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OS DIREITOS HUMANOS, A PROTEÇÃO JURÍDICA E AS AÇÕES AFIRMATIVAS DIRIGIDAS AOS IDOSOS HUMAN RIGHTS, LEGAL PROTECTION AND AFFIRMATIVE ACTION TARGETING ELDERLY Ana Isabel Modena RESUMO No plano internacional, apesar de não existir uma norma ou Convenção da ONU que confira proteção jurídica específica ao idoso, existe a previsão de que toda pessoa tenha uma condição de vida que lhe assegure determinados direitos e a segurança em caso de velhice. No Brasil, o idoso, como sujeito de direitos, recebe a proteção jurídica da Constituição e do Estatuto do Idoso de forma específica, além de outros instrumentos que complementam essa proteção. Esses instrumentos se mostram importantes quando invocados diante dos casos de discriminação e violação dos direitos humanos a que são submetidos os idosos, cotidianamente. Para minimizar essas violações, ações afirmativas têm sido dirigidas a categoria no intuito de atingir a inclusão social e o reconhecimento de que os idosos são merecedores. PALAVRAS-CHAVES: IDOSO. DIREITOS. PROTEÇÃO. ESTATUTO DO IDOSO. DISCRIMINAÇÃO. AÇÕES AFIRMATIVAS. ABSTRACT At international level, although there is no standard or UN Convention which provides specific legal protection to the elderly, there is a provision that every person has a condition of life which ensures certain rights and security in the event of old age. In Brazil, the elderly, as a subject of rights, receive legal protection of the Constitution and the Statute of the Elderly in a specific way, and other tools that complement this protection. These instruments become important when faced with cases of alleged discrimination and human rights violations are submitted to the elderly, daily. To minimize these violations, affirmative actions have been directed to the category in order to achieve social inclusion and recognition that the elderly are deserving. KEYWORDS: ELDERLY. RIGHTS. PROTECTION. STATUS OF THE ELDERLY. DISCRIMINATION. AFFIRMATIVE ACTION. INTRODUÇÃO 385

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OS DIREITOS HUMANOS, A PROTEÇÃO JURÍDICA E AS AÇÕES AFIRMATIVAS DIRIGIDAS AOS IDOSOS

HUMAN RIGHTS, LEGAL PROTECTION AND AFFIRMATIVE ACTION TARGETING ELDERLY

Ana Isabel Modena

RESUMO

No plano internacional, apesar de não existir uma norma ou Convenção da ONU que confira proteção jurídica específica ao idoso, existe a previsão de que toda pessoa tenha uma condição de vida que lhe assegure determinados direitos e a segurança em caso de velhice. No Brasil, o idoso, como sujeito de direitos, recebe a proteção jurídica da Constituição e do Estatuto do Idoso de forma específica, além de outros instrumentos que complementam essa proteção. Esses instrumentos se mostram importantes quando invocados diante dos casos de discriminação e violação dos direitos humanos a que são submetidos os idosos, cotidianamente. Para minimizar essas violações, ações afirmativas têm sido dirigidas a categoria no intuito de atingir a inclusão social e o reconhecimento de que os idosos são merecedores.

PALAVRAS-CHAVES: IDOSO. DIREITOS. PROTEÇÃO. ESTATUTO DO IDOSO. DISCRIMINAÇÃO. AÇÕES AFIRMATIVAS.

ABSTRACT

At international level, although there is no standard or UN Convention which provides specific legal protection to the elderly, there is a provision that every person has a condition of life which ensures certain rights and security in the event of old age. In Brazil, the elderly, as a subject of rights, receive legal protection of the Constitution and the Statute of the Elderly in a specific way, and other tools that complement this protection. These instruments become important when faced with cases of alleged discrimination and human rights violations are submitted to the elderly, daily. To minimize these violations, affirmative actions have been directed to the category in order to achieve social inclusion and recognition that the elderly are deserving.

KEYWORDS: ELDERLY. RIGHTS. PROTECTION. STATUS OF THE ELDERLY. DISCRIMINATION. AFFIRMATIVE ACTION.

INTRODUÇÃO

385

Ao longo dos últimos anos, percebe-se um discreto aumento do interesse pelos idosos. Algumas obras sobre o assunto se viram publicar, porém, no campo jurídico, esse interesse não tem tido a expressão merecida, uma vez que inúmeros fatores se interrelacionam na construção dessa normatização.

O poder público, através das três esferas de governo vem buscando viabilizar instrumentos e diplomas legais que tratem dos direitos dos idosos, mas o que se percebe é que há uma demora na implementação do que fora proposto, o que dificulta sobremaneira uma integração maior da sociedade nesse sentido.

A própria Organização das Nações Unidas (ONU), ainda não editou uma normatização que tratasse dos direitos dos idosos de forma unificada e internacionalizada. O que se encontra instrumentalizado é uma Proposta de Convenção da ONU sobre os direitos das pessoas idosas.

Pretende-se, neste trabalho, fazer uma análise dos aspectos que norteiam a questão dos direitos humanos do grupo vulnerável dos idosos, da contextualização e da proteção jurídica conferida ao idoso no plano interno, bem como das ações afirmativas propostas pelas políticas públicas que tratam do tema.

A abordagem aqui pretendida envolve uma pesquisa que procura enfocar esses aspectos num momento em que o desenvolvimento tecnológico experimentado nos últimos anos tem levado os idosos a se restringirem ainda mais e a sentirem sua participação social diminuída frente aos impulsos da modernidade num mundo multicultural.

Nesse sentido, o presente artigo busca suscitar como os idosos, a sociedade civil e o governo têm se mobilizado no sentido de promover políticas públicas que consigam conferir ao idoso a garantia da prioridade absoluta que está disposta no Estatuto do Idoso, no intuito de reconhecer o importante papel por eles desempenhado na sociedade brasileira.

1 DIREITOS HUMANOS DO GRUPO VULNERÁVEL DOS IDOSOS

O interesse pelo estudo da velhice, ou mesmo do idoso como sujeito de direitos, tem aumentado nos últimos anos, não só no aspecto jurídico, mas também nas ciências sociais. Até os anos 80, o tema não despertava maior interesse. A partir de então, quando se percebe que a população mundial está vivenciando um processo de envelhecimento, surge a necessidade de se averiguar quais os direitos humanos que podem ser invocados para a proteção dessa categoria. Afinal, como coloca o autor Raul Granillo Ocampo (2008, p. 388):

El mundo está enfrentando um crecimiento sin precedentes em la población mundial, que en la actualidad se acerca rápidamente a los 5.800 millones de habitantes y que en

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los próximos veinte años puede alcanzar los 8.000 millones, con la particularidad que más del 96% de ese crecimiento se registrará en las comunidades más pobres.

Admitindo-se que o envelhecimento não passou despercebido no processo histórico vivido pela humanidade, uma vez que a expectativa de vida tem aumentado significativamente como conseqüência dos progressos da medicina, não se pode dizer que houve a devida atenção ao tema. Norberto Bobbio (1997, p. 20) traz uma passagem que em muito auxilia a ilustrar o que aqui se quer evidenciar:

Entendamo-nos, a marginalização dos velhos em uma época em que a marcha da história esta cada vez mais acelerada é um dado de fato que é impossível ignorar. Nas sociedades tradicionais e estáticas, que evoluem lentamente, o velho reúne em si o patrimônio cultural da comunidade, destacando-se em relação a todos os outros membros do grupo. O velho sabe por experiência aquilo que os outros ainda não sabem e precisam aprender com ele, seja na esfera da ética, seja na dos costumes, seja na das técnicas de sobrevivência. Não apenas não se alteram as regras fundamentais que regem a vida do grupo e dizem respeito à família, ao trabalho, aos momentos lúdicos, à cura das doenças, à atitude em relação ao mundo do além, ao relacionamento com os outros grupos, como também não se alteram, e passam de pai para filho, as habilidades. Nas sociedades evoluídas, as transformações cada vez mais rápidas, quer dos costumes, quer das artes, viraram de cabeça para baixo o relacionamento entre quem sabe e quem não sabe. Cada vez mais, o velho passa a ser aquele que não sabe em relação aos jovens que sabem, e estes sabem, entre outras razões, também porque têm mais facilidade para aprender.

Há algum tempo, o conhecimento era transmitido de geração em geração através da dedicação dos mais velhos às gerações mais novas. Nos últimos anos, com o avanço tecnológico experimentado, que a tudo dinamiza, houve certo desprezo à experiência acumulada pelos idosos ao longo de décadas de vida e de trabalho.

Enfim, o progresso tecnológico vivenciado nos dias de hoje, deixa o idoso ainda mais à margem da sociedade, o que acarreta certa discriminação quanto a sua condição, não apenas no convívio social, mas no seio da própria estrutura familiar. Porém, não se trata do único fator. Bobbio (1997, p. 21) ainda cita o “envelhecimento cultural”, entendido como uma natural resistência às mudanças, como um fenômeno que contribui para aumentar a marginalização do idoso.

Porém, conforme Giovanni Sartori (1995, p. 115), uma sociedade pluralista deve absorver as dessemelhanças para uma melhor construção social: “Una cultura pluralista implica una visión del mundo basada, en esencia, en la creencia de que la diferencia, y no la semejanza, el disenso, y no la unanimidad, el cambio y no la inmutabilidad, contribuyen a la buena vida.”

Com o objetivo de buscar um melhor entendimento quanto a esses aspectos apontados, passa-se a estudar: os direitos humanos dos idosos, os princípios mais relevantes que podem ser invocados para a promoção da dignidade humana do idoso e os aspectos relativos à inclusão social que se mostrarem relevantes para o bom deslinde do tema.

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1.1 Direitos humanos dos idosos

Ao se buscar uma conceituação de direitos humanos é imprescindível observar o contexto histórico. Nesse aspecto, tais direitos se mostram como um produto desse contexto, o que denota a dificuldade de atribuir-lhes uma definição específica. Inegável, porém, é o fato de apresentarem a característica da universalidade e serem inerentes ao ser humano, independentemente de seu reconhecimento explícito. Ana Maria D’Ávila Lopes (2001, p. 60) comenta:

A universalização dos direitos, fenômeno característico de nossa época, esta ligado à internacionalização política e jurídica da matéria, já que os direitos do homem têm deixado de ser um assunto que atrai a atenção apenas do ponto de vista histórico, filosófico ou doutrinário, transformando-se em um tema que, política e juridicamente interessa a toda a comunidade internacional.

Hannah Arendt entende que os direitos humanos não precisam de uma justificação abstrata, pois nela os homens são concebidos como mudos, incapazes de escolher e agir. É a capacidade de julgar, por si mesmo, que dá aos homens um teor de dignidade imanente que não se verifica em nenhum outro ser e dispensa o atrelamento a qualquer outra dimensão ou critério para justificar a dignidade humana. Atrelados à concepção de juízo político, os direitos humanos passam a ser de homens-cidadãos, seres dotados de autonomia, e não de animais humanos, meros seres de necessidade (AGUIAR, 2008).

Reconhecer a universalidade dos direitos humanos significa entender que os mesmos não podem ser relativizados ou limitados por qualquer tipo de particularidades. Também a indivisibilidade e a interdependência dos direitos humanos aliados à promoção da dignidade da pessoa humana, são de fundamental importância para a defesa e proteção dos direitos do idoso.

Os instrumentos internacionais de direitos humanos são universalistas e a universalidade é enriquecida pela diversidade cultural, a qual não poderá ser invocada para justificar a violação de direitos humanos nem para subordinar uma cultura a outra. Houve uma mudança de consciência das pessoas que hoje demandam igualdade. Will Kymlicka (2008, p. 223) assim se manifesta:

Esse tipo de consciência de direitos tornou-se uma estrutura tão penetrante na modernidade que nós temos problemas em imaginar que ele nem sempre existiu. Mas se examinarmos os registros históricos, nos perceberemos que, no passado, as minorias não justificaram tipicamente suas demandas em apelos aos direitos humanos ou à igualdade, mas em apelos à generosidade dos elaboradores das regras, a fim de pactuar “privilégios”, normalmente como recompensa pela lealdade ou por serviços pretéritos. Hoje, em contraste, os grupos possuem uma poderosa noção do direito à igualdade como um direito humano básico, não como um favor ou uma caridade [...].

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Internamente, o Brasil possui um Programa Nacional de Direitos Humanos, articulado pela Secretaria de Nacional de Direitos Humanos, criada em 1997. O Programa, que surgiu de um compromisso que o governo federal assumiu na Conferência das Nações Unidas para os Direitos Humanos, foi discutido em diversos encontros reunindo representantes das três esferas de governo e da sociedade civil.

Dentro da Secretaria Nacional de Direitos Humanos não existe um departamento exclusivo dos direitos dos idosos, mas o Departamento dos Direitos Humanos é o responsável pelas atividades com a terceira idade, que tem recebido prioridade, principalmente, em virtude da constatação de casos de discriminação e violência contra o idoso e de negligência quanto ao cumprimento da legislação protetiva existente representada, principalmente, pelo Estatuto do Idoso.

Apesar de não existirem pesquisas técnicas oficiais a respeito, sabe-se que é no ambiente doméstico que ocorrem a maioria dos casos de discriminação e agressões físicas contra idosos. De qualquer forma não se pode desprezar a violência e a discriminação sofridas fora de casa.

Em alguns Estados brasileiros já foram criadas promotorias especializadas na área, como é o caso de São Paulo. Assim, o Ministério Público, atuando como fiscalizador da lei pode exigir que as políticas públicas previstas em instrumentos normativos sejam concretizadas com o objetivo de propiciar o efetivo acesso dos idosos aos direitos humanos que lhes são inerentes.

Concluindo, pode-se destacar que a promoção dos direitos humanos dos idosos deve ser resultado de um empenho da sociedade civil, dos poderes constituídos e do próprio idoso, porém, imprescindível se faz conceder condições para que o mesmo possa reivindicar o que atenda as suas necessidades mais prementes concedendo-lhe a dignidade merecida.

1.2 Princípio da dignidade da pessoa humana do idoso

A concepção do pensamento ocidental sobre a dignidade da pessoa humana tem seu gérmen nos primórdios da filosofia grega. Os gregos acreditavam que os homens se distinguiam dos demais animais pelo uso da razão, pela capacidade de compreender o mundo e de utilizar à lógica.

Entretanto, para os gregos, a dignidade não se manifestava da mesma maneira em todos os indivíduos. Mulheres, escravos e estrangeiros eram considerados seres inferiores e não participavam da vida pública. A dignidade (dignitas) tinha relação com a posição social ocupada pelo indivíduo, sendo possível sua quantificação, portanto, alguns homens eram mais dignos do que outros (SARLET, 2007, p.30).

A doutrina cristã representa um importante marco no conceito de dignidade, ao difundir a idéia de que o homem foi concebido à imagem e semelhança de Deus. Neste aspecto, todos os homens são iguais, portadores de um valor próprio que lhes é intrínseco. O

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cristianismo apresenta, ainda, a idéia de uma salvação pessoal baseada na liberdade e no livre-arbítrio.

Após percorrer esse breve caminho histórico, é fácil ver a dificuldade em se conceituar de maneira categórica o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana. Entretanto, acredita-se que, com relativa segurança, se pode utilizar a formulação de SARLET (2007, p.62) para quem a dignidade humana é:

(...) a qualidade intrínseca e distintiva reconhecida em cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos.

Assim, ao utilizar a expressão dignidade da pessoa humana, o constituinte originário quis dar-lhe um sentido de limitador das ações das maiorias e de princípio garantidor, um verdadeiro mandado de otimização dos direitos mínimos inerentes a qualquer ser humano. No tocante às pessoas idosas, esse princípio pode ser efetivado mediante a promoção de políticas públicas previstas em instrumentos jurídicos próprios.

É dever das três esferas de governo dar assistência ao idoso, permitindo condições dignas de vida, atendendo as suas necessidades individuais e coletivas, propiciando locais para sua moradia, cuidados com a sua saúde e atendendo a outras peculiaridades que lhes são próprias.

A ONU declarou o ano de 1999 como o Ano Internacional do Idoso. No Brasil, a partir de 2007, a comemoração do Dia do Idoso também passou a ser no dia 1 de outubro, de acordo com Lei 11.433/2006, assinada pelo Presidente da República.

Através dessa declaração, a ONU intentou estimular a aceitação pelos Estados de alguns princípios que devem nortear as políticas dirigidas aos idosos, quais sejam: a dignidade, a independência, a participação e a auto-realização.

A previsão do princípio da prioridade absoluta no art. 3° do Estatuto do Idoso, inova não apenas no sentido de reunir uma normatização relativa à proteção da pessoa idosa, mas também no sentido de que exige que todos, governo e sociedade, tenham um efetivo envolvimento no sentido de buscar o primado da dignidade do idoso no mais amplo aspecto possível de ser concretizado.

Nessa esteira, o que se percebe, é que, onde não há respeito pela vida, pela integridade física e moral do idoso, quando não existe limitação do poder estatal, liberdade, autonomia, igualdade e os direitos fundamentais não são reconhecidos e minimamente assegurados, não se tem espaço para a dignidade da pessoa humana do idoso. Citam-se esses aspectos, pois, no tocante aos idosos, cotidianamente, toma-se conhecimento de fatos que atentem contra sua dignidade, quer seja por discriminação, por indiferença

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quanto a sua peculiar situação, quer seja por simples descaso ou falta de reconhecimento.

Neste sentido, o valor da dignidade da pessoa humana impõe-se como núcleo básico e informador de todo o ordenamento jurídico. No caso específico dos idosos, esse valor funciona como critério de orientação da interpretação e compreensão do sistema constitucional de proteção da pessoa humana do idoso, como também serve para fundamentar os instrumentos de políticas públicas a eles dirigidas.

1.3 Inclusão social do idoso

O envelhecimento da população de um país, altera o perfil de políticas públicas sociais que devem ser nele empreendidas. Novas estratégias são exigidas e a implementação de benefícios, serviços, programas e projetos relacionados à promoção dos direitos humanos dos idosos se fazem necessárias.

Ao verificar-se que significativa parcela desse grupo de sujeitos de direitos encontra-se em situação de abandono, de marginalização e sendo vítima de maus-tratos praticados, na maioria das vezes, justamente por aqueles que deveriam estar os protegendo, percebe-se a necessidade de mudança de paradigmas.

Em artigo científico na área da saúde que trata da Agenda 21 Global e a Agenda 21 Brasileira: desafios para a inclusão social dos idosos[1], fica mencionado o descaso com que é tratado o idoso no cenário nacional no campo da saúde pública.

O citado artigo coloca que, entre os grupos vulneráveis, crianças, mulheres, jovens e populações indígenas são contemplados com atividades que reforcem o atendimento sanitário, a capacitação e o oferecimento de programas. Mas, quanto aos idosos, inexiste uma atividade específica dirigida a esse grupo. Ainda o mesmo artigo menciona:

[...] No entanto, a realidade nacional acerca das condições socioeconômicas dos idosos não são as mais otimistas. Pesquisa realizada tendo por base de dados a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (PNAD) do ano de 1998, constatou que os idosos com renda mais baixa apresentaram as piores condições de saúde (pior percepção da saúde, interrupção de atividades por problemas de saúde, ter estado acamado e relato de algumas doenças crônicas), pior função física (avaliada por meio de seis indicadores) e reduzido uso de serviços de saúde (menos procura e menos visitas a médicos e dentistas). A conjugação do envelhecimento com a pobreza demonstra a necessidade premente de mais valorização dos idosos, convergindo para mais equidade da distribuição de renda no sentido da busca de um desenvolvimento sustentável.

Observa-se que a questão específica do idoso não é abordada com o mesmo cuidado que é dispensado aos demais grupos vulneráveis estudados por não se reconhecer neles

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efetivos sujeitos ativos participativos, o que é decorrente de uma concepção particularmente ocidental a respeito do tema.

Importante destacar que, quanto a inclusão social dos idosos, o movimento patrocinado pelas universidades da terceira idade, por ser interdisciplinar, em muito contribui para a inserção do idoso como cidadão ativo na sociedade, porém, não se pode aceitar que tal inclusão se resuma a esses aspectos. Há muito mais que pode e deve ser feito por essa categoria que compõe um considerável grupo vulnerável.

Concluindo, há que buscar o rompimento desse paradigma cristalizado numa visão negativa e passiva do idoso. As questões relativas ao processo de envelhecimento devem ser amplamente discutidas e a busca de novas possibilidades de inclusão do idoso como partícipe ativo de decisões devem estudadas e implementadas.

2 A CONTEXTUALIZAÇÃO E OS INSTRUMENTOS LEGAIS DE PROTEÇÃO DOS IDOSOS NO BRASIL

Observa-se ao longo do século XX uma maior preocupação da sociedade mundial com os indivíduos que ingressam na terceira idade, seja no aspecto físico, psíquico ou emocional. Poderia se dizer que a sociedade começa a perceber a importância de mudar o comportamento frente a um aspecto que a todos, de uma forma ou de outra, atinge.

A população idosa, por muito tempo, ficou a mercê de qualquer tipo de reconhecimento, seja no âmbito familiar, seja no âmbito social, seja no âmbito político ou jurídico. O mais comum e noticiado na imprensa eram casos de discriminação, violência, maus-tratos e negligência.

A sociedade rotulava seus idosos como um “peso”, no sentido pejorativo da palavra, como sujeitos dependentes e que, no máximo, poderiam contribuir com a renda da família, através das aposentadorias e pensões, isto se não consumissem o valor das mesmas em medicamentos.

Porém, nos últimos anos, essa visão tem sido mitigada e o idoso passa a ser tido como um sujeito de direitos que enseja toda uma proteção especial do Estado e da sociedade, justamente em respeito a sua peculiar condição. Para melhor análise desses aspectos, passa-se a estudar a definição do idoso e a proteção conferida ao mesmo no âmbito jurídico interno.

2.1 Definição de idoso no direito pátrio

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A Organização Mundial de Saúde (OMS) determina que a terceira idade seja considerada a partir de sessenta e cinco anos. Da mesma forma, a Organização Internacional do Trabalho (OIT), através da Convenção 102, adotando o chamado critério cronológico, considera idoso o maior de 65 anos. Alda Britto da Motta (2007, p. 227) comenta:

É difícil definir velhice, inclusive com delimitação referida ao biológico, por sua inseparabilidade do social. [...]

O ponto central de dificuldade dessa definição forçada reside no fato de os indivíduos serem, ao mesmo tempo, semelhantes e diferentes.

No Brasil, com todas as particularidades que afetam um país de tamanha dimensão geográfica, as desigualdades sociais e regionais, o deficiente sistema de saúde, o baixo nível de desenvolvimento humano e as precárias condições sócio-econômicas, promovem o fenômeno do envelhecimento precoce. Oportuno apontar que, conforme Paulo Roberto Barbosa Ramos (2005, p. 12):

Importante observar que no início o século XX a expectativa de vida da população brasileira era apenas de 33 anos. Nesse contexto, portanto, a velhice não se colocava como questão social relevante, até mesmo porque o número de velhos era pequeno e a velhice era tratada como questão doméstica, do mundo privado.

Com o aumento da expectativa de vida da população e com a intensificação na busca de uma maior proteção jurídica para a categoria dos idosos, principalmente no tocante a previdência e assistência social, o envelhecimento transformou-se em questão de ordem pública social, apesar de a própria Constituição Federal de 1988 não determinar uma idade específica para o idoso no seu texto.

No ano de 1994, através da Lei n° 8.842, que dispõe sobre a política nacional do idoso e cria o Conselho Nacional do Idoso, pelo seu artigo 2°, trouxe como definição de idoso a pessoa maior de sessenta anos de idade. Dispositivo esse corroborado pelo art. 1° do Estatuto do Idoso, Lei 10.741, de 01 de outubro de 2003, considerada um importante instrumento de proteção a esse novo perfil populacional que se apresenta no país.

Poderia se indagar neste momento qual seria o melhor critério para definir a condição de idoso e porque seria importante defini-la. Em relação a esse segundo questionamento é necessário frisar que, a partir do momento em que se confere proteção jurídica a uma categoria, faz-se necessário defini-la com a maior precisão possível.

Nos últimos anos, tem-se observado que os termos utilizados para definir essa categoria sofreram significativa amenização. Paulatinamente, termos de significado pejorativo substituíram outros, o que denota uma mudança na forma de se observar o idoso. Isso

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acontece justamente pela proteção jurídica conferida e pelo interesse que essa categoria tem despertado na sociedade.

De qualquer forma, o tradicional conceito de idoso tem sido determinado pelo critério cronológico, que evidencia estar a pessoa com tantos ou mais anos de vida. Trata-se de uma aferição objetiva, facilmente verificável e adotada por algumas legislações como a da previdência, a tributária e a de políticas públicas e que se mostra relevante neste estudo.

2.2 Idoso como sujeito de direitos

O envelhecimento, apesar de ser um fenômeno natural, desperta sentimentos de piedade, de constrangimento, de solidão, de abandono e de medo. Atinge a todos, indistintamente, e é encontrado em todos os países. Por isso, a busca de mecanismos de proteção jurídica do idoso nos organismos internacionais se mostra importante.

Existem alguns documentos aos quais se possa mencionar como portadores de direitos e garantias aos idosos, mesmo que indiretamente, e que o Brasil se comprometeu a seguir. Veja-se a lição de Denise Gasparini Moreno (2007, p. 160):

Há vários documentos, nem todos falando diretamente em velhice ou senilidade, que o Brasil firmou e se comprometeu a seguir. São eles: Declaração Universal dos Direitos do Homem (1948), Declaração de Estocolmo (1972), Declaração da Filadélfia (1944), Carta da Organização dos Estados Americanos (1948), Declaração Americana de Direitos e Deveres do Homem, Carta Internacional Americana de Garantias Sociais, Convenções 36, 26 e 37 da OIT, Recomendação 67 da OIT. De toda forma, são documentos que mostram uma tendência programática, que levam em consideração uma condição peculiar e que podem, em razão da existência de dispositivo que dá força a outros direitos e garantias, decorrentes do regime e dos princípios adotados pela Constituição Federal, ter a força de norma de direito positivo da República Federativa do Brasil.

A Declaração Universal dos Direitos do Homem, no seu art. XXV, fala que toda pessoa tem direito a uma condição de vida que lhe assegure determinados direitos e a segurança em caso de velhice. Mas, não existe uma norma ou Convenção da ONU que trate do idoso especificamente. Em relação à Declaração Universal dos Direitos do Homem, Denise Gasparini Moreno (2007, p. 161) acrescenta:

Porém, o supracitado documento, ao ditar capacidade de gozo dos direitos e das liberdades, diz não poderem os homens ser distinguidos por seis razões, entre outras, nenhuma delas falando de idade. A Declaração de Estocolmo diz que “o homem tem direitos fundamentais à igualdade e a condições de vida adequadas num meio ambiente que permita uma vida com dignidade e bem estar”. A Declaração da Filadélfia, embora fale em raça, crença e sexo, nada diz da velhice. O mesmo se passa com a Carta da Organização dos Estados Americanos, de 1948, estatuindo também sobre a nacionalidade ou condição social. Já a Declaração Americana dos Direitos e Deveres do

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Homem refere-se à velhice. Há menção também na Carta Internacional Americana de Garantias Sociais.

No Brasil, o reconhecimento de qualquer direito ao cidadão geralmente acontece de forma lenta, atribulada e, até mesmo, desgastante. Quanto ao idoso não se pode dizer que tenha sido diferente. Assim, o efetivo exercício de sua cidadania, que, aqui, poderia se expressar pelo direito a aceitabilidade social, ao efetivo exercício de seus direitos mediante contraprestação estatal nem sempre acontecem de forma natural.

Oportuno salientar que a proteção ao idoso foi contemplada, inicialmente, no direito pátrio e de uma forma mais ampla, na Lei n° 8.842/94, que trata da política nacional do idoso através da criação do Conselho Nacional do idoso, envolvendo os três entes federativos nesta proteção e objetivando garantir o bem-estar físico, emocional e social dos idosos em todo o território nacional.

A Constituição Federal de 1988, se contrapondo as Constituições anteriores de 1946 e 1967, disciplinando a proteção do idoso, no art. 230, determina que a família, a sociedade e o Estado têm o dever de amparar pessoas idosas, defendendo sua dignidade e bem-estar e garantindo-lhes o direito à vida (BRASIL, 2008).

Assim, não se pode negar que a Constituição Federal de 1988 trouxe importante avanço no sentido de se perceber o idoso como um legítimo sujeito de direitos potencial e efetivo, capaz de exigir do Estado maior empenho no desenvolvimento de políticas públicas que atendam às suas necessidades individuais e coletivas.

2.3 A proteção constitucional e infraconstitucional do idoso

O idoso, como autêntico sujeito de direitos que é, dispõe de normas que o abriga no âmbito interno. Constitucionalmente, de muita importância foi a previsão do direito a uma velhice digna, mesmo que indiretamente, uma vez que a dignidade da pessoa humana está expressa como um dos fundamentos da República Federativa do Brasil.

No corpo constitucional, o art. 3°, IV, determina a não discriminação em razão da idade e no art. 5°, inciso XLVIII, determina que a pena seja cumprida em estabelecimentos distintos, sendo um dos critérios de distinção a idade.

Já no Capítulo II, dos Direitos Sociais, mesmo que não haja menção expressa da idade, pode-se entender, pela proteção aos desamparados, que o idoso está amparado naquele capítulo pelo art. 6°.

No art. 7°, inciso XXX, há a expressa proibição de que haja diferença de salários, exercícios de funções e de critério de admissão por motivo de idade. Mesmo que este dispositivo possa ser dirigido aos menores de idade, importante se faz ser invocado também para a proteção do idoso.

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Outra forma de promover o direito dos idosos está prevista no art. 14, § 1°, inciso II, letra “b”, o qual prevê a facultatividade do voto aos maiores de setenta anos, premiando a liberdade do idoso de escolher entre participar ou não do sufrágio, que, de qualquer forma, exige atenção e certo envolvimento no sentido de promover uma escolha sensata.

É a partir do Título VIII, Da Ordem Social, disposto na Constituição Federal de 1988, que começam a ser, expressamente, previstas normas que mencionem a idade avançada (art. 201, I) e idoso (art. 203, V). Basicamente, estes dispositivos tratam da Previdência e da Assistência Social.

No Capítulo VII, Da Família, Da Criança, Do Adolescente e do Idoso, a Constituição Federal trouxe especial destaque ao papel da família e no título do capítulo, bem como em alguns de seus artigos, fez a menção expressa aos direitos dos idosos como o dever de ajuda e amparo que os filhos são obrigados a prestar aos pais na “velhice”. Também no art. 230, §§ 1° e 2°, há menção expressa do dever da família, da sociedade e do Estado de amparo às “pessoas idosas”, preferencialmente em seus lares, assim como, a garantia de gratuidade dos transportes coletivos urbanos.

No tocante a proteção infraconstitucional, como já mencionado anteriormente, foi a Lei 8.842/94 a que, de forma pioneira e mais abrangente, tratou de estabelecer uma série de políticas públicas para a proteção ao idoso.

Sem dúvida, trata-se de um instrumento de ordem social que visa ao estabelecimento de normas gerais, de princípios e diretrizes capazes de promover ações governamentais. Mas, não há como negar o caráter de privatização dos cuidados do idoso que essa norma quis trazer no tocante ao determinar à família a responsabilidade de cuidá-lo.

A finalidade da referida norma parece ser assegurar aos idosos o acesso aos direitos sociais, criando condições para os mesmos de integração, participação ativa e autonomia. Também se percebe que o legislador quis promover a participação dos idosos na vida sócio-econômica do país e, para isso, obrigou todos os entes federativos a participarem efetivamente da promoção destas políticas.

A Lei ainda menciona a necessidade de estar o idoso inserido na comunidade, convivendo e sendo acolhido pela mesma em respeito a sua dignidade, independência e auto-realização. Há o interesse do legislador de promover a troca de experiências entre gerações como forma de melhor aproveitamento dos programas e políticas públicas que são oferecidas. Todos esses aspectos aliados podem promover o pleno exercício da cidadania e, conforme a lição de Denise Gasparini Moreno (2007, p. 163):

Essa política representa reconhecimento oficial de que o Brasil está envelhecendo rapidamente. Há, porém, duas conseqüências, como já analisadas: a expectativa de vida esta aumentando, gerando a preocupação dos gastos com a saúde.

A Lei n° 8.842, de 04 de janeiro de 1994, também criou o Conselho Nacional do Idoso. Referido Conselho, instituído pelo Decreto n° 4.227, de 13.05.2002, tem como finalidade, de acordo com o artigo 3°, supervisionar e avaliar a Política Nacional do Idoso; elaborar proposições, objetivando aperfeiçoar a legislação pertinente à Política Nacional do Idoso; estimular e apoiar tecnicamente a criação de conselhos de direitos do idoso; propiciar assessoramento aos conselhos Estaduais, do Distrito Federal e

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Municipais, no sentido de tornar efetiva a aplicação dos princípios e diretrizes estabelecidos pela Política Nacional do Idoso; zelar pela efetiva descentralização político-administrativa e pela participação de organizações representativas dos idosos na implementação de política, planos, programas e projetos de atendimento ao idoso; zelar pela implementação dos instrumentos internacionais relativos ao envelhecimento das pessoas, dos quais o Brasil seja signatário e elaborar o seu regimento interno.

Logicamente que uma norma com esse escopo exige um acolhimento de toda a sociedade para ser implementada, mas muito mais a sua efetividade dependerá da vontade estatal. Trata-se de disciplinamento de políticas públicas que exigem a contraprestação do Estado.

Outro diploma legal importante que se pode mencionar trata-se da Lei n° 8.742, de 07 de dezembro de 1993, a LOAS, que dispõe sobre a Organização da Assistência Social e que configura a garantia de percebimento de um salário mínimo ao idoso com 70 anos ou mais, desde que o mesmo comprove que não possui meios de prover a própria subsistência e não encontra na família esse amparo.

Em novembro de 2000, foi editada a Lei n° 10.048, a qual dispõe sobre a prioridade no atendimento do idoso, maior de 65 anos, em todos os bancos, órgãos públicos e concessionários de serviço público.

Também a Lei n° 10.173, de 08 de janeiro de 2001 promoveu significativa mudança no Código de Processo Civil permitindo a prioridade na tramitação de processos judiciais de idosos, maiores de 65 anos, em qualquer instância ou tribunal. Trata-se de uma norma extremamente lógica, que permite maior efetividade na busca da justiça, uma vez que o idoso não dispõe de muito tempo para esperar a tutela judicial. E, se esta não for prestada a tempo, nem precisa ser prestada.

Ressalta-se, ainda, que cabe ao Ministério Público atuar quanto à defesa das pessoas idosas na esfera civil ou penal e fiscalizar o fiel cumprimento da legislação específica de proteção individual ou coletiva.

Pelo exposto, percebe-se que, internamente, vários instrumentos foram criados no sentido de se buscar o efetivo gozo de direitos por parte dessa categoria. O que se tem visto na prática, porém, é uma precária divulgação e efetivação desses dispositivos previstos, o que torna o idoso uma categoria vulnerável porque desconhece seus direitos e, assim, não exerce sua cidadania.

2.4 O Estatuto do Idoso (Lei n°10.741/2003)

O Estatuto do Idoso, aprovado em outubro de 2003, corresponde a um conjunto de regras específicas, dirigidas a buscar a efetiva proteção do idoso, com idade igual ou

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superior a 60 anos, reforçando a tutela constitucionalmente prevista. Caroline Fockink Ritt e Eduardo Ritt (2008, p. 106), assim se manifestam na sua obra:

Há muito tempo, essa camada social composta por cerca de 16 milhões de pessoas necessitava de um microssistema jurídico que lhe desse maior atenção, como ocorreu com as crianças e os adolescentes, com o advento do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Ressalta-se que o merecido tratamento ao idoso deveria estar fundamentado nas questões éticas, morais e familiares da sociedade. Porém, na realidade atual, onde a discriminação se faz presente, foi necessária a criação de uma legislação, para que o merecido respeito a essa camada da população brasileira fosse efetivamente realizado.

Observa-se, pela interpretação dos seus dispositivos, que o principal escopo desse microssistema visou a proteção e a valorização social do idoso. Busca a construção e estruturação de uma consciência política e social que confira ao sujeito de direitos, maior de 60 anos, a possibilidade do efetivo usufruto dos seus direitos e garantias fundamentais.

O art. 3°, parágrafo único, do referido diploma legal, prevê o princípio da prioridade absoluta. Essa garantia de prioridade, segundo Marco Antonio Vilas Boas (2005, p.8), tem analogia com as metas da Política Nacional do Idoso, estipulada pela Lei n° 8.842/1994.

A garantia de prioridade significa, pela interpretação da norma legal, que o idoso tem o direito ao atendimento preferencial, imediato e individualizado dos órgãos públicos e privados, que prestem algum serviço à população. E essa prioridade lhe deve ser conferida pela sociedade, pelo Estado, enfim, por todos que de alguma forma estejam envolvidos com a proteção jurídica desses sujeitos de direitos. Caroline Fockink Ritt e Eduard Ritt (2008, p. 109), colocam que:

A explicação é no sentido de que o Estatuto do Idoso quer assegurar o direito aos idosos, como também pretende educar a população, para que dê o devido valor àqueles que o temo e a experiência tornam importantes. O Estatuto não pede compaixão, mas, sim, ordena respeito ao idoso, assegurando seu merecido espaço na vida social.

A prioridade absoluta, também prevista em outros dispositivos ao longo do texto da norma, enfatiza no inciso IV e V do artigo 3°, que deverá ser viabilizado forma alternativa de participação, ocupação e convívio do idoso com as demais gerações, bem como que o mesmo tenha o atendimento necessário prestado pela própria família, em detrimento do atendimento asilar.

Esses dispositivos denotam a preocupação do legislador com a acolhida ao idoso que deve ser prestada por todo sociedade, mas, principalmente, pela própria família, afinal, sabe-se que é nela também que ocorrem os casos mais agressivos de violência e abandono ao idoso.

Ainda em face do princípio da prioridade absoluta e como conseqüência dele, no art. 71, é assegurada a prioridade de acesso à justiça e tramitação dos processos, assim como, a

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criação de varas judiciais especializadas e exclusivas para o idoso, corroborando as inovações introduzidas no Código de Processo Civil, vistas acima.

No art. 14 do Estatuto, interessante imposição fora determinada ao ente estatal. Trata-se da disposição de que se os familiares do idoso não possuírem condições econômicas de prover o sustento do mesmo, ao Poder Público caberá esse provimento, no âmbito da assistência social. Esse dispositivo corrobora a determinação expressa na LOAS e, num país carente como o Brasil, se mostra um importante mecanismo de proteção das necessidades básicas e de busca da dignidade humana do idoso.

Inegável o fato de que o Estatuto do Idoso constitui um microssistema legal que conclama a sociedade em geral e o ente estatal a buscar uma consciência coletiva de respeito e proteção ao idoso, aos direitos que lhe são inerentes, bem como, abre a possibilidade de implantação de uma série de políticas públicas, que correspondem a instrumentos capazes de promover o bem-estar e a integração social do idoso.

3 AS AÇÕES AFIRMATIVAS CONSTANTES DAS POLÍTICAS PÚBLICAS DIRIGIDAS AOS IDOSOS

Com a redemocratização do Estado brasileiro, direitos sociais e coletivos começam a ser destinados aos cidadãos através das prestações estatais. Assim, algumas iniciativas públicas dirigidas aos grupos vulneráveis têm tentado reconhecer esses grupos sociais e suas identidades culturais e diminuir as desvantagens sociais e a exclusão experimentadas por esses grupos.

Outra questão importante que se pode citar é a busca pela promoção da identidade individual, mesmo que esse indivíduo se encontre inserto em um grupo, como é o caso dos idosos. E aqui se faz imprescindível a participação da sociedade civil organizada, através do respeito à dignidade humana e à pluralidade. Sobre pluralidade, assim se manifesta Hanna Arendt (2008, p. 188):

A pluralidade humana, condição básica da ação e do discurso, tem o duplo aspecto de igualdade e diferença. Se não fossem iguais, os homens seriam incapazes de compreender-se entre si e aos seus ancestrais, ou de fazer planos para o futuro e prever as necessidades das gerações vindouras. Se não fossem diferentes, e cada ser humano não diferisse de todos os que existiram, existem ou virão a existir, os homens não precisariam do discurso ou da ação para se fazerem entender. Com simples sinais e sons, poderiam comunicar suas necessidades imediatas e idênticas. Ser diferente não equivale a ser outro – ou seja, não equivale a possuir essa curiosa qualidade de <<alteridade>>, comum a tudo o que existe e que, para a filosofia medieval, é uma das quatro características básicas e universais que transcendem todas as qualidades particulares. A alteridade é, sem dúvida, aspecto importante da pluralidade; é razão pela qual não podemos dizer o que uma coisa é sem distingui-la de outra. Em sua forma mais abstrata, a alteridade está presente somente na mera multiplicação de objetos inorgânicos, ao passo que toda vida orgânica já exibe variações e diferença, inclusive entre indivíduos da mesma espécie. Só o homem, porém, é capaz de exprimir essa

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diferença e distinguir-se; só ele é capaz de comunicar a si próprio e não apenas comunicar alguma coisa – como sede, fome, afeto, hostilidade ou medo. No homem, a alteridade, que ele tem em comum com tudo o que existe e a distinção, que ele partilha com tudo o que vive, tornam-se singularidade, e a pluralidade humana é a paradoxal pluralidade de seres singulares.

O sujeito individualizado, mas pertencente a um grupo será destinatário de políticas públicas que serão prestadas através de ações afirmativas governamentais. Essas políticas públicas, no caso brasileiro, têm sido destinadas a promover a inclusão social e a cidadania dos grupos sociais minoritários. No caso dos idosos, especificamente, o Estatuto do Idoso representou um importante marco no planejamento dessas ações.

A busca pela cidadania dos idosos é uma necessidade premente. Não se pode mais querer delegá-la às gerações futuras, como também não se pode querer a solução simplista do asilamento, até porque o próprio Estatuto impõe à família a obrigação da prioridade absoluta nos cuidados com os idosos.

Outro importante aspecto é o reconhecimento da discriminação em relação ao idoso. A partir do momento que se reconhece sua existência pode-se tentar buscar a solução dos problemas sociais que essa discriminação acarreta para a categoria. Caroline Fockink Ritt e Eduardo Ritt (2008, p. 36) escrevem sobre o tema:

Para Agustini, foi justamente a sociedade capitalista e o modelo liberal que prepondera em nossos dias, que contribuíram para que ocorresse a exclusão social e a conformação dos idosos, atualmente considerados como sendo uma minoria, sendo essa concepção a fonte principal do processo de preconceito e discriminação existente contra os idosos.

Robert Castel, (2008, p 14), no seu livro, comenta que a discriminação negativa marca o seu portador com um “defeito quase indelével” que o associa a um destino embasado numa característica que ele próprio não escolheu, mas que os outros o estigmatizaram. E ainda que a discriminação negativa é a “instrumentalização da alteridade, constituída em fator de exclusão”. Nessa mesma linha, Flávia Piovesan (2008, p. 57), em artigo intitulado “Igualdade, Diferença e Direitos Humanos: Perspectivas Global e Regional” manifesta que:

[...] Vale dizer, a discriminação significa toda distinção, exclusão, restrição ou preferência que tenha por objeto ou resultado prejudicar ou anular o exercício, em igualdade de condições,dos direitos humanos e liberdades fundamentais, nos campos político, econômico, social, cultural e civil ou em qualquer outro campo. Logo, a discriminação significa sempre desigualdade.

O direito à igualdade, constitucionalmente previsto, não impediu que alguns mecanismos de segregação social ocorressem naturalmente. No caso dos idosos a desigualdade de acesso e de oportunidades, mesmo que justificada por razões de natureza biológica, não podem fomentar a discriminação no que ela traz de mais

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agressivo, que é promover a exclusão social. Cármen Lúcia Antunes Rocha (1996, p. 86-87), em artigo científico, assim se manifesta:

Os negros, os pobres, os marginalizados pela raça, pelo sexo, por opção religiosa, por condições econômicas inferiores, por deficiências físicas ou psíquicas, por idade etc. continuam em estado de desalento jurídico em grande parte no mundo, Inobstante a garantia constitucional da dignidade humana igual para todos, da liberdade igual pra todos, não são poucos os homens e mulheres que continuam sem ter acesso às iguais oportunidades mínimas de trabalho, de participação política, de cidadania criativa e comprometida, deixados que são à margem da convivência social, da experiência democrática na sociedade política. Do salário à Internet, o mundo ocidental continua sendo o espaço do homem médio branco. [...] Conclui-se, então, que proibir a discriminação não era bastante para se ter a efetividade do princípio da igualdade jurídica.

Dessa forma, o direito à igualdade, quanto ao conteúdo, pode ser entendido de forma mais ampla. Ou seja, pode-se admitir, e convém que assim se faça, que esse princípio tenha uma aplicabilidade na realidade social através de mecanismos práticos, representados pelas ações afirmativas, que favoreçam ou compensem juridicamente o grupo afetado.

Eduardo Ruiz Vieytez, (2007, p. 189-190), em artigo científico, assim discorre sobre ações afirmativas: “Por otro lado, considerando que uma vez que se adoptam programas de financiación de acciones positivas em favor de los grupos minoritários, la norma que no ofrece a todos los grupos iguales oportunidades pueda entenderse estimarse discriminatória (76).”

No ano de 1997, houve a criação do Plano de Ação Governamental para Integração da Política Nacional do Idoso que congrega a participação de vários Ministérios. O objetivo desse plano de ação é de estimular a criação de locais de atendimento aos idosos, centros de lazer e convivência, casas-lar, oficinas de trabalho, atendimentos específicos e criação da universidade aberta para a terceira idade.

No tocante à criação de universidades abertas, como já citado anteriormente, esse fato em muito contribui para a inclusão do idoso na sociedade. Cabe destacar aqui a importância do aspecto cultural na vida social como um promotor da individualidade e da integração social.

A Política Nacional do Idoso prevê normas jurídicas protetivas aos idosos garantindo-lhes autonomia, integração social e cidadania. Precisa-se, agora, uma maior dinamicidade dessas políticas, precisa-se que sejam, de fato, implementadas.

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CONCLUSÃO

Por muito tempo o idoso teve que esperar por uma proteção jurídica que lhe concedesse o merecido reconhecimento. A Constituição Federal de 1988, oportunamente, conferiu a essa categoria alguns dispositivos nesse sentido, assim como, o Estatuto do Idoso em 2003, também intentou conferir uma proteção especial.

Identificando o idoso como sujeito de direitos especiais, esses instrumentos impuseram à família, à sociedade e aos entes estatais a obrigação de garantir dignidade e reconhecimento a essa categoria como prioridade absoluta.

É inegável que a idade vem acompanhada de vulnerabilidades e redução da capacidade física do indivíduo. Nesse sentido, ações afirmativas devem ser implementadas para minimizar os efeitos negativos decorrentes de tal vulnerabilidade e como instrumentos de busca da igualdade material numa sociedade intercultural.

Ao Estado cabe promover essa igualdade no intuito de propiciar oportunidades e efetivar direitos que, potencialmente positivados, não atingem o fim último da norma, qual seja, conferir cidadania e dignidade a todo cidadão brasileiro, mas de forma especial ao idoso, pela situação de vulnerabilidade em que se encontra.

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[1] A Agenda 21 trata de um plano de ação aprovado na Rio-92. Apresenta-se como um guia participativo, no sentido de envolver governos, sociedades, setor privado e organizações para a busca de um modelo de desenvolvimento sustentável. Visto que o envelhecimento populacional tem se tornado fenômeno cada vez mais presente, inclusive no Brasil, acredita-se ser de fundamental importância a inclusão desse segmento social nos processos decisórios, uma vez que é possível uma visão positiva, com elevado status e papel social da pessoa idosa.

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