objetos das pesquisas e os problemas da população”. Assim,

corrobora-se, inclusive, com o título da obra referenciada “Educação para que ambiente?”,

traduzindo a ambivalência de ideologias que instrumentaliza o meio ambiente, colocando-o

como objeto de dominação pelo homem.

2 DIREITO AO FUTURO, DESENVOLVIMENTO E PROTEÇÃO AMBIENTAL: em debate o

conceito de bem estar nas sociedades de risco e de consumo

O direito ao futuro foi incorporado nos documentos constitucionais hodiernos,

exteriorizando-se como concreta proteção ao meio ambiente, a sustentabilidade e de

reflexão acerca da cultura da insaciabilidade e de consumo. Nesta senda, Juarez de Freitas

aponta que:

como acentuado, as gerações presentes e futuras têm o direito fundamental ao ambiente limpo e à vida digna e frutífera (direito oponível ao Estado e nas relações horizontais ou privadas), sem condescendência com a degradação de qualquer tipo. Vida digna, não apenas material, mas coexistência fecunda e, o mais possível, isenta dos males oriundos das corrupções típicas da insaciabilidade, que prefere primeiro crescer e, só no futuro distante, mitigar ou compensar. Por essa razão de fundo, cumpre evitar o peso desmedido dado ao gozo imediato, em detrimento do futuro. Decerto, a preocupação com a equidade no presente é ponto destacado, ao permitir o desfrute da vida atual. No entanto, o horizonte tem de ser elastecido, isto é, tornado de longo prazo. É nítido que as estratégias sustentáveis são necessariamente aquelas de longa duração, não as governadas por impulsos reptilianos ou pela compulsão da obsolescência programada. Os próprios valores biológicos não se coadunam com qualquer desconto desmesurado e excessivo do futuro. Saber lidar, de conseguinte, com o desconto do futuro é obrigatório para os defensores competentes do paradigma da sustentabilidade, no trabalho de erguer uma civilização que não se extermine, ao dilapidar o patrimônio natural do planeta” (FREITAS, 2012, p. 34)

Para Weigel (2009), é fácil constatar a contradição da relação inversamente

proporcional existente entre desenvolvimento e proteção ambiental. Segundo ele,

o desenvolvimento das últimas décadas concentrou as atividades econômicas nos grandes centros e atraiu expressivos contingentes populacionais, fazendo que ocorresse, por um lado, a concentração de riquezas e, por outro, o crescimento de demandas por serviços e infra-estrutura, diminuindo a capacidade de investimentos [...]. A atração pelo progresso, hoje intensa, acaba conjugando-se, portanto, com a crescente necessidade de recursos financeiros para garantir o funcionamento básico da economia e dos serviços públicos [...] O crescimento dos investimentos nas

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cidades [...] leva a mudar a relação com a natureza. Na ausência, ainda, de estratégias de desenvolvimento sustentável, acaba ocorrendo ampliação predatória de atividades extrativas, crescimento do setor primário baseado em tecnologias inadequadas para as características ambientais do local” (2009, p. 192-193

Destarte, a vulnerabilização do meio ambiente, acervo jurídico de titularidade

difusa, passa a ser consequência da própria modernidade. O consumo insustentável, por

exemplo, remete à precariedade das políticas públicas desenvolvimentistas e à

irracionalidade face ao emergente futuro.

Nesta senda, segundo as Diretrizes das Nações Unidas para a Proteção do

Consumidor,

4. As modalidades de produção e consumo insustentáveis, particularmente nos países industriais, são a causa principal de que siga degradando-se o meio ambiente mundial. Todos os países devem procurar o fomento de modalidades de consumo sustentáveis; os países desenvolvidos devem ser os primeiros a lograr modalidades de consumo sustentável enquanto que os países em desenvolvimento devem procurar lográ-las em seu processo de desenvolvimento, prestando a devida atenção ao princípio da responsabilidade comum, mas diferenciada deverão ter-se plenamente em conta a situação e as necessidades especiais dos países em desenvolvimento nesta esfera” (1999, p.02).

A humanidade, portanto, não usufrui apenas das conquistas e das benesses do

desenvolvimento; mas, também, dos efeitos indesejáveis produzidos por este, como as

desigualdades sociais, a degradação ambiental e a fragilização do sentimento de

coletividade e de segurança. A emergência de tantos riscos e incertezas é, pois,

contradição17 face à modernidade e consequência direta desta18.

17

No contexto de mundialização do capital e desenvolvimento desigual dos estados nacional, uma das contradições nítidas se encontra na definição de pobreza pelo Banco Mundial. Peter Singer na obra Quanto custa salvar uma vida? preconiza que “o Banco Mundial define pobreza extrema como não ter renda suficiente para suprir as necessidades humanas mais básicas da alimentação, água, moradia, roupas, saneamento, assistência médica e educação adequadas. Muitas pessoas conhecem bem a estatística de que 1 bilhão de pessoas estão vivendo com menos de $1 por dia. Essa era a linha de pobreza do Banco Mundial até 2008, quando dados melhores de comparações internacionais de preços permitiram que se fizesse um cálculo mais preciso de quanto as pessoas precisam para suprir suas necessidades básicas. Com base nesse calculo, o Banco Mundial definiu a linha da pobreza em $1,25 por dia. O número de pessoas cuja renda as coloca abaixo dessa linha não é de 1 bilhão, mas sim de 1,4 bilhão. O fato de que há mais pessoas vivendo na pobreza extrema do que pensávamos é, obviamente, má notícia, mas não completamente má. De acordo com a mesma base, em 1981 havia 1,9 bilhão de pessoas vivendo na pobreza extrema. Isso equivalia a aproximadamente quatro em cada 10 pessoas sobre o planeta, enquanto agora menos do que uma em quatro é extremamente pobre” (2010, p.6-7).

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Nesta esteira, concretiza-se a Teoria da Sociedade do Risco consoante a qual

as consequências da modernização podem ser percebidas em dois momentos distintos.

Em um primeiro momento, segundo Beck (2006, p.38), em que pese não se

tornarem questões públicas ou centro de conflitos políticos, os efeitos são sistematicamente

produzidos pela industrialização e pelo desenvolvimento técnico-econômico, escapando da

atividade das instituições de controle e da própria percepção do homem médio. Percebe-se,

pois, que o processo destrutivo nesse estágio não é reconhecido pelo homem que, sem

reflexão sobre conceitos de bem-estar e sustentabilidade, atua e norteia suas atividades

apenas pela ilusão e possibilidade de desenvolvimento, a qualquer custo e em menor

tempo.

Por seu turno, em um segundo estágio, os riscos da sociedade industrial

abandonaram o seu estado de latência e tornaram-se pauta das agendas públicas, na

medida em que geraram danos a direitos da pessoa humana, na dimensão individual e

coletiva.

Contrário à primeira fase, embora claramente comprometido com as nuances

antropocêntricas, a apreensão da realidade pelos indivíduos fomentou uma reflexão crítica.

Logo, constatou-se que a produção social de riquezas na contemporaneidade é

acompanhada diretamente pela produção social de riscos e vulnerabilidades, sobretudo no

meio ambiente, expressão da questão social (BECK, 2006).

Entende Beck a Teoria da Sociedade do Risco como um processo de

reciprocidade, logo a modernização traz em seu bojo riscos, incertezas e vulnerabilizações.

Indica, pois, que

el proceso de modernizácion se vuelve reflexivo, se toma a sí mesmo como

tema y problema. Las cuestiones Del desarrollo y de la aplicación de

tecnologias (en el âmbito de la natureza, la sociedad y la personalidad) son

sustituidas por cuestiones de la gestion política y cientifica (administracion,

descubrimiento, inclusión, evitación y ocultación) de los riesgos de tecnologás

a aplicar actual o potencialmente en relación a horizontes de relevância a

definir especialmente. La promesa de seguridad crece com los riesgos y ha

de ser ratificada uma y outra vez frente a uma opinion publica alerta y critica

mediante intervenciones cosméticas o reales en el desarrollo técnico-

economico (2006, p. 39).

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Imperioso ainda ressaltar que o ambiente de riscos e vulnerabilidades em um

contexto de explosão populacional e de intensa exploração dos trabalhadores no âmbito do

sistema de produção capitalista fomentou o fenômeno das sociedades de massa que, dentre

outras consequências19, provocou o florescimento de novas necessidades de consumo20 e

demandas que, por não serem supridas, se tornaram incontroláveis, com resultados

desastrosos, sobretudo, para o meio ambiente.

As repercussões e desdobramentos do sistema de produção capitalista são

inúmeros e afetam a efetivação do direito ao futuro em suas múltiplas facetas. Parte-se do

pressuposto que

a doutrina econômica admite que o fato econômico, produto do ato econômico, provoca necessariamente repercussões que de alguma forma terminam por pigmentar o tecido da economia, seja no Estado liberal, no capitalismo de Estado, ou em algum meio termo entre eles. Tais repercussões denominam-se externalidades; podem ser positivas- quando úteis- ou negativas- quando indesejáveis. São de caráter privado quando atingem a esfera de interesses de determinada pessoa, em seu restrito âmbito individual. São de caráter público quando alcançam a coletividade (público primário) ou o Estado em sua esfera de interesses (público secundário). São de caráter universal quando repercutem em todo gênero humano, na humanidade e no planeta. Podemos citar como exemplo de externalidade negativa de caráter privado o efeito sobre o concorrente da venda do produto de uma empresa ao consumidor. Esse ato econômico repercute negativamente na empresa competidora por não ter ela exercido sua respectiva atividade em face daquele consumidor. Como externalidade negativa de caráter público primário temos, por exemplo, a poluição provocada por uma empresa que em seu processo de industrialização lança resíduos químicos no meio ambiente” (SAYEG e BALERA, 2011, p. 156-157)

Esta insaciabilidade é refletida no contexto da efemeridade e do passageiro nas

obras de Bauman que dissertando sobre os danos colaterais e as desigualdades sociais em

tempos de mundialização do capital concluiu

19

Sublinha-se, dentre outros elementos, que a ineficiência de diversas políticas públicas

materializaram alguns processos de desintegração que, segundo Arendt (1994, p. 61), se “tornaram

evidentes, particularmente, [...] nos anos recentes- o declínio dos serviços públicos: escolas, polícia,

correio, coleta de lixo, transporte, etc; a taxa de mortalidade nas estradas e os problemas de tráfego

nas cidades; a poluição do ar e da água-, são os resultados automáticos das necessidades das

sociedades de massa, que se tornaram incontroláveis. Elas são acompanhadas, e frequentemente,

aceleradas, pelo declínio simultâneo dos vários sistemas de partidos, todos de origem mais ou menos

recente e destinados a servir às necessidades políticas das massas populacionais”.

20 Em conformidade com o pensamento de Juarez Freitas, é necessária uma revolução de

mentalidades sobre a cultura do consumo que nos inserimos. Segundo ele, “a cultura da insaciabilidade (isto é, da crença ingênua no crescimento pelo crescimento quantitativo e do consumo fabricado) é autofágica, como atesta o doloroso perecimento das civilizações” (FREITAS, 2012, p.25).

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Se o nível de consumo determinado pela sobrevivência social e biológica é

por natureza estável, os níveis exigidos para satisfazer as outras

necessidades que o consumo promete, espera e exige serem atendidas são

(novamente por sua própria natureza) inerentemente crescentes e orientados

para a expansão; a satisfação dessas necessidades agregadas não depende

da manutenção de padrões estáveis, mas da velocidade e do grau de sua

expansão [...] A economia consumista tem apenas o céu como limite. Para

ser eficaz na tarefa que assumiu, não pode se permitir reduzir o ritmo, muito

menos fazer uma pausa e ficar parada. Em consequência, deve assumir de

maneira tácita a ausência de limites à sustentabilidade do planeta e a

infinitude de seus recursos (BAUMAN, 2013, p. 105-106).

Associando-se, por conseguinte, todos os desdobramentos gerados pelo sistema

capitalista de produção21, dentre os quais, o desemprego estrutural, o assalariamento

precário, a fragilização e o desrespeito aos direitos fundamentais, por via de consequência,

desvendou-se um perigoso status de insegurança, materializada pela efemeridade de suas

características e pelo desnível entre as expectativas construídas sobre proteção, segurança

e consumo responsável e as efetivamente alcançadas.

O campo de luta22 do qual emergem as discussões sobre direito ao futuro e

sustentabilidade, segundo Castel, se dá nas sociedades que são atualmente

construídas sobre o terreno da insegurança, porque são sociedades de indivíduos que não encontram, nem em si mesmos, nem em seu entorno imediato, a capacidade de assegurar sua proteção [...] O sentimento de insegurança não é exatamente proporcional aos perigos reais que ameaçam a população. É antes um efeito de desnível entre uma expectativa socialmente construída de proteções e capacidades efetivas de uma determinada sociedade de colocá-las em prática (CASTEL, 2005, p.09).

É neste contexto que se situa o direito ao futuro e à uma existência

verdadeiramente sustentável em uma ambiência que tenta conciliar as distintas expectativas

e os conflitantes postulados capitalistas da livre-iniciativa e a proteção e resguardo ao meio

21

Uma análise interessante sobre este sistema é a feita pelo jurista Alysson Leandro Mascaro que se situa além da ortodoxia marxiana de parte da literatura que estuda o capitalismo. Para ele, “no capitalismo, o capital é o cerne da exploração. Daí que o trabalho passa a ser comprado, de acordo com as condições do mercado. Essa relação de dominação é mais sofisticada. Não necessita de maneira imediata, da dominação da força, nem se vale de atavismos da posse da terra por gerações sem fim. A dominação se dá por meio de instrumentos jurídicos- o contrato de trabalho, a compra e venda, que possibilitam o lucro- e o Estado se presta a garantir o capital e a ordem de suas relações. Cada modo de produção na história, pois, tem os seus arranjos sociais específicos. O capitalismo é só um desses modos de produção, o nosso” (2009, p.108-109). 22

A noção de campo é uma das categorias trabalhadas por Bourdieu na reflexão sobre o poder simbólico. Neste sentido, destaca-se que os embates aqui teorizados e refletidos são experimentados em uma relação de dominação que, em que pese passar despercebida, gera comportamentos, posicionamentos e ideias que reproduzem a influencia dos paradigmas dominantes e demonstram o condicionamento dos indivíduos a estes em parte selecionada do espaço social.

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ambiente, no reconhecimento de um novo olhar, menos instrumentalizado, sobre o meio

ambiente.

Almeja-se, pois, concretizar o direito ao futuro, além da falácia da exigibilidade

imediata23, consagrando o caráter transgeracional24 que a Constituição de 1988 no contexto

republicano brasileiro e as de outros estados nacionais atribuíram ao direito fundamental ao

meio ambiente25.

Referenciando Celso Furtado, Juarez Freitas corrobora com o nosso

entendimento indicando que “sem dúvida, não é todo crescimento econômico que ‘se

metamorfoseia em desenvolvimento’” (2012, p.112). Continua, concluindo que a

a economia voltada exclusivamente para o curto prazo não se coaduna com o critério axiológico da sustentabilidade. O axioma da insaciabilidade, que associa o bem-estar ao consumo crescente, não faz o menor sentido, pelo menos a partir de certo ponto. Comprovadamente não funciona, a despeito do prestígio da tese dos benefícios do consumo ilimitado (FREITAS, 2012, p. 113)

Para Juarez Freitas, o direito ao futuro se dá a partir do reconhecimento do

estado de perigo que se encontra o meio ambiente e dos valores comprometidos com as

concepções de bem-estar assim como as indispensáveis transformações para a

concretização da sustentabilidade26, entendida como

23

Referenciando Celso Furtado, Juarez Freitas corrobora com o nosso entendimento indicando que “sem dúvida, não é todo crescimento econômico que ‘se metamorfoseia em desenvolvimento’” (2012, p.112). Continua, pois “a economia voltada exclusivamente para o curto prazo não se coaduna com o critério axiológico da sustentabilidade. O axioma da insaciabilidade, que associa o bem-estar ao consumo crescente, não faz o menor sentido, pelo menos a partir de certo ponto. Comprovadamente não funciona, a despeito do prestígio da tese dos benefícios do consumo ilimitado” (FREITAS, 2012, p. 113) 24

O artigo 225 da Constituição de 1988 consagra o atributo transgeracional, oriundo de uma perspectiva instrumental do meio ambiente, que ratifica a subserviência do meio ambiente ao homem, servindo-o nas presentes e futuras gerações. 25

À luz de sua natureza jurídica para o Ordenamento Jurídico Brasileiro, o direito ao meio ambiente é fundamental, encontra-se fora do catálogo formal dos direitos fundamentais, nos ensinamentos de Sarlet (2011) é de 3ª dimensão e de caráter difuso (MANCUSO, 2010) pois pertence ao acervo jurídico de uma comunidade política em sua totalidade, não podendo ser individualizado tampouco atribuído a um número determinado de pessoas. 26

Através de uma um exercício foucaltiano de arqueólogo, o experimentalismo científico facilmente constata este estado de perigo preconizado pelo autor. Trago à baila, por oportuno, as investigações científicas feitas durante a disciplina de Desenvolvimento Sustentável e Meio Ambiente, ministrada no âmbito do PGPP/UFMA (nível Doutorado) com a análise in locu dos entornos da Lagoa da Jansen na capital maranhense. O exercício, que se iniciou de maneira desinteressada, constatou realidades distintas em torno de uma APA- Área de Proteção Ambiental, de conhecimento público. Visualizaram-se as disparidades existentes entre as realidades de pobreza e miséria dos bairros vizinhos assim como intenso descaso com a coisa pública (res publica), demonstrada pela ausência de placas informativas, de polícia ambiental, de instrumentos de coleta seletiva assim como danos visíveis ao

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princípio constitucional que determina, com eficácia direta e imediata, a

responsabilidade do Estado e da sociedade pela concretização solidária do

desenvolvimento material e imaterial, socialmente inclusivo, durável e

equânime, ambientalmente limpo, inovador, ético e eficiente, no intuito de

assegurar, preferencialmente de modo preventivo e precavido, no presente e

no futuro, o direito ao bem-estar (FREITAS, 2012, p. 41)

O conceito proposto por este autor contempla diversas dimensões que precisam

ser reveladas para fins de efetivação plena do direito multidimensional27 ao bem-estar. São

as dimensões social, ética, ambiental, econômica e jurídico-política da sustentabilidade28

que, entrelaçadas, determinam sistêmica e pontualmente29 a “universalização concreta e

eficaz do respeito às condições multidimensionais da vida de qualidade, com o pronunciado

resguardo do direito ao futuro” (FREITAS, 2012, p. 73).

Concretamente, os paradigmas da sustentabilidade podem ser observados nas

práticas administrativas em desdobramento que não pretende exaurir a problemática e que

foi brilhantemente enfrentado pelo já referenciado Juarez de Freitas. O autor apregoa:

a) o princípio do interesse público genuíno é imantado agora pelo dever de preservar a integridade dos seres vivos e o dinâmico equilíbrio ecológico [...]; b) o princípio da proporcionalidade determina a vedação de danos intra e intergeracionais, causados por indivíduos de mesmas características morfofisiológicos ou nas relações entre espécies distintas, por excesso ou inoperância [...]; c) o princípio da legalidade, em consórcio com o princípio constitucional da sustentabilidade, deixa-se nuançar ricamente pela perspectiva de prazo longo e de sopesamento adequado dos efeitos de aplicação da norma no tempo [...]; d) o princípio da imparcialidade tem a ver com o Estado-Administração que não se deixa guiar pelos caprichos para favorecer gerações presentes em detrimento das futuras, ou vice-versa [...]; e) O princípio da moralidade, por sua vez, veda as condutas eticamente transgressoras do senso moral médio superior da sociedade, a ponto de não

meio ambiente verificados pela presença de resíduos sólidos e despejamento de esgoto no fluxo das águas e pela depredação do patrimônio público no contexto de área de intensa especulação imobiliária. 27

Para Freitas (2012, p. 49), no contexto da sociedade de risco mundial, “na qual não mais podem ser negligenciadas as consequências involuntárias (externalidades) e a dramaticidade das questões ambientais lato sensu (notadamente as causadas por atuação e omissão humanas), é irrenunciável que o conceito de sustentabilidade insira a multidimensionalidade do bem-estar como opção deliberada pelo reequilíbrio dinâmico a favor da vida. Precisamente, por isso, não faz sentido, por exemplo, conservar nada que possa ser sabidamente destrutivo para a saúde humana, sob pena de preservacionismo simplista, tampouco cair na paralisia do pânico, que nada autoriza fazer”. 28

Corroborando com este entendimento, assevera-se que “a sustentabilidade é uma questão de inteligência sistêmica e de equilíbrio ecológico em sentido amplo. É, cognitiva e axiologicamente, diretiva relacionada ao desenvolvimento material e imaterial (no sentido de não adstrita à mera satisfação das necessidades básicas). Sem dúvida, se encarada exclusivamente como material, desemboca naquele trágico e irresponsável crescimento orientado pelo paradigma da insaciabilidade predatória e plutocrática. Em contrapartida, se não for também material, perde-se nas nuvens. Logo, deve ser material e imaterial, concomitantemente, à altura do oferecimento científico de respostas concretas, eficientes, eficazes e universalizáveis (FREITAS, 2012, p.55-56)”

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comportarem condescendência ou leniência, nem invocação expansiva da doutrina dos frutos da arvore envenenada [...]; f) O princípio da publicidade, em conjugação com o principio da sustentabilidade, consagra o direito fundamental à boa informação e viabiliza o escrutínio social da qualidade multidimensional das decisões administrativas [...]; g) O principio da motivação determina a fundamentação explicita, clara e congruente [...] sob o prisma da sustentabilidade, sempre que afetarem os direitos das gerações atuais e futuras [...]; h) O princípio da ampla sindicabilidade ganha acentuado reforço em sua ligação com o princípio da sustentabilidade, porque este estimula o exercício intertemporal dos controles externo, interno, social e judicial [...]; i) O princípio da inafastabilidade da jurisdição passa a ser lido como salvaguarda do acesso à tutela jurisdicional contra qualquer lesão ou ameaça de lesão aos direitos das gerações atuais e futuras, acima da tutela imediatista e atomizada, cuja crise prestacional resta, aliás, sobejamente conhecida [...]; j) O princípio da eficiência (vedação de meios inapropriados e o imperativo de alcançar o mais com o menos) e o princípio da eficácia (vedação de descumprimento dos objetivos e metas constitucionais) guardam sólida relação com a meta do desenvolvimento durável, sobremodo quando se tem em mente que a eficiência precisa estar subordinada à eficácia, com o fito de que evitar o excesso de eficiência conduza ao crescimento econômico que se alimenta do consumo inconsequente de bens posicionais ou do crédito irresponsavelmente concedido [...]; k) O princípio da legitimidade quer resguardar aspectos de fundo impondo ultrapassar as aparências enganosas da regularidade formal. Com efeito, apenas o prisma substancialista é que se revela favorável à realização não-quantitativista do desenvolvimento; l) O princípio da responsabilidade da Administração Pública e dos entes prestadores de serviços públicos por ações e por omissões exige, por assim dizer, o Estado Sustentável, emancipado do habitual omissivismo e capaz de, em suas intervenções, garantir o direito fundamental à boa administração, requisito para o primado conjunto dos direitos fundamentais de gerações presentes e futuras [...]; m) Princípios da prevenção e da precaução, nas relações de Administração são decisivos para a sustentabilidade, dado que impõem ao Estado-Administração o dever de, prospectivamente, avaliar a formação do nexo causal e interrompê-lo antes que os danos aconteçam [...] De tudo, decorrem duas conclusões. Em primeiro lugar, o princípio constitucional da sustentabilidade encontra-se entrelaçado aos demais princípios regentes das relações de administração, influenciando-os e sendo por eles influenciado. Em segundo lugar, tais relações precisam receber, cada vez, a coloração límpida (mais do que verde) da incidência desse princípio, para que os demais princípios resultem idoneamente respeitados, a longo prazo, e se crie um sistema administrativista que, afinal, permita falar em titularidade dos direitos fundamentais também das gerações futuras” (2012, p. 201-205).

Indubitavelmente, o direito ao futuro perpassa as diversas esferas de atribuições

e os diversos poderes constituídos.

3 O DIREITO AO FUTURO NO PLANO INTERNACIONAL E SUAS REPERCUSSÕES

NOS ESTADOS NACIONAIS: movimentos que delineiam um novo sentido de

soberania

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No plano internacional, especificamente, nas Diretrizes da Organização das

Nações Unidas para a proteção do consumidor30, verifica-se nítido compromisso com as

dimensões acima teorizadas, todavia sem poder de ingerência nos Estados Nacionais face o

respeito à soberania31 e a autodeterminação dos povos32, princípios internacionais para

coexistência pacífica entre os Estados Soberanos e, notadamente, vinculado aos ditames do

desenvolvimento em uma sociedade capitalista e de consumo exacerbado33.

Indubitavelmente, a Carta da ONU, lançada em São Francisco em 26 de junho

de 1945, e a Declaração Universal dos Direitos do Homem redesenharam um novo conceito

de soberania. Corroborando Ferrajolli, em A soberania no mundo moderno, apregoa que

Esses dois documentos transformam, ao menos no plano normativo, a ordem jurídica do mundo, levando-o do estado de natureza ao estado civil. A soberania, inclusive externa, do Estado- ao menos em princípio- deixa de ser, com eles, uma liberdade absoluta e selvagem e se subordina, juridicamente, a duas normas fundamentais: o imperativo da paz e a tutela dos direitos humanos. É a partir de então que o próprio conceito de soberania externa torna-se logicamente inconsistente e que se pode falar, conforme a doutrina monista de Kelsen, do direito internacional e dos vários direitos estatais como

30

As diretrizes, revestidas de caráter programático, anunciam em seu preâmbulo que consideraram a situação dos países em desenvolvimento (capacidade econômica, nível de educação e poder de negociação) assim como a importância de desenvolvimento econômico e social justo, equitativo e sustentado. 31

Como toda categoria que goza de historicidade, o conceito de soberania foi sendo construído e remodelado ao longo do tempo, fruto de uma realidade complexa que foi se moldando à luz da evolução das relações sociais. Neste sentido, a doutrina alemã de JELLINEK (1949) que em uma obra que analisa a doutrina geral sobre o direito do Estado infere que “soberania significa, pois, a propriedade de um poder do Estado por força da qual esse poder tem a capacidade jurídica exclusiva de autodeterminação e auto-obrigação. O poder soberano não é onipotência do Estado, é uma força jurídica e, por isso, vinculada ao Direito. Como poder soberano nem pode tolerar limite jurídico absoluto” (p.76). 32

Indubitavelmente, a Carta da ONU, lançada em São Francisco em 26 de junho de 1945, e a Declaração Universal dos Direitos do Homem redesenharam um novo conceito de soberania. Ferrajolli, em A soberania no mundo moderno, anuncia que “Esses dois documentos transformam, ao menos no plano normativo, a ordem jurídica do mundo, levando-o do estado de natureza ao estado civil. A soberania, inclusive externa, do Estado- ao menos em princípio- deixa de ser, com eles, uma liberdade absoluta e selvagem e se subordina, juridicamente, a duas normas fundamentais: o imperativo da paz e a tutela dos direitos humanos. É a partir de então que o próprio conceito de soberania externa torna-se logicamente inconsistente e que se pode falar, conforme a doutrina monista de Kelsen, do direito internacional e dos vários direitos estatais como de um ordenamento único. De fato, por um lado, o veto à guerra, sancionado no preâmbulo e nos dois primeiros artigos da Carta da ONU, suprime aquele ius ad bellium que foi o principal atributo da soberania externa e representa, portanto, a norma constitutiva da juridicidade do novo ordenamento internacional” (FERRAJOLLI, 2007, p. 39-40). 33

Também no bojo das diretrizes, encontram-se diversas ressalvas a proteção ambiental para que esta não contrarie as políticas econômicas desenvolvidas pelos Estados Nacionais, tais quais “prioridades para proteção dos consumidores segundo as circunstâncias econômicas [...] e os custos e benefícios das medidas (art.2)”, “ao aplicar quaisquer procedimentos ou regulamentos deve-se zelar para que não se transformem em barreiras para o comércio internacional e que sejam compatíveis com as obrigações do comércio internacional” (art. 10), dentre outras que justificam uma proteção ambiental que não prejudique ou dificulte o desenvolvimento do mercado.

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de um ordenamento único. De fato, por um lado, o veto à guerra, sancionado no preâmbulo e nos dois primeiros artigos da Carta da ONU, suprime aquele ius ad bellium que foi o principal atributo da soberania externa e representa, portanto, a norma constitutiva da juridicidade do novo ordenamento internacional (2007, p. 39-40).

Os princípios gerais das diretrizes ratificam nitidamente o acima exposto,

manifestando os movimentos da soberania no plano nacional e internacional, in verbis:

2. Corresponde aos governos formular e manter uma política enérgica de

proteção ao consumidor, tendo em conta as diretrizes que figuram mais

adiante e os acordos internacionais pertinentes. Ao fazê-lo, cada governo

deve estabelecer suas próprias prioridades para a proteção dos

consumidores, segundo as circunstâncias econômicas, sociais e ecológicas

do país e as necessidades de sua população, tendo presentes os custos e os

benefícios das medidas que se proponham.

[...]

5. As políticas de fomento do consumo sustentável devem ter em conta como

objetivos a erradicação da pobreza, a satisfação das necessidades básicas

de todos os membros da sociedade e a redução da desigualdade, tanto no

plano nacional como nas relações entre os países.

[...]

7. Todas as empresas devem acatar as leis e regulamentos aplicáveis nos

países em que realizam suas operações. Devem também acatar as normas

internacionais pertinentes para a proteção do consumidor que sejam

aplicadas pelas autoridades competentes do país de que se trate.

Em âmbito nacional, no contexto pós-1988, concepção de Estado cujo elemento

democrático indica que o Estado Brasileiro atual foi fundado nos valores fundamentais da

comunidade política da situação34, a Constituição, também, albergou elementos

contraditórios que se confrontam e são sopesados constantemente: a livre iniciativa nos

ditames do sistema de produção capitalista e os valores para proteção ambiental35,

34

Para Reale (2010, p. 2) resta claro que o elemento democrático traduz “o propósito de passar de

um Estado de Direito, meramente formal, a um Estado de Direito e de Justiça Social, isto é,

instaurado concretamente com base nos valores fundantes da comunidade. Estado Democrático de

Direito, nessa linha de pensamento, equivaleria, em ultima análise, a Estado de Direito e de Justiça

Social. A meu ver, esse é o espírito da Constituição de 1988”.

35 Miguel Reale analisa uma dicotomia que muito dialoga com a aqui elencada, indicando-a como

manifesto elemento do sentido ideológico contraditório da atual Constituição: o confronto entre os ditames da livre iniciativa e da proteção ao consumidor. Para ele, “é essa díade que nos dá o efetivo sentido ideológico de nossa Constituição, a qual situa o valor da livre iniciativa em harmonia com os interesses coletivos. Se ela é conceituada no parágrafo único do mesmo artigo 170, como liberdade econômica ou liberdade de empresa, esta não representa, todavia, um valor absoluto, pois deve

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manifestados no preâmbulo da Constituição, nos moldes sustentáveis do artigo 3º da CR/88

e do entrelaçamento de princípios da sustentabilidade no artigo 225 e 170, §3º, VI do

referido diploma constitucional.

Profunda reflexão filosófica sobre este processo de influências de ideologias,

seja oriundo do plano interno ou externo, é a feita pelo saudoso Miguel Reale.

Defende-se, pois, a necessidade de investigação de toda ideologia que apregoa

a supremacia do homem, sobretudo, no redesenho do conceito de bem-estar e das políticas

ambientais para a efetivação do direito ao futuro.

O autor nos inquieta a uma postura mais crítica com um sabor literário ao

preconizar que

Quando pesar no espírito de nossos pensadores (cientistas e artistas,

acrescento agora) toda a força do presente, não como instante imediato e

fugaz, mas como concreção de nosso passado e de nosso futuro; quando

vivermos realmente inseridos na problemática de nossas circunstâncias,

natural e espontaneamente, sem sentirmos mais a necessidade de proclamá-

lo a todo instante; quando houver essa atitude nova, saberemos conversar

sobre nós mesmos e entre nós mesmos, recebendo idéias estrangeiras como

acolhemos uma visita que nos enriquece, mas não chega a privar-nos da

intimidade de nosso lar (REALE, 2010, p. 86).

Sem dúvidas, a Constituição declarou aquilo que carece de efetivação36 a fim de

alcançar a plenitude do bem-estar e do direito ao futuro, fruto da ambiência conflitante nos

respeitar os direitos do consumidor. Não se confunda, no entanto, a defesa do consumidor com a preservação de uma igualdade maciça e indiferençada, pois consumidores somos todos nós, nas mais diferentes categorias sociais, desde os mais ricos aos mais pobres, dos velhos às crianças [...] Como se vê, a Carta Magna não consagra o liberalismo infenso à justiça social, mas sim o social-liberalismo, segundo o qual o Estado também atua como agente normativo e regulador da atividade econômica, muito embora sem se tornar empresário, a não ser nos casos excepcionalíssimos previstos no artigo 173, por imperativos de segurança nacional, ou relevante interesse coletivo definido em lei” (2010, p. 45). 36

Partiu-se do pressuposto de que o que há positivado na Constituição deve ser observado e

concretizado, alterando a realidade prática das pessoas de direito, adotando-se, assim, o paradigma

enunciado por BARROSO (2009) pelo qual “a efetividade significa, portanto, a realização do Direito, o

desempenho concreto de sua função social. Ela representa a materialização, no mundo dos fatos,

dos preceitos legais e simboliza a aproximação, tão íntima quanto possível, entre o dever-ser

normativo e o ser da realidade social. Partindo da premissa da estatalidade do Direito, é intuitivo que

a efetividade das normas depende, em primeiro lugar, da sua eficácia jurídica, da aptidão formal pra

incidir e reger as situações da vida, operando os efeitos que lhes são próprios (p.82-83).

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ditames aqui expostos e que influenciou – e continua a influenciar- todo o processo de

elaboração e efetivação das normas constitucionais.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ora, à guisa de finalização deste artigo, constata-se que é neste conflito de

ideologias que se delineia a sustentabilidade e o direito ao futuro que se deseja efetivar no

Brasil e em tantos outros Estados Nacionais hodiernos. Neste sentido, é mister pensar que

os valores da insaciabilidade, do consumo e do mercado de livre-iniciativa irresponsáveis,

não coadunam com esta efetivação tampouco se comprometem com o pleno bem-estar dos

povos.

Indubitavelmente, a sustentabilidade e o direito ao futuro exigem uma

mentalidade e agenda prospectiva37, a longo prazo, concretista e racionalizada. Necessita ir

além do pragmatismo de mercado, do desenvolvimento sem reflexão e sem análise de suas

consequências. Além disso, a sustentabilidade perpassa a proteção ambiental e efetiva-se

ao lado da concretização das necessidades humanas básicas.

Corrobora-se a necessidade do desenvolvimento integrado em todas as

dimensões e atento aos riscos e incertezas consequenciais para a consagração do direito a

bem estar, favorecido por uma governança, interna e global, democrática e pautada nos

postulados de proteção da pessoa humana e do ambiente no qual nos inserimos.

Urge repensar e perscrutar constantemente a sustentabilidade que se almeja

concretizar com o fito de verificar a efetividade ou não dos postulados do bem-estar nos 37

Em ultima análise, Juarez de Freitas indica que “tal agenda, cujas raízes se confundem com a dos direitos fundamentais, pressupõe, para obter êxito, uma mudança profunda de mentalidade e de governança, com base numa compreensão científica da inserção do homem na natureza. Um novo estilo de vida apresenta-se rigorosamente crucial para viabilizar, em alta magnitude, o desenvolvimento apto a ensejar melhorias robustas e estruturais, num crescimento que se poderia designar por ´desenvolvimento material- desenvolvimento imaterial´. Essa alteração de mentalidade é possível. É constitucionalmente obrigatória. É crítica. Por mais resiliência que tenha, a natureza guarda limites intransponíveis. A cada ano, os tempos parecem ambientalmente mais difíceis, embora hoje, exista, na média, maior disponibilidade para realizar uma transição no sentido do desenvolvimento durável, com adoção de indicadores mais confiáveis. Sem margem de erro, alastra-se a consciência de que a erradicação de emissões tóxicas, as instituições inclusivas e a segurança alimentar precisam andar, lado a lado, com o consumo inteligente e a responsabilidade compartilhada, evitando os males causados pelos excessos, que sobrecarregam literalmente de peso a sociedade. É dessa consciência que brota a cobrança de parâmetros para a avaliação qualitativa das políticas públicas, segundo a ótica ponderada do bem-estar das gerações atuais e futuras” (2010, p. 308-309).

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estados nacionais e, especificamente, no caso brasileiro assim como interesses e

racionalidades que a sustentam para sua concretização plena, anseio intrínseco ao direito

em debate.

REFERENCIAS

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BARROSO, Luís Roberto. Direito Constitucional e a efetividade de suas normas. São

Paulo: Editora Renovar, 2009.

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Janeiro: Zahar, 2013.

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ESTADO, CAPITALISMO, FRONTEIRAS E DESIGUALDADE

Jean Carlos Nunes Pereira38

1 INTRODUÇÃO

Na era da denominada “globalização” novas perspectivas de lutas se

descortinam no horizonte dos direitos. Embora não se possa negar a existência do

conflito em torno da sobrevivência biológica (denominada pela tradição marxista de

luta de classe), a realidade complexa e multifacetada dos dias de hoje aponta para

uma gama muito ampla e extensa de lutas em prol da afirmação de direitos. À luta

no chão da fábrica, agregam-se outras como as do negro, do indígena, da pessoa

com deficiência, da mulher, dos homossexuais, dos imigrantes, dos refugiados, dos

sem-terra, entre tantas. A análise que se propõe a seguir parte da compreensão de

que o elemento comum a esses conflitos é a busca pela igualdade e que, num

contexto capitalista, a concretização desse anseio não se faz sem uma “redefinição”

do papel desempenhado pelo Estado, no âmbito interno e no além-fronteiras.

2 ESTADO E SUAS FUNÇÕES NO CAPITALISMO

Desde a publicação da obra O Estado e a revolução de Lenin (2010),

consolidou-se um entendimento na teoria marxista consistente em se compreender o

Estado como o instrumento de dominação de uma classe sobre outra. Essa

concepção, embora pouco densa para apreensão da complexidade do fenômeno

estatal num contexto capitalista, atravessou gerações e chegou à segunda metade

do século XX sem grandes abalos39. Em fins deste século, porém, novas

38

Mestre. Universidade Estadual do Maranhão. 39

Nessa obra, Lenin (2010, p. 25-28) retoma e desenvolve a idéia de que a existência do Estado

encontra-se diretamente atrelada à luta de classes e à propriedade privada. O Estado, por essa concepção, é, em sua essência, o instrumento de dominação de uma classe sobre outra, o produto do caráter inconciliável da contradição de classes. A burguesia se vale do Estado para transformar os seus em interesses gerais da coletividade. Além de classista, na compreensão do revolucionário russo, o Estado é transitório e necessário enquanto ainda existente a luta de

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investigações lançaram luzes sobre o tema. Nesta nova perspectiva, a relação

estabelecida entre o Estado e a realidade social da qual emerge não é em função

desta ou daquela classe/grupo/sujeito, mas do capital, isto é, da manutenção e

reprodução do sistema capitalista. Enquanto visa à manutenção, desenvolve função

eminentemente repressiva e protetiva; enquanto visa à reprodução/expansão

desempenha papel de constituição da realidade social. A relação, pois, não é

maniqueísta nem simplificada. É complexa e dialética, muito embora, de um modo

ou de outro, e em última instância, seja o papel desempenhado pelo Estado em

assegurar a hegemonia do capitalismo que tenha prevalecido.

Neste sentido, a chamada democracia burguesa encontra limites

estruturais que não comportam transformações que lhe alterem a essência

capitalista. As manifestações sociais de cunho contestatório, a liberalidade por meio

da filantropia, a produção científica, a produção cultural crítica, enfim, são

“toleradas”, muito embora sofram constantes ataques, desde que não comprometam

a viabilidade do sistema. Para essa função, isto é, para repressão do que seja

“perigoso” ao sistema, o Direito tem, infelizmente, exercido papel destacado. Os

expedientes têm assumido diversas formas, desde a criminalização de lideranças e

de movimentos sociais até, em âmbito macroestrutural, os golpes de estado e a

criação de diplomas constitucionais comprometidos com a finalidade de perpetuar o

império do capital.

Em ambos os casos, seja pela via do direito penal, seja pela via da

assunção direta do aparelho estatal com o alijamento dos elementos “perigosos” à

manutenção do capitalismo, a via da repressão passa sempre pelo Estado,

justamente pelo fato de este se projetar discursiva e ideologicamente como terceiro

desinteressado. A existência de instâncias e instituições populares, como os

“conselhos” e as ouvidorias, embora revelem o caráter contraditório do processo e

sejam indispensáveis à drenagem dos anseios das camadas desprivilegiadas, não

classes. Extinta esta, aquele seria “naturalmente” suprimido. A sociedade ideal então, em que cessadas todas as formas de exploração do homem pelo homem, a sociedade comunista, seria necessariamente precedida por uma etapa intermediária caracterizada pelo domínio proletário sobre a máquina estatal. O estado burguês e suas respectivas instituições deveria ser “quebrado” e, em seu lugar, erigido o estado proletário, isto é, substituir a ditadura da minoria pela da maioria.

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têm impedido o triunfo do capital.

A função desempenhada pelo Estado, entretanto, não é apenas

repressora, no sentido de conter iniciativas e movimentos que impeçam a

manutenção e o desenvolvimento das relações capitalistas, mas é também

ordenadora do plano econômico-social. Neste particular, inteira razão assiste a

Mascaro (2013, p. 19) quando, superando em certa medida a concepção weberiana

de Estado enquanto monopólio legítimo da violência, concepção estritamente ligada

à idéia de repressão, acrescenta:

O caráter terceiro do Estado em face da própria dinâmica da relação entre capital e trabalho revela a sua natureza também afirmativa. Não é apenas um aparato de repressão, mas sim de constituição social. A existência de um nível político apartado dos agentes econômicos individuais dá a possibilidade de influir na constituição de subjetividades e lhes atribuir garantias jurídicas e políticas que corroboram para a própria reprodução e circulação mercantil e produtiva. (...) A característica tipicamente atribuída aos Estados, de repressão, como instrumento negativo, realizando a obstacularização das condutas, é definidora mas não exclusiva do aparato político moderno. A repressão, que é um momento decisivo da natureza estatal, deve ser compreendida em articulação com o espaço de afirmação que o Estado engendra no bojo da própria dinâmica de reprodução do capitalismo.

É exatamente em razão dessa função, tanto ordenadora quanto

constitutiva do social que o Estado altera o capitalismo e neste intervém. Se resulta

relevante identificar as especificidades da forma Estado, por exemplo do Welfare

State, a partir da análise das relações econômicas subjacentes, parece central para

compreensão das mutações do capitalismo, sobretudo dos seus mecanismos de

superação de crise, a investigação acerca do papel intervencionista, e por isso

mesmo constitutivo, do Estado no sistema capitalista40. Não se trata de

40

Farias (2001, p. 28), seguindo a metodologia marxista e valendo-se das ferramentas da lógica dialética, esclarece a necessidade de a análise acerca do Estado não descurar de suas especificidades a serem apreendidas no tempo e no espaço. Em suas palavras: “O Estado é um movimento de totalização e de concretização que se situa no tempo e no espaço; é um silogismo que se compõe de três termos: a forma-Estado (generalidade), a forma de Estado (particularidade) e a forma do Estado (singularidade). Ora, o próprio silogismo do Estado é a unidade de três silogismos, de sorte que o movimento do pensamento só pode exprimir o ‘grande

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protagonismo solitário, ou de abstração das forças inerentes ao denominado

mercado, em muitos casos superiores às estatais, mas da compreensão de que se

trata de uma interação dialética, contraditória, em que o papel desempenhado pelo

Estado é destacado e fundamental.

Se, como bem esclareceu Evgeny Pachukanis (1988, p. 94), o Estado

se apresenta em seus primórdios como instrumento de repressão a serviço das

classes/grupos/setores dominantes, num contexto de capitalismo avançado, ainda

mais pelo amadurecimento das instituições que fortalecem a democracia (mesmo

que ainda formal), ele assume um caráter interventivo cuja natureza, a priori, senão

neutra como suscitou Engels, é pelo menos relativamente autônoma, isto é, tanto

pode ser utilizada a serviço do capital como para concretização de projetos que

atendam aos interesses das classes desprivilegiadas, ainda que de forma setorizada

e pontual41. Aliás, a própria tradição marxista não desconsidera que o Estado,

enquanto instituição, pode e deve ser utilizado pela classe trabalhadora num período

de transição entre o capitalismo e o comunismo. Em Lenin, o Estado burguês deve

ser “quebrado” e substituído por um Estado proletário, bem mais simplificado e com

atividades burocráticas acessíveis também àqueles com menos formação técnica42.

Esse caráter, sem dúvida hoje muito mais acentuado do que quando do

surgimento do Estado burguês, resulta sobremaneira, não se pode desconsiderar,

das lutas e conquistas travadas no seio do sistema capitalista, sobretudo nos

momentos graves de crises e de choques entre as potências imperialistas, a

silogismo’ do Estado caso considere cada uma das categorias forma-Estado, forma de Estado e forma do Estado. Do mesmo modo apreendendo a existência de especificidades em relação à forma-Estado, esclarece Lenin (2010, p. 55): “As formas dos Estados burgueses são extraordinariamente variadas, mas na sua essência é apenas uma – uma ditadura da burguesia”.

41 A crítica formulada por este a autor é endereçada a famosa passagem de A origem da família, da

propriedade privada e do Estado (2011, p. 135) em que Engels define o Estado como sendo um poder acima da sociedade e dela se distanciando cada vez mais. Para Pachukanis essa afirmação levaria ao falso entendimento de que o Estado surgiria como elemento neutro e que somente depois teria sido corrompido e usurpado pelas classes dominantes. Direcionada para o momento histórico do surgimento do Estado a crítica é inteiramente procedente. Mas, voltando a análise para evolução do Estado no capitalismo, a percepção de Engels assume sentido, ainda mais pela configuração estatal atualmente bem mais democrática que a que tinha sob sua análise o co-fundador do marxismo.

42Afirma Lenin (2010, p. 75): “A classe operária deve quebrar, demolir a máquina de Estado que

encontra montada e não limitar-se simplesmente a sua conquista”.

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exemplo do que ocorreu com as grandes guerras do século XX43. Reforça ainda

esse papel, as plataformas de direitos humanos materializados em tratados

internacionais e que possuem significativa ressonância nas cartas constitucionais de

fins do século passado e consequente concretude em diversos direitos usufruídos

por grupos vulneráveis.

Ademais, o aparelho estatal tornou-se mais complexo desde o advento

do capitalismo e, embora ainda preponderante o papel desempenhado na

manutenção e reprodução do sistema, agregou instituições que, se não inteiramente

democráticas, ampliaram as possibilidades de drenagem dos anseios sociais para

agenda política sob a forma de políticas públicas, o que revela mais uma vez o

aspecto dialético do processo histórico e a natureza contraditória do Estado.

O Direito, por sua vez, não atravessou essas mudanças incólume. Sob

o influxo dos anseios contestatórios à hegemonia burguesa, fortaleceram e

ampliaram-se as noções de democracia e de direitos fundamentais a partir da

instituição do primado da dignidade humana como princípio basilar de toda a teoria

jurídica, o que tem permitido seu uso também como instrumento de transformações

voltadas para justiça social44 45. Firma-se aqui o posicionamento de que o Direito

43

Acerca da conquista de direitos fundamentais sociais, o magistério de Cláudia Gonçalves (2011, p.

45): “Cite-se, por conseguinte, que esses direitos [os sociais] não surgiram em toda parte e a qualquer tempo, como dádivas do Estado ou fruto de sua burocracia; foram, em muitos casos, lutas e conquistas de homens e mulheres que passaram a reivindicar não apenas a preservação das situações jurídicas consolidadas pelos direitos individuais, mas também, e acima de tudo, a intervenção do Estado, nomeadamente para institucionalizar direitos e, em certa medida, materializá-los através de ações de governo expressas em serviços públicos de saúde, educação, assim como políticas de pleno emprego”.

44O Direito, tal qual o Estado, não tem a apenas a função repressora, externa. Mas, também assume

no contexto atual a perspectiva ordenadora e constitutiva do social. Trata-se da noção que se tornou célebre desde Conrad Hesse, da força normativa da Constituição e do Direito. Pachukanis (1988, p. 57) reconhece o caráter revolucionário que o Direito pode assumir: “O direito como sinônimo da existência oficial do Estado e o direito como porta voz da luta revolucionária: esta dualidade determina um campo de infinitas controvérsias e incríveis confusões”.

45Siqueira Castro (2008, p. 161) traça três posturas decorrentes do reconhecimento da dignidade

humana como o princípio fundante do sistema jurídico brasileiro. A primeira, a eiva de inconstitucionalidade de atos estatais que não o observem; a segunda, a abstenção pelo Poder Público de atos que de algum modo o comprometam; e ”induz a que os órgãos e autoridades, competentes, em todos os níveis de governo, e no exercício de suas constitucionais e apropriadas competências, adotem iniciativas conducentes à eliminação das desigualdades sociais e que promovam condições econômicas propícias à existência digna de todos os seres humanos à circunscrição da soberania do Estado. (...). É o parâmetro, por excelência, do sentido

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pode ser utilizado como instrumento de afirmação de direitos e de transformação dos

quadros institucionais em que inserido46.

É justamente no âmbito desta segunda função, a

interventiva/ordenadora, desempenhada pelo Estado que se insere a discussão

acerca da desigualdades e fronteiras produzidas/legitimadas no sistema capitalista.

3 “VELHOS” E “NOVOS” CONTORNOS DA DESIGUALDADE

Estado e Direito, no contexto capitalista, encerram grave paradoxo,

porquanto desempenham primordial papel na manutenção e no desenvolvimento de

um sistema que produz em escalas catastróficas e globais a desigualdade na exata

medida em que atraem para si a tarefa de combatê-la, por meio de criação

normativa de direitos fundamentais sociais e de sua concretização através de

políticas públicas. Paradoxo ainda mais evidente pelo fato de que, no discurso, a

burguesia, desde a eclosão da Revolução Francesa, proclama a liberdade, a

igualdade e a fraternidade como o lema da “nova era”. Trata-se do caráter

universalista do discurso, inicialmente fundamental para congregar anseios

populares e romper com as estruturas tradicionais ligadas à nobreza ociosa. A

libertação seria para todos os seres humanos, e não apenas para os privilegiados

pelo sangue ou pela religião.

Esse discurso não tarda a entrar em choque com o sistema capitalista,

formal e material de justiça, que a tudo e a todos julga.

1. 46

Neste sentido, a compreensão de Wolkmer acerca do Direito: “Assim, ao se constituir no reflexo ideológico de um processo social determinante, o Direito consolida e garante as necessidades e interesses político-econômicos dos setores produtivos hegemônicos de uma dada formação social. Mas, mesmo que o traço forte do Direito moderno venha a ser a corporificação da vontade estatal, a condensação das relações de forças e o controle repressivo a favor das forças dominantes, não se pode reduzir peremptoriamente que este mesmo Direito está a serviço da ocultação/dominação, pois é possível forjar e utilizar o Direito como instrumento de luta, de defesa e de libertação contra as formas de dominação imposta” (2012, p. 216). Na mesma perspectiva, a lição de Boaventura de Sousa Santos: “No âmbito da legalidade cosmopolita, uma coisa é utilizar um instrumento hegemônico, outra coisa é utilizá-lo de maneira hegemônica. Sobressaem-se, aqui, duas ideias interligadas: é possível utilizar instrumentos hegemônicos para fins não hegemônicos sempre e quando a ambiguidade conceptual que é própria de tais instrumentos seja mobilizada por grupos sociais para dar credibilidade a concepções alternativas que aproveitem as brechas e as contradições do sistema jurídico e judiciário” (2011, p.36).

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que é essencialmente concorrencial e excludente47. Nem mesmo o ajuste posterior

nele realizado para sustentar tratar-se apenas de oportunidades, isto é,

universalismo de condições, e nem mesmo as políticas sociais que se seguiram

foram capazes de afastar as contradições do sistema e escancarar conflitos já

existentes e fazer brotar outros48. Se no âmbito das liberdades ditas “negativas”,

direitos de não-intervenção, o triunfo foi relativo, em matéria de afirmação do

postulado da igualdade, em níveis materiais, revelou-se um grande fracasso. O

Estado, eficiente na função de manutenção do capitalismo, não reduz a níveis

suportáveis a desigualdade que, no século XXI, assume novas nuances.

Afirma Rousseau (2010, p. 125), em seu famoso discurso, que

desde que um precisou do auxílio do outro, desde que percebeu que

era útil a um só ter provisões para dois, desapareceu a igualdade,

introduziu-se a propriedade, tornou-se necessário o trabalho e as

vastas florestas se transformaram em risonhos campos, que era

preciso regar com o suor dos homens e nos quais se viu a escravidão

e a miséria germinarem e crescerem como as messes

Para este autor, há dois tipos de desigualdades: a natural e a

socialmente construída. O Estado na perspectiva roussouniana surge não apenas

das contradições resultantes da desigualdade social, como apontaria a teoria

47

Bauman (2011, p. 21) afirma que “uma das chagas mais evidentes dos regimes democráticos é a contradição entre a universalidade formal dos direitos democráticos (garantido de modo igual da todos os cidadãos) e a capacidade nem tão universal de seus portadores de exercer de fato esses direitos; em outras palavras, a brecha entre a condição jurídica de um “cidadão de jure” e a capacidade prática de um cidadão de facto – brecha que, em teoria, seria superada por indivíduos que empregam suas capacidades e recursos próprios, dos quais, contudo, eles não podem dispor - , o que ocorre num enorme número de casos.

48 Paoli e Telles (2000, p. 106-107), após afirmar a emergência de “novos sujeitos” nas lutas sociais

(operários, moradores pobres, famílias sem-teto, mulheres, negros, minorias discriminadas), salientam: “Pois a presença desses sujeitos na cena política tem a peculiaridade de atualizar, no registro do dissenso e do conflito, os princípios universais da igualde e da justiça, uma vez que essa presença significa a exigência de uma permanente e sempre renovada negociação quantos às regras da equidade e à medida de justiça nas relações sociais. E é sob esse prisma que se pode dizer que em torno desses sujeitos coletivos abrem-se horizontes de possibilidades que não se deixam encapsular nas suas singularidades de classe, gênero, raça ou etnia, pois a conquista e reconhecimento de direitos tem o sentido de invenção de regras de convivência público e de princípios reguladores de uma sociabilidade democrática”.

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marxista que lhe é posterior, mas também como mecanismo de mantê-la, de

perpetuar o poder e a posse dos ricos em detrimento dos pobres. Desigualdade e

propriedade são duas faces de uma mesma moeda. É essa a perspectiva que é

retomada por Marx, embora por caminhos outros, para denunciar o fenômeno da

mais-valia como mecanismo de exploração do homem sobre o homem.

De fato, inteira razão assiste à teoria marxista quando escancara os

perversos efeitos de se deixar nas mãos da lógica egoística capitalista os destinos

de um povo. Os dados oficiais confirmam essa triste inequação entre o discurso

igualitário e a realidade dura do quotidiano quando apontam que 43% (quarenta e

três por cento) da população mundial vive com menos de U$ 2,00 (dois dólares) per

capita ao dia, num sistema em que a renda per capita mundial ultrapassa facilmente

os U$ 6.000,00 (seis mil dólares) mensais (ANTUNES, 2006, p. 53). Ou seja, se a

humanidade jamais produziu tanta riqueza, Vasapollo afirma que a renda per capita

mensal mundial anterior ao advento do capitalismo não ultrapassava os U$ 200,00

(duzentos dólares) per capita mensal, nunca foi tão grande o abismo entre ricos e

pobres.

Embora as categorias “ricos” e “pobres” sejam discutíveis – e mais

ainda que há diferentes níveis de riqueza e de pobreza –, parece indiscutível que o

volume total da riqueza socialmente produzida não tem sido distribuída em níveis

minimamente satisfatórios. Esta realidade que se verifica entre sujeitos é igualmente

evidente entre regiões, como nordeste e sudeste do Brasil, entre continentes, como

América do Norte e América do Sul, e, em níveis globais, entre países centrais

(chamados desenvolvidos) e países periféricos (denominados subdesenvolvidos).

Em outras palavras, a injusta distribuição das riquezas produzidas pelos integrantes

de uma fábrica se reproduz em níveis muito mais amplos num contexto de

mundialização do capital.

Reforçam esse quadro os longos e desastrosos períodos de

imperialismo/colonialismo dos séculos XV e XVI e, posteriormente, dos séculos XIX

e XX, de modo não ser absurda a constatação de que significativa parcela da

riqueza retida na Europa e na América do Norte resultar da drenagem exploratória

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de recursos humanos e materiais engendrada pelo modelo colonialista que se

verificou no globo, em especial na Ásia, América e na África49 e que, pelo viés

financeiro, ainda se perpetua.

O inchaço populacional urbano, os baixos índices de escolaridade, a

má prestação de serviços essenciais como o de saúde, o elevado índice de violência

são sintomas evidentes de um problema mais grave e profundo – a desigualdade

social, socialmente produzida em níveis individuais, locais, regionais e mundiais, e

que esmaga, na rotina do quotidiano, as aspirações humanas para além das

necessidades imediatamente biológicas.

A desigualdade, porém, não se manifesta apenas em termos econômicos,

no sentido de produção do necessário à sobrevivência digna do corpo, senão em

níveis e dimensões outros não apreendidos inicialmente pelo pioneiro trabalho de

Rousseau e que necessitam do mesmo modo atrair a investigação científica. Parece

ser também nessa perspectiva que Bloch, na vertente marxista, falava da não-

linearidade da história e do acúmulo de demandas reprimidas e não satisfeitas da

humanidade ao longo das gerações. Mascaro (2008, p. 185) que se tem dedicado à

obra deste autor, assevera:

a história, para Bloch, é um somatório contraditório de damandas e

necessidades não-resolvidas, cujas energias se acumulam e não se

canalizam em apenas uma frente de transformação. Assim sendo, até

mesmo para o direito, as demandas sociais são acúmulos de desejos,

inspirações e energias, tanto aquelas pré-capitalistas, de uma

sociedade sem instituições arbitrárias, quanto as capitalistas, de uma

sociedade arbitrária na contabilidade das próprias instituições. Tais

energias represadas por inúmeros grupos das classes exploradas são

o combustível para a utopia concreta, inclusive para uma utopia

concreta jurídica.

49

Afirma Ferrajoli (2007, p. 57): “No tempo em que foram prometidos a todos, aqueles direitos [os contidos na Declaração de 1789] não acarretavam custo algum para nossos países, uma vez que era impensável que os homens e mulheres do Terceiro Mundo pudessem chegar à Europa e pedir para serem levados a sério em nome da reciprocidade. Mas, hoje, depois de ter sido a Europa a invadir o resto do mundo, por séculos a fio, com suas conquistas e promessas, não podemos fazer o caminho inverso – isto é, transformar os direitos do homem em direitos só do cidadão -, sem renegar aquele universalismo de princípios sobre o qual se fundamenta a credibilidade de nossas democracias”.

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Em Bloch, a noção de demandas reprimidas está associada às

condições humilhantes a que são submetidos os seres humanos, integrantes da

chamada “classe operária” na tradição marxista. Significativo avanço se revela na

obra deste autor ao identificar focos de conflitos e reflexos da desigualdade para

além do viés estritamente econômico. A desigualdade, nesta perspectiva, não se

revela apenas na forma da injusta distribuição dos bens socialmente produzidos,

mas também na contínua violação à dignidade humana que dela decorre.

Em Habermas, o reconhecimento de conflitos e sequelas da

desigualdade para além do econômico ganha fôlego. Posicionando-se contra o

apego acrítico a conceitos da tradição marxista de teórico que não levam em

consideração as transformações históricas que ocorrem na realidade concreta50,

este autor demonstra a existência de um plexo de lutas bem mais amplo que a

perspectiva de “luta de classe”51, inicialmente concebida no marxismo, e nem

sempre nela radicado, mas que revela, em última análise, desiguais relações. As

questões de gênero, raciais, homoafetivas, relativas ao meio ambiente, ao acesso à

terra, à infância, à senilidade, à pessoa com deficiência, aos refugiados, aos índios,

à tortura, à política criminal, entre outras, tornaram a luta multifacetada e

segmentada52.

50

Marx desde que publicou com Engels O manifesto do partido comunista sustenta a idéia de que a história consiste na luta de classes cujo triunfo, ao fim, estará com a classe trabalhadora. Mas ele nem por isso deixou de investigar a fundo a realidade que estava sob sua análise e dando extraordinário exemplo de que é a teoria que deve se curvar à realidade, escreve numa de suas obras clássicas (1997, p. 75): “Deixando-se dirigir pelos democratas diante de um tal acontecimento e esquecendo os interesses revolucionários de sua classe por um bem-estar momentâneo, os operários renunciaram à honra de se tornarem uma força vencedora, submeteram-se a sua sorte, provaram que a derrota de junho de 1848 os pusera fora de combate por muitos anos e que o processo histórico teria por enquanto que passar por cima de suas cabeças”. Grifos no original.

51Para Habermas (1968, p. 76-77), em texto escrito na emergência do Welfare State europeu, a luta

de classe, num contexto de capitalismo tardio, de real passa a ser potencial, latente, fragilizada pela lealdade das massas conquistada por uma política oficial de compensações às mazelas do sistema.

52 Entendemos aqui que o instrumento teórico de análise utilizado pelos fundadores do marxismo –

luta de classe – não atende satisfatoriamente às novas e complexas dimensões das lutas que se travam na sociedade. No marxismo, porém, Mascaro (2013, p. 63-68) acentua que esse processo de atomização das lutas se deve também ao fato de que a ideologia burguesa, amplamente referendada pelo Estado e seus aparelhos, escamoteia a existência das classes em favor do “sujeito de direito”, do consumidor, dos “cidadãos livre e iguais”.

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Embora não se negue aqui a existência da luta pelo acesso aos meios

e aos bens necessários à sobrevivência digna, travada entre os diversos grupos e

indivíduos (caráter econômico, de gênero, racial, de deficiência física, de orientação

sexual), entre indivíduos e corporações e mesmo entre Estados, entendemos que a

hierarquia social e, portanto, a desigualdade, se manifesta em níveis para além do

econômico.

Em Bauman, a perspectiva transversal da desigualdade recebeu

teorização densa. Para este autor (2011, p. 9),

O aumento da desigualdade raras vezes é considerado sinal de

alguma coisa além de um problema financeiro; nos casos

relativamente raros, em que há um debate sobre os perigos que essa

desigualdade representa para a sociedade como um todo, em geral

ele se dá em termos de ameaças à “lei e ordem”; quase nunca dos

riscos para os ingredientes fundamentais do bem-estar geral da

sociedade, como, por exemplo, a saúde física e menta da população,

a qualidade de sua vida quotidiana, o sentido de seu engajamento

político e a força dos vínculos que a integram à sociedade.

Embora não se negue as dificuldades evidente na utilização de

conceitos genéricos como “bem-estar geral da população”, a visão do autor amplia a

investigação dos efeitos da desigualdade para campos, tradicionalmente não

abordados, como as síndromes mentais na vida da população. O conceito de

população aqui mencionado, não nega a hierarquia social existente num contexto

capitalista, mas permite compreender que os efeitos da desigualdade se estendem

negativamente também sobre as camadas privilegiadas. Não se trata de amenizar

os danos decorrentes da sua existência nem de justificar a conduta de seus

promotores, mas justamente de demonstrar que toda sociedade humana, em níveis

globais, sofre suas consequências, inclusive seus causadores imediatos53.

53

A este respeito afirma Bauman (2013, p. 12): “Aparentemente, os riscos são neutros e não intencionais, e seus efeitos, aleatórios; na verdade, porém, os dados do jogo dos riscos são viciados. Há uma afinidade seletiva entre desigualdade social e a probabilidade de se tornar vítima de catástrofes, seja elas 'naturais' ou provocadas pelo homem, embora em ambos os

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A desigualdade está hoje estratificada e institucionalizada nos

diferentes níveis de serviços, de produtos e de acesso ao conhecimento. Ocorre,

entretanto, que a sociedade moldada pelo capitalismo é constantemente

bombardeada por imensa carga publicitária que a leva a acreditar que seu poder de

compra é capaz de atender todos seus sonhos, muitos destes criados pela própria

propaganda. Na medida em que o cotidiano, a realidade dura de cada dia, atesta o

enorme hiato entre o propagandeado e o que é possível concretizar, sentimentos

como ansiedade, insegurança, frustração e medo passam a dominar os

comportamentos e mentes humanos54. Reforça esse quadro, agravando a distância

entre o sonhado/induzido e o real vivido, o alcance cada vez maior dos meios de

comunicação. Graças a esse fenômeno:

(…) todo e qualquer indivíduo (homem ou mulher, adulto ou criança,

rico ou pobre) é convidado, tentado e induzido (ou seja, compelido) a

comparar sua própria sorte com a de todos os outros; em particular,

com o consumo excessivo praticado pelos ídolos públicos

(celebridades constantemente expostas nas telas de TV e nas capas

de tabloides e revistas de luxo; e a mensurar os valores que tornam a

vida digna de ser vivida pela opulência que eles exibem. Ao mesmo

tempo, enquanto as expectativas realistas de uma vida satisfatória

continuam a divergir profundamente, os padrões sonhados e os

símbolos cobiçados de uma 'vida feliz' tendem a convergir; (…) Como

sugeriu Oliver James, essa mistura verdadeiramente tóxica é criada

casos os danos sejam declarados não intencionais e não planejados. Ocupar a base da pirâmide da desigualdade e tornar-se 'vítima colateral' de uma ação humana ou de um desastre natural são situações que interagem da mesma forma que os polos opostos de um imã: tendem a girar um em torno do outro.” A seguir, o autor ilustra a afirmação com o verificado com o furacão Katrina que atingiu, em 2005, a costa da Louisiana. Hanna Arendt, tratando da violência no contexto das rebeliões estudantis de 1968, de certo modo amparada em Weber, afirma que o burocracia torna ditadura de “Ninguém”, inviabilizando, com seus intrincados departamentos, a identificação clara de responsáveis pelo que Bauman chamaria mais tarde de “danos colaterais” a atingir sobretudo grupos vulneráveis (2010, p. 55). Este mesmo autor, em outro obra, denomina esse fenômeno de “objetivação da vida” (2005, p. 54).

54Bauman agrega outro fator como causa das síndromes relacionadas ao medo – os proveitos para o

Estado ao explorar esse tipo de sentimento nas pessoas. Afirma ele: “O professor Robert Edelmann, apresentado pela colunista de saúde do Observer Anna More como 'consultor psicológico especializado em síndrome do pânico', aponta para a forma com a falta de controle e a ignorância se fundem e misturam na enervante incerteza produzida pela divulgação, deflagrada e patrocinada pelo Estado, de riscos e perigos; como a incerteza e a ansiedade que ela provoca resultam, pelo que se tem observado, numa profusão de acessos de 'estafa, insônia e depressão', que 'ocorrem em simultâneo a um grande aumento nas vendas de álcool e cigarros” (2005, p. 69-70).

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ao se acumularem 'aspirações irrealistas, assim como a expectativa

de que elas possam se concretizar'” ( BAUMAN, 2013, p. 27).

Neste sentido, entende Bauman que a desigualdade, socialmente

construída ou legitimada, é uma doença que compromete a sadia qualidade de vida

de todo o corpo social. Vale-se para tanto, de dados comparativos entre duas

grandes economias capitalistas, EUA e Japão, este na base e aquele no topo da lista

dos desiguais, para demonstrar que nas sociedades humanas em que há menor

índice de desigualdade, há menor número proporcional de pessoas presas, menor

incidência de gravidez na adolescência, menor índice de obesidade e de problemas

mentais. É bem verdade que os mencionados fatores são mais frequentes, e com

muito mais gravidade, naqueles que se encontram privados do necessário à

sobrevivência digna. Entretanto, é preciso ressaltar que a redução da desigualdade

a todos, embora não do mesmo modo, beneficia; e seu acirramento tende a formar

ilhas de aparente bem-estar cujas fronteiras são cada vez mais superadas por

aqueles que levam consigo as marcas da injustiça social a que são submetidos. As

áreas em meio urbano denominadas “nobre” com seus “paradisíacos” condomínios

não têm conseguido manter afastados aqueles de cujo trabalho são retiradas as

riquezas que permitem sua existência. Esse mesmo fenômeno pode ser observado

com a questão dos refugiados e dos imigrantes, vítimas e símbolos do histórico

processo de apartheid social a que o capitalismo deu contornos globais.

Aliás, nunca um sistema econômico social rompeu e criou, simultânea

e paradoxalmente, tantas fronteiras. Talvez esteja exatamente na redefinição do

conceito de fronteira, ou ainda, na sua superação pelo de solidariedade uma

possível esperança no enfrentamento da desigualdade social em níveis globais.

4 DESIGUALDADES, FRONTEIRAS E A INTERNACIONALIZAÇÃO DOS

DIREITOS

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Karl Polanyi (2000, p. 172) sustenta que o capitalismo se consolida sob

o dogma do laissez-faire a partir de uma contradição inerente – o eixo central do

discurso do livre comércio resulta, em última instância, de forte intervenção estatal55.

Fundamental neste processo a formação dos Estados-nacionais e

criação/delimitação de suas respectivas fronteiras. A criação das barreiras jurídico-

institucionais significou naquele contexto um importante mecanismo de acumulação

e de controle que possibilitou a consolidação das relações capitalistas de produção.

Por longo período, a criação/manutenção de fronteiras significou também, num

contexto de expansão imperialista, instrumentos de “repartição” do resultado do

processo de espoliação a que foram submetidos os povos colonizados. É paradoxal

como o capitalismo se utiliza da noção de “liberdade”, laissez faire, para instituir um

sistema que a todo instante cria fronteiras. A denominada “globalização”,

mundialização do capital, ao superar “fronteiras econômicas” e criar cada vez mais

“fronteiras sociais” constitui versão atualizada do fenômeno analisado por Polany,

embora com implicações mais amplas e mais graves.

O discurso da universalidade de direitos e da igualdade formal de

oportunidades a todo instante entra em choque a com a realidade entrecortada por

fronteiras social e artificialmente criadas pelo capitalismo. Criar fronteiras é separar o

“joio” do “trigo”, isto é, os que podem e os que não podem ter acesso a algo. A noção

de fronteira pressupõe a desigualdade, porquanto, só há sentido em criá-la se o que

estiver do lado de lá da fronteira for pior que o que há do lado de cá. Se ambos os

espaços, interno e externo a fronteiras, fossem iguais, similares ao menos, o esforço

necessário a sua criação e manutenção seria inútil e injustificável. A fronteira é limite

que pressupõe e legitima a desigualdade, a inclusão e a exclusão, a segurança e a

insegurança. Linha da pobreza, condomínios urbanos, imigração e refugiados são

questões, em âmbitos diversos, mais evidentes de um espaço social a todo instante

55

Afirma este autor: “Esse paradoxo [o de que para garantir um sistema livre da intervenção do Estado necessário fortaleceu-se o caráter interventivo deste] foi sobrepujado por um outro. Enquanto a econômica laissez-faire foi o produto da ação deliberada do Estado, as restrições subsequentes ao laissez-faire se iniciaram de maneira espontânea. O laissez-faire foi planejado; o planejamento não. A primeira metade desta afirmativa é verdadeira, como mostramos acima. Se alguma vez já se fez uso consciente do executivo, a serviço de uma política deliberadamente controlada pelo governo, isto ocorreu com os benthamitas no período heroico do laissez-faire” (2000, p. 172).

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apartado e seletivo.

A superação dessas fronteiras no sentido da construção da igualdade

real passa pelo reconhecimento de que para problemas globais é necessário

soluções globais. Neste sentido, a bela crítica ao conceito de soberania formulada

por Luigi Ferrajoli quando afirma que as duas grandes guerras mundiais constituíram

o ápice e o fim da soberania estatal, porquanto, a Declaração Universal dos Direitos

Humanos e a Carta da ONU de 1948 inauguram uma nova era no cenário

internacional que redimensiona a noção de soberania e instaura em níveis globais o

primado dos direitos humanos56. Noutros termos, o exercício da soberania em níveis

globais significou seu próprio fim, na medida em que a inexistência de limites

racionais (Direito) significaria o fim da vida humana.

Nesta perspectiva, Ferrajoli (2007, p. 30) defende que a Carta da ONU

de 1948 e a Declaração Universal dos Direitos Humanos transformam a relação

jurídica entre Estados e os submetem um conjunto normativo que possui dois

preceitos básicos: a paz e a tutela dos direitos humanos, instaurando o que ela

denomina de “contrato social internacional”, em substituição ao “estado de natureza”

em que viviam no plano internacional.

Ocorre que não há paz e prevalência de direitos humanos com tão

elevados índices de desigualdade. Os muros dos condomínios e as fronteiras do

Estado já não conseguem mais negar essa realidade que bate à porta a todo

instante.

A função interventiva/ordenadora do Estado no sistema econômico-

social em que inserido somente pode produzir respostas eficazes à problemática da

56

Por linhas outras, e discutindo a violência, Hanna Arendt afirma que o desenvolvimento bélico,

resultante do avanço da mesma razão iluminista que libertaria a humanidade de seus entraves, provocou o fim da própria guerra. Afirma a autora (ARENDT, 2010, p. 17): “O desenvolvimento técnico dos implementos da violência alcançou agora o ponto em que nenhum objetivo político poderia presumivelmente corresponder ao seu potencial de destruição ou justificar seu uso efetivo no conflito armado. Assim, a guerra – desde tempos imemoriais, árbitro último e implacável em disputas internacionais – perdeu muito de sua eficácia e quase todo o seu fascínio. O jogo de xadrez 'apocalíptico' entre as superpotências, quer dizer, entre aqueles que manobram no mais alto plano de nossa civilização, está sendo jogado de acordo com a regra de que “se alguém 'vencer' será o fim de ambos”.

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desigualdade se buscar soluções em níveis mundiais, através da superação das

fronteiras e por meio da concretização do postulado da solidariedade entre os povos.

Talvez isso, nos faça aceitar que o que nos torna humanos, como tão bem disse

Hanna Arendt, resgatando e ressignificando o conceito aristotélico de “animal

político”, é o fato de que todas as nossas atividades são condicionadas pelo fato de

que vivemos juntos (ARENDT, 2005, p. 31).

5 CONCLUSÃO

O presente artigo analisou as implicações atuais do anseio humano

pela igualdade e seus reflexos na atuação do Estado num contexto capitalista.

Demonstrou-se que a desigualdade assume contornos que vão além do econômico

e da separação urbana entre áreas nobres e periféricas. Demonstrou-se que a

expansão capitalista superou entraves políticos, mas criou inúmeras novas fronteiras

sociais cuja derrubada reclama uma redefinição da atuação do Estado num contexto

internacional de prevalência dos direitos humanos.

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