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Os dominicanos: relações entre masculinidade, feminilidade e a institucionalização da Ordem dos Pregadores no século XIII Carolina Coelho Fortes (UGF/UFF) Ordem dominicana; gênero; século XIII ST 70 - Corpo, violência e poder na antiguidade e no medievo em perspectiva interdisciplinar Há alguns anos, um grande medievalista escrevia: “Resignemo-nos: nada aparece do feminino a não ser por intermédio do olhar dos homens (...) Tanto ontem como hoje a sociedade apenas mostra de si mesma o que julga conveniente exibir.” 1 Frase de efeito, certamente, mas que nos induz a acreditar que a percepção que teremos, hoje, dessas mulheres medievais é a mais parcial e indireta possível. Duby, que dedicou parte considerável de sua obra a desvendar vidas e valores dessas mulheres, não usou a categoria gênero, embora não possamos nos furtar a entrever em livros como Male Moyen Age 2 e O Cavaleiro, a Mulher e o Padre 3 uma tendência quase forte em direção a essa perspectiva. Talvez, por adotarmos gênero como uma “categoria útil para a análise histórica”, não precisemos nos resignar. É certo que buscamos na sociedade medieval, mais precisamente nas instâncias de decisão administrativa de um grupo de religiosos – os irmãos pregadores – , algo que estas pessoas não entendiam da mesma maneira que nós. Os dominicanos não legaram a nós maneiras de percebermos como se construíam as relações de gênero dentro de suas comunidades, pelo menos não de forma consciente. Se assim fosse, não haveria porque pesquisar. Baseando-nos, portanto, nas idéias de Joan Scott, 4 pretendemos aqui esboçar brevemente um dos principais objetivos da tese de doutorado que ora se desenvolve: estabelecer uma relação entre o processo de institucionalização da Ordem dos Irmãos Pregadores e a maneira como estes entendiam o masculino, o feminino e as interfaces entre estes. Para tanto, escolhemos, dentro do vasto corpus documental que compõe a pesquisa, apenas duas fontes, de períodos e naturezas diferentes, no intuito de viabilizar uma discussão complexa dentro dos limites impostos por este tipo de produção acadêmica. Assim, lançaremos mãos das chamadas Constituições, escritas em 1221 e reelaboradas em 1228, que agiram como fio condutor da organização da Ordem, sendo uma espécie de regra elaborada pelos primeiros capítulos gerais e, portanto, de caráter coletivo. O segundo documento é um tratado sobre a 1 DUBY, George. Heloísa, Isolda e outras Damas do século XII. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. p.12. 2 DUBY, George. Medievo Maschio.: amore e matrimonio. Roma: Mondadori, 1996. 3 DUBY, George. O Cavaleiro, a Mulher e o Padre. Lisboa: Dom Quixote, 1988. 4 SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. (Tradução de Christine Rufino Dabat e Maria Betânia Avila. Recife, SOS Corpo, 1991, e "História das Mulheres", IN: Burke, Peter (org.), A Escrita da História - Novas Perspectivas. São Paulo: UNESP, 1992.

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Os dominicanos: relações entre masculinidade, feminilidade e a institucionalização da Ordem dos

Pregadores no século XIII

Carolina Coelho Fortes (UGF/UFF) Ordem dominicana; gênero; século XIII ST 70 - Corpo, violência e poder na antiguidade e no medievo em perspectiva interdisciplinar

Há alguns anos, um grande medievalista escrevia: “Resignemo-nos: nada aparece do feminino a

não ser por intermédio do olhar dos homens (...) Tanto ontem como hoje a sociedade apenas mostra de

si mesma o que julga conveniente exibir.”1 Frase de efeito, certamente, mas que nos induz a acreditar

que a percepção que teremos, hoje, dessas mulheres medievais é a mais parcial e indireta possível.

Duby, que dedicou parte considerável de sua obra a desvendar vidas e valores dessas mulheres, não

usou a categoria gênero, embora não possamos nos furtar a entrever em livros como Male Moyen Age2

e O Cavaleiro, a Mulher e o Padre3 uma tendência quase forte em direção a essa perspectiva. Talvez,

por adotarmos gênero como uma “categoria útil para a análise histórica”, não precisemos nos resignar.

É certo que buscamos na sociedade medieval, mais precisamente nas instâncias de decisão

administrativa de um grupo de religiosos – os irmãos pregadores – , algo que estas pessoas não

entendiam da mesma maneira que nós. Os dominicanos não legaram a nós maneiras de percebermos

como se construíam as relações de gênero dentro de suas comunidades, pelo menos não de forma

consciente. Se assim fosse, não haveria porque pesquisar.

Baseando-nos, portanto, nas idéias de Joan Scott,4 pretendemos aqui esboçar brevemente um dos

principais objetivos da tese de doutorado que ora se desenvolve: estabelecer uma relação entre o

processo de institucionalização da Ordem dos Irmãos Pregadores e a maneira como estes entendiam o

masculino, o feminino e as interfaces entre estes. Para tanto, escolhemos, dentro do vasto corpus

documental que compõe a pesquisa, apenas duas fontes, de períodos e naturezas diferentes, no intuito

de viabilizar uma discussão complexa dentro dos limites impostos por este tipo de produção acadêmica.

Assim, lançaremos mãos das chamadas Constituições, escritas em 1221 e reelaboradas em 1228, que

agiram como fio condutor da organização da Ordem, sendo uma espécie de regra elaborada pelos

primeiros capítulos gerais e, portanto, de caráter coletivo. O segundo documento é um tratado sobre a 1 DUBY, George. Heloísa, Isolda e outras Damas do século XII. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. p.12. 2 DUBY, George. Medievo Maschio.: amore e matrimonio. Roma: Mondadori, 1996. 3 DUBY, George. O Cavaleiro, a Mulher e o Padre. Lisboa: Dom Quixote, 1988. 4 SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. (Tradução de Christine Rufino Dabat e Maria Betânia Avila. Recife, SOS Corpo, 1991, e "História das Mulheres", IN: Burke, Peter (org.), A Escrita da História - Novas

Perspectivas. São Paulo: UNESP, 1992.

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pregação, o De eruditione predicatorum, escrito pelo quinto mestre geral dos pregadores,

provavelmente na década de 60 daquele século.

A Institucionalização da Ordem dos Irmãos Pregadores

Ao recorrermos à historiografia mais abundante a cerca da ordem fundada por Domingos de

Gusmão – a escrita por dominicanos – deparamo-nos com relatos lineares, não-problemáticos,

construídos principalmente sobre bases documentais hagiográficas e preocupados em inserir os frades

no contexto de “renovação” almejado pela Cúria papal na transição entre o século XII e XIII. Esses

relatos coerentes da missão que, desde suas primeiras experiências, coloca a Ordem dos Pregadores no

centro de um movimento caracterizado pela “renovação” da Igreja, tendo em seu mestre um guia

incontestável, no entanto, pode ser questionado. Principalmente porque ele se constitui com base em

documentos posteriores a sua morte, e que tinham por objetivo a construção da memória como base

para a identificação dos pregadores como comunidade eclesiástica institucionalizada. Em outras

palavras, não há qualquer segurança na idéia de que a Ordem dos Pregadores tenha surgido de um

projeto consciente e já, desde o início, pré-concebido por seu fundador.

Do religioso castelhano Domingos de Gusmão (Calaruega, c. 1170 – Bolonha 1221), cânone

regular e sub-prior de Osma, missionário papal e legado no Languedoc, prior da pregação diocesana em

Toulouse, prior e mestre da Ordem dos Pregadores, e depois santo celebrado pela igreja (a partir de

1234) como fundador da sociedade religiosa dos Pregadores, temos pouquíssimas palavras. O único

texto de um certo relevo deixado por ele é uma carta enviada à priora e às monjas de Madri. Trata-se,

no entanto, de um escrito bastante genérico de exortação a preservar e a nutrir a “sancta conversatio” na

luta cotidiano contra o “antigo inimigo”, e no respeito dos mais rigorosos preceitos monásticos do

silêncio e do trabalho manual.5 Assim, ao contrário do que ocorreu com Francisco de Assis, Domingos

não legará a posteridade nenhum documento direto de sua lavra. Mas, após sua morte, serão muitos o

que escreverão sobre ele.

Essa escassez de documentos atribuídos a Domingos coloca problemas que se relacionam

intimamente com o significado histórico de uma experiência de vida religiosa que comportou uma série

de conseqüências e êxitos importantes no plano político-institucional, tanto quanto no sócio-

5 KOUDELKA, V. (ed.) Monumenta Diplomática Sancti Dominici. In: Monumenta Ordinis Fratrum Praedicatorium

Historica, vol.XXV. Roma, 1966.p. 126-27.

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econômico.6 Acreditamos que essa escassez levou à necessidade de estabelecer elementos de

identidade institucional da Ordem, atribuindo-os ao próprio Domingos, e pelo menos tentando

escamotear as tensões que poderiam advir deste processo. Assim, defendemos que a Ordem dos Irmãos

Pregadores foi lentamente se afeiçoando à sua existência como órgão sólido, autônomo em relação a

outras realidades institucionais religiosas, mas como um braço da Igreja, que se tornaria profundamente

atuante ao longo do século XIII.

Para se confirmarem como grupo coeso, para se entenderem como comunidade com uma

identidade específica, diferente das outras ordens mendicantes, diferente dos cônegos regulares, e até

mesmo do clero secular, os pregadores se investiram, ao longo de todo o século XIII, de uma série de

características, muitas delas já existentes, mas adaptadas àquilo que entendiam como sua missão: a

salvação das almas pela pregação. É assim que muitos elementos serão definidores da identidade

dominicana nesse primeiro século de existência. Dos mais pontuais aos mais abrangentes. Por exemplo,

a adoção de uma indumentária específica, que popularizou a nomenclatura de monges negros para os

pregadores, isto é, a capa negra que encobre o hábito branco. A utilização da regra agostiniana, a

mesma usada pelos cânones regulares, entre os quais o próprio Domingos, antes da fundação da ordem.

A ênfase em escolher-se apenas clérigos e, especialmente, clérigos com pelo menos alguma educação

formal em seus quadros, para bem cumprir o intento da pregação douta.

No entanto, um elemento identitário salta à vista: aquele que se refere à relação entre mulheres

e homens. Mais ainda, entre feminino e masculino. Isso porque, como já tivemos a oportunidade de

explorar em outra ocasião, muitas vezes se definem em termos femininos, tomando como emblema

santas como Maria Madalena e Catarina de Alexandria, que acabam por masculinizar.7 Por outro lado,

em um nível mais pragmático, temos aquilo que chamamos de Querela da Ordem Segunda, ou seja, os

conflitos gerados pela rejeição das casas femininas na Ordem durante a maior parte do século XIII.8 É

perceptível, portanto, o papel relevante que as relações de gênero representam para a

instituicionalização dos dominicanos. Para entender melhor como elas se dão, vejamos que atributos e

realidades de gênero estão em jogo nos dois documentos supra-citados.

6 Não existe até hoje uma história dos frades pregadores criticamente aceitável: A Histoire dês Maîtres généraux de l´Ordre

dês frères Précheurs, vol. I-VIII. Paris, 1903-1920, dirigida por A. Mortier, assim como The History of Dominican Order, vol. I-II. New York, 1966-73, de W. Hinnebusch, são ambas, malgrado o meio século que as separa, compilações confusas com base em outros autores. Útil, mas necessariamente escolástica por conta de seu objetivo é A Short History of the

Dominican Order, também do frade Hinnebusch. Obras essas já citadas na primeira parte. 7 FORTES, Carolina. Maria Madalena e a Ordem Dominicana no século XIII: um caso de inversão simbólica de gênero. Semana de Estudos Medievais, 6, 2005, Rio de Janeiro In: Atas...SILVA, Andréia & SILVA, Leila (orgs). Rio de Janeiro: PEM, 2006. 8 FORTES, Carolina. Poder e Gênero: um exemplo da relação entre os conceitos na Ordem Dominicana do século XIII. Encontro Regional da Associação Brasileira de Estudos Medievais – RJ, 1, 2006, Rio de Janeiro In: Atas...BASTOS, Mário Jorge, FORTES, Carolina & SILVA, Leila (orgs.) Rio de Janeiro: ABREM, 2007.

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Masculino e feminino nas Constituições

Quando de sua instituição oficial, em 1216, o IV Concílio de Latrão já havia estabelecido a

proibição da criação de novas ordens religiosas. A permissão da Cúria para a existência de uma ordem

de pregadores se deu com base na condição de que esta deveria adotar uma regra já existente. Como

cânone regular que era, Domingos de Gusmão escolheu a regra agostiniana. No entanto esse guia para a

vida comunitária não respondia à todas as necessidades impostas por aquele “novo tempo”, que tentava

resgatar a pureza apostólica da vida cristã. É assim que Domingos, ainda em 1216, faz algumas adições

à esta, constituindo assim uma espécie de esquema das Constituições, ou seja, dos “comentários”,

adaptações da regra de Agostinho.

Embora haja segurança em afirmar que as Constituições já existissem nessa data remota, não há

qualquer manuscrito seu preservado. O primeiro texto legislativo da Ordem é de 1228, e foi incitado

pela ordem do papa Gregório IX, que aconselhou os dominicanos a realizarem o primeiro Capítulo

Generalíssimo, que teria maior poder de decisão do que os Capítulos Gerais que se reuniam desde

1220. O que mostram os documentos dessa primeira década da existência da Ordem é que uma parte

das Constituições fora escrita em 1216, e outra parte em 1220, sofrendo esta algumas modificações até

1228, quando temos o registro das Constituições Primitivas, executado pelo Capítulo Generalíssimo.9

As Constituições fundamentam-se, principalmente, na leitura feita pelos premonstratenses da

regra agostiniana.10 E é na comparação entre as duas que fica explícita a originalidade da legislação dos

pregadores. No que passou a ser chamado de Líber consuetudinum, já na primeira versão de 1216,

ainda no início do documento, podemos ler:

Nunca entrem as mulheres no claustro, em nossas oficinas e no oratório, a não ser na

consagração da igreja. Na Sexta-feira Santa poderão entrar no coro até a hora do Ofício. Mas no lugar da igreja destinado aos leigos ou fora, em um lugar determinado, pratique com elas o prior sobre Deus e as coisas espirituais.11

Assim, embora muitos elementos identitários tenham surgido com clareza apenas tardiamente

durante o século XIII, é ainda nos primeiros momentos que, provavelmente, o próprio Domingos

enfatiza o lugar devido às mulheres. No entanto, ao que tudo indica, as mulheres citadas aqui são

leigas, e não religiosas. Ou seja, aquelas que não pertencem à ordem, que não tomaram votos, devem

manter-se afastadas dos sacrossantos locais de comunhão dos irmãos. Não faria sentido atribuir essa

9 GELABERT, M.; MILAGRO, J. & GARGANTA, J. (eds.) Santo Domingo de Guzmán visto por sus contemporaneos. Madri: BAC. 1947, p. 836-7. 10 TUGWELL, Simon. Early Dominicans: Selected Writings. Paulist Press, 1982. p. 452-455 11 Líber Consuetudinum, Livro I, capítulo II In: GELABERT, M.; MILAGRO, J. & GARGANTA, J. (eds.) Op. Cit, p. 871.

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passagem também às religiosas, já que a primeira casa tomada sob o comando de Domingos é uma casa

feminina, a de Prouille, ainda antes da chancela papal para a instituição da Ordem. E igualmente

porque um dos poucos escritos de Domingos que chegaram até nós são as Constituições das Monjas de

convento de São Sixto, em Roma, redigido, provavelmente, entre 1212 e 1213.12

Alguns anos depois, em 1228, quando do Capítulo Generalíssimo e da reelaboração das

Constituições, temos uma adição:

Em virtude do Espírito Santo e sob pena de excomunhão, proibimos expressamente qualquer um de nossos irmãos, desse dia em diante, de negociar em favor de ou trabalhar para o cuidado das freiras ou quaisquer outras mulheres. Todo aquele que agir contrariamente a isso será sujeito às penalidades devidas às faltas graves. Também proibimos a tonsura ou vestição de qualquer mulher com o hábito religioso ou o recebimento da profissão de fé. Além disso, não se deve aceitar nenhuma igreja que envolva o cuidado das almas ou o ofício da missa.13

Aqui nos deparamos com uma forte rejeição à entrada das mulheres na Ordem. Podemos aventar

algumas hipóteses para explicar uma determinação tão ferrenha: o fardo de mantê-las materialmente, os

recursos humanos empregados no cuidado permanente de suas almas, o fato de que às mulheres era

vetado os dois principais elementos de identidade da Ordem – o estudo e a pregação. Ora, se passara

pouco mais de dez anos do consentimento papal para o estabelecimento da Ordem, era necessário ainda

organizá-la como tal. Seu crescimento acelerado14 impunha algum tipo de limite à entrada de noviços.

E o limite foi estabelecido ai: mulheres não entram.

Ao mesmo tempo, o Líber Consuetudinum dá a ver que tipo de homens se buscava. As várias

alusões ao estudo enfatizavam uma formação rigorosa junto às escolas que, ao longo do século XIII, se

multiplicavam, abarrotando-se de mendicantes. Mas as admoestações feitas aos frades sugerem

também uma masculinidade que, em muito, faz-nos lembrar as reclamações dirigidas às mulheres.15 A

exigência do silêncio, por exemplo, embora seja um lugar comum nas regras monásticas, está

persistentemente presente nas constituições dos pregadores.

Senão vejamos o capítulo concernente ao mestre dos noviços:

12 MANDONNET, Pierre. Saint Dominique: l´idee, l´homme et l´ouvre. Paris, 1938, p. 227. 13 Liber Consuetudinum, Livro II, capítulo XXVII. LEHNER, Francis C. Saint Dominic Biographical Document. Washington: Thomistic Press, 1964. Disponível na Internet: http://www.domcentral.org/trad/domdocs/default.htm. Acesso em: 29.06.2008 14HINNEBUSCH,W. The Dominicans. A Short History. Disponível na Internet: http://www.op.org/domcentral/trad/shorthistory/default.htm Acesso em 29.06.2008 15 Cf. BLOCH, Howard. Misoginia Medieval e a Invenção do Amor Romântico Medieval. Rio de Janeiro: 34, 1995.

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Que o prior ponha a frente dos noviços um mestre diligente para que os instrua nas coisas da Ordem. Dê-lhes fervor nas coisas da Igreja, e em qualquer lugar em que se portem negligentemente procure corrigi-los com palavras e com sinais, e provenha, da melhor maneira que possa, as coisas que lhes são necessárias. (..) Que os ensine a ser humildes em corpo e alma. (...) Que os ensine (...) a estar submisso em todas as coisas, com voluntária obediência, à vontade de seu prelado.16

O mestre dos noviços cuida dos frades ingressantes como uma mãe piedosa cuida dos filhos.

Deve ensiná-los, acima de tudo, a obediência, a submissão aos superiores. Deve zelar para que nada

falte àqueles sob suas ordens. O masculino, assim, assume também uma brandura, que correntemente

creditamos ao feminino. Por isso a necessidade urgente de reavaliar, para os religiosos medievais,

especificamente para os frades dominicanos, os atributos de gênero.17

Masculino e feminino no De eruditione praedicatorum

Debrucemo-nos brevemente, agora, sobre o De eruditione praedicatorum, mais conhecido como

Manual dos Pregadores,18 uma extensa exposição sobre a pregação como ministério eclesiástico. Foi

escrito pelo Mestre Geral Humberto de Romans, entre 1262 e 1277, momento em que, ao mesmo

tempo, a Ordem se expandia e consolidava, mas começava também a sentir os primeiros traços de

esfriamento. Em meio a essa dubiedade, ele se preocupou em esclarecer a seus confrades as

características essenciais do bom pregador. Humberto escreve não um sermão ou exortação, mas um

longo tratado.

Por conta do escasso tempo, limitemo-nos a apenas duas passagens, que podem ser consideradas

ilustrativas das questões de gênero. Na quarta parte da obra, dedicada às formas pelas quais se realiza a

pregação, Humberto de Romans pontua, como faz ao longo de todo o seu tratado, que a pregação

“supera, em diversos aspectos, a todas as obras espirituais”, pois:

“Quem pode narrar todas as aflições que sofre um pregador pobre, que seja zeloso das almas,

solicito em prover as necessidades da gente: preparando o que vai dizer, passando por escassez, com as

preocupações de cada caminho e tantas outras que o acometem? Com razão se pode compará-lo com a

mulher que dá à luz, cujas dores são enormes.”19

16 Líber Consuetudinum, Livro I, capítulo II In: GELABERT, M.; MILAGRO, J. & GARGANTA, J. (eds.) Op. Cit, p. 877. 17 Em um artigo já clássico, Caroline Bynum trata dos atributos aparentemente femininos incorporados pelos cistercienses do século XII. Cf. BYNUM, Caroline W. Jesus as Mother. Studies in the Spirituality of the High Middle Ages. Berkeley: University of California Press, 1982. 18 HUMBERTO DE ROMANS. La Formación de los Predicadores. Biblioteca Dominicana: Santa Fé de Bogotá, 1991. 19 Idem, p. 106.

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Assim, o pregador sofre tal qual a mãe que dá à luz, para ver nascer, talvez, almas salvas pela

pregação eficaz que só pode ser obtida por um homem. Isso porque, o mestre geral enfatiza que a

primeira necessidade para um pregador é que ele seja homem. Isso por quatro razões: o homem tem

maior domínio da sensibilidade; a mulher é, por sua condição, subordinada ao homem, o que a

impossibilidade para a pregação, já que esta é considerada ofício da maior grandeza; a pregação da

mulher poderia despertar a sensualidade e para que a humanidade jamais se esqueça da “torpeza da

primeira mulher.”20 Para Humberto não há o que argumentar além disso, as mulheres não devem

pregar. E se não podem tomar parte da principal atividade dominicana, não há porque recebê-las entre

eles, a não ser pelo puro cuidado das almas, o que podia ser feito por outras ordens.

O dominicano afirma a identidade masculina do pregador. Isso, por si só, mostra que esta não é

óbvia. O que faz sentido, mesmo na segunda metade do século XIII, por conta da memória das

pregadoras cátaras. Mas, ao mesmo tempo em que nega a presença, em carne e osso das mulheres na

Ordem, recorre à imagens do feminino para se definir. A imagem da mãe dando à luz, no entanto,

remete ao feminino de maneira óbvia. O que não ocorre com tantos outros trechos do De erudtione

praedicatorum, que utilizam-se de exemplos bíblicos e hagiográficos de boas mulheres como guias

para o comportamento dos pregadores.

Conclusão

Em suma, de maneira geral, durante o século XIII, os irmãos pregadores eram exatamente isso:

irmãos homens. Dominicanos. Tentaram insistentemente, pelo menos um número considerável deles,

manter as mulheres distantes de sua responsabilidade direta, tanto porque precisavam ainda encontrar

uma identidade institucional, quanto porque as mulheres não se inseriam naqueles elementos

identitários já definidos – o estudo teológico e a pregação. Mas enquanto afastavam as mulheres reais,

atribuíam-se características aparentemente femininas. Resta saber, portanto, se estas eram entendidas

também, pelos próprios dominicanos, como atributos do sexo inferior.

20 Idem, p. 69.