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Revista Eletrônica da Faculdade Metodista Granbery
http://re.granbery.edu.br - ISSN 1981 0377
Curso de Direito - N. 21, JUL/DEZ 2016
OS DIREITOS SOCIAIS SOB AS ÓTICAS PROCEDIMENTALISTA E
SUBSTANCIALISTA E A OPÇÃO DA SUPREMA CORTE BRASILEIRA
Eduardo Langoni de Oliveira Filho1
Leonardo Alejandro Gomide Alcántara2
RESUMO
O presente estudo se propõe a fazer uma reflexão a respeito da possibilidade de
intervenção do judiciário na efetivação dos direitos sociais, com base no embate
doutrinário a respeito do tema. A resposta para o caso se dá com o despontar da teoria
substancialista na jurisprudência da Suprema Corte Brasileira, admitindo-se a
intervenção judicial, diante da ineficácia dos poderes representativos em elaborar
políticas públicas de qualidade e que atendam, de fato, àqueles que mais necessitam.
Com este posicionamento jurisprudencial, são muitas as criticas existentes, bem como
os contra argumentos a tais críticas, rendendo um rico debate teórico que enseja
diretamente na exigibilidade ou não dos direitos sociais perante o Estado. Neste sentido,
com base na literatura especializada, se traça uma linha argumentativa na qual se leva
em conta que, embora a atuação jurisdicional não seja o caminho ideal e existam críticas
1 Graduando em Direito na Faculdade Metodista Granbery (10º período); Assessor na Controladoria Geral
do Município de Paraíba do Sul-RJ, com experiência em Licitações e Contratos Públicos. E-mail:
[email protected] 2 Graduado em Direito pela Universidade Federal de Juiz de Fora (2005), mestrado em Sociologia e
Direito pela Universidade Federal Fluminense (2008) e doutorado em Sociologia e Direito pela
Universidade Federal Fluminense (2014). Atualmente é professor da Faculdade Metodista Granbery,
conselheiro do Conselho Municipal de Meio Ambiente de Juiz de Fora, presidente do Programa de
Educação Ambiental - PREA e professor de especialização da Universidade Federal de Juiz de Fora. E-
mail: [email protected]
2
consistentes, estas também possuem falhas que merecem ser suscitadas. Assim sendo,
não pode-se desconsiderar as grandes contribuições dadas ao tema da efetivação dos
direitos sociais pelos órgão judiciais, em especial pelo Supremo Tribunal Federal.
Palavras-Chave: Direitos sociais. Efetivação. Judicialização.
ABSTRACT
The present study aims to make a reflection about the possibility of judiciary’s
intervation on the effectiveness of Social Rights, based on doctrinal clash of the subject.
The reply to the case occurs with the rise of substantialist theory in the jurisprudence of
the Brazilian Supreme Federal Court, assuming the judicial intervention, against the
inefficiency of the representative powers in the development of quality public policies
and attending, indeed, those who really need. With this jurisprudential positioning, there
is a lot of criticism, such as the counter argument for them, raising a rich theoretical
debate which directly motivates the enforceability, or not, of social rights before the
State. This way, based on specialized literature, it is possible to draw an argumentative
line considering that, although the judicial activity is not the best way and there are
some critics about this, these critics have many fails that need to be considered.
Therefore, one cannot disregard the great judicial contribution on social rights
effectiveness, especially by the Supreme Federal Court.
Keywords: Social Rights. Efectiviness. Judicailizitaion.
INTRODUÇÃO
Como o Estado, através dos seus poderes representativos, se mostra
ineficiente em seu papel de promover os direitos sociais, o discurso teórico do Direito
desloca o debate da efetivação desses direitos fundamentais sociais para a seara judicial.
Atenta-se para o Poder Judiciário, por meio de ações coletivas ou individuais, enquanto
via alternativa em que se busca o provimento de direitos sociais insculpidos no texto
Constitucional, e não garantidos pelo Estado através das políticas públicas de qualidade.
3
No ordenamento jurídico brasileiro, o legislador constituinte optou
claramente por dar fundamentalidade aos direitos sociais, atribuindo-lhes proteção
constitucional, razão pela qual se tem o Capítulo II, do Título II, dedicado a tratar dos
direitos e garantias fundamentais, e, além disso, acrescentou, no art. 5, §2º uma cláusula
de abertura que se permite identificar outros direitos fundamentais ao longo do texto
constitucional. Uma vez inseridos na redação Constitucional, fazem com que o Estado
receba a denominação de Estado Social Democrático de Direito.
Com efeito, atribuir a tais direitos status constitucional e intitulá-los de
“direitos e garantias fundamentais” demonstra a preocupação do legislador para com a
proteção. Todavia, tal fato não indica em qual medida os direitos sociais devem ser
juridicamente protegidos, e, neste ponto, são inúmeras as discussões doutrinárias,
especialmente, por envolver a distribuição de recursos escassos, como já vimos
anteriormente. Começaremos uma abordagem desse aspecto com uma análise de duas
teorias que advogam posicionamentos distintos a respeito da força normativa do texto
Constitucional.
A FORÇA NORMATIVA DA CONSTITUIÇÃO: UMA ANÁLISE DAS
TEORIAS PROCEDIMENTALISTA E SUBSTANCIALISTA3
Abordar a temática da efetivação dos direitos sociais que estão previstos
expressamente no na Carta Constitucional, nos remete a refletir sobre a força normativa
das normas editadas pelo legislador constituinte, e, para tanto, ganha destaque no campo
doutrinário o embate entre as teorias substancialista e procedimentalista. A discussão
principal que envolve estas duas formas distintas de solucionar conflitos jurídicos reside
na divergência teórica sobre o papel do poder judiciário e justiça Constitucional, quando
se busca a efetivação dos preceitos constitucionais não regulamentados por normas
inferiores. Em palavras que muito bem sintetizam o exposto, vejamos o que nos traz
Pereira:
3 Na doutrina se vê comumente a utilização de nomenclaturas distintas para essas teorias, a saber: “tese da
máxima efetividade” e “abordagem minimalista”, conforme utilizados por Jane Reis Gonçalvez Pereira
(2015, pp. 2080-2114), todavia, substancialmente a primeira tese advoga os preceitos substancialistas,
enquanto a segunda adota os preceitos procedimentalistas, à medida que negam que seja papel do
judiciário promover a efetivação de direitos sociais, excepcionando dessa “regra” os casos de garantia do
mínimo existencial, que, inclusive, ganham concepção extremamente restritiva. Pereira expõe quais
seriam esses direitos exigíveis para Ana Paula de Barcellos: a educação fundamental, a saúde básica, a
assistência em caso de necessidade e o acesso à justiça.
4
Paralelamente às discussões sobre a definição e a fundamentalidade
dos direitos sociais, e de forma estreitamente interligada, surgem as
controvérsias sobre se tais direitos são “justiciáveis”, ou seja, se as
prestações necessárias para sua realização podem ser exigidas em
juízo como direitos subjetivos. O problema não abarca direitos que já
foram concretizados por meio de leis ordinárias e que, portanto, já se
tornaram exigíveis segundo a fórmula ortodoxa de fabricação de
direitos subjetivos. O núcleo da controvérsia reside em saber em que
medida o judiciário pode extrair direitos a prestações diretamente de
cláusulas constitucionais e determinar, de forma coercitiva, sua
implementação pelo Estado (2014, p. 2099-2100).
A teoria substancialista defende uma maior atuação da justiça
constitucional, pois segundo essa doutrina o texto da Constituição imputa ao Estado
determinadas obrigações em face dos jurisdicionados independente da existência de lei
infraconstitucional ou de políticas públicas regulamentando os direitos fundamentais
sociais, trazendo assim a ideia de aplicabilidade imediata dos direitos fundamentais.
Em destaque na defesa dessa teoria, se tem na doutrina nacional Streck, que
argumenta no sentido de que na Constituição Federal o Legislador optou, claramente,
por compromissar o Estado com as causas sociais, atribuindo ao poder público papel de
protagonista no combate às desigualdades sociais, conforme preceitua o art. 3° da Carta
de 1988. Na preocupação com a transformação social da sociedade brasileira, a
efetividade da Constituição é tema certo na agenda de todos os juristas, já que, nossa
sociedade, “em mais de cinco séculos de existência, produziu pouca democracia e muita
miséria, fatores geradores de violências institucionais (veja-se a repressão produzida
pelos aparelhos do Estado) e sociais (veja-se o grau exacerbado da criminalidade)”
(2009, p.34).
É neste cenário que a falta de representatividade dos poderes eleitos –
omissão e falta de comprometimento com as causas sociais do legislativo e ineficiência
do executivo em elaborar políticas públicas de qualidade – que se tem a legitimação do
judiciário, conforme apontado por Streck.
Parece não restar dúvida de que as teorias materiais da Constituição
reforçam a Constituição como norma (força normativa), ao
evidenciarem o seu conteúdo compromissório a partir da concepção
dos direitos fundamentais-sociais a serem concretizados, o que, a toda
evidência – e não há como escapar dessa discussão – traz à baila a
questão da legitimidade do poder judiciário (ou da justiça
constitucional) para, no limite, isto é, na inércia injustificável dos
demais poderes, implementar essa missão (2009, p.25).
Em sentindo divergente, a teoria procedimentalista, que tem como grande
defensor Jürgen Habermas, advoga a ideia de que, ao texto constitucional, compete
5
apenas definir os procedimentos democraticamente adequados para a garantia dos
direitos nele previstos.
Habermas propõe um modelo de democracia constitucional que não
tem como condição prévia fundamentar-se nem em valores
compartilhados, nem em conteúdos substantivos, mas em
procedimentos que asseguram a formação democrática da opinião e da
vontade e que exige uma identidade política não mais ancorada em
uma “nação de cultura”, mas, sim, em uma “nação de cidadãos”.
Critica a assim denominada “jurisprudência de valores”, adotada pelas
cortes européias, especialmente a alemã. Nos Estado Democrático de
Direito, os Tribunais Constitucionais devem adotar uma compreensão
procedimental da Constituição. Habermas propõe, pois, que o
Tribunal Constitucional deve ficar limitado à tarefa de compreensão
procedimental da Constituição, isto é, limitando-se a proteger um
processo de criação democrática do direito. O Tribunal Constitucional
não deve ser um guardião de uma suposta ordem suprapositiva de
valores substanciais. Deve, sim, zelar pela garantia de que a cidadania
disponha de meios para estabelecer um entendimento sobre a natureza
dos seus problemas e a forma de sua solução (STRECK, 2009, p. 29).
Vale destacar uma das principais críticas à teoria substancialista – razão da
preocupação de Habermas, que reside na suposta legitimação do “ativismo judicial” e
consequente violação das funções de checks and balences, que sustentam o Estado
Democrático Constitucional.
Na visão da teoria do discurso sustentada por Habermas, a lógica da
divisão de Poderes exige uma assimetria no cruzamento dos Poderes
do Estado: em sua atividade, o Executivo, que não deve dispor das
bases normativas da legislação e da justiça, subjaz ao controle
parlamentar e judicial, ficando excluída a possibilidade de uma
inversão dessa relação, ou seja, uma supervisão dos outros dois
Poderes através do Executivo. A lógica da divisão de Poderes não
pode ser ferida pela prática de um tribunal que não possui meios de
coerção para impor suas decisões contra uma recusa do parlamento e
do governo (STRECK, 2009, p. 29).
Segundo essa corrente, a relação entre o Estado e seus jurisdicionados através
da democracia, respeitando a separação de poderes impostas pelo texto constitucional, é o
caminho da mais adequado para a garantia dos direitos fundamentais sociais. Conforme
defende essa teoria, teriam aplicação mediata, ou seja, dependeriam dos poderes
legitimados pelo constituinte para regulamentar através de normas infraconstitucionais
ou então através de políticas públicas, somente assim poderiam ser exigíveis pelo
cidadão frente ao Estado tais direitos. Desta forma, a normatização constitucional teria
caráter programático, ou seja, iria servir de diretriz para a futura regulamentação
6
inferior, criando distinção entre a aplicabilidade dos direitos de primeira geração4 e os
direitos sociais, sendo os primeiros de aplicação imediata, enquanto os últimos não.
Com efeito, Streck (2009, p.31) deixa claro que a teoria substantiva não
coaduna com a qualquer prática de ativismo judicial, “definidos como decisionismos
praticados a partir de discricionariedades interpretativas”, que venham a comprometer a
ordem constitucional-democrática.
Quanto à distinção defendida pelos procedimentalistas a respeito da
aplicação imediata dos direitos de primeira geração e mediata dos direitos sociais, a
doutrina majoritária se posiciona de forma contrária, sob o argumento de “ferir de
morte” a teoria dos direitos fundamentais, à medida que o próprio legislador constituinte
atribuiu a todos os direitos fundamentais o mesmo tratamento. Neste sentido, Pereira
(2015) afirma que “[...] a Carta de 1988 não estabelece um regime jurídico distinto para
os direitos sociais e os direitos de liberdade. Essa decisão constituinte encarta o
desdobramento lógico de tratá-los, no plano metodológico, de forma tendencialmente
uniforme”.
Cunha Júnior defende que de fato existem normas definidoras de diretrizes e
que devem ser implementadas pelos órgãos representativos, como é o caso de uma
norma de eficácia limitada, por exemplo, que será regulamentada pelo legislador.
Todavia, essa condição não destitui a aplicabilidade imediata da norma, exigindo apenas
maior esforço do órgão do judiciário ao decidir a matéria para garantir a efetivação dos
direitos sociais, pois qualquer “órgão do judiciário encontra-se investido do dever-poder
de aplicar imediatamente, diante do caso concreto, as normas de direitos fundamentais,
assegurando o pleno gozo das posições subjetivas neles consagradas” (2007, p. 404).
Em que pese os próprios substancialistas reconhecerem a contribuição dada
por Habermas e outros procedimentalistas ao Direito, a sustentação dessas teses num
país como o Brasil é difícil, pois os Direitos Sociais estão previstos no próprio texto
4 A organização dos direitos em gerações foi feita por Karel Vasak em palestra de 1979, proferida no
Instituto Internacional dos Direitos do Homem, em Estrasburgo - França. O autor associou a evolução
histórica dos direitos humanos aos ideais da Revolução Francesa (Liberdade, Igualdade e Fraternidade).
Assim, afirmou que a primeira geração protegeria os direitos humanos como direitos de liberdade,
abrangendo os direitos civis e políticos; a segunda geração os protegeria como direitos de igualdade,
abarcando os direitos sociais, culturais e econômicos, sendo marca desta geração o caráter prestacional
dos direitos; e a terceira geração os protegeria como direitos de fraternidade, envolvendo os direitos
transindividuais, como o direito ao meio ambiente. Atualmente, alguns autores falam em outras gerações
de direitos. Paulo Bonavides, por exemplo, defende a existência de uma quarta geração de direitos, os
quais estariam ligados à globalização política na esfera da normatividade jurídica. Assim, o autor
enquadra nesta geração o direito à democracia, o direito à informação e o direito ao pluralismo.
(PEREIRA, 2015, p. 2087)
7
Constitucional, e, passados longos anos desde a promulgação da Constituição Cidadã,
grande parte dos direitos lá previstos continuam não cumpridos, enquanto os níveis de
desigualdade social permanecem com suas profundas raízes na sociedade. No mais,
continua Streck citando Laurence Tribe, que, o próprio procedimento, em sua essência,
tem sua fundamentação da dignidade pessoal, e, portanto, é deveras valioso em si
mesmo, possuindo assim caráter substantivo. Além disso, defender que cabe ao
julgador, intérprete da Constituição, apenas garantir a participação (o processo) supõe
“um empobrecimento do papel da teoria da Constituição”, uma vez que esta pareceria
não se dirigir aos cidadãos, e sim aos julgadores (2009, p. 30-31).
Os embates entre as duas teorias extrapolam as páginas de qualquer obra
que os tente abordar completamente, e desbordariam os limites deste estudo, todavia, já
apresentadas ambas as teorias e parte do rico conteúdo jurídico que as cerca, cabe
destacar uma terceira corrente teórica acerca da justiciabilidade dos direitos sociais, para
posteriormente adentrar nas reflexões críticas e contra-argumentos a respeito do tema.
A JUSTICIABILIDADE DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS COMO NORMAS
VINCULANTES PRIMA FACIE
Essa terceira vertente teórica a respeito da justiciabilidade dos direitos
sociais, que não terá uma análise aprofundada, conta com parte substancial da doutrina
brasileira, e consiste em defender que ograu de exigibilidade de um determinado direito
vai depender de uma análise ponderada das normas constitucionais, pautada sempre
pelo princípio da proporcionalidade.
Segundo Pereira (2015), “a proporcionalidade aplicada aos direitos
prestacionais e aos deveres de agir do Estado, funciona como a ‘vedação da proteção
suficiente”, pois ela surgiu para balizar a constitucionalidade da intervenção estatal nos
direitos fundamentais, sendo assim um instrumento hermenêutico para controle das
ações estatais potencialmente violadoras dos direitos.
Essa corrente se pauta no instrumental teórico da reconhecida teoria dos
princípios de Robert Alexy, na qual se tem como pressuposto que as normas de direitos
sociais, assim como as definidoras dos direitos de liberdade, possuem uma dimensão
principiológica; desta forma, determinam algo que deve ser realizado da melhor maneira
possível, considerando tanto as situações fáticas quanto as jurídicas.
Nesse modelo de Alexy se tem que:
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[...] as ponderações das quais se extraem normas de direitos
fundamentais sociais definitivas partem da premissa de que esses
direitos defluem do princípio da liberdade fática, sendo que os direitos
prestacionais prima facie que se constroem como consectários da
liberdade são ponderados com o princípio democrático e com o
princípio da margem de conformação do legislador (PEREIRA, 2015,
p. 2103).
Em que pese essa teoria permitir uma melhor solução para os conflitos
constitucionais envolvendo direitos sociais, deve-se levar em conta que, a constituição
alemã não apresenta um rol de direitos fundamentais, deferentemente da brasileira, que
de forma expressa elenca um catálogo de direitos que não se apresentam apenas como
mandados de otimização, mas possuem status constitucional autônomo.
Além disso, a inexistência de critérios para balizar um eventual
sopesamento dificulta se chegar a um equilíbrio conforme indica Pereira.
A vantagem da ponderação, como em outros contextos, é permitir um
equilíbrio entre vinculatividade das normas constitucionais que
enunciam direitos socais e deferência às escolhas democráticas. Esse
equilíbrio, porém, depende da formulação de critérios de sopesamento
minimamente uniformes e previsíveis, tarefa ainda por realizar no
constitucionalismo brasileiro (2015, p. 2103).
Sendo assim, ainda que se defenda uma melhor adequação dessa teoria para
a solução dos casos práticos, ela demanda aprimoramento para que possa ser aplicada
no cenário brasileiro.
A OPÇÃO DA SUPREMA CORTE BRASILEIRA
Paralelamente às inacabadas discussões doutrinárias a respeito da
justiciabilidade dos direitos sociais, se vê que a abordagem minimalista (teoria
procedimental) não prevalece no ordenamento jurídico brasileiro, ainda assim, há quem
defenda que os direitos prestacionais devem ser “tirados das Cortes” (TUSHNET apud
PERERIRA, 2015, p. 2104).
Na Corte Constitucional brasileira, por conta do próprio rumo dado pela
Constituição de 1988, que passou a exigir do poder judiciário uma maior atuação para a
garantia da efetividade dos direitos sociais insculpidos no texto Constitucional, se vê
claramente a teoria substancialista se destacando nas decisões. É neste sentido que se
posiciona Pereira (2015) ao afirmar o ápice do otimismo doutrinário e jurisprudencial
relacionado à implementação dos direitos sociais via judiciário se deu com a decisão do
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STF anunciando que “a interpretação da norma programática não pode transformá-la em
promessa inconsequente”5.
No mesmo sentido, trago a baila um trecho significativo e que conforma
essa posição do judiciário em favor da tese da máxima efetividade.
No entanto, parece-nos cada vez mais necessária a revisão do vetusto
dogma da Separação dos Poderes em relação ao controle dos gastos
públicos e da prestação dos serviços básicos no Estado Social, visto
que os Poderes Legislativo e Executivo no Brasil se mostraram
incapazes de garantir um cumprimento racional dos respectivos
preceitos constitucionais.A eficácia dos Direitos Fundamentais Sociais
a prestações materiais depende, naturalmente, dos recursos públicos
disponíveis; normalmente, há uma delegação constitucional para o
legislador concretizar o conteúdo desses direitos. Muitos autores
entendem que seria ilegítima a conformação desse conteúdo pelo
Poder Judiciário, por atentar contra o princípio da Separação dos
Poderes (...).Muitos autores e juízes não aceitam, até hoje, uma
obrigação do Estado de prover diretamente uma prestação a cada
pessoa necessitada de alguma atividade de atendimento médico,
ensino, de moradia ou alimentação. Nem a doutrina nem a
jurisprudência têm percebido o alcance das normas constitucionais
programáticas sobre direitos sociais, nem lhes dado aplicação
adequada como princípios-condição da justiça social. A negação de
qualquer tipo de obrigação a ser cumprida na base dos Direitos
Fundamentais Sociais tem como conseqüência a renúncia de
reconhecê-los como verdadeiros direitos. (...) Em geral, está crescendo
o grupo daqueles que consideram os princípios constitucionais e as
normas sobre direitos sociais como fonte de direitos e obrigações e
admitem a intervenção do Judiciário em caso de omissões
inconstitucionais (APDF 45, Min. Celso de Mello, DJ 4/5/2004).
Em um cenário como o nosso, discordar do posicionamento do STF e partir
para a defesa de uma prática procedimentalista, ou seja, a atribuição de aplicabilidade
mediata aos direitos sociais previstos no texto Constitucional, além de ferir a própria
Carta Maior, comprometeria ainda mais a efetivação desses direitos essenciais à
dignidade da pessoa humana.
Acrescento ainda que vive-se hoje um grande déficit democrático, no qual
os poderes eletivos estão corrompidos ou comprometidos com causas diversas ao
atendimento dos anseios da sociedade. Desta forma, reconhecer aplicabilidade dessa
teoria, enseja em depender mais uma vez do legislador ou do chefe do executivo para
5 Neste sentido acrescenta Pereira citando o julgado do STF (RE nº 271286 AgR) ‘[...] sob pena de o
Poder Público, fraudando justas expectativas nele depositadas pela coletividade, substituir, de maneira
ilegítima, o cumprimento de seu impostergável dever, por um gesto irresponsável de infidelidade
governamental ao que determina a própria Lei Fundamental do Estado’.
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elaborar em políticas públicas ou leis infraconstitucionais que regulamentem os direitos
sociais e com isso os torne exigível perante o poder público.
Neste sentido, com a prevalência das teses substancialistas, se vê o
judiciário assumindo um papel cada vez mais decisivo no âmbito da efetivação dos
direitos sociais, e para tanto, proferindo decisões que ensejam um leque considerável de
críticas, que serão o tema do próximo item.
REFLEXÕES CRÍTICAS À JUDICIALIZAÇÃO DOS DIREITOS SOCIAIS E
OS CONTRA-ARGUMENTOS
Os argumentos trazidos pela doutrina contrária a judicialização dos direitos
sociais são diversos e dada a relevância merecem no espaço campo jurídico-
argumentativo.
No presente momento, serão abordados os principais argumentos e seus
contra-argumentos; para tanto, utilizarei as premissas apontadas por Pereira (2015), de
que “a participação do Judiciário no processo de efetivação desses direitos se impõe
como consectário da velha noção de ‘checks and balances’ e da própria ideia do Estado
de Direito”. Além disso, a autora lista alguns aspectos do cenário brasileiro, que, por
sua presença marcante na sociedade não podem ser ignorados numa análise sobre as
críticas à judicialização dos direitos sociais, conforme segue:
1. A Constituição fez a clara opção de tratar as prestações sociais
como autênticos direitos;
2. O Brasil convive com índices de desigualdade e exclusão
alarmantes, que geram demandas cuja gravidade, urgência e
relevância não permitem aguardar o andamento ordinariamente lento
que envolve o processo de formulação e implementação de políticas
públicas; e
3. As instituições legislativas e administrativas não têm uma tradição
de agilidade, eficiência e tratamento prioritário na proteção de direitos
sociais, razão por que não se pode prescindir de instrumentos
corretivos para impulsionar a atuação dos agentes políticos
(PEREIRA, 2015, p. 2104).
Apresentadas as premissas, inicio a abordagem das principais críticas bem como
o debate que as cerca.
A ILEGITIMIDADE DEMOCRÁTICA DO JUDICIÁRIO NA ALOCAÇÃO DE
RECURSOS PÚBLICOS ESCASSOS
11
Esse argumento guarda relação com o caráter contramajoritário das decisões
judiciais, e a crítica reside na sustentação da ilegitimidade democrática do judiciário em
interferir nas decisões tomadas pelos poderes representativos. Em especial, no caso em
tela, àquelas decisões em que os órgãos eletivos deliberaram sobre a alocação de
recursos públicos. Neste sentido, argumenta-se que a intervenção judicial compromete a
liberdade de alocação orçamentária, pois interfere no planejamento financeiro e
restringe a discricionariedade do Executivo em distribuir tais recursos.
Essa argumentação guarda pertinência ao tema, todavia, uma abordagem
mais ampla sobre a temática nos remete a uma análise desse mesmo argumento por um
ângulo distinto. De fato, por determinação constitucional é de competência dos poderes
representativos as deliberações acerca da alocação dos recursos. Poderes estes que
foram eleitos pelos cidadãos.
Neste ponto, temos que relembrar que a representação política não se dá de
“forma completa6”, pois vivemos numa sociedade em níveis de desigualdade
alarmantes, e neste sentido, Pereira afirma que “contextos de acentuada desigualdade
social e assimetrias distributivas fabricam processos democráticos disfuncionais”,
criando-se, com isso, cenários de sub-representação política, e, consequentemente, um
déficit democrático. Desta forma, a atuação judicial pode se dar no sentido de facilitar o
acesso à recursos que fortalecem as condições da democracia (2015, p. 2106).
Além desse fato, tem-se ainda a argumentação tecida sobre a noção de
reserva do possível, que, segundo Dirley da Cunha Júnior (2007) deve ser “entendida
como a possibilidade de disposição econômica e jurídica por parte do destinatário da
norma”.
O conceito de reserva do possível vem da jurisprudência alemã (LEIVAS,
2006, p. 97-98), na qual um cidadão buscava a ampliação das vagas em um curso e
medicina, argumentando que tal demanda se amparava na previsão constitucional
daquele país a respeito da liberdade profissional. Neste sentido, a Corte germânica
entendeu que, de fato cabe ao Estado viabilizar o acesso ao ensino superior, todavia,
deve haver um limite entre aquilo que o indivíduo pode razoavelmente exigir da
6 Utilizo a expressão para fazer referência ao processo eleitoral, pois ainda que se tenha a regra de “uma
pessoa um voto”, uma escolha consciente enseja um exercício pleno de outros direitos que vão além dos
direitos políticos, como, por exemplo, a liberdades (direitos de primeira geração) e também uma garantia
mínima de condições sociais (direitos sociais).
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sociedade, cabendo ao legislador equilibrar a tensão demandada individualmente com
os interesses coletivos.
É nesta linha, que Pereira acrescenta que “atribui-se ao conceito uma dupla
dimensão: a fática e a jurídica. Na primeira, está em pauta a escassez de recursos. Na
segunda, a necessidade de autorização orçamentária (SARLET, 2009, p. 289)”.
O instrumental teórico importado do direito alemão vem sendo utilizado na
prática nacional, entretanto, banalizou-se a argumentação no sentido de que hoje se usa
indiscriminadamente como contra-argumento Estatal em demandas por atendimento a
direitos sociais. É esse o entendimento de Pereira, ao dizer que “o conceito foi
desgastado pelo uso indiscriminado como cláusula-coringa para respaldar a negação da
possibilidade de implementar direitos fundamentais” (2015, p. 2107).
Sobre o ponto, Cunha Júnior se manifesta no sentido que não se pode aceitar
a argumentação da reserva do possível para eximir o Estado de atender aos direitos
fundamentais sociais. Vejamos.
[...] não podemos concordar com aqueles que sustentam, com base na
doutrina estrangeira, encontrar-se a eficiência dos direitos
fundamentais dependente do limite fático da reserva do possível,
porque sempre haverá meio de remanejar os recursos disponíveis
retirando-os de outras áreas(transporte, fomento econômico, serviço
da dívida, etc.), onde sua aplicação não está tão intimamente ligada
aos direitos mais essenciais do homem, como a vida, a integridade
física, a saúde e a educação por exemplo. (CUNHA JUNIOR, 2007, p.
418-419)
Acrescenta ainda o mesmo autor.
[...] “imaginar que a realização desses direitos depende de ‘caixas
cheios’ do Estado significa reduzir a zero, o que representaria uma
violenta frustração da vontade constituinte” (CUNHA JUNIOR, 2007,
p.419).
Desta forma, deve-se entender a reserva do possível não como trunfo Estatal
alegado em qualquer demanda para mostrar a impossibilidade de se atender um direito
prestacional, mas sim coma baliza para se interpretar aquilo que pode ser razoavelmente
exigido do poder público. Visa não uma “fuga” do Estado de suas obrigações para com
seus jurisdicionados, mas sim um “fazer da melhor forma possível” com as limitações
que o ente público possui.
A INCAPACIDADE INSTITUCIONAL DO JUDICIÁRIO PARA DECIDIR
SOBRE POLÍTICAS PÚBLICAS
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Nesse aspecto, critica-se a atuação do judiciário por alegar que este órgão não
possui capacidade institucional para decidir questões relativas às politicas públicas.
Segundo essa corrente, os juízes não tem expertise para lidar com demandas que
envolvem conhecimentos técnicos setorizados, e, além disso, eles decidem com base
nos elementos de um processo judicial, que não é uma ferramenta adequada para se
produzir esse tipo decisão, pois ele tem informações e tempo limitados. Neste sentido,
defende-se que o judiciário não deveria atuar, especialmente, porque, depois de decidido
tem-se um precedente que pode influenciar futuras decisões (PEREIRA, 2015, p. 2111).
Tal elemento não pode ser desconsiderado no sistema jurídico brasileiro, em
que as decisões são fontes para as futuras manifestações do judiciário, todavia, essa
preocupação com os efeitos sistêmicos da decisão não é uma peculiaridade das
demandas envolvendo a efetivação dos direitos sociais, pois, como em outras áreas do
direito, tal fato também ocorre e não é fato impeditivo.
Além disso, argumentar que os juízes não tem expertise parte do
pressuposto de que a administração pública tem uma atuação ideal. Todavia, essa
idealização está bem longe da prática brasileira. Como muito bem aborda Jane Reis,
Há contextos em que a precariedade e baixa qualidade dos órgãos
técnicos e dos serviços contribui para um cenário de disfuncionalidade
em dois ângulos. Em um primeiro momento, gera crises de confiança
nos usuários, contribuindo para o aumento da judicialização. Em um
segundo momento, a precariedade do aparato administrativo torna-se
um fator que coopera para a baixa qualidade do contraditório no
processo (2015, p. 2111).
Desta forma, percebe-se que a má preparação do aparato estatal não prejudica
somente a prestação dos serviços prestacionais, mas também a formação e instrução de
um eventual processo judicial, dificultando o correto convencimento da autoridade
julgadora.
Quanto a falta de expertise dos magistrados em decidir sobre assuntos
específicos, destaco aqui a abordagem de Castro (2012), sobre a cooperação realizada
em o Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro e a Secretaria de Justiça do
mesmo estado, para implementar o Núcleo de assessoria Técnica (NAT), que tem como
objetivo auxiliar os julgadores na hora de decidir algum caso específico da saúde,
através da emissão de pareceres.
Sobre o assunto, acrescenta Pereira.
14
Os instrumentos de cooperação são relevantes não apenas por
contribuírem para a formação de um processo judicial deliberativo,
mas também porque questões envolvendo direitos sociais encerram
um amálgama entre saber científico, escolhas políticas e direito. Se
não é simples desenhar a linha que traça a fronteira entre direito,
técnica e política, fórmulas processuais que viabilizem a interlocução
entre os protagonistas de cada um desses domínios contribuem para
decisões mais justas, do ponto de vista substantivo, e mais
justificadas, do ponto de vista procedimental (2015, p. 2112).
Quanto a argumentação no sentido de se criar uma preferencia abstrata pela
adoção de ações coletivas e não demandas individuais, temos que “ a maior
conveniência na aplicação de um ou outro mecanismo depende de uma série de fatores
contingentes, não sendo possível estabelecer esse tipo de prioridade” (PEREIRA, 2015,
p. 2113).
Se por um lado as ações coletivas permitem uma correção de falhas estruturais,
por outro, elas apresentam pontos, ao ver Pereira, negativos, como por exemplo, o grau
de interferência nas políticas públicas. Quando se decide em sede de ação individual,
permite-se a promoção da isonomia com uma menor intervenção nas políticas públicas.
Além disso, sob o ângulo pragmático, a decisão em sede e ação coletiva implica em
efeitos mais abrangentes, demandando maior investimento e consequentemente maior
resistência de atendimento por parte de executivo, causando uma maior tensão entre os
poderes judiciário e executivo. No mais, uma demanda maior de ações individuais pode
representar um impulso político para as instituições que possuem legitimidade de
ajuizar ações coletivas o façam, ou mesmo, para que os poderes representativos possam
rever suas decisões sobre as alocações dos recursos públicos, voltando- as para as
maiores demandas da população, de forma a atender, de fato, os mais necessitados
(PEREIRA, 2015, p. 2113-2114).
Desta forma, criticar a capacidade judicial depende do que se espera desse
órgão; se não for considerado que o papel do judiciário é decidir de forma abrangente
sobre a alocação de recursos públicos, mas sim atuar na correção de injustiças
decorrentes de descumprimentos de obrigações constitucionais, os mecanismos judiciais
serão muitas vezes adequados. Todavia, com o aumento significativo das demandas
judiciais, é imposto ao judiciário um experimentalismo institucional, buscando soluções
coletivas e amparadas na construção de procedimentos deliberativos (PEREIRA, 2015,
p.2114).
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OS EFEITOS DESIGUALITÁRIOS DA JUDICIALIZAÇÃO
É comum ver a alegação de que a judicialização dos direitos sociais através de
ações individuais gera efeitos desigualitários, favorecendo assim a classe média e
fechando os olhos para os grupos marginalizados. Neste caso, haveria a necessidade da
Administração Pública destinar parte de seus recursos para atender às demandas
judiciais, deixando de aplicá-los em políticas públicas abrangentes, elaboradas pelos
órgãos representativos, ferindo assim o caráter da isonomia dessas políticas.
Em que pese a argumentação ser pertinente, numa análise mais minuciosa, e
muito bem feita por Jane Reis, percebe-se que essa abordagem crítica parte do
pressuposto de que a administração pública utiliza-se de critérios “sempre igualitários e
republicanos”, e desta forma distribui os recursos de forma a atender aqueles que mais
necessitam através de políticas públicas (PEREIRA, 2015, p. 2114- 2117).
Num país como o Brasil, em que predomina a cultura “patrimonialista e
clientelista”, os órgãos representativos estão distantes desse ideal republicano. Neste
sentido que Pereira, referindo-se à saúde, cita Vicente Faleiros, para indicar que “a
pressão política para se atender algum afilhado ou apadrinhado, amigo ou indicado, tem
sido um dos critérios práticos mais utilizados para se passar na frente das imensas filas
de espera. É a prevalência da troca de favores do clientelismo” (FALEIROS apud
PEREIRA, 2015, p. 2115).
Apenas para ilustrar, em reportagem divulgada dia 09 de outubro de 2016, no
programa Fantástico, da Rede Globo, se vê claramente a situação tratada nos parágrafos
acima.
Na denúncia é mostrado um esquema criminoso, no qual políticos e assessores
“trocam” votos por consultas e exames, chegando a montar até mesmo uma central
clandestina para agendamento das consultas, chegando ao ponto de se marcar consultas
até mesmo com frentista de posto de gasolina.
O fato mostrado ocorre em diversas cidades do Brasil. Na cidade de Caldas
Novas-GO, dos quinze vereadores de mandato, catorze foram denunciados, sendo
encontradas com eles até mesmo “pastas” com a relação dos agendamentos. Desta
forma, outras pessoas que marcavam suas consultas regularmente, integravam filas de
esperas que chegavam a durar até dez anos.
O esquema fraudulento contava até mesmo com o deputado federal Giovani
Cherini (PDT), que durante o processo de impeachment da ex-presidente Dilma
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Roussef, votou a favor do processo de impedimento e “pelo fim da corrupção”. Isso nos
remete a um questionamento sem resposta: mais quantos representantes
“comprometidos com combate à corrupção” como este, existem pelo Brasil? Talvez o
dia que a sociedade souber, tenhamos, de fato, representantes.
Desta forma, tecer a afirmação de que a judicialização acentua a desigualdade,
mostra-se um pouco equivocado, pois em alguns momentos o judiciário se mostrará
mais igualitário que o órgão administrativo. Neste sentido, vejamos.
Assim, a judicialização não promove a desigualdade, mas ao
contrário, pode contribuir para desbloquear o acesso do cidadão a um
aparato burocrático que não distribui recursos escassos com fulcro
apenas em razões técnicas e racionais, por ser ainda contaminado pela
cultura clientelista e patrimonialista (PEREIRA, 2015, p. 2115).
E continua Pereira afirmando que “o Judiciário pode funcionar como um agente
de desbloqueio do acesso ao sistema, pressionando para o emprego de critérios mais
objetivos e transparentes na distribuição de recursos escassos” (2015, p. 2116).
Outra crítica, no mesmo sentido de privilegiar as classes médias, sustenta que os
verdadeiramente miseráveis continuariam com as mesmas condições, sendo a
desigualdade acentuada à medida que estes não teriam acesso à justiça.
Quanto ao ponto surgem as defensorias públicas, que, ao conjugar uma boa
estrutura para atender aos necessitados, principalmente através da proposição de ações
civis públicas, pode se tornar o “elo institucional” para promover a complementaridade
entre os direitos sociais e o direito de livre acesso à justiça, possibilitando assim uma
oportunidade de participação para todos independente da classe social.
Neste sentido que Pereira aponta a existência de estudos recentes cujos números
permitem a dedução de que existe conexão entre a existência de defensorias públicas
estruturadas e instituídas há mais tempo e o acesso aos caminhos da judicialização pelos
mais pobres (2015, p. 2116).
Acrescenta Rei (2011), que “a Defensoria Pública surge com o escopo de
garantir aos necessitados a defesa e orientação jurídica, em todos os graus, na forma do
art. 134 da Constituição Federal de 1988”.
E continua o autor, que atua como Defensor Público no Estado do Pará:
Quanto maior for o alcance dos serviços prestados pela Defensoria
Pública à população que mais necessita e se vê privada de seus
direitos, tão maior será a realização de justiça distributiva, pois
alargará as possibilidades de efetivação dos direitos sociais mediante
ordem judicial não apenas àqueles que dispõe de recursos para pagar
advogado particular e buscar o justo e célere provimento jurisdicional,
17
mas também a quem se encontra em situação de vulnerabilidade
econômica e social (REI, 2011, p. 12-13).
Desta forma, considerando o trabalho que vem sendo desempenhado pelas
defensorias públicas em atendimento aos mais necessitados, e ainda o princípio da
inafastabilidade de apreciação do judiciário, insculpido no texto constitucional, não se
pode aceitar a argumentação generalizada de que a judicialização favorece a classe
média, mantendo excluídos aqueles que mais necessitam.
O “PAPEL ILUMINISTA” DA SUPREMA CORTE
Foram diversos os fatores que contribuíram para a ascensão do Poder judiciário,
e, ocupando o lugar de menor representatividade dentre os três poderes, acaba pode
decidir de forma mais arrojada com anseios sociais que os próprios poderes eletivos.
Neste sentido, destaco uma passagem do artigo “A razão sem voto: o Supremo Tribunal
Federal e o governo da maioria”, na qual Barroso assim aborda a atuação da Corte
Constitucional: “A Corte acaba realizando, em fatias, de modo incompleto e sem
possibilidades de sistematização, a reforma que a sociedade clama”.
Ainda que desencadeando uma série de discussões, não se pode negar esse
importante papel democrático desempenhado pela jurisdição constitucional ao longo
desses mais de 20 anos de Constituição, através de decisões que contribuíram para o
avanço dos direitos sociais no Brasil – a essa atuação jurisdicional, o Ministro Luís
Roberto Barroso, atribui o nome, analogicamente ao movimento ocorrido durante o
XVIII, de “papel iluminista7” do judiciário.
Para além do papel puramente representativo, supremas cortes
desempenham, ocasionalmente, o papel de vanguarda iluminista,
encarregada de empurrar a história quando ela emperra. Trata-se de
uma competência perigosa, a ser exercida com grande parcimônia,
pelo risco democrático que ela representa e para que as cortes
constitucionais não se transformem em instâncias hegemônicas. Mas,
às vezes, trata-se de papel imprescindível (BARROSO, 2015, p. 23-
50).
7 Faço aqui uma importante observação no sentido de que não se defende em momento que a Corte “seja”
Iluminista, ou seja, que tenha em sua essência um ideário iluminista. Quando se fala que o STF exerce um
papel iluminista, refiro-me ao momento de decisão de questões relevantes em matérias de direitos sociais,
que segundo o Ministro Barroso, “empurram a sociedade para frente”, em analogia ao avanço
representado pelo movimento iluminista.
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No sentido desse papel citado, tem-se como exemplo decisões emblemáticas
da do Supremo Tribunal Federal, como o julgamento da ADPF nº 132, em que
equiparou as uniões homoafetivas às uniões estáveis, abrindo caminho para o casamento
entre pessoas do mesmo sexo; e o reconhecimento do dever do Poder Público em
efetivar o direito a educação infantil (creche e acesso a pré-escola) entre outros8.
Tal fato, não é exclusividade da Suprema Corte brasileira. Nos Estados
Unidos a Corte Constitucional julgou o famoso caso Brown v. Board of Education
(1954) e declarou a ilegitimidade da segregação racial nas escolas públicas. Na
Alemanha, o Tribunal Constitucional Federal deu validade a criminalização da negação
do holocausto. Na África do Sul, o Tribunal Constitucional aboliu a pena de morte, a
Suprema Corte Israelense afirmou a total proibição à tortura, ainda que em
interrogatório de suspeito de terrorismo (BARROSO, 2015, p. 23-50).
Desta forma, não se defende aqui a “substituição da democracia por uma
supremocracia”, que seria uma ampliação dos poderes do judiciário em detrimento dos
poderes representativos. Mas ao mesmo tempo, considerando especial a crise de
representatividade em que se a demanda por ação estatal, não se pode negar a grande
contribuição que vem sendo dada pelo poder Judiciário no tocante à efetivação dos
direitos sociais. Por esta razão pela esse poder vem ganhando muitas vezes mais
credibilidade que os próprios agentes políticos, entretanto, ainda com todos os percalços
que aparecem no caminho para a promoção da igualdade em nossa sociedade, é de
importante valia saber que o judiciário tem uma atuação claramente limitada, e que
“tanto na vida institucional, como na vida em geral, ninguém é bom demais e,
sobretudo, ninguém é bom sozinho”, sendo necessário um maior diálogo entre todos os
poderes do Estado para se alcançar os objetivos maiores da Constituição Federal, nunca
esquecendo que o “todo o poder emana do povo, e em seu nome será exercido”.
CONCLUSÃO
Por tudo que foi exposto, percebe-se que o tema da efetivação dos direitos
sociais envolve um rico debate doutrinário e passa por importantes questões como, por
8 Ver mais no artigo “A razão sem voto: o Supremo Tribunal Federal e o governo da maioria”, no qual, o
Ministro do STF, Luís Roberto Barroso trata da temática.
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exemplo, o embate acerca da força do texto Constitucional, e neste momento se
destacam duas teorias.
De um lado a forte corrente substancialista defende a aplicabilidade
imediata dos direitos fundamentais e consequentemente a possibilidade de intervenção
judicial em caso de descumprimento. Em lado oposto, a corrente procedimentalista, que
conta com a grande parte da doutrina, defende a necessidade de regulamentação
infraconstitucional dos preceitos constitucionais para ensejar sua exigibilidade perante o
Estado, não cabendo assim o acionamento do judiciário para cobrar do Estado aqueles
direitos positivados no texto constitucional e não regulamentados por dispositivo
infraconstitucional.
No Brasil, o Supremo Tribunal Federal fez a opção por adotar a teoria
substancialista, e assim, assumir um importante papel de tirar da teoria as promessas
constitucionais. Entretanto, paralelamente a esse posicionamento surgem diversas
críticas à atuação judicial, críticas estas que consideram de maneira insuficiente a real
situação da sociedade brasileira. Por esta razão, deve-se considerar alguns pressupostos
aos analisar essas críticas, de forma que, ao fazer um estudo minucioso, vai se perceber
que elas, ainda que relevantes e plausíveis, apresentam inconsistências.
Independente da discussão que cerca o tema, especialmente às críticas
tecidas a respeito da atuação judicial na efetivação dos direitos sociais, não se pode
negar a contribuição de Corte Constitucional vem dando nesse ramo jurídico. O
Supremo Tribunal Federal, como o próprio Ministro Luiz Roberto Barroso apresentou,
“acaba realizando, em fatias, de modo incompleto e sem possibilidades de
sistematização, a reforma que a sociedade clama”, e desta forma empurrando a
sociedade para frente, no que o próprio ministro do STF chama de “papel iluminista do
judiciário” – o que guardamos aqui todas as ressalvas necessárias para esta afirmação.
Embora se defenda aqui, nas condições pré-estabelecidas, a atuação do
judiciário na efetivação dos direitos sociais, dada a realidade da sociedade brasileira,
não pode deixar passar despercebido que, nos dias de hoje, até mesmo o judiciário vem
passando por grandes problemas. Especialmente, pelo excesso de demandas,
inexistência de magistrados para julgar o que lhes é apresentado em tempo razoável,
insuficiência de servidores, entre outros... fazendo com que muitos processos sejam
morosos e desgastantes para as partes, sem encontrar resolução em tempo hábil que a
torne efetiva.
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Além disso, ainda tem que ser acrescentado que temos um ordenamento
jurídico complexo, com uma infinidade de dispositivos e distante da realidade dos
cidadãos. Ocorre que muitos desses dispositivos legais são arcaicos e acabam por
burocratizar a atuação do magistrado e dos patronos, concorrendo mais uma vez para
que se tenha uma justiça morosa e de poucos resultados.
Cabe perscrutar também o quão de fato é independente a Suprema Corte, em
relação aos demais poderes, frente à sua própria estrutura. Posto que se tem no Brasil
uma Corte composta por Ministros que, embora serem indicados pelo chefe do poder
executivo e sabatinados pelo Senado Federal, possuem vitaliciedade, inamovibilidade e
uma série de outras garantias que fornecem o aparato necessário para decidir com
independência e imparcialidade. Todavia, a prática judicial, especialmente nas
instâncias superiores sofre forte influência política, levando muitas vezes a decisões que
fazem a sociedade regredir ou estagnar em matéria de direitos sociais.
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21
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furar a fila do SUS.Disponível em:
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SARLET, Ingo Wolfgang.A Eficácia dos Direitos Fundamentais: uma teoria geral
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Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2009.
STRECK, Lenio Luiz. Verdade e Consenso: constituição, hermenêutica e teorias
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