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1 Revista Eletrônica da Faculdade Metodista Granbery http://re.granbery.edu.br - ISSN 1981 0377 Curso de Direito - N. 21, JUL/DEZ 2016 OS DIREITOS SOCIAIS SOB AS ÓTICAS PROCEDIMENTALISTA E SUBSTANCIALISTA E A OPÇÃO DA SUPREMA CORTE BRASILEIRA Eduardo Langoni de Oliveira Filho 1 Leonardo Alejandro Gomide Alcántara 2 RESUMO O presente estudo se propõe a fazer uma reflexão a respeito da possibilidade de intervenção do judiciário na efetivação dos direitos sociais, com base no embate doutrinário a respeito do tema. A resposta para o caso se dá com o despontar da teoria substancialista na jurisprudência da Suprema Corte Brasileira, admitindo-se a intervenção judicial, diante da ineficácia dos poderes representativos em elaborar políticas públicas de qualidade e que atendam, de fato, àqueles que mais necessitam. Com este posicionamento jurisprudencial, são muitas as criticas existentes, bem como os contra argumentos a tais críticas, rendendo um rico debate teórico que enseja diretamente na exigibilidade ou não dos direitos sociais perante o Estado. Neste sentido, com base na literatura especializada, se traça uma linha argumentativa na qual se leva em conta que, embora a atuação jurisdicional não seja o caminho ideal e existam críticas 1 Graduando em Direito na Faculdade Metodista Granbery (10º período); Assessor na Controladoria Geral do Município de Paraíba do Sul-RJ, com experiência em Licitações e Contratos Públicos. E-mail: [email protected] 2 Graduado em Direito pela Universidade Federal de Juiz de Fora (2005), mestrado em Sociologia e Direito pela Universidade Federal Fluminense (2008) e doutorado em Sociologia e Direito pela Universidade Federal Fluminense (2014). Atualmente é professor da Faculdade Metodista Granbery, conselheiro do Conselho Municipal de Meio Ambiente de Juiz de Fora, presidente do Programa de Educação Ambiental - PREA e professor de especialização da Universidade Federal de Juiz de Fora. E- mail: [email protected]

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Revista Eletrônica da Faculdade Metodista Granbery

http://re.granbery.edu.br - ISSN 1981 0377

Curso de Direito - N. 21, JUL/DEZ 2016

OS DIREITOS SOCIAIS SOB AS ÓTICAS PROCEDIMENTALISTA E

SUBSTANCIALISTA E A OPÇÃO DA SUPREMA CORTE BRASILEIRA

Eduardo Langoni de Oliveira Filho1

Leonardo Alejandro Gomide Alcántara2

RESUMO

O presente estudo se propõe a fazer uma reflexão a respeito da possibilidade de

intervenção do judiciário na efetivação dos direitos sociais, com base no embate

doutrinário a respeito do tema. A resposta para o caso se dá com o despontar da teoria

substancialista na jurisprudência da Suprema Corte Brasileira, admitindo-se a

intervenção judicial, diante da ineficácia dos poderes representativos em elaborar

políticas públicas de qualidade e que atendam, de fato, àqueles que mais necessitam.

Com este posicionamento jurisprudencial, são muitas as criticas existentes, bem como

os contra argumentos a tais críticas, rendendo um rico debate teórico que enseja

diretamente na exigibilidade ou não dos direitos sociais perante o Estado. Neste sentido,

com base na literatura especializada, se traça uma linha argumentativa na qual se leva

em conta que, embora a atuação jurisdicional não seja o caminho ideal e existam críticas

1 Graduando em Direito na Faculdade Metodista Granbery (10º período); Assessor na Controladoria Geral

do Município de Paraíba do Sul-RJ, com experiência em Licitações e Contratos Públicos. E-mail:

[email protected] 2 Graduado em Direito pela Universidade Federal de Juiz de Fora (2005), mestrado em Sociologia e

Direito pela Universidade Federal Fluminense (2008) e doutorado em Sociologia e Direito pela

Universidade Federal Fluminense (2014). Atualmente é professor da Faculdade Metodista Granbery,

conselheiro do Conselho Municipal de Meio Ambiente de Juiz de Fora, presidente do Programa de

Educação Ambiental - PREA e professor de especialização da Universidade Federal de Juiz de Fora. E-

mail: [email protected]

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consistentes, estas também possuem falhas que merecem ser suscitadas. Assim sendo,

não pode-se desconsiderar as grandes contribuições dadas ao tema da efetivação dos

direitos sociais pelos órgão judiciais, em especial pelo Supremo Tribunal Federal.

Palavras-Chave: Direitos sociais. Efetivação. Judicialização.

ABSTRACT

The present study aims to make a reflection about the possibility of judiciary’s

intervation on the effectiveness of Social Rights, based on doctrinal clash of the subject.

The reply to the case occurs with the rise of substantialist theory in the jurisprudence of

the Brazilian Supreme Federal Court, assuming the judicial intervention, against the

inefficiency of the representative powers in the development of quality public policies

and attending, indeed, those who really need. With this jurisprudential positioning, there

is a lot of criticism, such as the counter argument for them, raising a rich theoretical

debate which directly motivates the enforceability, or not, of social rights before the

State. This way, based on specialized literature, it is possible to draw an argumentative

line considering that, although the judicial activity is not the best way and there are

some critics about this, these critics have many fails that need to be considered.

Therefore, one cannot disregard the great judicial contribution on social rights

effectiveness, especially by the Supreme Federal Court.

Keywords: Social Rights. Efectiviness. Judicailizitaion.

INTRODUÇÃO

Como o Estado, através dos seus poderes representativos, se mostra

ineficiente em seu papel de promover os direitos sociais, o discurso teórico do Direito

desloca o debate da efetivação desses direitos fundamentais sociais para a seara judicial.

Atenta-se para o Poder Judiciário, por meio de ações coletivas ou individuais, enquanto

via alternativa em que se busca o provimento de direitos sociais insculpidos no texto

Constitucional, e não garantidos pelo Estado através das políticas públicas de qualidade.

3

No ordenamento jurídico brasileiro, o legislador constituinte optou

claramente por dar fundamentalidade aos direitos sociais, atribuindo-lhes proteção

constitucional, razão pela qual se tem o Capítulo II, do Título II, dedicado a tratar dos

direitos e garantias fundamentais, e, além disso, acrescentou, no art. 5, §2º uma cláusula

de abertura que se permite identificar outros direitos fundamentais ao longo do texto

constitucional. Uma vez inseridos na redação Constitucional, fazem com que o Estado

receba a denominação de Estado Social Democrático de Direito.

Com efeito, atribuir a tais direitos status constitucional e intitulá-los de

“direitos e garantias fundamentais” demonstra a preocupação do legislador para com a

proteção. Todavia, tal fato não indica em qual medida os direitos sociais devem ser

juridicamente protegidos, e, neste ponto, são inúmeras as discussões doutrinárias,

especialmente, por envolver a distribuição de recursos escassos, como já vimos

anteriormente. Começaremos uma abordagem desse aspecto com uma análise de duas

teorias que advogam posicionamentos distintos a respeito da força normativa do texto

Constitucional.

A FORÇA NORMATIVA DA CONSTITUIÇÃO: UMA ANÁLISE DAS

TEORIAS PROCEDIMENTALISTA E SUBSTANCIALISTA3

Abordar a temática da efetivação dos direitos sociais que estão previstos

expressamente no na Carta Constitucional, nos remete a refletir sobre a força normativa

das normas editadas pelo legislador constituinte, e, para tanto, ganha destaque no campo

doutrinário o embate entre as teorias substancialista e procedimentalista. A discussão

principal que envolve estas duas formas distintas de solucionar conflitos jurídicos reside

na divergência teórica sobre o papel do poder judiciário e justiça Constitucional, quando

se busca a efetivação dos preceitos constitucionais não regulamentados por normas

inferiores. Em palavras que muito bem sintetizam o exposto, vejamos o que nos traz

Pereira:

3 Na doutrina se vê comumente a utilização de nomenclaturas distintas para essas teorias, a saber: “tese da

máxima efetividade” e “abordagem minimalista”, conforme utilizados por Jane Reis Gonçalvez Pereira

(2015, pp. 2080-2114), todavia, substancialmente a primeira tese advoga os preceitos substancialistas,

enquanto a segunda adota os preceitos procedimentalistas, à medida que negam que seja papel do

judiciário promover a efetivação de direitos sociais, excepcionando dessa “regra” os casos de garantia do

mínimo existencial, que, inclusive, ganham concepção extremamente restritiva. Pereira expõe quais

seriam esses direitos exigíveis para Ana Paula de Barcellos: a educação fundamental, a saúde básica, a

assistência em caso de necessidade e o acesso à justiça.

4

Paralelamente às discussões sobre a definição e a fundamentalidade

dos direitos sociais, e de forma estreitamente interligada, surgem as

controvérsias sobre se tais direitos são “justiciáveis”, ou seja, se as

prestações necessárias para sua realização podem ser exigidas em

juízo como direitos subjetivos. O problema não abarca direitos que já

foram concretizados por meio de leis ordinárias e que, portanto, já se

tornaram exigíveis segundo a fórmula ortodoxa de fabricação de

direitos subjetivos. O núcleo da controvérsia reside em saber em que

medida o judiciário pode extrair direitos a prestações diretamente de

cláusulas constitucionais e determinar, de forma coercitiva, sua

implementação pelo Estado (2014, p. 2099-2100).

A teoria substancialista defende uma maior atuação da justiça

constitucional, pois segundo essa doutrina o texto da Constituição imputa ao Estado

determinadas obrigações em face dos jurisdicionados independente da existência de lei

infraconstitucional ou de políticas públicas regulamentando os direitos fundamentais

sociais, trazendo assim a ideia de aplicabilidade imediata dos direitos fundamentais.

Em destaque na defesa dessa teoria, se tem na doutrina nacional Streck, que

argumenta no sentido de que na Constituição Federal o Legislador optou, claramente,

por compromissar o Estado com as causas sociais, atribuindo ao poder público papel de

protagonista no combate às desigualdades sociais, conforme preceitua o art. 3° da Carta

de 1988. Na preocupação com a transformação social da sociedade brasileira, a

efetividade da Constituição é tema certo na agenda de todos os juristas, já que, nossa

sociedade, “em mais de cinco séculos de existência, produziu pouca democracia e muita

miséria, fatores geradores de violências institucionais (veja-se a repressão produzida

pelos aparelhos do Estado) e sociais (veja-se o grau exacerbado da criminalidade)”

(2009, p.34).

É neste cenário que a falta de representatividade dos poderes eleitos –

omissão e falta de comprometimento com as causas sociais do legislativo e ineficiência

do executivo em elaborar políticas públicas de qualidade – que se tem a legitimação do

judiciário, conforme apontado por Streck.

Parece não restar dúvida de que as teorias materiais da Constituição

reforçam a Constituição como norma (força normativa), ao

evidenciarem o seu conteúdo compromissório a partir da concepção

dos direitos fundamentais-sociais a serem concretizados, o que, a toda

evidência – e não há como escapar dessa discussão – traz à baila a

questão da legitimidade do poder judiciário (ou da justiça

constitucional) para, no limite, isto é, na inércia injustificável dos

demais poderes, implementar essa missão (2009, p.25).

Em sentindo divergente, a teoria procedimentalista, que tem como grande

defensor Jürgen Habermas, advoga a ideia de que, ao texto constitucional, compete

5

apenas definir os procedimentos democraticamente adequados para a garantia dos

direitos nele previstos.

Habermas propõe um modelo de democracia constitucional que não

tem como condição prévia fundamentar-se nem em valores

compartilhados, nem em conteúdos substantivos, mas em

procedimentos que asseguram a formação democrática da opinião e da

vontade e que exige uma identidade política não mais ancorada em

uma “nação de cultura”, mas, sim, em uma “nação de cidadãos”.

Critica a assim denominada “jurisprudência de valores”, adotada pelas

cortes européias, especialmente a alemã. Nos Estado Democrático de

Direito, os Tribunais Constitucionais devem adotar uma compreensão

procedimental da Constituição. Habermas propõe, pois, que o

Tribunal Constitucional deve ficar limitado à tarefa de compreensão

procedimental da Constituição, isto é, limitando-se a proteger um

processo de criação democrática do direito. O Tribunal Constitucional

não deve ser um guardião de uma suposta ordem suprapositiva de

valores substanciais. Deve, sim, zelar pela garantia de que a cidadania

disponha de meios para estabelecer um entendimento sobre a natureza

dos seus problemas e a forma de sua solução (STRECK, 2009, p. 29).

Vale destacar uma das principais críticas à teoria substancialista – razão da

preocupação de Habermas, que reside na suposta legitimação do “ativismo judicial” e

consequente violação das funções de checks and balences, que sustentam o Estado

Democrático Constitucional.

Na visão da teoria do discurso sustentada por Habermas, a lógica da

divisão de Poderes exige uma assimetria no cruzamento dos Poderes

do Estado: em sua atividade, o Executivo, que não deve dispor das

bases normativas da legislação e da justiça, subjaz ao controle

parlamentar e judicial, ficando excluída a possibilidade de uma

inversão dessa relação, ou seja, uma supervisão dos outros dois

Poderes através do Executivo. A lógica da divisão de Poderes não

pode ser ferida pela prática de um tribunal que não possui meios de

coerção para impor suas decisões contra uma recusa do parlamento e

do governo (STRECK, 2009, p. 29).

Segundo essa corrente, a relação entre o Estado e seus jurisdicionados através

da democracia, respeitando a separação de poderes impostas pelo texto constitucional, é o

caminho da mais adequado para a garantia dos direitos fundamentais sociais. Conforme

defende essa teoria, teriam aplicação mediata, ou seja, dependeriam dos poderes

legitimados pelo constituinte para regulamentar através de normas infraconstitucionais

ou então através de políticas públicas, somente assim poderiam ser exigíveis pelo

cidadão frente ao Estado tais direitos. Desta forma, a normatização constitucional teria

caráter programático, ou seja, iria servir de diretriz para a futura regulamentação

6

inferior, criando distinção entre a aplicabilidade dos direitos de primeira geração4 e os

direitos sociais, sendo os primeiros de aplicação imediata, enquanto os últimos não.

Com efeito, Streck (2009, p.31) deixa claro que a teoria substantiva não

coaduna com a qualquer prática de ativismo judicial, “definidos como decisionismos

praticados a partir de discricionariedades interpretativas”, que venham a comprometer a

ordem constitucional-democrática.

Quanto à distinção defendida pelos procedimentalistas a respeito da

aplicação imediata dos direitos de primeira geração e mediata dos direitos sociais, a

doutrina majoritária se posiciona de forma contrária, sob o argumento de “ferir de

morte” a teoria dos direitos fundamentais, à medida que o próprio legislador constituinte

atribuiu a todos os direitos fundamentais o mesmo tratamento. Neste sentido, Pereira

(2015) afirma que “[...] a Carta de 1988 não estabelece um regime jurídico distinto para

os direitos sociais e os direitos de liberdade. Essa decisão constituinte encarta o

desdobramento lógico de tratá-los, no plano metodológico, de forma tendencialmente

uniforme”.

Cunha Júnior defende que de fato existem normas definidoras de diretrizes e

que devem ser implementadas pelos órgãos representativos, como é o caso de uma

norma de eficácia limitada, por exemplo, que será regulamentada pelo legislador.

Todavia, essa condição não destitui a aplicabilidade imediata da norma, exigindo apenas

maior esforço do órgão do judiciário ao decidir a matéria para garantir a efetivação dos

direitos sociais, pois qualquer “órgão do judiciário encontra-se investido do dever-poder

de aplicar imediatamente, diante do caso concreto, as normas de direitos fundamentais,

assegurando o pleno gozo das posições subjetivas neles consagradas” (2007, p. 404).

Em que pese os próprios substancialistas reconhecerem a contribuição dada

por Habermas e outros procedimentalistas ao Direito, a sustentação dessas teses num

país como o Brasil é difícil, pois os Direitos Sociais estão previstos no próprio texto

4 A organização dos direitos em gerações foi feita por Karel Vasak em palestra de 1979, proferida no

Instituto Internacional dos Direitos do Homem, em Estrasburgo - França. O autor associou a evolução

histórica dos direitos humanos aos ideais da Revolução Francesa (Liberdade, Igualdade e Fraternidade).

Assim, afirmou que a primeira geração protegeria os direitos humanos como direitos de liberdade,

abrangendo os direitos civis e políticos; a segunda geração os protegeria como direitos de igualdade,

abarcando os direitos sociais, culturais e econômicos, sendo marca desta geração o caráter prestacional

dos direitos; e a terceira geração os protegeria como direitos de fraternidade, envolvendo os direitos

transindividuais, como o direito ao meio ambiente. Atualmente, alguns autores falam em outras gerações

de direitos. Paulo Bonavides, por exemplo, defende a existência de uma quarta geração de direitos, os

quais estariam ligados à globalização política na esfera da normatividade jurídica. Assim, o autor

enquadra nesta geração o direito à democracia, o direito à informação e o direito ao pluralismo.

(PEREIRA, 2015, p. 2087)

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Constitucional, e, passados longos anos desde a promulgação da Constituição Cidadã,

grande parte dos direitos lá previstos continuam não cumpridos, enquanto os níveis de

desigualdade social permanecem com suas profundas raízes na sociedade. No mais,

continua Streck citando Laurence Tribe, que, o próprio procedimento, em sua essência,

tem sua fundamentação da dignidade pessoal, e, portanto, é deveras valioso em si

mesmo, possuindo assim caráter substantivo. Além disso, defender que cabe ao

julgador, intérprete da Constituição, apenas garantir a participação (o processo) supõe

“um empobrecimento do papel da teoria da Constituição”, uma vez que esta pareceria

não se dirigir aos cidadãos, e sim aos julgadores (2009, p. 30-31).

Os embates entre as duas teorias extrapolam as páginas de qualquer obra

que os tente abordar completamente, e desbordariam os limites deste estudo, todavia, já

apresentadas ambas as teorias e parte do rico conteúdo jurídico que as cerca, cabe

destacar uma terceira corrente teórica acerca da justiciabilidade dos direitos sociais, para

posteriormente adentrar nas reflexões críticas e contra-argumentos a respeito do tema.

A JUSTICIABILIDADE DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS COMO NORMAS

VINCULANTES PRIMA FACIE

Essa terceira vertente teórica a respeito da justiciabilidade dos direitos

sociais, que não terá uma análise aprofundada, conta com parte substancial da doutrina

brasileira, e consiste em defender que ograu de exigibilidade de um determinado direito

vai depender de uma análise ponderada das normas constitucionais, pautada sempre

pelo princípio da proporcionalidade.

Segundo Pereira (2015), “a proporcionalidade aplicada aos direitos

prestacionais e aos deveres de agir do Estado, funciona como a ‘vedação da proteção

suficiente”, pois ela surgiu para balizar a constitucionalidade da intervenção estatal nos

direitos fundamentais, sendo assim um instrumento hermenêutico para controle das

ações estatais potencialmente violadoras dos direitos.

Essa corrente se pauta no instrumental teórico da reconhecida teoria dos

princípios de Robert Alexy, na qual se tem como pressuposto que as normas de direitos

sociais, assim como as definidoras dos direitos de liberdade, possuem uma dimensão

principiológica; desta forma, determinam algo que deve ser realizado da melhor maneira

possível, considerando tanto as situações fáticas quanto as jurídicas.

Nesse modelo de Alexy se tem que:

8

[...] as ponderações das quais se extraem normas de direitos

fundamentais sociais definitivas partem da premissa de que esses

direitos defluem do princípio da liberdade fática, sendo que os direitos

prestacionais prima facie que se constroem como consectários da

liberdade são ponderados com o princípio democrático e com o

princípio da margem de conformação do legislador (PEREIRA, 2015,

p. 2103).

Em que pese essa teoria permitir uma melhor solução para os conflitos

constitucionais envolvendo direitos sociais, deve-se levar em conta que, a constituição

alemã não apresenta um rol de direitos fundamentais, deferentemente da brasileira, que

de forma expressa elenca um catálogo de direitos que não se apresentam apenas como

mandados de otimização, mas possuem status constitucional autônomo.

Além disso, a inexistência de critérios para balizar um eventual

sopesamento dificulta se chegar a um equilíbrio conforme indica Pereira.

A vantagem da ponderação, como em outros contextos, é permitir um

equilíbrio entre vinculatividade das normas constitucionais que

enunciam direitos socais e deferência às escolhas democráticas. Esse

equilíbrio, porém, depende da formulação de critérios de sopesamento

minimamente uniformes e previsíveis, tarefa ainda por realizar no

constitucionalismo brasileiro (2015, p. 2103).

Sendo assim, ainda que se defenda uma melhor adequação dessa teoria para

a solução dos casos práticos, ela demanda aprimoramento para que possa ser aplicada

no cenário brasileiro.

A OPÇÃO DA SUPREMA CORTE BRASILEIRA

Paralelamente às inacabadas discussões doutrinárias a respeito da

justiciabilidade dos direitos sociais, se vê que a abordagem minimalista (teoria

procedimental) não prevalece no ordenamento jurídico brasileiro, ainda assim, há quem

defenda que os direitos prestacionais devem ser “tirados das Cortes” (TUSHNET apud

PERERIRA, 2015, p. 2104).

Na Corte Constitucional brasileira, por conta do próprio rumo dado pela

Constituição de 1988, que passou a exigir do poder judiciário uma maior atuação para a

garantia da efetividade dos direitos sociais insculpidos no texto Constitucional, se vê

claramente a teoria substancialista se destacando nas decisões. É neste sentido que se

posiciona Pereira (2015) ao afirmar o ápice do otimismo doutrinário e jurisprudencial

relacionado à implementação dos direitos sociais via judiciário se deu com a decisão do

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STF anunciando que “a interpretação da norma programática não pode transformá-la em

promessa inconsequente”5.

No mesmo sentido, trago a baila um trecho significativo e que conforma

essa posição do judiciário em favor da tese da máxima efetividade.

No entanto, parece-nos cada vez mais necessária a revisão do vetusto

dogma da Separação dos Poderes em relação ao controle dos gastos

públicos e da prestação dos serviços básicos no Estado Social, visto

que os Poderes Legislativo e Executivo no Brasil se mostraram

incapazes de garantir um cumprimento racional dos respectivos

preceitos constitucionais.A eficácia dos Direitos Fundamentais Sociais

a prestações materiais depende, naturalmente, dos recursos públicos

disponíveis; normalmente, há uma delegação constitucional para o

legislador concretizar o conteúdo desses direitos. Muitos autores

entendem que seria ilegítima a conformação desse conteúdo pelo

Poder Judiciário, por atentar contra o princípio da Separação dos

Poderes (...).Muitos autores e juízes não aceitam, até hoje, uma

obrigação do Estado de prover diretamente uma prestação a cada

pessoa necessitada de alguma atividade de atendimento médico,

ensino, de moradia ou alimentação. Nem a doutrina nem a

jurisprudência têm percebido o alcance das normas constitucionais

programáticas sobre direitos sociais, nem lhes dado aplicação

adequada como princípios-condição da justiça social. A negação de

qualquer tipo de obrigação a ser cumprida na base dos Direitos

Fundamentais Sociais tem como conseqüência a renúncia de

reconhecê-los como verdadeiros direitos. (...) Em geral, está crescendo

o grupo daqueles que consideram os princípios constitucionais e as

normas sobre direitos sociais como fonte de direitos e obrigações e

admitem a intervenção do Judiciário em caso de omissões

inconstitucionais (APDF 45, Min. Celso de Mello, DJ 4/5/2004).

Em um cenário como o nosso, discordar do posicionamento do STF e partir

para a defesa de uma prática procedimentalista, ou seja, a atribuição de aplicabilidade

mediata aos direitos sociais previstos no texto Constitucional, além de ferir a própria

Carta Maior, comprometeria ainda mais a efetivação desses direitos essenciais à

dignidade da pessoa humana.

Acrescento ainda que vive-se hoje um grande déficit democrático, no qual

os poderes eletivos estão corrompidos ou comprometidos com causas diversas ao

atendimento dos anseios da sociedade. Desta forma, reconhecer aplicabilidade dessa

teoria, enseja em depender mais uma vez do legislador ou do chefe do executivo para

5 Neste sentido acrescenta Pereira citando o julgado do STF (RE nº 271286 AgR) ‘[...] sob pena de o

Poder Público, fraudando justas expectativas nele depositadas pela coletividade, substituir, de maneira

ilegítima, o cumprimento de seu impostergável dever, por um gesto irresponsável de infidelidade

governamental ao que determina a própria Lei Fundamental do Estado’.

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elaborar em políticas públicas ou leis infraconstitucionais que regulamentem os direitos

sociais e com isso os torne exigível perante o poder público.

Neste sentido, com a prevalência das teses substancialistas, se vê o

judiciário assumindo um papel cada vez mais decisivo no âmbito da efetivação dos

direitos sociais, e para tanto, proferindo decisões que ensejam um leque considerável de

críticas, que serão o tema do próximo item.

REFLEXÕES CRÍTICAS À JUDICIALIZAÇÃO DOS DIREITOS SOCIAIS E

OS CONTRA-ARGUMENTOS

Os argumentos trazidos pela doutrina contrária a judicialização dos direitos

sociais são diversos e dada a relevância merecem no espaço campo jurídico-

argumentativo.

No presente momento, serão abordados os principais argumentos e seus

contra-argumentos; para tanto, utilizarei as premissas apontadas por Pereira (2015), de

que “a participação do Judiciário no processo de efetivação desses direitos se impõe

como consectário da velha noção de ‘checks and balances’ e da própria ideia do Estado

de Direito”. Além disso, a autora lista alguns aspectos do cenário brasileiro, que, por

sua presença marcante na sociedade não podem ser ignorados numa análise sobre as

críticas à judicialização dos direitos sociais, conforme segue:

1. A Constituição fez a clara opção de tratar as prestações sociais

como autênticos direitos;

2. O Brasil convive com índices de desigualdade e exclusão

alarmantes, que geram demandas cuja gravidade, urgência e

relevância não permitem aguardar o andamento ordinariamente lento

que envolve o processo de formulação e implementação de políticas

públicas; e

3. As instituições legislativas e administrativas não têm uma tradição

de agilidade, eficiência e tratamento prioritário na proteção de direitos

sociais, razão por que não se pode prescindir de instrumentos

corretivos para impulsionar a atuação dos agentes políticos

(PEREIRA, 2015, p. 2104).

Apresentadas as premissas, inicio a abordagem das principais críticas bem como

o debate que as cerca.

A ILEGITIMIDADE DEMOCRÁTICA DO JUDICIÁRIO NA ALOCAÇÃO DE

RECURSOS PÚBLICOS ESCASSOS

11

Esse argumento guarda relação com o caráter contramajoritário das decisões

judiciais, e a crítica reside na sustentação da ilegitimidade democrática do judiciário em

interferir nas decisões tomadas pelos poderes representativos. Em especial, no caso em

tela, àquelas decisões em que os órgãos eletivos deliberaram sobre a alocação de

recursos públicos. Neste sentido, argumenta-se que a intervenção judicial compromete a

liberdade de alocação orçamentária, pois interfere no planejamento financeiro e

restringe a discricionariedade do Executivo em distribuir tais recursos.

Essa argumentação guarda pertinência ao tema, todavia, uma abordagem

mais ampla sobre a temática nos remete a uma análise desse mesmo argumento por um

ângulo distinto. De fato, por determinação constitucional é de competência dos poderes

representativos as deliberações acerca da alocação dos recursos. Poderes estes que

foram eleitos pelos cidadãos.

Neste ponto, temos que relembrar que a representação política não se dá de

“forma completa6”, pois vivemos numa sociedade em níveis de desigualdade

alarmantes, e neste sentido, Pereira afirma que “contextos de acentuada desigualdade

social e assimetrias distributivas fabricam processos democráticos disfuncionais”,

criando-se, com isso, cenários de sub-representação política, e, consequentemente, um

déficit democrático. Desta forma, a atuação judicial pode se dar no sentido de facilitar o

acesso à recursos que fortalecem as condições da democracia (2015, p. 2106).

Além desse fato, tem-se ainda a argumentação tecida sobre a noção de

reserva do possível, que, segundo Dirley da Cunha Júnior (2007) deve ser “entendida

como a possibilidade de disposição econômica e jurídica por parte do destinatário da

norma”.

O conceito de reserva do possível vem da jurisprudência alemã (LEIVAS,

2006, p. 97-98), na qual um cidadão buscava a ampliação das vagas em um curso e

medicina, argumentando que tal demanda se amparava na previsão constitucional

daquele país a respeito da liberdade profissional. Neste sentido, a Corte germânica

entendeu que, de fato cabe ao Estado viabilizar o acesso ao ensino superior, todavia,

deve haver um limite entre aquilo que o indivíduo pode razoavelmente exigir da

6 Utilizo a expressão para fazer referência ao processo eleitoral, pois ainda que se tenha a regra de “uma

pessoa um voto”, uma escolha consciente enseja um exercício pleno de outros direitos que vão além dos

direitos políticos, como, por exemplo, a liberdades (direitos de primeira geração) e também uma garantia

mínima de condições sociais (direitos sociais).

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sociedade, cabendo ao legislador equilibrar a tensão demandada individualmente com

os interesses coletivos.

É nesta linha, que Pereira acrescenta que “atribui-se ao conceito uma dupla

dimensão: a fática e a jurídica. Na primeira, está em pauta a escassez de recursos. Na

segunda, a necessidade de autorização orçamentária (SARLET, 2009, p. 289)”.

O instrumental teórico importado do direito alemão vem sendo utilizado na

prática nacional, entretanto, banalizou-se a argumentação no sentido de que hoje se usa

indiscriminadamente como contra-argumento Estatal em demandas por atendimento a

direitos sociais. É esse o entendimento de Pereira, ao dizer que “o conceito foi

desgastado pelo uso indiscriminado como cláusula-coringa para respaldar a negação da

possibilidade de implementar direitos fundamentais” (2015, p. 2107).

Sobre o ponto, Cunha Júnior se manifesta no sentido que não se pode aceitar

a argumentação da reserva do possível para eximir o Estado de atender aos direitos

fundamentais sociais. Vejamos.

[...] não podemos concordar com aqueles que sustentam, com base na

doutrina estrangeira, encontrar-se a eficiência dos direitos

fundamentais dependente do limite fático da reserva do possível,

porque sempre haverá meio de remanejar os recursos disponíveis

retirando-os de outras áreas(transporte, fomento econômico, serviço

da dívida, etc.), onde sua aplicação não está tão intimamente ligada

aos direitos mais essenciais do homem, como a vida, a integridade

física, a saúde e a educação por exemplo. (CUNHA JUNIOR, 2007, p.

418-419)

Acrescenta ainda o mesmo autor.

[...] “imaginar que a realização desses direitos depende de ‘caixas

cheios’ do Estado significa reduzir a zero, o que representaria uma

violenta frustração da vontade constituinte” (CUNHA JUNIOR, 2007,

p.419).

Desta forma, deve-se entender a reserva do possível não como trunfo Estatal

alegado em qualquer demanda para mostrar a impossibilidade de se atender um direito

prestacional, mas sim coma baliza para se interpretar aquilo que pode ser razoavelmente

exigido do poder público. Visa não uma “fuga” do Estado de suas obrigações para com

seus jurisdicionados, mas sim um “fazer da melhor forma possível” com as limitações

que o ente público possui.

A INCAPACIDADE INSTITUCIONAL DO JUDICIÁRIO PARA DECIDIR

SOBRE POLÍTICAS PÚBLICAS

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Nesse aspecto, critica-se a atuação do judiciário por alegar que este órgão não

possui capacidade institucional para decidir questões relativas às politicas públicas.

Segundo essa corrente, os juízes não tem expertise para lidar com demandas que

envolvem conhecimentos técnicos setorizados, e, além disso, eles decidem com base

nos elementos de um processo judicial, que não é uma ferramenta adequada para se

produzir esse tipo decisão, pois ele tem informações e tempo limitados. Neste sentido,

defende-se que o judiciário não deveria atuar, especialmente, porque, depois de decidido

tem-se um precedente que pode influenciar futuras decisões (PEREIRA, 2015, p. 2111).

Tal elemento não pode ser desconsiderado no sistema jurídico brasileiro, em

que as decisões são fontes para as futuras manifestações do judiciário, todavia, essa

preocupação com os efeitos sistêmicos da decisão não é uma peculiaridade das

demandas envolvendo a efetivação dos direitos sociais, pois, como em outras áreas do

direito, tal fato também ocorre e não é fato impeditivo.

Além disso, argumentar que os juízes não tem expertise parte do

pressuposto de que a administração pública tem uma atuação ideal. Todavia, essa

idealização está bem longe da prática brasileira. Como muito bem aborda Jane Reis,

Há contextos em que a precariedade e baixa qualidade dos órgãos

técnicos e dos serviços contribui para um cenário de disfuncionalidade

em dois ângulos. Em um primeiro momento, gera crises de confiança

nos usuários, contribuindo para o aumento da judicialização. Em um

segundo momento, a precariedade do aparato administrativo torna-se

um fator que coopera para a baixa qualidade do contraditório no

processo (2015, p. 2111).

Desta forma, percebe-se que a má preparação do aparato estatal não prejudica

somente a prestação dos serviços prestacionais, mas também a formação e instrução de

um eventual processo judicial, dificultando o correto convencimento da autoridade

julgadora.

Quanto a falta de expertise dos magistrados em decidir sobre assuntos

específicos, destaco aqui a abordagem de Castro (2012), sobre a cooperação realizada

em o Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro e a Secretaria de Justiça do

mesmo estado, para implementar o Núcleo de assessoria Técnica (NAT), que tem como

objetivo auxiliar os julgadores na hora de decidir algum caso específico da saúde,

através da emissão de pareceres.

Sobre o assunto, acrescenta Pereira.

14

Os instrumentos de cooperação são relevantes não apenas por

contribuírem para a formação de um processo judicial deliberativo,

mas também porque questões envolvendo direitos sociais encerram

um amálgama entre saber científico, escolhas políticas e direito. Se

não é simples desenhar a linha que traça a fronteira entre direito,

técnica e política, fórmulas processuais que viabilizem a interlocução

entre os protagonistas de cada um desses domínios contribuem para

decisões mais justas, do ponto de vista substantivo, e mais

justificadas, do ponto de vista procedimental (2015, p. 2112).

Quanto a argumentação no sentido de se criar uma preferencia abstrata pela

adoção de ações coletivas e não demandas individuais, temos que “ a maior

conveniência na aplicação de um ou outro mecanismo depende de uma série de fatores

contingentes, não sendo possível estabelecer esse tipo de prioridade” (PEREIRA, 2015,

p. 2113).

Se por um lado as ações coletivas permitem uma correção de falhas estruturais,

por outro, elas apresentam pontos, ao ver Pereira, negativos, como por exemplo, o grau

de interferência nas políticas públicas. Quando se decide em sede de ação individual,

permite-se a promoção da isonomia com uma menor intervenção nas políticas públicas.

Além disso, sob o ângulo pragmático, a decisão em sede e ação coletiva implica em

efeitos mais abrangentes, demandando maior investimento e consequentemente maior

resistência de atendimento por parte de executivo, causando uma maior tensão entre os

poderes judiciário e executivo. No mais, uma demanda maior de ações individuais pode

representar um impulso político para as instituições que possuem legitimidade de

ajuizar ações coletivas o façam, ou mesmo, para que os poderes representativos possam

rever suas decisões sobre as alocações dos recursos públicos, voltando- as para as

maiores demandas da população, de forma a atender, de fato, os mais necessitados

(PEREIRA, 2015, p. 2113-2114).

Desta forma, criticar a capacidade judicial depende do que se espera desse

órgão; se não for considerado que o papel do judiciário é decidir de forma abrangente

sobre a alocação de recursos públicos, mas sim atuar na correção de injustiças

decorrentes de descumprimentos de obrigações constitucionais, os mecanismos judiciais

serão muitas vezes adequados. Todavia, com o aumento significativo das demandas

judiciais, é imposto ao judiciário um experimentalismo institucional, buscando soluções

coletivas e amparadas na construção de procedimentos deliberativos (PEREIRA, 2015,

p.2114).

15

OS EFEITOS DESIGUALITÁRIOS DA JUDICIALIZAÇÃO

É comum ver a alegação de que a judicialização dos direitos sociais através de

ações individuais gera efeitos desigualitários, favorecendo assim a classe média e

fechando os olhos para os grupos marginalizados. Neste caso, haveria a necessidade da

Administração Pública destinar parte de seus recursos para atender às demandas

judiciais, deixando de aplicá-los em políticas públicas abrangentes, elaboradas pelos

órgãos representativos, ferindo assim o caráter da isonomia dessas políticas.

Em que pese a argumentação ser pertinente, numa análise mais minuciosa, e

muito bem feita por Jane Reis, percebe-se que essa abordagem crítica parte do

pressuposto de que a administração pública utiliza-se de critérios “sempre igualitários e

republicanos”, e desta forma distribui os recursos de forma a atender aqueles que mais

necessitam através de políticas públicas (PEREIRA, 2015, p. 2114- 2117).

Num país como o Brasil, em que predomina a cultura “patrimonialista e

clientelista”, os órgãos representativos estão distantes desse ideal republicano. Neste

sentido que Pereira, referindo-se à saúde, cita Vicente Faleiros, para indicar que “a

pressão política para se atender algum afilhado ou apadrinhado, amigo ou indicado, tem

sido um dos critérios práticos mais utilizados para se passar na frente das imensas filas

de espera. É a prevalência da troca de favores do clientelismo” (FALEIROS apud

PEREIRA, 2015, p. 2115).

Apenas para ilustrar, em reportagem divulgada dia 09 de outubro de 2016, no

programa Fantástico, da Rede Globo, se vê claramente a situação tratada nos parágrafos

acima.

Na denúncia é mostrado um esquema criminoso, no qual políticos e assessores

“trocam” votos por consultas e exames, chegando a montar até mesmo uma central

clandestina para agendamento das consultas, chegando ao ponto de se marcar consultas

até mesmo com frentista de posto de gasolina.

O fato mostrado ocorre em diversas cidades do Brasil. Na cidade de Caldas

Novas-GO, dos quinze vereadores de mandato, catorze foram denunciados, sendo

encontradas com eles até mesmo “pastas” com a relação dos agendamentos. Desta

forma, outras pessoas que marcavam suas consultas regularmente, integravam filas de

esperas que chegavam a durar até dez anos.

O esquema fraudulento contava até mesmo com o deputado federal Giovani

Cherini (PDT), que durante o processo de impeachment da ex-presidente Dilma

16

Roussef, votou a favor do processo de impedimento e “pelo fim da corrupção”. Isso nos

remete a um questionamento sem resposta: mais quantos representantes

“comprometidos com combate à corrupção” como este, existem pelo Brasil? Talvez o

dia que a sociedade souber, tenhamos, de fato, representantes.

Desta forma, tecer a afirmação de que a judicialização acentua a desigualdade,

mostra-se um pouco equivocado, pois em alguns momentos o judiciário se mostrará

mais igualitário que o órgão administrativo. Neste sentido, vejamos.

Assim, a judicialização não promove a desigualdade, mas ao

contrário, pode contribuir para desbloquear o acesso do cidadão a um

aparato burocrático que não distribui recursos escassos com fulcro

apenas em razões técnicas e racionais, por ser ainda contaminado pela

cultura clientelista e patrimonialista (PEREIRA, 2015, p. 2115).

E continua Pereira afirmando que “o Judiciário pode funcionar como um agente

de desbloqueio do acesso ao sistema, pressionando para o emprego de critérios mais

objetivos e transparentes na distribuição de recursos escassos” (2015, p. 2116).

Outra crítica, no mesmo sentido de privilegiar as classes médias, sustenta que os

verdadeiramente miseráveis continuariam com as mesmas condições, sendo a

desigualdade acentuada à medida que estes não teriam acesso à justiça.

Quanto ao ponto surgem as defensorias públicas, que, ao conjugar uma boa

estrutura para atender aos necessitados, principalmente através da proposição de ações

civis públicas, pode se tornar o “elo institucional” para promover a complementaridade

entre os direitos sociais e o direito de livre acesso à justiça, possibilitando assim uma

oportunidade de participação para todos independente da classe social.

Neste sentido que Pereira aponta a existência de estudos recentes cujos números

permitem a dedução de que existe conexão entre a existência de defensorias públicas

estruturadas e instituídas há mais tempo e o acesso aos caminhos da judicialização pelos

mais pobres (2015, p. 2116).

Acrescenta Rei (2011), que “a Defensoria Pública surge com o escopo de

garantir aos necessitados a defesa e orientação jurídica, em todos os graus, na forma do

art. 134 da Constituição Federal de 1988”.

E continua o autor, que atua como Defensor Público no Estado do Pará:

Quanto maior for o alcance dos serviços prestados pela Defensoria

Pública à população que mais necessita e se vê privada de seus

direitos, tão maior será a realização de justiça distributiva, pois

alargará as possibilidades de efetivação dos direitos sociais mediante

ordem judicial não apenas àqueles que dispõe de recursos para pagar

advogado particular e buscar o justo e célere provimento jurisdicional,

17

mas também a quem se encontra em situação de vulnerabilidade

econômica e social (REI, 2011, p. 12-13).

Desta forma, considerando o trabalho que vem sendo desempenhado pelas

defensorias públicas em atendimento aos mais necessitados, e ainda o princípio da

inafastabilidade de apreciação do judiciário, insculpido no texto constitucional, não se

pode aceitar a argumentação generalizada de que a judicialização favorece a classe

média, mantendo excluídos aqueles que mais necessitam.

O “PAPEL ILUMINISTA” DA SUPREMA CORTE

Foram diversos os fatores que contribuíram para a ascensão do Poder judiciário,

e, ocupando o lugar de menor representatividade dentre os três poderes, acaba pode

decidir de forma mais arrojada com anseios sociais que os próprios poderes eletivos.

Neste sentido, destaco uma passagem do artigo “A razão sem voto: o Supremo Tribunal

Federal e o governo da maioria”, na qual Barroso assim aborda a atuação da Corte

Constitucional: “A Corte acaba realizando, em fatias, de modo incompleto e sem

possibilidades de sistematização, a reforma que a sociedade clama”.

Ainda que desencadeando uma série de discussões, não se pode negar esse

importante papel democrático desempenhado pela jurisdição constitucional ao longo

desses mais de 20 anos de Constituição, através de decisões que contribuíram para o

avanço dos direitos sociais no Brasil – a essa atuação jurisdicional, o Ministro Luís

Roberto Barroso, atribui o nome, analogicamente ao movimento ocorrido durante o

XVIII, de “papel iluminista7” do judiciário.

Para além do papel puramente representativo, supremas cortes

desempenham, ocasionalmente, o papel de vanguarda iluminista,

encarregada de empurrar a história quando ela emperra. Trata-se de

uma competência perigosa, a ser exercida com grande parcimônia,

pelo risco democrático que ela representa e para que as cortes

constitucionais não se transformem em instâncias hegemônicas. Mas,

às vezes, trata-se de papel imprescindível (BARROSO, 2015, p. 23-

50).

7 Faço aqui uma importante observação no sentido de que não se defende em momento que a Corte “seja”

Iluminista, ou seja, que tenha em sua essência um ideário iluminista. Quando se fala que o STF exerce um

papel iluminista, refiro-me ao momento de decisão de questões relevantes em matérias de direitos sociais,

que segundo o Ministro Barroso, “empurram a sociedade para frente”, em analogia ao avanço

representado pelo movimento iluminista.

18

No sentido desse papel citado, tem-se como exemplo decisões emblemáticas

da do Supremo Tribunal Federal, como o julgamento da ADPF nº 132, em que

equiparou as uniões homoafetivas às uniões estáveis, abrindo caminho para o casamento

entre pessoas do mesmo sexo; e o reconhecimento do dever do Poder Público em

efetivar o direito a educação infantil (creche e acesso a pré-escola) entre outros8.

Tal fato, não é exclusividade da Suprema Corte brasileira. Nos Estados

Unidos a Corte Constitucional julgou o famoso caso Brown v. Board of Education

(1954) e declarou a ilegitimidade da segregação racial nas escolas públicas. Na

Alemanha, o Tribunal Constitucional Federal deu validade a criminalização da negação

do holocausto. Na África do Sul, o Tribunal Constitucional aboliu a pena de morte, a

Suprema Corte Israelense afirmou a total proibição à tortura, ainda que em

interrogatório de suspeito de terrorismo (BARROSO, 2015, p. 23-50).

Desta forma, não se defende aqui a “substituição da democracia por uma

supremocracia”, que seria uma ampliação dos poderes do judiciário em detrimento dos

poderes representativos. Mas ao mesmo tempo, considerando especial a crise de

representatividade em que se a demanda por ação estatal, não se pode negar a grande

contribuição que vem sendo dada pelo poder Judiciário no tocante à efetivação dos

direitos sociais. Por esta razão pela esse poder vem ganhando muitas vezes mais

credibilidade que os próprios agentes políticos, entretanto, ainda com todos os percalços

que aparecem no caminho para a promoção da igualdade em nossa sociedade, é de

importante valia saber que o judiciário tem uma atuação claramente limitada, e que

“tanto na vida institucional, como na vida em geral, ninguém é bom demais e,

sobretudo, ninguém é bom sozinho”, sendo necessário um maior diálogo entre todos os

poderes do Estado para se alcançar os objetivos maiores da Constituição Federal, nunca

esquecendo que o “todo o poder emana do povo, e em seu nome será exercido”.

CONCLUSÃO

Por tudo que foi exposto, percebe-se que o tema da efetivação dos direitos

sociais envolve um rico debate doutrinário e passa por importantes questões como, por

8 Ver mais no artigo “A razão sem voto: o Supremo Tribunal Federal e o governo da maioria”, no qual, o

Ministro do STF, Luís Roberto Barroso trata da temática.

19

exemplo, o embate acerca da força do texto Constitucional, e neste momento se

destacam duas teorias.

De um lado a forte corrente substancialista defende a aplicabilidade

imediata dos direitos fundamentais e consequentemente a possibilidade de intervenção

judicial em caso de descumprimento. Em lado oposto, a corrente procedimentalista, que

conta com a grande parte da doutrina, defende a necessidade de regulamentação

infraconstitucional dos preceitos constitucionais para ensejar sua exigibilidade perante o

Estado, não cabendo assim o acionamento do judiciário para cobrar do Estado aqueles

direitos positivados no texto constitucional e não regulamentados por dispositivo

infraconstitucional.

No Brasil, o Supremo Tribunal Federal fez a opção por adotar a teoria

substancialista, e assim, assumir um importante papel de tirar da teoria as promessas

constitucionais. Entretanto, paralelamente a esse posicionamento surgem diversas

críticas à atuação judicial, críticas estas que consideram de maneira insuficiente a real

situação da sociedade brasileira. Por esta razão, deve-se considerar alguns pressupostos

aos analisar essas críticas, de forma que, ao fazer um estudo minucioso, vai se perceber

que elas, ainda que relevantes e plausíveis, apresentam inconsistências.

Independente da discussão que cerca o tema, especialmente às críticas

tecidas a respeito da atuação judicial na efetivação dos direitos sociais, não se pode

negar a contribuição de Corte Constitucional vem dando nesse ramo jurídico. O

Supremo Tribunal Federal, como o próprio Ministro Luiz Roberto Barroso apresentou,

“acaba realizando, em fatias, de modo incompleto e sem possibilidades de

sistematização, a reforma que a sociedade clama”, e desta forma empurrando a

sociedade para frente, no que o próprio ministro do STF chama de “papel iluminista do

judiciário” – o que guardamos aqui todas as ressalvas necessárias para esta afirmação.

Embora se defenda aqui, nas condições pré-estabelecidas, a atuação do

judiciário na efetivação dos direitos sociais, dada a realidade da sociedade brasileira,

não pode deixar passar despercebido que, nos dias de hoje, até mesmo o judiciário vem

passando por grandes problemas. Especialmente, pelo excesso de demandas,

inexistência de magistrados para julgar o que lhes é apresentado em tempo razoável,

insuficiência de servidores, entre outros... fazendo com que muitos processos sejam

morosos e desgastantes para as partes, sem encontrar resolução em tempo hábil que a

torne efetiva.

20

Além disso, ainda tem que ser acrescentado que temos um ordenamento

jurídico complexo, com uma infinidade de dispositivos e distante da realidade dos

cidadãos. Ocorre que muitos desses dispositivos legais são arcaicos e acabam por

burocratizar a atuação do magistrado e dos patronos, concorrendo mais uma vez para

que se tenha uma justiça morosa e de poucos resultados.

Cabe perscrutar também o quão de fato é independente a Suprema Corte, em

relação aos demais poderes, frente à sua própria estrutura. Posto que se tem no Brasil

uma Corte composta por Ministros que, embora serem indicados pelo chefe do poder

executivo e sabatinados pelo Senado Federal, possuem vitaliciedade, inamovibilidade e

uma série de outras garantias que fornecem o aparato necessário para decidir com

independência e imparcialidade. Todavia, a prática judicial, especialmente nas

instâncias superiores sofre forte influência política, levando muitas vezes a decisões que

fazem a sociedade regredir ou estagnar em matéria de direitos sociais.

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