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34 Os diferentes processos de encenação e as diferentes acepções do encenador Walter Lima Torres Neto 1 RESUMO: O presente artigo tem por objetivo colaborar com os estudos sobre a encenação teatral no Brasil e Portugal. Para tanto, ele procura demonstrar a relação entre as diversas modalidades de procedimentos acerca do trabalho do coordenador do espetáculo teatral: ensaiador, diretor e encenador. Palavras-chave: ensaiador; diretor; encenador; dramaturgia; cena. RÉSUMÉ: Le but de cet article est de contribuer pour les études de la mise en scène au Brésil et au Portugal. On cherche ici démontrer les rapports entre les diverses modalités de procédures a propos du travail du coordenateur du spectacle theatral: repétiteur, directeur, metteur en scène. Mots-clés : repétiteur; directeur; metteur en scène; dramaturgie; scène. ABSTRACT: This article has the objective of colaborating with the studies about brazilian and portuguese art-directing. The text looks forword to demonstrate the relation between diferent modalities of directing: repétiteur, director, metteur en scène. Keywords: repétiteur; director; metteur en scène; play; dramaturgie. 1 Diretor e professor de Estudos Teatrais no Departamento de Letras Estrangeiras Modernas e no Programa de Pós-Graduação em Letras da UFPR, em Curitiba. 2 O trabalho da trupe do duque de Saxe-Meininger é exemplar como coletivo teatral que opera exatamente nessa fronteira entre o trabalho do ensaiador e a passagem para o trabalho dentro dos princípios do que se impôs mais tarde como moderno diretor teatral. Além de precursores desse novo pensamento sobre os procedimentos de encenação de um texto teatral, essa trupe também é a própria manifestação desse teatro dito pré-moderno. Consulte-se a esse respeito o trabalho de SIMON, Pablo Iglésias. Direção cênica e princípios estéticos na companhia dos Meininger. Folhetim – Teatro do Pequeno Gesto, Rio de Janeiro, n. 25, p. 06-31, jan.-jun. 2007. Ou, ainda, a já clássica coletânea de fragmentos de diversos diretores teatrais, organizada por COLE, Toby; CHINOY, Helen Krich. Directors on directing. Indianápolis: Bobbs-Merrill, 1963. 1. No começo do século XX, mais precisamente por volta de 1903, no bojo do movimento Naturalista, quando André Antoine formalizou algumas idéias a respeito da arte e da técnica da encenação, estabeleceu-se o início de uma ruptura com um modelo anterior de coordenação artística e técnica do espetáculo teatral que era desempenhado pela figura que, genericamente, podemos chamar de ensaiador dramático. 2 De 1903 até os anos 1950 e 1960, se enraizou muito fortemente na prática teatral ocidental uma tendência na direção teatral que foi basicamente textocêntrica, isto é, o diretor se comportava, na maioria das vezes, como o porta-voz do autor do texto dramático. Do texto advinha todo o matiz da cena, sua textura e densidade. O texto seria portador de uma essência cuja cena deveria revelá- la o mais fortemente possível. A palavra do autor era transposta do literário para o teatral. O trabalho teatral do diretor primava então por se associar intimamente à palavra do autor. Trabalhava-se para ser seu melhor intérprete, seu melhor tradutor, formulando artisticamente o melhor complemento estético para maior eficácia do texto teatral à representação diante do espectador. Essa operação se fazia independente do estilo de cada diretor, da tendência natural de cada olhar para a cena. Ao contrário, contemporaneamente, importa menos saber exatamente de quem é a autoria da encenação, pois, como se pode deduzir, apesar do sentido advir de uma orientação do “coordenador do espetáculo” – ensaiador, diretor, encenador, performador –, é inerente à criação teatral sua capacidade de sintetizar uma prática expressiva que é coletiva. Por vezes, contemporaneamente, o sentido de autoria se perde devido às tênues fronteiras entre os próprios agentes criativos que forjam os elementos que constituem a cena no momento do processo de trabalho. Reside aí o lugar da negociação criativa onde se busca uma direção, um sentido geral para a obra. E essa é uma forte tendência do momento presente.

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Os diferentes processos deencenação e as diferentesacepções do encenador

Walter Lima Torres Neto1

RESUMO: O presente artigo tem por objetivo colaborar com

os estudos sobre a encenação teatral no Brasil e Portugal. Para

tanto, ele procura demonstrar a relação entre as diversas

modalidades de procedimentos acerca do trabalho do

coordenador do espetáculo teatral: ensaiador, diretor e encenador.

Palavras-chave: ensaiador; diretor; encenador; dramaturgia; cena.

RÉSUMÉ: Le but de cet article est de contribuer pour les études

de la mise en scène au Brésil et au Portugal. On cherche ici

démontrer les rapports entre les diverses modalités de

procédures a propos du travail du coordenateur du spectacle

theatral: repétiteur, directeur, metteur en scène.

Mots-clés: repétiteur; directeur; metteur en scène; dramaturgie; scène.

ABSTRACT: This article has the objective of colaborating with

the studies about brazilian and portuguese art-directing. The

text looks forword to demonstrate the relation between diferent

modalities of directing: repétiteur, director, metteur en scène.

Keywords: repétiteur; director; metteur en scène; play; dramaturgie.

1 Diretor e professor de Estudos Teatrais no Departamento de LetrasEstrangeiras Modernas e no Programa de Pós-Graduação em Letras daUFPR, em Curitiba.2 O trabalho da trupe do duque de Saxe-Meininger é exemplar comocoletivo teatral que opera exatamente nessa fronteira entre o trabalho doensaiador e a passagem para o trabalho dentro dos princípios do que seimpôs mais tarde como moderno diretor teatral. Além de precursoresdesse novo pensamento sobre os procedimentos de encenação de umtexto teatral, essa trupe também é a própria manifestação desse teatrodito pré-moderno. Consulte-se a esse respeito o trabalho de SIMON,Pablo Iglésias. Direção cênica e princípios estéticos na companhia dosMeininger. Folhetim – Teatro do Pequeno Gesto, Rio de Janeiro, n. 25,p. 06-31, jan.-jun. 2007. Ou, ainda, a já clássica coletânea de fragmentosde diversos diretores teatrais, organizada por COLE, Toby; CHINOY,Helen Krich. Directors on directing. Indianápolis: Bobbs-Merrill, 1963.

1.

No começo do século XX, mais precisamentepor volta de 1903, no bojo do movimentoNaturalista, quando André Antoine formalizoualgumas idéias a respeito da arte e da técnica daencenação, estabeleceu-se o início de uma rupturacom um modelo anterior de coordenação artísticae técnica do espetáculo teatral que eradesempenhado pela figura que, genericamente,podemos chamar de ensaiador dramático.2

De 1903 até os anos 1950 e 1960, se enraizoumuito fortemente na prática teatral ocidental umatendência na direção teatral que foi basicamentetextocêntrica, isto é, o diretor se comportava, namaioria das vezes, como o porta-voz do autor dotexto dramático. Do texto advinha todo o matiz dacena, sua textura e densidade. O texto seriaportador de uma essência cuja cena deveria revelá-

la o mais fortemente possível. A palavra do autorera transposta do literário para o teatral. O trabalhoteatral do diretor primava então por se associarintimamente à palavra do autor. Trabalhava-se paraser seu melhor intérprete, seu melhor tradutor,formulando artisticamente o melhor complementoestético para maior eficácia do texto teatral àrepresentação diante do espectador. Essa operaçãose fazia independente do estilo de cada diretor, datendência natural de cada olhar para a cena.

Ao contrário, contemporaneamente, importamenos saber exatamente de quem é a autoria daencenação, pois, como se pode deduzir, apesar dosentido advir de uma orientação do “coordenadordo espetáculo” – ensaiador, diretor, encenador,performador –, é inerente à criação teatral suacapacidade de sintetizar uma prática expressiva queé coletiva. Por vezes, contemporaneamente, osentido de autoria se perde devido às tênuesfronteiras entre os próprios agentes criativos queforjam os elementos que constituem a cena nomomento do processo de trabalho. Reside aí o lugarda negociação criativa onde se busca uma direção,um sentido geral para a obra. E essa é uma fortetendência do momento presente.

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2.

É importante considerar e não perder de vista

que o trabalho de montagem de um espetáculo

cênico é a possibilidade de se dizer alguma coisa

que não se poderia dizer de outra maneira, em outro

formato. A pertinência da idéia ou da questão

reivindica a cena teatral, e não outro meio, como

lugar artístico precípuo para a expressão dessa idéia,

desse problema que aí se traduz de forma poética.

Não esqueçamos de que cabe à direção emitir

um juízo. Um juízo estético. Ter respostas poéticas

para a questão que lhe interessa. Dirigir é opinar.

É dar opinião sobre um determinado tema, uma

certa situação, uma determinada personagem, um

problema social específico, um fato político

circunscrito no particular ou no geral de certa

comunidade, etc. Dirigir é a formulação de um

juízo, mediação de idéias. Dirigir é igualmente

coordenar a parte artística e técnica, conciliar o

espiritual e o material de um espetáculo. Se, porum lado, dirigir um espetáculo é dar sentido a uma

questão, problematizando-a de forma poética, por

outro, conceber um espetáculo é trabalhar com

problemas estéticos e éticos submetido ao fracasso

ou ao sucesso diante de um auditório.

3.

Historicamente, quando o coordenador doespetáculo teatral lia um texto teatral, eraimportante que aos poucos ele fizesse uma idéiaparticular do que poderia vir a ser este mesmo texto,num espaço determinado, dito por atoresdevidamente caracterizados, sob o efeito de certailuminação, acompanhado ou não de som,submetidos a uma dinâmica e a um ritmo específicoe característico, etc. Somente de posse desta sua“visão” é que ele então passava a dialogar com umaequipe de agentes criativos (atores, cenógrafo,iluminador, sonoplasta, figurinista, etc.), no intuitode estabelecer o encaminhamento que sepretenderia dar àquela obra na busca por umaconcretude segundo as suas idéias particulares, que

agora seriam compartilhadas, discutidas, refutadas,

aceitas e transformadas graças à dinâmica dos

processos de ensaio junto a um coletivo de agentes

criativos que fora previamente, na maioria das

vezes, selecionado por ele próprio.

Esse foi e continua sendo o perfil daquele que

designamos como sendo o moderno diretor teatral.

Esse diretor é, assim, o articulador do texto

dramático que ganha a cena. Ele negocia, artística

e tecnicamente, a passagem de uma determinada

escrita dramática à sua condição de escrita cênica

por meio do conjunto do resultado artístico

oferecido pelo trabalho criativo dos agentes

envolvidos na criação que a ele cabe estimular. Ele

os leva a forjar os elementos que engendram uma

teatralidade, a identidade do espetáculo. Essa

concepção primeva, essa idéia inicial com que o

moderno diretor se faz é necessariamente

influenciada pelo trabalho criativo dos demais

agentes criativos envolvidos na montagem. As

influências no processo de montagem são assim

recíprocas, formando uma espécie de vai-e-vem

entre proposta, apresentação e estímulo, que acaba

gerando um ciclo ativador da criação cênica.A dinâmica da criação cênica está em parte

resumida no tripé – proposta; apresentação;estímulo –, isto é válido para todas as esferascriativas que vão fazendo avançar a criação cênica.Seja entre ator e diretor; cenógrafo e figurinista;figurinista e ator; e todos os demais agentescriativos. Resumidamente, trata-se de estabelecerum espaço para enunciação de propostas artísticas,as mais diversas, que traduzem visõesinterpretativas capazes de coexistirem eestabelecerem um todo orgânico, que em seguidasão apresentadas. E, nesse sentido, cada agentecriativo se apresenta, e o resultado parcial do seutrabalho, segundo suas habilidades e competênciascênicas, uma vez que a apresentação se dá noconjunto de agentes criativos, isto é, os nossospróprios pares, através de comentários, estimulama permanência e sugerem as modificações queadequam aquela proposta ao todo da obra. É aí

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3 Esta questão do poder e do jogo criativo na realização cênica não serátratada aqui. Entretanto, nos parece importante não deixar de sinalizar aquestão que é complexa e que até o presente momento não possuiestudos que a esclareçam. Tratar dessa questão é investigar, igualmente,os processos criativos dos próprios agenciadores ou realizadores dacena – ensaiador, diretor, encenador, performador.4 Sobre a crítica, são bastante elucidativos os textos de Bernard Dort queabordam os conflitos entre Émile Zola e Francisque Sarcey a propósitode uma nova concepção por uma crítica teatral. Consulte-se, portanto,DORT, Bernard. Um crítico novo: Émile Zola. Trad. Fernando Peixoto,e ___.As duas críticas. In: O teatro e sua realidade. São Paulo: Perspectiva,1977. Atualmente o papel da crítica teatral está sob forte discussão devidoà busca por um outro lugar para o jornal como meio de comunicaçãodiante das novas possibilidades no campo comunicacional, sobretudo naárea do jornalístico cultural, seja ele genérico ou especializado.

que entram em jogo a noção de poder e suasrepresentações no interior do processo criativo.3

Quando se fala sobre a leitura de umdeterminado diretor acerca do texto de um autor,procura-se compreender a visão que teve o diretorda obra do autor visitado, visto que é o diretor oresponsável pela encenação e, por conseguinte, pelaindução do prazer ou desprazer do espectador dianteda linguagem engendrada por ele. A recentemontagem de Hamlet por Peter Brook, que visitou oBrasil, chocou certos puristas, pois não poderia umator negro interpretar o personagem do príncipevingador! Independente deste juízo, a visão de PeterBrook sobre o texto de Shakespeare é absolutamentediversa daquela versão encenada, por exemplo, porPatrice Chereau em 1989, com Gerard Dessarthe,cuja atuação no papel do herdeiro do trono daDinamarca enfatizava o aspecto cômico da suafigura. E ambas leituras destoam das idéias quenortearam o projeto de Edward Gordon Craig eConstantin Stanislavski para o Teatro de Arte deMoscou no início de nosso século. Recentemente, oator Diogo Vilella, dirigido por Marcus Alvisi,também deu sua contribuição ao mais importanteórfão da história do teatro inglês ao oferecer estemesmo texto numa montagem muito interessante.Entretanto, verificava-se a ausência desse ponto devista ou dessa subjetividade inerente ao olhar dodiretor acerca da concepção da cena. Não assisti àmontagem de Aderbal Freire Filho que trouxe nopapel-título do herói shakespeareano Wagner Moura,o Capitão Nascimento do filme Tropa de elite. Porém,já aí na escolha do ator, nota-se um critérioinquietante, independente do apelo midiático ligadoà associação Capitão Nascimento-Hamlet.

4.

Durante muito tempo a coerência da cena, istoé, a sua concepção à moda do ensaiador dramático,esteve subordinada ao gênero dramático ao qual otexto estava filiado. Isto quer dizer que o formatodo texto, seu gênero (quadro da vida militar, opereta,farsa, revista, burleta, drama de casaca, peça de capa e

espada, vaudeville, grand-guignol, comédia, drama,etc.), deveria ter uma tradução específica que

refletisse exatamente esse formato “literário” sobrea cena em termos de caracterização dos espaços;visual dos personagens; gêneros musicaisadequados, etc. Esse princípio era inclusive muitoimportante para que o espectador, ao pagar pelobilhete que lhe dava acesso ao teatro, tivesse acerteza do que iria ver e ouvir e, portanto, a suaexpectativa correspondida.

Nesse sentido, a crítica jornalísticaespecializada foi um agente definitivo na defesade uma encenação que não desvirtuasse o teor dopensamento e da palavra do autor. Grandespolêmicas se estabeleceram em tempos pretéritose ainda hoje, vez por outra, é reacendida, entreagentes criativos e a crítica especializada. Apolêmica entre agentes criativos e críticos se dáquando os argumentos empregados pela críticareprovam substancialmente o que a encenação faza partir de um texto. Isto é, quando a encenaçãonão atende ao que seriam as prescrições do autordramático, traindo, por assim dizer, o seu “espírito”,a sua essência.4

Entretanto, é como diz José Ortega y Gasset– “Todo dizer é deficiente, diz menos do que quer.Todo dizer é exuberante, dá a entender mais doque se propõem”. Essa ambivalência está na raizdo trabalho de exegese sobre um texto dramático edá a dimensão hermenêutica que estimula otrabalho teatral de maneira geral e a concepção eorganização de uma linguagem teatral em particular.

Apesar das modificações da sociedadeocidental, das influências de outras artes, doaudiovisual e da mídia sobre o teatro, essa visãodescrita acima sobre a concepção dos espetáculos

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vinculados a uma tipologia sobrevive ainda hoje,sobretudo naqueles espetáculos explicitamenteanunciados como entretenimento, o que não é umdemérito. À guisa de exemplo, se poderia lembrarde títulos de sucesso como O fantasma da ópera, Ohomem de la Mancha, Choros Line, Evita, Os miseráveis,

Cat’s, entre outros espetáculos que são montados,ou reproduzidos, mais ou menos em todo o mundo,da mesma maneira, segundo o mesmo padrão, nomesmo formato que os originou, e isso é muitomais forte, contemporaneamente, nos espetáculosinseridos no mercado de produção cultural.Fazendo um paralelo com as novelas brasileiras,verifica-se que essa pertinência ou fidelidade aogênero mantém tensionado o fio da convenção quese perpetua no folhetim televisivo cujo princípioestá nesse teatro de dramaturgia tipificada,auxiliada pelo emprego de atores-tipos pararepresentar papéis-tipos.

O problema do descompasso sociocultural seestabelece quando muitas das vezes não se temcontato com a arte do teatro, e considerando-se oenraizamento da televisão na comunidadebrasileira, esta, por conseqüência, passa acondicionar a criação cênica, limitando-a aorealismo audiovisual, excluindo, sobretudo, a poesiae o poder da convenção teatral. Esse é um fatoperceptível quando se assiste a espetáculos semi-amadores ou universitários oriundos de regiõesonde a cultura e a prática teatral ainda não foramconsolidadas e de fato o paradigma da tele-dramaturgia, o jogo dos atores e a concepção dacena se deixam contaminar pela estética da telinha.

5.

Nossa aula foi intitulada “Os diferentesprocessos de encenação e as diferentes acepçõesdo encenador”. Orientar uma aula prática, críticae reflexiva na nossa área não é tarefa fácil. Aliadoao fato de que, pessoalmente, tenho certeza de que,como ministrante, não trago comigo um conteúdoespecífico ou uma substância ideal que seja capazde transformar ou “preencher” quem quer que seja.Nem imagino, tão-pouco, que os senhores tenhamessa visão do conhecimento. Haveria assim uma

espécie de manancial inicial cujo conteúdo, umasorte de essência, nosotros, mestres, doutores,graças às nossas teses parciais e totais, teríamosacesso. E em seguida derramaríamos em beloscântaros o néctar de um conhecimento. Quantomais perto da fonte, da nascente, quanto maispróximo dessa essência, maior seria nossadensidade. E assim, por meio de um fluxo contínuo,o conhecimento iria seguindo a sua trajetória. Não!Essa é uma noção por demais clássica para nãodizer vetusta.

A aula, portanto, eu dizia, ela se faz. Ela é feitado encontro. Ela se dá no espaço do entre. A aulanão é dada. Ela é feita. Feita pelo ministrante e pelosparticipantes. A aula deve ser basicamente encontro.

No campo das artes, temos o papel precípuode promover o interesse, estimular o movimentodo raciocínio, oferecer alguma experiência jáadquirida, mas nunca partir movido por uma açãoimpositiva. O difícil equilíbrio entre o relativo e oobjetivo ou absoluto em nossa área, onde a criaçãode subjetividades é notória, é o fiel da balança.

Assim, penso que o conhecimento se constróie se conquista por um movimento do sujeito sobresi e sobre o mundo, como já nos mostrou PauloFreire. Ou como diria o próprio Stanislavski. “Oator precisa trabalhar sobre si mesmo, isto éconhecer-se”. Então o objeto da busca peloconhecimento estaria tanto dentro quanto fora desi. E isso na nossa área é uma recorrênciapermanente. Enquanto agente criativo eu necessitodeter conhecimento sobre a minha pessoa, minhashabilidades; e assimilar, igualmente, osconhecimentos que estão fora da minha pessoa,normalmente aquilo que chamamos de técnica.Não me refiro ao jogo. O jogo se dá sempre noentre, no espaço do inter.

É muito normal escutarmos numa conversaos atores dizendo:

– Descobri um professor ótimo de técnica deAlexander!

– Nem te conto, estou fazendo capoeira deAngola e está sendo o máximo!

– E a professora de canto que me indicaram.Feríssima... Coloca a gente cantando em

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quinze dias. Tenho uma amiga que já foi, ejá está num musical que deu supercerto...

– Coisa incrível, né? No currículo de umaantiga escola de teatro, num é que obrigavamaos atores a fazer aula de esgrima?

– Que coisa mais velha!– Obsoleta e ultrapassada!Atualmente, vivemos uma permanente

avalanche de técnicas e vivências que prometemperformances maravilhosas e de alto grau artístico.Isto é uma característica da própria prática teatralcujas raízes encontram-se na vida real, no cotidiano.E nesse sentido é natural que advenha essadiversidade de técnicas e práticas para oenriquecimento do trabalho dos agentes criativosda cena contemporânea.

Apesar de bastante pueril o meu exemplo, ocaso é que enquanto existir teatro e atores, oumelhor, enquanto houver atores e naturalmenteespectadores, haverá teatro. Todo o resto éparcialmente dispensável e acessório.

Eu disse parcialmente. Pois todos sabemosque o teatro é uma prática social coletiva, comogostava sempre de repetir Jean Duvignaud. E quea presença dos demais ofícios ligados à criação dacena só vêm a contribuir para aperfeiçoar esta arteque de fato não tem como ser individual. Por maisque você seja um one man show, haverá semprealguém que antes do pano abrir terá olhado porvocê, zelado para que sua atuação fosse bem-sucedida. Você pode até ser uma pessoa pernóstica,um artista exclusivista, um one man show

reservadíssimo, mas mesmo assim, ainda antes dopano subir e da luz acender, há alguém que porzelar pelo próprio teatro se preocupou com você.Apesar de você ser maravilhoso, o teatro é bemmaior do que você e seu personagem.

Mas, voltando ao meu diálogo pueril, queroreafirmar que há uma busca incessante por partedo ator em estar se aperfeiçoando por meio detécnicas corporais e vocais, permanentemente. Issodeve acontecer independente da rapidez com queessas diversas técnicas corporais e vocais sãoanunciadas e que logo deixam de ser novidades.Ou, por vezes, a técnica já é até consagrada,

entretanto aquele multiplicador, que vem no-laapresentar, não passa de um velhaco e oportunistaao se apropriar, inescrupulosamente, de legado tãosagrado para outrem que a idealizou.

E é natural que seja essa a condição do ator, ada busca por um movimento perpétuo, desuperação e aperfeiçoamento de seu corpo eespírito, pois ele é o ator. Nosso último xamã, comodizia o falecido ator Rubens Correia; ou como bemdefiniu Guy Debord, no seu já clássico A sociedade

do espetáculo, “o profissional da exibição”.Há, portanto, esse conhecimento sobre si, que

dizíamos acima, e este outro que está fora e precisaser assimilado. À maneira dos enciclopedistas, nóspoderíamos pensar em valores primários e emvalores secundários. Isto é, aquela categoria deconhecimento, e saber que é gerado desde o interiordo sujeito (o que às vezes chama-se talento), eaquele propiciado pela cultura e prática teatral quefloresce ao seu redor.

E lamento dizer que, no caso do ator, issosempre foi assim desde os tempos primevos, desdeque aqueles que vieram antes de nós foramconfrontados com a imperiosa necessidade de“repetir” a atuação, dia após dia, de tablado emtablado, de feira em feira, de praça em praça. Como,portanto, instrumentalizar essa repetição?

Sem remontar aos Mestres Farsantes dos sécs.XVI e XVII; aos Cômicos dell’Arte quemambembaram por toda a Europa; a O paradoxo

do comediante de Diderot, que encantou tantosatores; ao próprio Stanislavski, esse sol que não secansa de iluminar as nossas investigações, as maisemergentes, e de arrojadas teorias, temos queobservar que a cada época se reinventam astécnicas e procedimentos em acordo ou rupturacom uma tradição. Um substrato que subjaz e porvezes nem nos damos conta de que fazemos algoque já foi feito há alguns séculos. Esta espécie demovência dos conceitos que dá lugar ao novodificilmente nos traz, para dentro do campo daprática artística, uma novidade definitiva. Oefêmero e o provisório não estão somente noespetáculo que após uma temporada acaba sedispersando, mas também estão presentes – o

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5 HODGE, Francis. Play directing: analysis, communication, and style. FourthEdition. New Jersey: Prentice Hall, 1994. A primeira edição desta obra é de1971. Desde então ela é editada recorrentemente, tendo em vista que é umexemplar precioso sobre assunto onde há poucas obras do gênero.

efêmero e o provisório – na própria dinâmica damatéria viva, matéria que alimenta e engendra essemesmo espetáculo.

Trata-se sempre de uma complexareelaboração de formas e procedimentos a dar aperceber o papel do Eu criativo e os fundamentosque orientam esse movimento, ou esse “sopro vindoda alma”, a expressão artística. Em outras palavras,aquilo que defino como sendo não uma teoria,certamente, mas a delimitação de um campo doconhecimento que envolve a cultura e a práticateatral. Isto é, o conjunto de princípios,condicionamentos e regras; técnicas eprocedimentos artísticos em permanente atrito comconcepções estéticas e éticas objetivando arepresentação cênica de uma obra ficcional.

6.

Mas até agora só lhes falei de forma muitoimprecisa e precária sobre a condição do ator dianteda necessidade de consciência sobre si e sobre astécnicas formativas que lhe são fundamentais. Esseaspecto formativo parece-me muito visível do pontode vista da formação do ator, encontrando, inclusive,grande bibliografia consolidada sobre o assunto.

Entretanto, fato é que meu foco aqui deve ser“Os diferentes processos de encenação e asdiferentes acepções do encenador”, conformeanunciaram na engenhosa formulação do título denosso encontro, hoje.

Devo lhes precisar, entretempo, o local deonde elaborei o que se seguirá, daqui a diante.

Instado a lecionar num curso de formação dediretores teatrais, eu, que fora habilitado eminterpretação e direção pela Unirio, escola queherdou uma forte mentalidade gerada no antigoConservatório Nacional de Teatro da PraiaVermelha, no Rio de Janeiro, não me sentia lá muitoseguro e até mesmo convencido de que seriapossível “ensinar” direção, ou, corrigindo-me,“mobilizar e estimular” os aspirantes à carreira dediretores teatrais.

De onde partir? Por onde começar? Qual oconteúdo? Meus colegas nesse curso apresentaram-me um cardápio pronto, preciso e objetivo, que

muito me surpreendera, pois até então ignorava quetais obras pudessem existir.

Era uma espécie de manual do tipo faça vocêmesmo bem ao gosto dos anglo-saxões.5 Ou, olheveja como já pavimentamos para sua trajetória?Observe os modelos e agora faça você a sua parte.Motivação, causa, efeito e conseqüência, tudo jáformulado de tal maneira a nos dar conforto esegurança para nossas próprias experiências.

Esses livros, de fato, ainda são muito úteis,interessantes, ilustrativos e possuem a qualidadede serem muito decentes e corretos. Até porque háneles uma sinceridade de propósitos com o fitosempre audacioso de ensinar que os aproxima demaneira indelével dessas publicações dirigidas àscrianças onde há jogos, passatempos, exercíciospara colorir, copiar, recortar e colar... Não há aquinenhuma crítica pejorativa, o teatro também é aarte do jogo de armar. Teatro é jogo. Há de se versim que essas publicações refletem uma culturaparticular, um pensamento próprio que se queraplicativo com resultados calculados e imediatos.Essas publicações, não deixam dúvidas, são umexcelente ponto de partida para o jovem aspiranteà carreira de diretor teatral. Na verdade, essabibliografia apresenta, por meio de exercíciosinclusive muito elucidativos, técnicas de análise eabordagem do texto teatral; sugestões decomposições para cena; emprego da luz; escolhade figurino; aplicações da sonoplastia; materiais,etc. Trata-se, portanto, de um conhecimentosistematizado que visa antes de mais nada umaeducação estética para o teatro. Porém, como todasistematização, é bom ficar vigilante e olhá-la deforma crítica.

Evidentemente que aceitei a proposta de meuscolegas não sem uma certa reserva, até porque, paraquem não tinha a mínima idéia de por ondecomeçar, essa era uma excelente dica... Li diversaspartes e inclusive constatei que aquilo que meusmestres na antiga Escola de Teatro na Unirio

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6 Refiro-me aqui ao trabalho do saudoso Yan Michalski, professor e críticoteatral, que traduziu partes significativas desta mesma obra de Francis Hodgepara seus alunos do Curso de Direção Teatral e Teoria do Teatro na Escolade Teatro da Unirio. A tradução se transformou na “Apostilha de DireçãoTeatral” e encontrava-se disponível no Banco de Peças Teatrais da Escola deTeatro. Provavelmente muitos alunos formaram-se tendo, unicamente, comofundamento sobre direção cênica essa apostilha organizada por Yan Michalski.Somente no início da década de 1980 é que o livro de ROUBINE, J-J.Linguagem da encenação teatral. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1982,fora traduzido pelo próprio Yan Michalski.7 A proliferação do dito teatro em arena nas universidades americanasdeveu-se, além das questões de custo e benefício para sua implantação,também ao trabalho de JONES, Margo. Theatre-in-the-round. NewYork, Toronto: Reinchart & Company Inc., 1951.

haviam me oferecido como subsídio em algumasaulas de direção teatral já era, em parte, a traduçãode diversas passagens dessas obras.6

Por um lado, essas publicações possuemgrandes méritos, tendo em vista a naturalsistematização, aliado ao fato de que elasdesmistificam os meandros da criação artística edemocratizam, ao divulgar, a possibilidade de seconhecer um campo do saber que possui autonomiaem relação aos demais campos do saber, detentorde suas próprias regras e procedimentos. Esse éum aspecto muito positivo que não pode seresquecido. Por outro lado, haveria, segundo essasobras, uma orientação exata e precisa acerca daconcepção da cena teatral. Essas obras são muitoeficazes, certamente, para o trabalho com peçasrealistas, de fundo psicológico bem definido, talcomo os exemplos retirados da literatura dramáticados realistas europeus e a escola realista norte-americana. O pensamento aí enunciado se adequamuito bem também aos gêneros musicais, sobretudoos modernos.

Sobressai da leitura desses textos umapercepção de que em algum momento no âmbitodo ensino superior estadunidense foi estimuladoesse tipo de obra, bem como foi vulgarizado euniformizado pelas universidades o teatro de arena.Graças ao seu baixo custo e alto retorno em termosde benefício tanto no tocante à construção quantoà manutenção. Junte-se a isso uma influênciadecisiva do próprio mercado cultural doentretenimento da América do Norte, que levou aacademia americana, ao padronizar o espaço derepresentação, a assegurar, minimamente, atransmissão de uma técnica para direção teatral.Ao mesmo tempo, a Academia procurava facilitara circulação de conjuntos teatrais universitáriossem a preocupação de gerar grandes ônus commodificações, em termos de produção, visando aadequação das montagens ao espaço teatral doteatro de arena.7

Diante da leitura dessas obras, pude distinguirtrês aspectos fascinantes: O primeiro é que seusconteúdos se adequavam perfeitamente ao teatrode fundo realista e naturalista psicológico, aquele

que considera o personagem uma pessoa; o segundoé que fica destacada a condição da função queconhecemos como moderno diretor teatral naposição de porta-voz do autor, ao mesmo tempoem que procura acrescentar algo de uma leiturapessoal à encenação. Isto é, haveria uma ênfase nafigura do diretor como um agente criativo que sabeadequar os elementos da cena ao que poderíamoschamar de espírito da obra do autor, como disseantes, ou o que o velho Stanislavski chamou desuperobjetivo. E por terceiro, elas são capazes deoferecer uma muito satisfatória introdução ao queeu chamaria de educação estética dos sentidos paraa cena. E isso não é pouco para quem quer encenarum texto teatral.

O caso é que, nesse começo dos anos 1990,na escola onde estava lecionando, uma obra dessanatureza parecia não dar conta da inquietação edo inconformismo dos alunos-diretores em relaçãoao teatro que idealizavam fazer. Os alunosdiretores traziam, para sala de aula, a novidadesurpreendente de que não queriam mais montartextos teatrais convencionais. Isto é, o ponto departida para montagem teatral na cabeça daquelesjovens, aspirantes à carreira de diretor teatral, nãoadvinha mais do texto dramático como fora aindapara minha geração. O foco tinha se deslocado.

Isso era uma batalha para nós professores, poisnão havia mais uma regra e o que prevalecia era aexceção sempre. Dois aspectos se aliavam e sesobrepunham para essa situação. O primeiro é quede fato tratava-se de uma geração, talvez a primeira,que podia ser considerada como formada, na suaquase totalidade, à base de imagens. A imagem era

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8 Digamos que a redescoberta de uma língua afeita ao espetáculo,portadora de certa teatralidade, fora do registro da língua do colonizadorportuguês, pode ser hoje verificada em importantes estudos de cunhoetnocenológico. Consulte-se a esse respeito os anais do V ColóquioInternacional de Etnocenologia (org. de Armindo Jorge de CarvalhoBião), UFBA, PPGAC-GIPE-CIT, Salvador, 2007.9 UBERSFELD, Anne. O homem do julgamento. Trad. Walter Lima TorresNeto. (L’art du théâtre. Actes Sud/ Théatre National de Chaillot, hiver 1985. /Printemps, 1986, nº 6, p. 73-74). http://www.estudosteatrais.blogspot.com/.

a referência mais forte para eles. E em segundo, ofato da reviravolta do próprio teatro que apresentavauma cena, cuja tendência, cada vez mais, sinalizavasua emancipação do texto teatral por criadores donível de um Bob Wilson, François Tanguy, RobertLepage, Pina Bausch, Tadeuz Kantor, RichardForeman e tantos outros. Vamos e venhamos quehá uma enorme distância, para não dizer um abismo,entre a excelência artística e a maturidade de vidadesses criadores da cena contemporânea e um jovemaspirante à carreira de diretor teatral. Porém, quandosomos jovens, o que não nos falta é pretensão. Eisso é muito saudável, sempre.

Eu dizia que a culpada disso tudo, “pois eranecessário encontrar um responsável”, era a nossaprópria madrasta, dentro de casa mesmo, a línguabrasileira. Ela não teria nos legado uma dramaturgiabastante forte e interessante como elementofundante de uma cultura teatral que gerasse umalíngua portuguesa teatralizada. Vamos e venhamos,mas ninguém se acha lá muito influenciado por GilVicente ou por Camões. O teatro do primeiro nãofaz parte do nosso imaginário, a obra do segundo élinda, porém não é teatro. Esse descompasso entrenossa matriz dramatúrgica, a de vertenteportuguesa, em relação ao grau derepresentatividade equivalente -– inglesa, francesa,espanhola, alemã – nos colocou numa situaçãosubalterna que desde o século XIX estamostentando reverter. O que seria até natural para umaex-colônia. Evidentemente, essa situação foiadensada pelas características regionais do paíscontinental onde vivemos; seu hibridismo e tantosoutros fatores que não me cabe aqui enumerá-los.8

Conjuntamente, dois outros fatoresadensavam nosso dia-a-dia na condição deprofessor de direção teatral em termos deencaminhamentos para uma orientação. A presençaquase que massiva da influência do dito teatroantropológico de Eugênio Barba e todos os seusêmulos surgidos aqui no Brasil, nas últimas décadas.Em nome do Terceiro Teatro ecoava a palavramágica “treinamento”. Presumo que nunca setreinou tanto para se fazer um espetáculo, nestasúltimas três décadas do final do século XX. A noção

do treino, para aqueles alunos-atores, era muitofugidia e acreditava-se que de tanto treinar e dominarcerta técnica corporal ou vocal o espetáculoaconteceria. O que é um equívoco. O treinamentoé um procedimento técnico, não é um procedimentoestético ou poético, apesar de poder haver poesiaem certos exercícios vocais e corporais.

Associava-se agora, ao treinamento do ator, aexpressão-chave que parecia ser capaz de abrir todosos caminhos da criação e justificaria qualquercronograma de montagem. E era muito bom, poisnaquela altura ninguém definia muito bem, pois definirmuito poderia inclusive revelar a fragilidade dasiniciativas dos jovens aspirantes à carreira de diretor.A expressão-chave era “processo colaborativo”.

Os procedimentos criativos, apesar de“inovadores”, requerem, para sua efetiva eficácia,maturidade, permanência e experiência de vidaartística. Stanislavski dizia que com o passar dosanos o ator melhorava naturalmente sua capacidadeatuacional pelo simples fato de ter assimilado ummaior conjunto de experiências humanas capazesde serem agora reinventadas por ele, melhoresdestiladas em seu espírito. O mesmo não pareceser tão relativo quanto ao trabalho do diretor, cujofim de sua ação criativa é outra, o plano de suaação é no intelecto. O campo de ação docoordenador do espetáculo é o campo dacapacidade de selecionar e julgar, como bemobservou Anne Ubersfeld.9 Enquanto que, dentrode certas concepções de direção, a atuação do atoré derivativa desta conceitualização estabelecidapelo próprio diretor.

Antes de continuar, preciso enfatizar que nãosou contra o teatro antropológico, a criaçãocoletiva, o treinamento do ator, ou o processocolaborativo, ao contrário, sou muito favorável a

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10 Pouco se tem trabalhado sobre a figura do ensaiador dramático. Apesar dehaver ainda muito a ser feito sobre este perfil do coordenador do espetáculoteatral em período pré-moderno, indicamos alguns resultados expressospor nós em: Entre técnica e arte: o trabalho teatral do ensaiador na virada doséculo XIX/XX. In: CONGRESSO BRASILEIRO DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTES CÊNICAS, 2, 2001, Salvador. Anais... Salvador:UFBA/ Abrace, 2001. p. 272-278. (Memória Abrace, V); Introdução histórica:o ensaiador, o diretor e o encenador. Folhetim, Rio de Janeiro: Teatro doPequeno Gesto, n. 9, p. 60-71, 2001; Entre técnica e arte: introdução à práticateatral do ensaiador 1890-1954. Sala Preta, São Paulo: Departamento deArtes Cênicas/ECA/USP, n. 3, p. 164-173, 2003; O que é direção teatral.Urdimento, Florianópolis – Programa de Pós-Graduação em Teatro daUdesc, n. 09, dez. 2007. Ressaltem-se ainda as importantes contribuiçõessobre a condição do ensaiador dramático com os atores e as injunções dacategoria autor-ensaiador consultando-se: REIS, Ângela. Cinira Polônio a

divette carioca. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2001; e CHIARADIA,Filomena. Em revista o teatro ligeiro: os ‘autores ensaiadores’ e o ‘teatro porsessões’, na Companhia do Teatro São José. Sala Preta, São Paulo:Departamento de Artes Cênicas/ECA/USP, n. 03, p. 153-163, 2003.

isso tudo. Não sou favorável ao dogmatismosuscitado por essas correntes e procedimentos,sobretudo no âmbito da formação de jovensaspirantes à carreira de Artes Cênicas.

O caso era que eu me encontrava na condiçãode jovem professor diante de um currículo econteúdos por vezes questionáveis e vianitidamente que essas novidades em termos deprocedimento inquietavam, ao mesmo tempo emque atropelavam os alunos. O resultado dostrabalhos dos estudantes era sempre muito bonitoem termos visuais, muito conceitual em termosprogramáticos e bem apresentado em matéria deproduto cultural, pois, a essa altura, já havia muitotempo que a expressão produto cultural já faziaparte do jargão teatral. E apesar de todo essecapricho por parte dos alunos e nossos esforços deorientadores, os espetáculos, em sua maioria, nãose sustentavam. Havia expressão demais ecomunicação de menos.

Diante deste quadro de problemas é que fuiencontrando, graças à inquietação e mobilizaçãodos próprios alunos-diretores, como que até entãoo ofício do diretor teatral vinha sendo entendidoe, sobretudo, como seu perfil vinha sendoreinventado ou transmitido no Brasil.

A situação se adensava, pois a relação do teatrocom a televisão, ao menos no ambiente criativo doRio de Janeiro, ainda é muito forte. Visto que, desdesua criação, a televisão, ao deixar de ser um meroaparelho da família do telefone, isto é, da condiçãode transmissor da informação, passou a ser meio dedivertimento e simulacro da realidade. Em rápidaspalavras, o meio promotor da cultura de massa. Enesse movimento, cada vez mais, para se perpetuarna atualidade, ao menos no âmbito de sua produçãoficcional, o sistema televisivo foi cooptando osagentes criativos. Primeiro aqueles do rádio,naturalmente, depois do teatro, e por fim do cinemae da informática. Apesar de subordinada a umacorrente realista convencional e segura, as narrativastelevisivas apareciam sempre como um objeto dereferência e de debate entre muitos alunos.

Ao encaminhar essa investigação, acabeidenominando de matrizes do agenciamento da cena

teatral os três comportamentos ou perfis destesagentes criativos que denominamos genericamentede diretor teatral. Esses três comportamentos estãoidentificados pelos seguintes nomes: o ensaiador;o diretor e o encenador.10

7.

Já faz um tempo que me dediquei nas horasmortas ou quem sabe perdidas a pensar um caminhorelativamente lógico para demonstrar aos alunos-diretores que esse coordenador do espetáculo teatralreflete em primeiro lugar aquilo que de maneira geraldenominamos de “o espírito de seu tempo”. Trata-se na verdade de uma mentalidade possível de sermanifesta graças às injunções cognitivas e àsconvenções socioculturais celebradas pela própriacomunidade na qual esse agente criativo se encontra.

Não obstante, em primeiro lugar, a aparenteclassificação entre essas três figuras não devedespertar nenhum sentimento de hierarquização ousubalternidade. Em segundo lugar, essas são matrizesde agentes criativos ideais, isto é, que não existem,tal e qual, na natureza do teatro. São categorias ideaisestabelecidas no intuito de colaborar no exercíciodo entendimento dos processos de configuração dacena como obra de arte.

Como veremos, os três comportamentosdiante da concepção da cena (atuação, espaço, luz,som, cor, textura, forma, tempo, etc.), apesar depoderem ser localizados cronologicamente dentrode nossa cultura e prática teatral, com maior ou

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11 ROUBINE, J.-J. A linguagem da encenação teatral. Trad. Yan Michalski.Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1982. p. 14.

menor intensidade de atuação, não desaparecerampor efeito deste mesmo tempo. Ao contrário, elesse justapõem e estão presentes, ainda hoje, nasrealizações teatrais. Basta que nos esforcemos umpouco para detectá-los. É mais gratificante aindaconstatar as intercessões possíveis de seremfiguradas na diversidade do repertório atualmenteoferecido ao espectador.

Tenho que observar a facilidade legada pelaprópria língua portuguesa, que na suagenerosidade nos oferece essas três denominações– ensaiador, diretor, encenador. Normalmente,diretor e encenador são sinônimos e empregadoscom o mesmo objetivo, resultando em idênticosignificado. Entretanto, quando da tradução deA linguagem da encenação teatral, de J-J. Roubine porYan Michalski, em 1982, o historiador e críticoteatral afirmava, na sua Apresentação inicialdesta obra, que seria melhor, naquela altura,empregar encenação no lugar de direção, pois,dizia ele, “a nossa direção, além de possuir umaconotação potencialmente autoritária contrária aoespírito que prevalece na obra, refere-se mais deperto ao processo executivo de uma realizaçãoteatral, enquanto na palavra encenação vejoimplícito, com maior força sugestiva, o resultadoda elaboração criativa de uma linguagemexpressiva e autônoma”.11

De fato, o problema não está na riqueza dalíngua portuguesa, mas talvez na exclusividade doemprego do termo mise en scène em francês, que é aúnica palavra para designar a encenação doespetáculo teatral, e, por derivação, a palavrametteur en scène para diretor ou encenador, apesar daressalva de Yan Michalski.

Ainda seguindo a pista deixada por YanMichalski sobre esse caráter “autoritário” docoordenador do espetáculo teatral, é bom lembrarque o falecido crítico parecia ter em mente,naquela altura dos acontecimentos, a noção dediretor associada àqueles espetáculos que eramdesignados como “espetáculo de diretor” lá peladécada de 1980 e 1990. É importanteespecificarmos, então, essas três figuras aindapouco enunciadas.

8.

Em termos cronológicos, podemos localizar,em primeiro lugar, o trabalho teatral do ensaiadordramático. Ele seria o agenciador do espetáculoteatral num período dito pré-moderno; já a figurado diretor teatral estaria associada à criação da cenana sua fase moderna de nossa cultura e práticateatral ocidental; restando ao que chamamos deencenador o papel de criador da cena em temposditos pós-modernos.

Antes de descrever as características das trêsfiguras em termos de procedimento de trabalho econcepção cênica, seria desejável sinalizar, aindaque precariamente, essas faixas temporais.

Apesar de não ser nossa ênfase aqui, énecessário lembrar que uma periodicidade não podedeixar de estar associada às questões sociais emormente de ordem econômica dentro de umasociologia do teatro. Há uma dinâmica na vidasocial e econômica que condiciona movimentos deinteração entre os perfis apontados. Ainda não nosdetivemos com a atenção que a questão necessita,acerca da definição dessas faixas cronológicas, poisnos parece que estas distinções, em termos demeios de produção, apresentam-se complexas tendoem vista a superposição de “tempos” distintosdependendo do local de onde emana essa produçãoartística. Apesar de nossa consciência, essa questãoda periodicidade ainda não foi satisfatoriamenteenfrentada e resolvida.

Entretanto, entendemos então que, de umamaneira geral, o legado que constitui o conjuntode técnicas e procedimentos de trabalho atribuídoao ensaiador dramático remontaria aoRenascimento. Desde o surgimento da perspectivalinear; o acabamento da caixa de ilusão da cenafrontal com sua moldura e o arco do proscênio; e,sobretudo, com a fixação de um repertório degêneros claramente definidos, herdeiro do séculoXVII; estabeleceram-se “tratados” e teorias sobre

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12 O Renascimento foi pródigo na produção de tratados de cenografia.Observe-se, por exemplo, que desde 1486, que é uma espécie de ponto departida para toda reflexão dos decoradores e arquitetos devido ao fato dese ter redescoberto os escritos Marco Vitrúvio Pollione. Sua obra De

architetura favoreceu o desenvolvimento, a divulgação e a aplicação dastécnicas arquiteturais e igualmente influenciou a composição da cena e adisposição do edifício teatral. Em 1545, por exemplo, foi o arquitetoSebastiano Serlio quem publicou o seu O segundo livro de perspectiva,editado em Paris, no qual abordava a arquitetura teatral. Acreditava-se queteria sido ele quem havia configurado os três cenários (telões) comédia,tragédia e sátira (pastoral). O arquiteto Andréa Palladio deu início àconstrução do teatro de Vicenza (1580 projeto e início) e Vicenzo Scamozzio termina, em 1585, cuja inauguração se deu com a encenação de Édipo

rei. Em 1638, teve-se a publicação de Prática de fabricar cenas e máquina

de teatro, de Niccola Sabbattini.13 Note-se que, nesse sentido, o movimento de incentivo dos estadosnacionais europeus na reconstrução de sua identidade foi largamenteauxiliado pelos ditos teatros públicos. Constata-se, inclusive hoje, queapós estas instituições terem desempenhado o papel de indutores doressurgimento da arte teatral, inclusive como agente de prontorestabelecimento das nações européias, na atualidade desempenham afunção de catalisadores da integração européia. Desde 1990, graças aoempenho e à iniciativa do então ministro da cultura da França, Jack Lang,e de Giorgio Strehler, foi se articulando um movimento, entre os paíseseuropeus que já dispunham dessa rede de teatros públicos, para seestabelecer uma integração no nível cultural entre as diferentes regiõesda Europa, com a finalidade de integrar e garantir a consolidação cadavez mais firme do estabelecimento da União Européia. Consultar oendereço eletrônico http://www.ute-net.org/ ou Ubu: Revista do TeatroEuropeu, em http://www.ubu-apite.org/fr/magazine/.

a concepção do olhar e a racionalização do espaçoda cena dita frontal à italiana.12

Mesmo sabendo da flexibilidade de concepçõesacerca dessas faixas temporais, procuramos localizar oensaiador dramático nessa extensão, que remonta aoRenascimento, devido ao fato de que, enquanto o tempoavança, sua função ora foi desempenhada por ummúsico, um cenógrafo, um ator, um autor; e somentena segunda metade do século XIX teve-se notícia deque ele se dedicava, exclusivamente, coordenação daparte artística e material da cena, à representação, vezpor outra atuando também como ator.

O século XIX é por assim dizer o momentoculminante de seu trabalho, visto a proliferação deteatros e o crescimento de uma demanda deentretenimento nas principais cidades européias eamericanas. Junte-se a isso a eclosão dosmovimentos Naturalista e Simbolista nas artes demaneira geral e no teatro de forma particular. Foi oensaiador dramático o homem de confiança dediversos autores que com suas peças quiseramchamar atenção para os novos fundamentos de umaarte que buscava refletir o real de forma exata,expondo a miséria dos ambientes e daspersonagens, rompendo uma vez por todas com aidealização do comportamento ficcional quereinava desde o classicismo.

Pouco a pouco, no bojo do movimentoNaturalista/Simbolista no século XIX, se delineouo segundo perfil. O perfil do moderno diretorteatral encontra nas figuras paradigmáticas deAndré Antoine e de Constantin Stanislavski suasmatrizes comportamentais. E daí em diante,coloca-se em movimento a noção de um diretorteatral que, ao se considerar como porta-voz doautor dramático, também se vê diante daresponsabilidade e da necessidade de criar umacamada sígnica que refletisse a sua interpretaçãopessoal de certa obra dramática. O estabelecendouma “camada” de subjetividade que plasma sobrea cena especialmente concebida para ela é aafirmação de uma teatralidade, identidade doespetáculo. É o primado das diversas e possíveisversões de montagens de um mesmo texto porvários diretores diferentes que propõem ao texto

as mais distintas visões para glória da dramaturgiae sucesso da encenação. Este novo princípio detrabalho estipulava, por exemplo, a leitura de mesacomo procedimento obrigatório a toda equipe decriação envolvida com a montagem, assim como aleitura da totalidade do texto por todo o conjuntode atores para melhor conhecimento do todo,independente das suas partes. É a idéia de que háuma organicidade na operação do texto à cena eum melhor entendimento das partes se dá peloconhecimento do todo tanto da escrita dramática(o texto) quanto da escrita cênica (a encenação).

9.

Quando da reconstrução da Europa, duranteo pós-guerra, foi a noção de “Teatro de Arte”13 quese impôs para colaborar no reerguimento dasidentidades nacionais. Essa tendência teatral tinhafortes contornos humanísticos e clássicos. Diga-sede passagem que foi essa concepção, similar àquelada virada do século XIX para o XX, agoraatualizada após 1945, que levou Bertolt Brecht eHelene Weigel a se instalarem em Berlim Leste ecriarem o Berliner Ensemble em 1949. Em Milão,

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14 O cartel foi integrado pelos diretores: Louis Jouvet; Gaston Baty;Charles Dullin e Georges Pitoëf. Tratava-se de uma associação colaborativainformal onde esses homens de teatro que comungavam dos mesmosprincípios referentes a uma cultura e prática teatral comum ajudavam-semutuamente na realização de seus espetáculos e projetos. Associa-se aesses criadores o estabelecimento de uma sistemática na direção daconsolidação de um teatro de arte nas décadas de 1940-1950, na França.15 Consultem-se a este respeito os trabalhos de: GIANELLA, Maria deLourdes Rabetti. Contribuição para o estudo do moderno teatro

brasileiro: a presença italiana. São Paulo: Departamento de História daFFCHL/USP, 1988; RAULINO, Berenice. Ruggero Jacobbi: presençaitaliana no teatro brasileiro. São Paulo: Perspectiva, 2002, e VANUCCI,Alessandra. Crítica da razão teatral: o teatro no Brasil visto por RuggeroJacobbi. São Paulo: Perspectiva, 2005.16 Consulte-se sobre essa noção o trabalho exemplar de análise de trêsespetáculos específicos do então criador cênico Gerald Thomas. In:FERNANDES, Silvia. Memória e invenção: Gerald Thomas em cena. SãoPaulo: Perspectiva, 1996. Ou ainda a seguinte obra: GALIZIA, Luiz Roberto.Os processos criativos de Robert Wilson. São Paulo: Perspectiva, 1986.

Paolo Grassi e Giorgio Strehler construíram seuedifício para o Piccolo Teatro de Milano, inauguradoem 1947. Na França, o TNP passou a ser dirigidopor Jean Vilar em 1951, após convite feito pelogoverno. Entretanto, já desde 1947 esse diretorvinha trabalhando em prol da descentralização emfunção do Festival de Arte Dramática de Avignon,que ele próprio criara. Na Inglaterra, cujo teatrosempre teve uma tendência fortemente ligada aoentretenimento comercial, estabeleceu-se de prontoa valorização de um repertório que retomava osgrandes clássicos elisabetanos. Tratava-se de ummovimento geral tanto a leste quanto a oeste deBerlin. Com essa cidade passando a ser uma espéciede ponto de equilíbrio entre as nações européiasapós o fim do conflito e o restabelecimento dasfronteiras. Nesse ambiente de um “Teatro de Arte”,foi o diretor teatral o agente de uma pactuação coma sociedade na busca por uma modernização dacena, ao mesmo tempo em que a obra teatral seapresenta como uma obra de arte.

Dessa década de 1950 em diante, ainda nos anos1970 e 1980 se afirmava o primado do diretor,conforme Anne Ubersfeld gosta de chamá-lo, comoaquele “diretor demiurgo” e por vezes irascível naimposição de suas idéias. São os descendentes de B.Brecht pelo viés alemão e os descendentes de J.Copeau por conta do cartel, e mais tardiamente osherdeiros de V. Meyerhold e dos simbolistas russos.Para esses diretores, o influxo da cena estaria centradono texto ainda que se divirja sobre o tratamento a serministrado. O texto ainda estava circulando entre aperiferia e o centro da criação cênica.

A experiência do cartel na França,14 duranteas décadas de 1940 e 1950, foi o exemplo maisbem acabado dessa proposta de visão de trabalhoteatral junto aos elementos da cena realizados pelodiretor teatral, que condicionado ao texto nãodeixava de expressar um pensamento de juízo sobreesse mesmo texto. Para exemplificar, no casobrasileiro, podemos lembrar das experiências dosdiretores italianos que tanto colaboraram com oTeatro Brasileiro de Comédia (TBC) e queencarnam exatamente esse perfil que estamosdescrevendo — Luciano Salce, Ruggero Jacobbi,Adolfo Celi, Roberto D’Aversa, Gianni Ratto.15

Da década de 1980 para a de 1990, aqui noBrasil, houve um adensamento em torno da figurado coordenador do espetáculo teatral bastantenotório, e inclusive verificado na própria imprensaespecializada. Sinalizava-se o dissolvimento dosgrupos de “criação coletiva” e afirmava-se apreponderância dos “espetáculos de diretores”.Verificava-se, daí em diante, uma série denovidades em termos processuais que alterariam apromoção, exibição e recepção de uma narrativacênica – procedimentos de exploração da cena porconta de novos recursos tecnológicos;realinhamento da chamada direção dos atorespropondo-se uma nova situação para o ator nointerior do espetáculo; uma nova aplicação daexpressão oral e corporal; o estremecimento dasfórmulas até então consagradas no emprego doselementos da cena que são subordinados, não maisàquela idéia detectável ou “lida” no resíduodramático, no texto teatral tradicional; etc.

A cena agora estava definitivamente livre daliteratura dramática ou de um núcleo ficcional quegerasse uma essência, para estar subordinada a umaidéia autônoma que se tornava encenação.16 Daí apercepção de que esse encenador teatral, mais doque encenar uma história ou uma narrativa oriundade uma matriz dramática ou dramatúrgica, servir-se-ia de outras fontes possíveis. Colocava-se emcena uma idéia; um problema; uma questão; ou atémesmo a própria memória desse realizador cênico.Poderia-se dizer que, em certa medida, o trabalho

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teatral desse coordenador contemporâneo doespetáculo teatral estaria intimamente associado aotrabalho criativo daqueles cineastas que forjaram oque vulgarmente chamamos de cinema de autor.Linguagem e conteúdo foram sintetizados em proldessa criação cênica que estaria desobrigada derevelar uma dramaturgia convencional. Dissolve-se,nesse sentido, a figura do autor teatral stricto sensu.

A própria noção de dramaturgia se modificavadiante dessa nova engrenagem. Se,etimologicamente, drama é oriundo do grego esignifica ação, dramaturgia, em si, seria pordefinição particular a “arte ou a técnica dacomposição dramática”. Mas qual composiçãodramática seria possível em tempospredominantemente pós-dramáticos?

Dizia Pirandello que a trama de uma peça era arazão de ser do personagem. O caso é que hoje anoção de dramaturgia e conjuntamente aquela depersonagem extrapolam os limites daquilo queoutrora fora a composição de peças teatrais.Contemporaneamente, encontram-se espetáculos dediversos coletivos teatrais ou de criadores cênicosque afirmam desenvolver uma “dramaturgia própria”ou uma “dramaturgia corporal” sem necessariamentese ater à “composição de um personagem”; ou aindatrabalhos que repousam sobre uma “dramaturgia doator”, que exploram a sua própria biografia comoresíduo para cena; com encenações que sãoelaboradas segundo uma dramaturgia oriunda de“processo colaborativo”, entre outras denominações.

Naturalmente, estes são desdobramentos quepossuem sua origem histórica e estética no trabalhoteatral de um V. Meyerhold, apesar de que, porvezes, essa matriz paradigmática seja atribuída àsexperiências de B. Brecht, autor e diretor de seuspróprios espetáculos. O fato é que, na atualidade,a discussão sobre a construção de uma dramaturgiase afirma por conta de um processo criativo híbrido,onde a noção de autoria não se apresenta maiscomo era no passado. A noção de autoria hoje é nomínimo flutuante diante dos diversosprocedimentos e determinismos vivenciados pelocoletivo teatral. E esse dissolvimento da figura doautor dramático tradicional acaba se refletindo no

trabalho teatral desse agente criativo que estamoschamando de encenador.

À guisa de conclusão, estabelecemos umquadro sinótico17 sobre estes três perfismencionados e que deve colaborar no intuito deser um indutor dos estudos dos processos criativosdos comportamentos destes agentes criativos dianteda produção daquilo que costumamos chamargenericamente de encenação teatral. Trata-se deum quadro exclusivamente idealizado para finsdidáticos. Portanto, toda cautela acerca degeneralizações é importante para sua leitura.

17 Este quadro é um ponto de partida e não está “fechado”, ao contrário,ele deve “provocar uma abertura” para discussões sobre a coordenaçãoe realização do trabalho criativo do responsável pela encenação teatral.Os perfis estabelecidos não devem ser entendidos como classificatóriose reducionistas. São tipos ideais para facilitar o estudo da cultura e daprática teatral. Não devemos interpretar um perfil como superior, maisdesenvolvido, ou melhor, do que o outro. O que está em questão é adinâmica do trabalho imaginário engendrado pelos criadores cênicoscom o intuito de estabelecer uma interface com a sociedade e seusmodos de apreensão do espetáculo. Este quadro, na data de hoje, já estásuperado, pois não contempla o perfil do performador teatral.

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Perfil /

Trabalho

Teatral

Ensaiador / Repetidor Diretor / Regente Encenador / Coreógrafo

Concepção da

cena

Pré-moderna. Localizada desde a saída da I. M. Renascimento, séculos XVI, XVII, XVIII, XIX. Cenógrafo, autor, músico, ator e empresário podem desempenhar essa função.

Moderna. Verificada desde o final do séc. XIX, já ao longo da segunda metade deste mesmo século. Função assumida por alguém que se coloca fora da cena. Como verdadeiro mediador.

Pós-moderna. Agregando manifestações híbridas como o teatro dança, herdeiro das vanguardas, das experiências da Bauhaus, da arte coreográfica, em diálogo com os processo criativos das vanguardas históricas (a escrita em vigília e o processo associativo...) Seleção; colagem e montagem. Presença do cinema. O realizador.

Disciplinas de

apoio História, Humanidades, Retórica.

História, Ciências Sociais (Sociologia, Psicologia, Antropologia e Política).

História, Ciências Sociais (Sociologia, Psicologia, Antropologia, Política), Estética, Filosofia, Psicanálise. Holística.

Autoria do

vestígio

ficcional.

A fábula

Autor dramático (ficcional)

Autor dramático (atrito entre real e ficcional)

Autor-encenador ou em processo colaborativo com o encenador e equipe de agentes criativos. Biográfico e ficcional ao mesmo tempo.

Texto

Textocêntrico; gêneros fixos, com a necessidade de adequar a dramaturgia com a cena. Autoria marcada pela figura do autor dramático.

Textocêntrico; produção de subjetividade; interpreta ao mesmo tempo em que se diz porta-voz do autor. Herdeiro de um projeto humanista e da tradição.

Cenocêntrico; negação da dramaturgia convencional como base de trabalho, repensando-se o processo de criação cênica. Herdeiro das vanguardas. A personagem ficcional é subtraída.

Atuação

Ator-tipo

Ator de composição

Ator-bailarino; ator-colaborador; ator-autor; dramaturgia do ator; dramaturgia do corpo. São diversas as denominações.

Espaço

Frontalidade sem outra possibilidade de espaço dedicado a reproduzir tipologias reconhecíveis de imediato pelo espectador.

Inicia-se na frontalidade, mas rompe com a caixa de ilusões na busca por espaços não convencionais. Sugestão e abstração. Ganha inclusive o espaço da rua.

Espaço conceitual; um outro espaço baseado na frontalidade ou não. Espaço flutuante. Espaço ficcional e espaço real confrontados e confundidos.

Aspectos

sonoro-visuais Pré-codificados Criados especificamente Elementos da linguagem cênica

Espectador/

Público

Público indistinto. Diversos segmentos socioculturais associados e hierarquizados dentro da sala de espetáculo.

Público de diletantes. Especialista. Herdeiro do gosto de uma certa elite cultural. O espectador que conhece a obra apresentada. Teatro dito de arte.

Segmentado e dirigido. Grupos de espectadores. Segmentação não mais na sala, mas por conta da temática; ou projeto de montagem.

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Educação Somática: seus princípios

e possíveis desdobramentos

Marcia Strazzacappa1

RESUMO: Seria a Educação Somática um método de

reabilitação corporal? Ou trata-se de uma terapia corporal? A

Educação Somática tem apenas fins terapêuticos e corretivos ou

também pode ser usada com fins profiláticos e preventivos?

Poderia a Educação Somática ser empregada para a criação

coreográfica cênica? Essas são algumas das questões que

nortearam minha pesquisa de doutorado e conduziram a uma

investigação anterior sobre a gênese dessas técnicas e suas

possíveis aplicações. No presente artigo, compartilho com o

leitor resultados do estudo, no qual são apontados os conceitos

fundadores da Educação Somática.

Palavras-chave: educação somática; gênese; criação coreográfica;

técnicas corporais.

Somatic Education: its principles and possible developments

ABSTRACT: Would Somatic Education be a method of

rehabilitation? Or is it a body therapy? Has Somatic Education

only corrective or therapeutic purposes or can it also be used

with prophylactic and preventive purposes? Could Somatic

Education be used to create choreographies? These are some of

the questions that guided my doctoral studies and led to a

previous research on the genesis of these techniques and their

possible applications. This article shows the study results about

the founding concepts of Somatic Education.

Keywords: somatic education; genesis; choreographic creation;

body technique.

A expressão Educação Somática já faz parte dovocabulário nacional. Em diferentes espaços, tantoeducacionais quanto terapêuticos, como escolas dedança, academias, estúdios privados, centros defisioterapia, cursos universitários, ouve-se essaexpressão. Porém, na mesma medida em que o termoé difundido e utilizado, acaba sendo vítima de muitosequívocos e confusões. A Educação Somática poderiaenglobar todas as técnicas corporais desde quepraticadas de forma consciente? Seria a EducaçãoSomática um método de reabilitação corporal? Outrata-se de uma terapia corporal? A EducaçãoSomática tem apenas fins terapêuticos e corretivosou também pode ser usada com fins profiláticos epreventivos? A Educação Somática pode serempregada para a criação coreográfica? Essas

1 Marcia Strazzacappa, artista da dança e pedagoga. Doutora em Artes pela

Universidade de Paris, França. Professora da Faculdade de Educação da

Unicamp. Bolsista Produtividade em Pesquisa do CNPq.

2 A tese intitulada Fondements et enseignements des techniques

corporelles des artistes de la scène dans l’état de São Paulo, au

XXème siècle, Universidade de Paris, França, 2000, encontra-se em sua

íntegra disponível on-line. Sua tradução e adaptação foram concluídas

e a publicação em língua portuguesa está no prelo pela Summus.

questões, dentre outras que nortearam minhapesquisa, conduziram a uma investigação anteriorsobre a gênese dessas técnicas e suas possíveisaplicações. Como a Educação Somática chegou àcena? Que tipo de emprego se faz da EducaçãoSomática nos países da Europa e da América doNorte, onde ela é mais difundida? E aqui no Brasil?

O presente texto apresenta uma síntese doúltimo capítulo de minha tese de doutorado2, no qualsão feitas reflexões com o objetivo de esclareceralguns conceitos fundadores da Educação Somática.O texto apresenta igualmente uma discussão sobrea prática da Educação Somática no país, dandodestaque aos educadores somáticos nacionais.

A história de um termo

A Educação Somática já está presente emterritório nacional há, pelo menos, quatro décadas,porém mais conhecida sob outros títulos, comotécnicas corporais alternativas, técnicas de release, técnicas

de consciência corporal. Sabemos que a expressãoEducação Somática foi definida pela primeira vez porThomas Hanna em 1983, num artigo publicado narevista Somatics. O referido artigo afirmava que aEducação Somática era “a arte e a ciência de umprocesso relacional interno entre a consciência, obiológico e o meio-ambiente. Estes três fatores vistoscomo um todo agindo em sinergia” (HANNA,1983, p. 7). Segundo Sylvie Fortin, professora daUniversidade de Quebec, Canadá, após a realizaçãodo primeiro simpósio bianual “Science and Somaticsfor Dance”, em 1989, o termo passou a ser

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3 A expressão reformador do movimento (reformateur du mouvement) estará

sendo empregada no presente texto diante da falta de uma outra que

melhor traduza nossa idéia (pensadores do movimento?! Teóricos do

movimento?!).

gradualmente consolidado, o que se verifica depoisda formação do International Somatic MovementEducation and Therapy Association, nos EstadosUnidos, e do Regroupement pour l’EducationSomatique, no Quebec. No Brasil, vimos oreconhecimento dos trabalhos de Klauss e AngelVianna, de José Antonio Lima, de instrutores dediferentes técnicas que se disseminaram pelo país,além da abertura de cursos superiores em dança comabordagens somáticas (Faculdade Angel Vianna –no Rio de Janeiro; Anhembi-Morumbi, em São Paulo,para citar alguns), além de cursos de pós-graduação– especialização.

Para Fortin (1999), em seu artigo intituladoEducação somática, novo ingrediente da aula de dança, aeducação somática “engloba uma diversidade deconhecimentos onde os domínios sensorial,cognitivo, motor, afetivo e espiritual se misturamcom ênfases diferentes”. Assim, temos as técnicasde Alexander, Feldenkrais, Bartenieff, a Ideokinesis,o Body-Mind Centering, entre outras.

Nos estudos de doutoramento realizados sobrea gênese das chamadas técnicas de EducaçãoSomática e numa análise comparativa eaprofundada sobre aquelas que chegaram e sãoutilizadas em território nacional, pude observaralguns pontos em comum no que concerne a seusprincípios fundadores, quais sejam:1. as técnicas de Educação Somática estudadas

tiveram um ponto de partida comum: uma lesãoséria, uma doença crônica ou uma moléstia;

2. as técnicas de Educação Somática colocaramem questão a medicina normalmente praticadanos países ocidentais;

3. as técnicas de Educação Somáticapercorreram uma trajetória similar,essencialmente empírica, que ia da prática àteorização;

4. as técnicas de Educação Somática apresentamcomo pensamento fundador a unificaçãocorpo/espírito do indivíduo.

Um princípio comum

Os reformadores do movimento estudadosdefiniram suas técnicas a partir de problemas

vividos. Intitulo como reformadores do movimento3 ospioneiros no desenvolvimento e na codificação detécnicas corporais específicas que tinham comopreocupação o movimento (ou a recuperação domovimento) do homem e da mulhercontemporâneos. Os reformadores se diferenciamde coreógrafos, bailarinos e diretores teatraisporque as técnicas que idealizaram nãoapresentavam, a priori, fins estéticos. Sabe-se quea codificação de muitas técnicas corporais efetivadapor artistas tinha como objetivo a adequação domovimento dos intérpretes à sua concepção pessoalde movimento. Ao praticar a técnica desenvolvidapelo coreógrafo, os dançarinos tornam-se maisaptos para executar com maior perfeição as idéiasde movimento por ele concebidas. Assim foi comvárias escolas de dança moderna como MarthaGraham, José Limon, Merce Cunnighan, entreoutros. O intuito do desenvolvimento de suastécnicas de dança era estético-criativo. Oscoreógrafos não estavam necessariamentepreocupados com o corpo, nem com aindividualidade de cada dançarino. Ao contrário, odançarino dever-se-ia colocar à disposição docoreógrafo, anulando, se preciso (e possível) fosse,suas características pessoais. Padrões demovimento e ideais de corpo são idealizados esolicitados por cada escola. O dançarino é, assim,um instrumento (uma massa de modelar) a serviçode uma estética.

Diferentemente dos coreógrafos, osreformadores do movimento não pensavam napadronização de corpos, nem tinham uma pré-concepção estética. O desenvolvimento de suastécnicas, embora tenham surgido da necessidadede solucionar problemas específicos e mesmopessoais, tinha como objetivo exatamente o oposto:resgatar a unidade e identidade do ser humano.Estas técnicas partiam do princípio de que nenhumser humano é igual ao outro e de que estasdiferenças deveriam ser respeitadas e mantidas. Os

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reformadores se diferenciam dos demaisprofissionais da área corporal pelo fato de teremsido os criadores, os “pais” de novas concepções,de novas maneiras de se pensar o corpo e omovimento. Os demais, como os discípulos diretos(formados pelos próprios reformadores) ouindiretos (formados em suas escolas), herdaram osconhecimentos do mestre-criador, alguns seguiramos mesmos caminhos já traçados, outros serebelaram, abrindo suas próprias trilhas.

Dominique Dupuy, coreógrafo, dançarino e umdos precursores da dança moderna francesa, afirmano prefácio da obra Anthologie de François Delsarte que

Gerda Alexander, Mathias Alexander, Moshe

Feldenkrais, Joseph Pilates e ainda outros, todos como

ele [Delsarte] partiram de problemas encontrados, de

acidentes superados, de experiências vividas, que os

abriram à intuição, para elaborar métodos que, cada um

dentro de sua própria esfera, ultrapassaram o corpo, a

expressão para afetar o homem inteiro. (Dupuy apud

PORTE, 1992, p. ix)

Isto pode ser exatamente o que diferencia osreformadores do movimento dos discípulos de umadeterminada técnica. No entanto, não podemosacreditar que a condição sine qua non para a criaçãoe sistematização de uma técnica corporal seja tersido vítima de um acidente, de uma lesão ou deum problema qualquer. Estas situações podemlevar o indivíduo a refletir sobre seu próprio corpoe movimento e buscar soluções criativas para o seubem-estar. Muitos avanços da área da saúde foramobtidos por meio de estudos aprofundados demoléstias (para a medicina) e de casos (para apsiquiatria e psicologia). Muitas técnicas deEducação Somática se serviram destesconhecimentos, não apenas com os fins dereeducação corporal e terapêuticos, mas tambémcom objetivos profiláticos e preventivos.

A relação entre técnicas corporais

e saúde/medicina

As técnicas definidas pelos reformadores domovimento colocaram em cheque a medicinatradicional normalmente praticada nos países daEuropa e da América. Moshe Feldenkrais (que teveum grave problema no joelho), Mabel Todd (que

foi vítima de paralisia), Matthias Alexander (umator que perdeu a voz), citando apenas alguns atítulo de exemplo, não concordavam com assoluções trazidas pela medicina tradicional daépoca. Este descontentamento levou-os a tomarem mãos suas curas, questionando, assim, aatuação da própria medicina. Para não generalizar,dever-se-ia dizer que os reformadoresquestionaram a má medicina tradicional que eranormalmente praticada, não a medicina ocidentalindistintamente, pois não se podem negar avançosincríveis obtidos em outras áreas da saúde,sobretudo no que toca a doenças dacontemporaneidade como câncer e Aids.

Os reformadores do movimento não tinhamcomo objetivo o desenvolvimento de técnicasterapêuticas, nem queriam questionar as práticasmédicas de sua época. O objetivo deles eraencontrar soluções para seus respectivos problemas.No entanto, ao iniciarem suas pesquisas e definiremseus métodos, as aplicações terapêuticas e ascríticas às práticas já existentes acabaram sendouma conseqüência quase inevitável. Não podemosnos esquecer do processo judicial do qual MabelTodd foi vítima nos anos 1950, acusada pelaAssociação de Médicos de Nova Iorque por praticar

a medicina ilegalmente, ou o caso de Irene Dowd, quefoi demitida de um hospital porque se recusara acuidar de seus pacientes “em partes”, ou seja, cuidarapenas daquela que apresentava problemas. Estesfatos são exemplos claros de que a medicina sesentia ameaçada pelas ações dos reformadores,sobretudo pelos bons resultados por eles obtidos.

A busca por práticas consideradas alternativas,como a medicina homeopática, mostra a insatisfaçãode pacientes frente à medicina que é normalmentepraticada, que retira do indivíduo exatamente suaindividualidade. Como José Antonio Lima, médicoe educador somático, afirma:

a frustração que a despersonalização da relação médico/

paciente traz ao usuário, está seguramente abrindo a

possibilidade de apontar-se a hipótese de que a

homeopatia, reconhecida pelo leigo como o ramo “não

acadêmico” da medicina, tratamentos baseados em

“medicina natural”, Florais de Bach e várias Mandalas

religiosas ou orientais, são solicitadas por pacientes que

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estariam a procura, exatamente, da possibilidade de não

serem normatizados. (LIMA, 1994, p. 16)

É dentro deste espírito que as técnicascorporais encontraram um reconhecimento, umstatus no mundo terapêutico dito “alternativo”,mesmo sem ser esta sua vocação primeira. Estaspráticas, ainda que sem o rótulo de médicas, trazembenefícios aos indivíduos que as praticam,oferecendo-lhes exatamente aquilo que procuramna medicina tradicional, mas que raramenteencontram: a atenção à sua integridade.

No entanto, não podemos confundir. Sabe-seque todo e qualquer trabalho corporal, seja eleesportivo, ritualístico ou artístico, seja a dança, oteatro, a acrobacia, entre outros, toca o indivíduocomo um todo. Não há a dicotomia corpo/espírito,“tudo o que toca o corpo, o coração registra. Tudoque é falado ao coração, mesmo que em segredo, ocorpo escuta” (STRAZZACAPPA, 1994, s/p). Nãoé este fato em si que irá implicar ou garantir ocaráter terapêutico destas atividades.

A relação entre teoria e prática

O terceiro ponto em comum entre as técnicasde Educação Somática estudadas se encontra narelação entre a prática e a teorização desta prática.Todos os reformadores partiram do vivido, doconcreto, de suas experiências sensoriais, de suasvivências. Desenvolveram pesquisas fundamentalmenteempíricas. A teorização foi posterior. Dizemosteorização e não teoria, porque esta última estápresente a todo instante. Não acreditamos nadicotomia teoria/prática, como defendem algunspensadores. A teoria e a prática caminham lado alado e alimentam-se mutuamente. A teorização écompreendida como a reflexão profunda esistemática sobre dados empíricos, alimentada pordados intuitivos e científicos posteriores àexperimentação.

No caso da Educação Somática, vimos quemuitos reformadores partiram da intuição e daexperimentação. Mabel Todd é um exemploconcreto. Ela seguia apenas sua intuição. No iníciode suas investigações costumava dizer a seusalunos: “pode soar tolo, mas funciona” (TODD,

1937/1997, p. 216). A teoria sobre seu trabalhosurgiu quando ela passou a ter uma médica entreseus estudantes, Dra. Lulu Sweigard, que terminouficando mais conhecida que a própria mestra aorealizar uma pesquisa que acabou por sistematizarum trabalho corporal baseado na comprovaçãocientífica do trabalho de Todd.

A teorização tem sua riqueza como memória.A memória que permite ao outro começar umtrabalho a partir do ponto onde o primeiro parou.Esta arte efêmera que é a arte do movimento podeencontrar sua eternidade nesta memória, nosprincípios e fundamentos perpetuados em registros.Foi assim que Delsarte pôde ser ressuscitado 60anos após sua morte. As universidades têm umpapel importante na preservação desta memória.Cabe lembrar que muitos reformadores, sobretudoos brasileiros, encontraram nas instânciasuniversitárias o respaldo financeiro e logístico parapoder teorizar seus trabalhos. Foi assim com KlaussVianna e José Antonio Lima, dentre outros.

A relação dicotômica corpo/espírito

As técnicas desenvolvidas pelos reformadoresdo movimento tiveram uma noção fundadoracomum: a afirmação da unidade do ser humano,quer dizer, a convicção da unificação corpo/espírito. Embora isso pareça ser, a princípio, umponto comum, este pensamento contém um longoe difícil debate. Todos afirmam categoricamenteque o Homem é a unificação do corpo e do espírito.Mas de que corpo eles falam? De que espírito? Nãotratarei aqui desta problemática imensa quemereceria ser objeto de uma outra tese, mas gostariade indicar alguns pontos para nossa discussão.

A afirmação da unidade corpo/espírito édefendida ao longo dos discursos de certosreformadores que tendem a manter em suasretóricas a utilização do duplo conceito “corpo/espírito”. Ora, se o Homem é uma unidade, porque, então, continuar a acentuar o dualismo?Outros reformadores estão convencidos daunidade, mas, em suas práticas, acentuam umelemento em relação a outro. Mais uma vez, se oHomem é uma unidade, é possível haver a

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supremacia de uma parte em relação à outra? Assim,poderíamos dividir os reformadores em doisgrupos: o primeiro, que acentua a ação dopensamento sobre o corpo, e o segundo, queacredita que o corpo tem uma ação mais efetivasobre o pensamento. Embora fique claro quenenhum dos dois grupos nega a existência destesdois fatores como elementos edificantes de umaunidade do indivíduo.

Os reformadores nascidos de uma linha naqual a imagem e a visualização têm importantespapéis no desenvolvimento de suas técnicas, comoas técnicas de Alexander, a Ideokinesis e seusdiscípulos (Todd, Sweigard, Clark, Dowd,Bernard), acentuam a ação do pensamento, nãocomo princípio da metodologia, mas comoferramenta para o sucesso de seu método. Já otrabalho de Bartenieff, Baindbrigde-Cohen,Feldenkrais, Struyf-Denys, Gerda Alexander,Vianna e Lima são mais voltados à ênfase do corpoe do movimento.

Buscando clarear equívocos

Nesses anos de estudo e pesquisa sobreEducação Somática no país, tenho constatadoalgumas confusões e outros equívocos quanto àdenominação de certas atividades corporais e suasaplicações como pertencentes a este campo doconhecimento. Embora trabalhos sérios deEducação Somática já sejam realizados no Brasilhá mais de quatro décadas por inúmerosprofissionais formados em diferentes linhas, aEducação Somática, vitimada por um modismo(como tantos outros que já presenciamos no país),passou a ser vista como um “selo de garantia” ouum “certificado de qualidade” das técnicascorporais. Isso levou a uma tentativa desenfreadade intitular trabalhos corporais como pertencentesà gama de técnicas de Educação Somática. Sobesse ponto de vista, professores das mais variadastécnicas corporais se auto-intitularam educadoressomáticos ou, ainda, passaram a chamar e divulgarsuas atividades como Educação Somática, nointuito de aumentar a clientela e o valor bruto desua hora de trabalho.

O equívoco de nomear trabalhos técnicoscorporais como Educação Somática não parteapenas de professores e instrutores. Por vezes, opróprio praticante começa a realizar “treinamentossomáticos cotidianos” [sic] por meio da execuçãode práticas de qualquer natureza, independente deseu fim específico. Dentro desse terreno recém-batizado (que gera, inclusive, um incômodo ao sejuntar as expressões “treinamento” e “somático”),incluem-se técnicas de dança, de luta, capoeira,yoga, Pilates, para citar algumas.

Baseando-nos apenas nos elementosapresentados nesse texto, já se podem descartaralgumas tentativas de incluir ou classificar técnicasde dança que são notoriamente com fim estéticoe/ou cultural (como balé clássico e dança modernaou ainda manifestações populares como as dançasreligiosas, as danças de rua, a capoeira, etc.), eoutras técnicas com fins de combate (lutatailandesa, tai-kon-do, entre outras), como técnicasde Educação Somática, quando realizadas dandoênfase à consciência corporal. Mesmo que umprofissional do universo da arte busque praticaressas técnicas de dança ou de luta com umaintenção diferenciada, isto é, com o objetivo deaprimorar seu trabalho corporal, desenvolver maiorflexibilidade e adquirir maior consciência corporal,ainda assim não estará praticando EducaçãoSomática. Trata-se de um equívoco. O que permitea uma determinada técnica ser considerada comoEducação Somática não é o fato de ser realizadacom maior preocupação e atenção com o corpo, esim, como vimos no presente texto, sua gênese,seus fundamentos, suas metas e as metodologiasempregadas para chegar a esses objetivos.

Mas poder-se-ia perguntar: por que anecessidade de qualificar toda e qualquer técnicacorporal como sendo Educação Somática? Seria issoapenas fruto do modismo? Qual a finalidade declassificar e de criar categorias para determinadasatividades? Verifica-se um uso perverso daclassificação quando, de fins didáticos einformativos, passa-se a um uso discriminatório, aose criar concomitantemente uma ordem hierárquica,com a valorização de uns em detrimento a outros.

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4 Vide artigo publicado na revista Pro-posições, 1998.

Ora, as técnicas de dança, de luta, de alongamento,de condicionamento corporal, como as acimaelencadas, quando praticadas de forma conscientee com a mediação de um bom professor, instrutore/ou mestre, representam trabalhos técnicosaltamente qualificados, o que é bom e desejável,independente de terem o “selo” de EducaçãoSomática. Aliás, ser efetivamente um trabalho deEducação Somática não é garantia de qualidade, poisjá presenciei atividades notoriamente de uma linhaespecífica de Educação Somática sendo realizadasde qualquer forma, sem nenhuma orientaçãoadequada. Ou seja, o crédito não está na técnica emsi, e sim em quem a ministra e orienta.

Desdobramentos possíveis e/ou

aproximações desejáveis

Há alguns exemplos de trabalhos que associamatividades técnicas convencionais (técnica dedança clássica, moderna, luta, capoeira, entreoutras) com técnicas de Educação Somática(Alexander, Feldenkrais, Ideokinesis, BartenieffFundamentals, Body-Mind-Centering) que podemsurtir efeitos muito positivos.

Sylvie Fortin realizou um estudo com trêsdançarinas profissionais com o objetivo de analisaros efeitos da Educação Somática sobre o trabalhoprofissional enquanto dançarinas, professoras ecoreógrafas. Nesse estudo,4 evidenciou-se que aEducação Somática, como instrumento paraprofessores e coreógrafos, pode mudar a qualidadedo trabalho em sala. “A educação somática não estámais sendo oferecida simplesmente como umtreinamento complementar, nem para o estudo datécnica; cada vez mais, ela está sendo integrada àprópria aula técnica” (FORTIN, 1998, p. 64).

A influência das técnicas de EducaçãoSomática nos cursos de dança começou a mudar aestrutura de funcionamento dos cursos. Antes,como nos indica Fortin, eram os próprioscoreógrafos que impulsionavam a evolução,introduzindo suas estéticas e suas ideologias decorpo nas aulas de dança e no trabalho detreinamento físico. Atualmente, a EducaçãoSomática ocupa um espaço importante ao lado decoreógrafos e diretores teatrais, concluindo que a

percepção do papel da Educação Somática poderámudar assim que sua prática estiver incorporadaem grande escala nas aulas técnicas de dança.

Caminhando para concluir a

reflexão

Caminhando para a conclusão, não da discussão,mas do presente texto, destaco que na atualidadetemos em território nacional uma gama de técnicassomáticas sendo praticadas e ensinadas e um númeroconsiderável de profissionais atuando nos campos daarte, da saúde e da educação, formando, inclusive,praticantes e outros profissionais. Já há nos cursossuperiores de dança brasileiros pessoas que trabalhamna interface entre dança e Educação Somática. Háigualmente cursos de pós-graduação (especialização)sobre a temática e pós-graduandos em diferentesprogramas (educação, saúde e arte) desenvolvendopesquisas sobre Educação Somática.

Nos diferentes espaços nos quais atuo e noscursos que ministro, sejam eles acadêmicos ou deeducação não-formal, tenho disseminado osresultados dessa minha pesquisa teórica e,sobretudo, destacado a “prata da casa”, isto é, otrabalho dos reformadores do movimento nacionais,como Klauss e Angel Vianna e José Antonio Lima.

Da mesma forma como Paulo Freire, no campoda educação, e Augusto Boal, no campo do teatro,tornaram-se referências internacionais, por vezes maisconhecidos e difundidos no exterior que no própriopaís, identifico no trabalho dos Vianna e de JoséAntonio Lima, quanto no trabalho de seus discípulosde primeira e segunda geração, princípios inovadorese resultados surpreendentes no que tange a essecampo do conhecimento, com as mais variadasaplicações e possibilidades. Aqueles que tiveram aoportunidade de estudar com esses verdadeirosmestres, em seus distintos momentos, compreendemo que falo. Caberia talvez ainda, num exercíciohercúleo e enquanto ainda é possível beber na própriafonte (no que toca a Angel e Lima), produzir maisestudos e pesquisas sobre o trabalho desses pioneiros

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tupiniquins, cujos trabalhostêm a somar no campo daEducação Somática e, semdúvida, irão continuar ainfluenciar não apenas oensino da dança, mas asdemais áreas nas quais aeducação corporal estejapresente.

Referências

FORTIN, Sylvie. Educação

somática: novo ingrediente da

aula técnica de dança. Trad.

Márcia Strazzacappa. Cadernos

GIPE-CIT, n. 2, 1999.

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empowering modern dance

teachers. In: SHAPIRO, Sherry

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HANNA, Thomas. Dicionnary definition of the word

somatics. Somatics, n. 4 (2), 1983.

LIMA, José Antonio. Movimento corporal: a práxis da

modernidade. Dissertação (Mestrado em Educação) –

Faculdade de Educação, Universidade Estadual de Campinas,

Campinas-SP, 1994.

PORTE, Allain. François Delsarte: une anthologie. Paris:

Cité de la Musique, 1992.

STRAZZACAPPA, Márcia. Fondements et enseignements

des techniques corporelles des artistes de la scène dans

l’état de São Paulo, au XXème siècle. Tese (Doutorado) –

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_____. O corpo en-cena. Dissertação (Mestrado em

Educação) – Faculdade de Educação, Universidade Estadual

de Campinas, Campinas-SP, 1994.

TODD, Mabel. The thinking body. London: Dance Books,

1997. Primeira edição: 1937.