OS ECONOMISTAS - Apresentação de O Capital Por Jacob Gorender

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OS ECONOMISTAS KARL MARX O CAPITAL CRÍTICA DA ECONOMIA POLÍTICA VOLUME I LIVRO PRIMEIRO O PROCESSO DE PRODUÇÃO DO CAPITAL TOMO 1 (Prefácios e Capítulos I a XII) Apresentação de Jacob Gorender Coordenação e revisão de Paul Singer Tradução de Regis Barbosa e Flávio R. Kothe Fundador VICTOR CIVITA (1907 - 1990) Editora Nova Cultural Ltda. Copyright © desta edição 1996, Círculo do Livro Ltda. Rua Paes Leme, 524 - 10º andar CEP 05424-010 - São Paulo - SP Títulos originais: Value, Price and Profit; Das Kapital - Kritik der Politischen konomie. Direitos exclusivos sobre a Apresentação de autoria de Winston Fritsch, Editora Nova Cultural Ltda. Direitos exclusivos sobre as traduções deste volume: Círculo do Livro Ltda. Impressão e acabamento: DONNELLEY COCHRANE GRÁFICA E EDITORA BRASIL LTDA. DIVISÃO CÍRCULO - FONE: (55 11) 4191-4633 ISBN 85-351-0831-9 APRESENTAÇÃO Em 1867, vinha à luz, na Alemanha, a primeira parte de uma obra intitulada O Capital. Karl Marx, o autor, viveu, então, um momento de plena euforia, raro em sua atribulada existência. Durante quase vinte anos, penara duramente a fim de chegar a este momento — o de apresentar ao público, conquanto de maneira ainda parcial, o resultado de suas investigações no campo da Economia Política. Não se tratava, contudo, de autor estreante. À beira dos cinqüenta anos, já imprimira o nome no frontispício de livros suficientes para lhe assegurar destacado lugar na história do pensamento. Àquela altura, sua produção intelectual abrangia trabalhos de Filosofia, Teoria Social, Historiografia e também Economia Política. Quem já publicara Miséria da Filosofia, Manifesto do Partido Comunista, A Luta de Classes em França, O Dezoito Brumário de Luís Bonaparte e Para a Crítica da Economia Política — podia avaliar com justificada sobranceria o próprio currículo. No entanto, Marx afirmava que, até então, apenas escrevera bagatelas. Sentia-se, por isso, autor estreante e, demais, aliviado de um fardo que lhe vinha exaurindo as forças. Também os amigos e companheiros, sobretudo Engels, exultavam com a publicação, pois se satisfazia afinal a expectativa tantas vezes adiada. Na verdade,

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OS ECONOMISTASKARL MARXO CAPITALCRÍTICA DA ECONOMIA POLÍTICAVOLUME ILIVRO PRIMEIROO PROCESSO DE PRODUÇÃO DO CAPITALTOMO 1(Prefácios e Capítulos I a XII)Apresentação de Jacob GorenderCoordenação e revisão de Paul SingerTradução de Regis Barbosa e Flávio R. KotheFundadorVICTOR CIVITA(1907 - 1990)Editora Nova Cultural Ltda.Copyright © desta edição 1996, Círculo do Livro Ltda.Rua Paes Leme, 524 - 10º andarCEP 05424-010 - São Paulo - SPTítulos originais:Value, Price and Profit; Das Kapital -Kritik der Politischen konomie.Direitos exclusivos sobre a Apresentação de autoria deWinston Fritsch, Editora Nova Cultural Ltda.Direitos exclusivos sobre as traduções deste volume:Círculo do Livro Ltda.Impressão e acabamento:DONNELLEY COCHRANE GRÁFICA E EDITORA BRASIL LTDA.DIVISÃO CÍRCULO - FONE: (55 11) 4191-4633

ISBN 85-351-0831-9

APRESENTAÇÃOEm 1867, vinha à luz, na Alemanha, a primeira parte de umaobra intitulada O Capital. Karl Marx, o autor, viveu, então, um momentode plena euforia, raro em sua atribulada existência. Durantequase vinte anos, penara duramente a fim de chegar a este momento— o de apresentar ao público, conquanto de maneira ainda parcial, oresultado de suas investigações no campo da Economia Política.Não se tratava, contudo, de autor estreante. À beira dos cinqüentaanos, já imprimira o nome no frontispício de livros suficientes paralhe assegurar destacado lugar na história do pensamento. Àquela altura,sua produção intelectual abrangia trabalhos de Filosofia, TeoriaSocial, Historiografia e também Economia Política. Quem já publicaraMiséria da Filosofia, Manifesto do Partido Comunista, A Luta de Classesem França, O Dezoito Brumário de Luís Bonaparte e Para a Críticada Economia Política — podia avaliar com justificada sobranceria opróprio currículo. No entanto, Marx afirmava que, até então, apenasescrevera bagatelas. Sentia-se, por isso, autor estreante e, demais, aliviadode um fardo que lhe vinha exaurindo as forças. Também osamigos e companheiros, sobretudo Engels, exultavam com a publicação,pois se satisfazia afinal a expectativa tantas vezes adiada. Na verdade,pouquíssimos livros desta envergadura nasceram em condições tão difíceis.1. Do liberalismo Burguês ao ComunismoEste homem, que vivia um intervalo de consciência pacificada eiluminação subjetiva em meio a combates políticos, perseguições e decepções,nascera em 1818, em Trier (Trevès, à francesa), sul da Alemanha.Duas circunstâncias lhe marcaram a origem e a primeira educação.Trier localiza-se na Renânia, então província da Prússia, limítrofeda França e, por isso, incisivamente influenciada pela Revolução Francesa.Ao contrário da maior parte da Alemanha, dividida em numerososEstados, os camponeses renanos haviam sido emancipados da servidãoda gleba, e das antigas instituições feudais não restava muita coisa

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na província. Firmavam-se nela núcleos da moderna indústria fabril5

em torno da qual se polarizavam as duas novas classes da sociedadecapitalista: o proletariado e a burguesia. A esta primeira e poderosacircunstância social se vinculava uma outra. As idéias do iluminismofrancês contavam com muitos adeptos nas camadas cultas da Renânia.O pai de Marx — tal a segunda circunstância existencial — era umdesses adeptos.A família Marx pertencia à classe média de origem judaica. HirschelMarx fizera brilhante carreira de jurista e chegara a Conselheiroda Justiça. A ascensão à magistratura obrigara-o a submeter-se a imposiçõeslegais de caráter anti-semita. Em 1824, quando o filho Karltinha seis anos, Hirschel converteu a família ao cristianismo e adotouo nome mais germânico de Heinrich. Para um homem que professavao deísmo desvinculado de toda crença ritualizada, o ato de conversãonão fez mais do que sancionar a integração no ambiente intelectualdominado pelo laicismo. Karl, que perdeu o pai aos vinte anos, em1838, recebeu dele orientação formadora vigorosa, da qual guardariarecordação sempre grata.Durante o curso de Direito, iniciado na Universidade de Bonn eprosseguido na de Berlim, o estudante Karl encontrou um ambientede grande vivacidade cultural e política. O supremo mentor ideológicoera Hegel, mas uma parte dos seus seguidores — os Jovens Hegelianos— interpretava a doutrina no sentido do liberalismo e do regime constitucionaldemocrático, podando os fortes aspectos conservadores dosistema do mestre, em especial sua exaltação do Estado. Marx fez ainiciação filosófica e política com os Jovens Hegelianos, o que o levouao estudo preferencial da filosofia clássica alemã e da filosofia emgeral. Esta formação filosófica teve influência espiritual duradoura efirmou um dos eixos de sua produção intelectual.Se foi hegeliano, o que é inegável, nunca chegou a sê-lo de maneiraestrita. Não só já encontrou a escola hegeliana numa fase de cisãoadiantada, como ao seu espírito inquieto e inclinado a idéias anticonservadoras,na atmosfera opressiva da monarquia absolutista prussiana,o sistema do mestre consagrado devia parecer uma camisa-de-força.Em carta ao pai, já em 1837, escrevia: “a partir do idealismo (...) fuilevado a procurar a Idéia na própria realidade (...)”. A esse respeito,também é sintomático que escolhesse a relação entre os filósofos gregosmaterialistas Demócrito e Epicuro para tema de tese de doutoramento,defendida na Universidade de Iena. Embora inspirada nas linhas mestrasda concepção hegeliana da história da filosofia, desponta na teseum impulso para transcender àquela concepção, num sentido que somentemais tarde se tornaria claro.Em 1841, Ludwig Feuerbach dava a público A Essência do Cristianismo.O livro teve forte repercussão, pois constituía a primeirainvestida franca e sem contemplações contra o sistema de Hegel. Oidealismo hegeliano era desmistificado e se propunha, em seu lugar,OS ECONOMISTAS6

uma concepção materialista que assumia a configuração de antropologianaturista. O homem enquanto ser natural, fruidor dos sentidos físicose sublimado pelo amor sexual, colocava-se no centro da natureza edevia voltar-se para si mesmo. Estava, porém, impedido de fazê-lo pelaalienação religiosa. Tomando de Hegel o conceito de alienação, Feuerbachinvertia os sinais. A alienação, em Hegel, era objetivação e, porconseqüência, enriquecimento. A Idéia se tornava ser-outro na naturezae se realizava nas criações objetivas da história humana. A recuperaçãoda riqueza alienada identificava Sujeito e Objeto e culminava no SaberAbsoluto. Para Feuerbach, ao contrário, a alienação era empobrecimento.O homem projetava em Deus suas melhores qualidades de sergenérico (de gênero natural) e, dessa maneira, a divindade, criação dohomem, apropriava-se da essência do criador e o submetia. A fim derecuperar tal essência e fazer cessar o estado de alienação e empobrecimento,o homem precisava substituir a religião cristã por uma religiãodo amor à humanidade.Causador de impacto e recebido com entusiasmo, o humanismonaturista de Feuerbach foi uma revelação para Marx. Apetrechou-oda visão filosófica que lhe permitia romper com Hegel e transitar do

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idealismo objetivo deste último em direção ao materialismo. Não obstante,assim como nunca chegou à plenitude de hegeliano, tampoucose tornou inteiramente feuerbachiano. Apesar de jovem e inexperiente,era dotado de excepcional inteligência crítica, que o levava sempre aoexame sem complacência das idéias e das coisas. Ao contrário de Feuerbach,que via na dialética hegeliana apenas fonte de especulação mistificadora,Marx intuiu que essa dialética devia ser o princípio dinâmicodo materialismo, o que viria a resultar na concepção revolucionáriado materialismo como filosofia da prática.Entre 1842 e 1843, Marx ocupou o cargo de redator-chefe daGazeta Renana, jornal financiado pela burguesia. A orientação liberaldo diário impôs-lhe freqüentes atritos com a censura prussiana, queculminaram no fechamento arbitrário. Mas a experiência jornalísticafoi muito útil para Marx, pois o aproximou da realidade cotidiana.Ganhou conhecimento de questões econômicas geradoras de conflitossociais e se viu diante do imperativo de pronunciar-se acerca das idéiassocialistas de vários matizes, que vinham da França e se difundiamna Alemanha por iniciativa, entre outros, de Weitling e Moses Hess.Tanto com relação às questões econômicas como às idéias socialistas,o redator-chefe da Gazeta Renana confessou com lisura sua ignorânciae esquivou-se de comentários improvisados e infundados. Assim, foi aatividade política, no exercício do jornalismo, que o impeliu ao estudoem duas direções marcantes: as da Economia Política e das teoriassocialistas.Em 1843, Marx casou-se com Jenny Von Westphalen, origináriade família recém-aristocratizada, cujo ambiente confortável trocariaMARX7

por uma vida de penosas vicissitudes na companhia de um líder revolucionário.Marx se transferiu, então, a Paris, onde, em janeiro de1844, publicou o único número duplo dos Anais Franco-Alemães, editadoem colaboração com Arnold Ruge, figura destacada da esquerda hegeliana.A publicação dos Anais visava a dar vazão à produção teóricae política da oposição democrática radical ao absolutismo prussiano.Naquele número único, veio à luz um opúsculo de Engels intituladoEsboço de uma Crítica da Economia Política, acerca do qual Marxmanifestaria sempre entusiástica apreciação, chegando a classificá-lode genial.Friedrich Engels (1820-1895) era filho de um industrial têxtil,que pretendia fazê-lo seguir a carreira dos negócios e, por isso, afastara-o do curso universitário. Dotado de enorme curiosidade intelectual,que lhe daria saber enciclopédico, Engels completou sua formação comoaluno-ouvinte de cursos livres e incansável autodidata. Viveu curtoperíodo de hegeliano de esquerda e também sentiu o impacto da irrupçãomaterialista feuerbachiana. Mas, antes de Marx, aproximou-sedo socialismo e da Economia Política. O que ocorreu na Inglaterra,onde esteve a serviço dos negócios paternos e entrou em contato comos militantes operários do Partido Cartista. Daí ao estudo dos economistasclássicos ingleses foi um passo.O Esboço de Engels focalizou as obras desses economistas comoexpressão da ideologia burguesa da propriedade privada, da concorrênciae do enriquecimento ilimitado. Ao enfatizar o caráter ideológicoda Economia Política, negou-lhe significação científica. Em especial,recusou a teoria do valor-trabalho e, por conseguinte, não lhe reconheceuo estatuto de princípio explicativo dos fenômenos econômicos. Seestas e outras posições seriam reformuladas ou ultrapassadas, o Esboçotambém continha teses que se incorporaram de maneira definitiva aoacervo marxiano. Entre elas, a argumentação contrária à “Lei de Say”e à teoria demográfica de Malthus. Mais importante que tudo, porém,foi que o opúsculo de Engels transmitiu a Marx, provavelmente, ogerme da orientação principal de sua atividade teórica: a crítica daEconomia Política enquanto ciência surgida e desenvolvida sob inspiraçãodo pensamento burguês.Os Anais Franco-Alemães (assim intitulados com o objetivo deburlar a censura prussiana) estamparam dois ensaios de Marx: a Introduçãoà Crítica à Filosofia do Direito de Hegel e A Questão Judaica.Ambos marcam a virada de perspectiva, que consistiu na transição doliberalismo burguês ao comunismo. Nos anos em que se encontravam

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em gestação as condições para a eclosão da revolução burguesa naAlemanha, o jovem ensaísta identificou no proletariado a classe agenteda transformação mais profunda, que devia abolir a divisão da sociedadeem classes. Contudo, o procedimento analítico e a formulação literáriadessas idéias mostravam que o autor ainda não adquirira ferramentasOS ECONOMISTAS8

discursivas e linguagem expositiva próprias, tomando-as de Hegel ede Feuerbach. Do primeiro, os giros dialéticos e a concepção teleológicada história humana. Do segundo, o humanismo naturista. A novidaderesidia na introdução de um terceiro componente, que seria o fatormais dinâmico da evolução do pensamento do autor: a idéia do comunismoe do papel do proletariado na luta de classes.O passo seguinte dessa evolução foi assinalado por um conjuntode escritos em fase inicial de elaboração, que deveriam resultar, aoque parece, em vasto ensaio. Este ficou só em projeto e Marx nuncafez nenhuma alusão aos textos que, sob o título de Manuscritos Econômico-Filosóficos de 1844, teriam publicação somente em 1932, naUnião Soviética.Sob o aspecto filosófico, tais textos contêm uma crítica incisiva doidealismo hegeliano, ao qual se contrapõe a concepção materialista aindanitidamente influenciada pela antropologia naturista de Feuerbach. Mas,ao contrário deste último, Marx reteve de Hegel o princípio dialético ecomeçou a elaborá-lo no sentido da criação da dialética materialista.Sob o aspecto das questões econômicas, os Manuscritos reproduzemlongas citações de vários autores, sobretudo, Smith, Say e Ricardo,acerca das quais são montados comentários e dissertações. No essencial,Marx seguiu a linha diretriz do Esboço de Engels e rejeitou a teoriado valor-trabalho, considerando-a inadequada para fundamentar a ciênciada Economia Política. A situação do proletariado, que representao grau final de desapossamento, tem o princípio explicativo no seuoposto — a propriedade privada. Esta é engendrada e incrementadamediante o processo generalizado de alienação, que permeia a sociedadecivil (esfera das necessidades e relações materiais dos indivíduos).Transfigurado ao passar de Hegel a Feuerbach, o conceito dealienação sofria nova metamorfose ao passar deste último a Marx.Pela primeira vez, a alienação era vista enquanto processo da vidaeconômica. O processo por meio do qual a essência humana dos operáriosse objetivava nos produtos do seu trabalho e se contrapunha aeles por serem produtos alienados e convertidos em capital. A idéiaabstrata do homem autocriado pelo trabalho, recebida de Hegel, concretizava-se na observação da sociedade burguesa real. Produção dosoperários, o capital dominava os produtores e o fazia cada vez mais,à medida que crescia por meio da incessante alienação de novos produtosdo trabalho. Evidencia-se, portanto, que Marx ainda não podiaexplicar a situação de desapossamento da classe operária por um processode exploração, no lugar do qual o trabalho alienado constitui,em verdade, um processo de expropriação. Daí a impossibilidade desuperar a concepção ética (não-científica) do comunismo.Nos Manuscritos, por conseguinte, alienação é a palavra-chave.Deixaria de sê-lo nas obras de poucos anos depois. Contudo, reformu-MARX9

lada e num contexto avesso ao filosofar especulativo, se incorporariadefinitivamente à concepção sócio-econômica marxiana.Materialismo histórico, socialismo científico eEconomia PolíticaEm 1844 e em Paris, Marx e Engels deram início à colaboraçãointelectual e política que se prolongaria durante quatro decênios. Dotadode exemplar modéstia, Engels nunca consentiu que o considerassemsenão o “segundo violino” junto a Marx. Mas este, sem dúvida,ficaria longe de criar uma obra tão impressionante pela complexidadee extensão não contasse no amigo e companheiro com um incentivador,consultor e crítico. Para Marx, excluído da vida universitária, desprezadonos meios cultos e vivendo numa época em que Proudhon, Blanquie Lassalle eram os ideólogos influentes das correntes socialistas, Engelsfoi mais do que interlocutor colocado em pé de igualdade: representou,conforme observou Paul Lafargue, o verdadeiro público com o qual

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Marx se comunicava, público exigente para cujo convencimento nãopoupava esforços. As centenas de cartas do epistolário recíproco registramum intercâmbio de idéias como poucas vezes ocorreu entre doispensadores, explicitando, ao mesmo tempo, a importância da contribuiçãode Engels e o respeito de Marx às críticas e conselhos do amigo.Escrita em 1844 e publicada em princípios de 1845, A SagradaFamília foi o primeiro livro em que Marx e Engels apareceram nacondição de co-autores. Trata-se de obra caracteristicamente polêmica,que assinala o rompimento com a esquerda hegeliana. O título sarcásticoidentifica os irmãos Bruno, Edgar e Egbert Bauer e dá o tomdo texto. Enquanto a esquerda hegeliana depositava as esperanças derenovação da Alemanha nas camadas cultas, aptas a alcançar umaconsciência crítica, o que negava aos trabalhadores, Marx e Engelsenfatizaram a impotência da consciência crítica que não se tornassea consciência dos trabalhadores. E, neste caso, só poderia ser umaconsciência socialista.O livro contém abrangente exposição da história do materialismo,na qual se percebe o progresso feito no domínio dessa concepção filosóficae a visão original que os autores iam formando a respeito dela,embora ainda não se houvessem desprendido do humanismo naturistade Feuerbach.Aspecto peculiar do livro reside na defesa de Proudhon, com oqual Marx mantinha amiúde encontros pessoais em Paris. Naquelemomento, o texto de A Sagrada Família fazia apreciação positiva dacrítica da sociedade burguesa pelo já famoso autor de Que É a Propriedade,então o de maior evidência na corrente que Marx e Engelsmais tarde chamariam de socialismo utópico e da qual consideravamOwen, Saint-Simon e Fourier os expoentes clássicos.No processo de absorção e superação de idéias, Marx e EngelsOS ECONOMISTAS10

haviam alcançado um estágio em que julgaram necessário passar alimpo suas próprias idéias. De 1845 a 1846, em contato com as seitassocialistas francesas e envolvidos com os emigrados alemães na conspiraçãocontra a monarquia prussiana, encontraram tempo para seconcentrar na elaboração de um livro de centenas de páginas densas,que recebeu o título de A Ideologia Alemã. Iniciada em Paris, a redaçãodo livro se completou em Bruxelas, onde Marx se viu obrigado a buscarrefúgio, pois o governo de Guizot, pressionado pelas autoridades prussianas,o expulsou da França sob acusação de atividades subversivas.O livro não encontrou editor e só foi publicado em 1932, também naUnião Soviética. Em 1859, Marx escreveria que de bom grado ele eEngels entregaram o manuscrito à crítica roedora dos ratos, dando-sepor satisfeitos com terem posto ordem nas próprias idéias.Na verdade, A Ideologia Alemã encerra a primeira formulaçãoda concepção histórico-sociológica que receberia a denominação de materialismohistórico. Trata-se, pois, da obra que marca o ponto de viradaou, na expressão de Althusser, o corte epistemológico na evolução dopensamento dos fundadores do marxismo.A formulação do materialismo histórico desenvolve-se no corpoda crítica às várias manifestações ideológicas de maior consistênciaque disputavam, então, a consciência da sociedade germânica, às vésperasde uma revolução democrático-burguesa. A crítica dirige-se a umelenco que vai de Hegel a Stirner. A parte mais importante é a inicial,dedicada a Feuerbach. O rompimento com este se dá sob o argumentodo caráter abstrato de sua antropologia filosófica. O homem, para Feuerbach,é ser genérico natural, supra-histórico, e não ser social determinadopela história das relações sociais por ele próprio criadas. Daí ocaráter contemplativo do materialismo feuerbachiano, quando o proletariadocarecia de idéias que o levassem à prática revolucionária daluta de classes. Uma síntese dessa argumentação encontra-se nas TesesSobre Feuerbach, escritas por Marx como anotações para uso pessoale publicadas por Engels em 1888. A última e undécima tese é precisamenteaquela que declara que a filosofia se limitara a interpretaro mundo de várias maneiras, quando era preciso transformá-lo.A ideologia é, assim, uma consciência equivocada, falsa, da realidade.Desde logo, porque os ideólogos acreditam que as idéias modelama vida material, concreta, dos homens, quando se dá o contrário:

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de maneira mistificada, fantasmagórica, enviesada, as ideologias expressamsituações e interesses radicados nas relações materiais, decaráter econômico, que os homens, agrupados em classes sociais, estabelecementre si. Não são, portanto, a idéia Absoluta, o Espírito, aConsciência Crítica, os conceitos de Liberdade e Justiça, que moveme transformam as sociedades. Os fatores dinâmicos das transformaçõessociais devem ser buscados no desenvolvimento das forças produtivase nas relações que os homens são compelidos a estabelecer entre si aoMARX11

empregar as forças produtivas por eles acumuladas a fim de satisfazersuas necessidades materiais. Não é o Estado, como pensava Hegel, quecria a sociedade civil: ao contrário, é a sociedade civil que cria o Estado.A concepção materialista da história implicava a reformulaçãoradical da perspectiva do socialismo. Este seria vão e impotente enquantose identificasse com utopias propostas às massas, que deveriampassivamente aceitar seus projetos prontos e acabados. O socialismosó seria efetivo se fosse criação das próprias massas trabalhadoras,com o proletariado à frente. Ou seja, se surgisse do movimento históricoreal de que participa o proletariado na condição de classe objetivamenteportadora dos interesses mais revolucionários da sociedade.Mas de que maneira substituir a utopia pela ciência? Por ondecomeçar?Nenhum registro conhecido existe que documente este momentocrucial na progressão do pensamento marxiano. Não obstante, a próprialógica da progressão sugere que tais indagações se colocavam com forçano momento preciso em que, alcançada a formulação original do materialismohistórico, surgia a incontornável tarefa de ultrapassar o socialismoutópico. O que não se conseguiria pela negativa retórica esim pela contraposição de uma concepção baseada na ciência social.Ora, conforme a tese ontológica fundamental do materialismohistórico, a base sobre a qual se ergueria o edifício teria de ser aciência das relações materiais de vida — a Economia Política. Esta jáfora criada pelo pensamento burguês e atingira com Ricardo a culminânciado refinamento. No entanto, Marx e Engels haviam rejeitadoa Economia Política, vendo nela tão-somente a ideologia dos interessescapitalistas. Como se deu que houvessem repensado a Economia Políticae aceito o seu núcleo lógico — a teoria do valor-trabalho?Cabe supor que a superação da antropologia feuerbachiana teveo efeito de desimpedir o caminho no sentido de nova visão da teoriaeconômica. Em particular, tal superação permitia pôr em questão oestatuto do conceito de alienação como princípio explicativo da situaçãoda classe operária. Não obstante, esse aspecto isolado não nos esclareceacerca da virada de orientação do pensamento marxiano.É sabido que, a partir de 1844, Marx concentrou sua energiaintelectual no estudo dos economistas. De referências posteriores, ressaltaa sugestão de que a mudança de orientação acerca dos economistasclássicos foi mediada pelos ricardianos de esquerda. Neles, certamente,descobriu Marx a leitura socialista de Ricardo. Assim como Feuerbachabriu caminho à leitura materialista de Hegel e à elaboração da dialéticamaterialista, Hodgskin, Ravenstone, Thompson, Bray e Edmondspermitiram a leitura socialista de Ricardo e daí começaria a elaboraçãoda Economia Política marxiana, de acordo com o princípio ontológicodo materialismo histórico e tendo em vista a fundamentação científicado socialismo.OS ECONOMISTAS12

Os ricardianos de esquerda eram inferiores ao próprio Ricardosob o aspecto da força teórica, porém a perspectiva socialista, conquantoimpregnada de idéias utópicas, os encaminhou a interpretar a teoriaricardiana do valor-trabalho e da distribuição do produto social nosentido da demonstração de que a exploração do proletariado constituíao eixo do sistema econômico da sociedade burguesa. A significação doconhecimento desses publicistas na evolução do pensamento marxianoé salientada por Mandel que, a tal respeito, assinala o quanto deveter sido proveitosa a temporada passada por Marx na Inglaterra, em1845. Ali, não só pôde certificar-se da defesa da teoria do valor-trabalhopelos ricardianos ligados ao movimento operário, como, ao revés, o

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abandono dela pelos epígonos burgueses do grande economista clássico.Em 1846, Proudhon publicou o livro Sistema das ContradiçõesEconômicas ou Filosofia da Miséria, no qual atacou a luta dos operáriospor objetivos políticos e reivindicações salariais, colocando em seu lugaro projeto do intercâmbio harmônico entre pequenos produtores e dainstituição de “bancos do povo”, que fariam empréstimos sem juros aostrabalhadores. Tudo isso apoiado na explicação da evolução históricainspirada num hegelianismo mal-assimilado e retardatário.Marx respondeu no ano seguinte com Miséria da Filosofia, queescreveu em francês. À parte a polêmica devastadora contra Proudhon,resumindo a crítica ao socialismo utópico em geral, o livro marcou aplena aceitação da teoria do valor-trabalho, na formulação ricardiana.Sob este aspecto, Miséria da Filosofia constituiu ponto de virada tãosignificativo na evolução do pensamento marxiano quanto A IdeologiaAlemã. Não importa que Marx também houvesse aceito, na ocasião,as teses de Ricardo sobre o dinheiro e sobre a renda da terra, dasquais se tornaria depois renitente opositor. O fato de conseqüênciasessencialíssimas consistiu em que o materialismo histórico encontrava,afinal, o fundamento da Economia Política, o que vinha definir o caminhoda elaboração do socialismo científico. Na própria Miséria da Filosofia, aaquisição desse fundamento resultou numa exposição muito mais avançadae precisa do materialismo histórico do que na Ideologia Alemã.Com base na teoria de Ricardo interpretada pelos seguidores detendência socialista, Marx empenhou-se na proposição de uma táticade reivindicações salariais para o movimento operário, o que expôsnas conferências proferidas em 1847-1848, mais tarde publicadas emfolheto sob o título de Trabalho Assalariado e Capital.Marx e Engels haviam ingressado numa organização de emigradosalemães denominada Liga dos Comunistas e receberam dela aincumbência de redigir um manifesto que apresentasse os objetivossocialistas dos trabalhadores. A incumbência teve aceitação entusiástica,ainda mais por se avolumarem os indícios da eclosão de umaonda revolucionária no Ocidente europeu. Publicado no começo de 1848,o Manifesto do Partido Comunista foi, com efeito, logo submergido pelaMARX13

derrocada da monarquia de Luís Felipe na França, seguida pelos eventosinsurrecionais na Alemanha, Hungria, Áustria, Itália e Bélgica.Embora a repercussão de sua primeira edição ficasse abafada por acontecimentosde tão grande envergadura, o Manifesto alcançaria ampladifusão e sobrevivência duradoura, tornando-se uma das obras políticasmais conhecidas em numerosas línguas. Num estilo que até hoje brilhapelo vigor e concisão, o Manifesto condensou o labor teórico dos autoresem termos de estratégia e tática políticas, de tal maneira que o textose tornou um marco na história do movimento operário mundial.Na Alemanha, as lutas de massa forçaram a monarquia prussianaa fazer a promessa de uma constituição e a aceitar o funcionamentode uma assembléia parlamentar em Frankfurt. Marx e Engels regressaramde imediato à sua pátria e se lançaram por inteiro no combate.Marx fundou e dirigiu o diário Nova Gazeta Renana que, até o fechamentoem maio de 1849, defendeu a perspectiva proletária socialistano decurso de uma revolução democrático-burguesa. Depois de ter sidoum dos redatores do jornal, Engels engajou-se no exército dos insurretos,em cujas fileiras empunhou armas até a derrota definitiva, quelhe impôs o refúgio na Suíça. Diante da repressão exacerbada, tambémMarx se retirou da Alemanha. Os governos da França e da Bélgicalhe consentiram pouco tempo de permanência em seus territórios, oque o levou a exilar-se em Londres, nos fins de 1849, ali residindo atéa morte.Em 1850, veio à luz A Luta de Classes em França. Em 1852, ODezoito Brumário de Luís Bonaparte. Em ambas as obras, o métododo materialismo histórico recém-criado foi posto à prova na interpretaçãoà quente de acontecimentos da atualidade imediata. A brevidadeda perspectiva temporal não impediu que Marx produzisse duas obrashistoriográficas capazes de revelar as conexões subjacentes aos fatosvisíveis e de enfocá-los à luz da tese sociológica da luta de classes.Em particular, essas obras desmentem a freqüente acusação ao economicismomarxiano. Nelas, são realçados não só fatores econômicos,

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mas também fatores políticos, ideológicos, institucionais e até estritamenteconcernentes às pessoas dos protagonistas dos eventos históricos.II. Os Tormentos da CriaçãoAo aceitar a teoria de Ricardo sobre o valor-trabalho e a distribuiçãodo produto social, Marx não perdeu de vista a necessidade dacrítica da Economia Política, embora não mais sob o enfoque estritode Engels no seu Esboço precursor. Ricardo dera à teoria econômicaa elaboração mais avançada nos limites do pensamento burguês. Osricardianos de esquerda ultrapassaram tais limites, porém não avançaramna solução dos impasses teóricos salientados precisamente pelainterpretação socialista aplicada à obra do mestre clássico.À onda revolucionária desencadeada em 1848 seguira-se o refluxoOS ECONOMISTAS14

das lutas democráticas e operárias. Por toda a Europa, triunfava areação burguesa e aristocrática. Marx relacionou o refluxo à nova fasede prosperidade, que sucedia à crise econômica de 1847-1848, e considerouser preciso esperar a crise seguinte a fim de recolocar na ordemdo dia objetivos revolucionários imediatos. Com uma paixão obsessiva,entregou-se à tarefa que se tornaria a mais absorvente de sua vida:a de elaborar a crítica da Economia Política enquanto ciência mediadapela ideologia burguesa e apresentar uma teoria econômica alternativa,a partir das conquistas científicas dos economistas clássicos. A residênciaem Londres favorecia tal empresa, pois constituía o melhorponto de observação do funcionamento do modo de produção capitalistae de uma formação social tão efetivamente burguesa quanto nenhumaoutra do continente europeu. Além disso, o British Museum, do qualMarx se tornou freqüentador assíduo, propiciava a consulta a um acervobibliográfico de incomparável riqueza.Em contrapartida, as condições materiais de vida foram, duranteanos a fio, muito ásperas e, às vezes, simplesmente tétricas para o líderrevolucionário e sua família. Não raro, faltaram recursos para satisfaçãodas necessidades mais elementares e o exilado alemão se viu às bordasdo desespero. Sobretudo, não podia dedicar tempo integral às pesquisaseconômicas, conforme desejaria, vendo-se forçado a aceitar tarefas de colaboraçãojornalística, entre as quais a mais regular foi a correspondênciapolítica para um jornal de Nova York, mantida até 1862.Além disso, as intrigas que a seu respeito urdiam os órgãos policiaisda Alemanha e de outros países obrigavam-no a desviar a atençãodos estudos teóricos. Durante quase todo o ano de 1860, por exemplo,a maior parte de suas energias se gastou na refutação das calúniasdifundidas por Karl Vogt, que o acoimara de chefe de um bando dechantagistas e delatores. Ex-membro esquerdista do Parlamento deFrankfurt, em 1848, Vogt se radicou na Suíça como professor de Geologiae se tornou expoente da versão mais vulgar do materialismomecanicista (é dele a célebre afirmação de que “os pensamentos têmcom o cérebro a mesma relação que a bílis com o fígado ou a urinacom os rins”). Envolvido em intrigas de projeção internacional nos meiosdemocráticos e socialistas, aceitou — o que depois se comprovou — opapel de escriba mercenário pago pelo serviço secreto de Napoleão III.Apesar de calejado diante de insultos e calúnias, a dose passara, destavez, a medida do suportável e Marx se esfalfou na redação de grossovolume, que recebeu o título sumário de Herr Vogt. À parte os aspectospolêmicos circunstanciais hoje sem maior interesse, o livro oferece umquadro rico da política internacional européia em meados do séculoXIX, tema explorado com os recursos exuberantes do estilo de umgrande escritor.A situação de Marx seria insustentável e sua principal tarefacientífica decerto irrealizável não fosse a ajuda material de Engels.MARX15

Este fixara residência em Manchester, passando a gerir ali os interessesda firma paterna associada a uma empresa têxtil inglesa. Durante osvinte anos de atividade comercial, a produção intelectual não pôdedeixar de se reduzir. Mas Engels achava gratificante sacrificar a própriacriatividade, contanto que fornecesse a Marx recursos financeiros queo sustentassem e à família e lhe permitissem dedicar o máximo detempo às investigações econômicas. Demais disso, Engels incumbiu-se

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de várias pesquisas especializadas solicitadas pelo amigo. A circunstânciade residirem em cidades diferentes deu lugar a copiosa correspondênciaque registrou, quase passo a passo, a tormentosa via deelaboração de O Capital.No decorrer das investigações, conquanto se mantivesse claro einalterado o objetivo visado, foi mudando e ganhando novas formas aidéia da obra final. Rosdolsky rastreou na documentação marxiana,entre 1857 e 1868, nada menos que catorze esboços e notas de planosdessa obra. De acordo com o plano inicial deveria constar de seis livros,dedicados aos seguintes temas: 1) O Capital; 2) A Propriedade Territorial;3) O Trabalho Assalariado; 4) O Estado; 5) O Comércio Internacional;6) O Mercado Mundial e as Crises. À parte, um livro especialfaria a história das doutrinas econômicas, dando ao estudo da realidadeempírica o acompanhamento de suas expressões teóricas.A deflagração de nova crise econômica em 1857 levou Marx aapressar-se em pôr no papel o resultado de suas investigações, motivadopela expectativa de que nova onda revolucionária voltaria a agitar aEuropa e exigiria dele todo o tempo disponível. Da sofreguidão nesseempenho resultou não mais do que um rascunho, com imprecisões elapsos de redação. Fruto de um trabalho realizado entre outubro de1857 e março de 1858, o manuscrito só teve publicação na União Soviética,entre 1939 e 1941. Recebeu o título de Esboços dos Fundamentosda Crítica da Economia Política, porém ficou mais conhecido pela palavraalemã Grundrisse (Esboços dos Fundamentos). Vindos à luz jásob o fogo da Segunda Guerra Mundial, os Grundrisse não despertaramatenção. Somente nos anos sessenta suscitaram estudos e comentários,destacando-se, neste particular, o trabalho pioneiro de Rosdolsky.Embora se trate de um rascunho, os Grundrisse possuem extraordináriarelevância, pelas idéias que, no todo ou em parte, só nele ficaramregistradas e, sobretudo, pelas informações de natureza metodológica.Uma dessas idéias é a de que o desenvolvimento das forças produtivaspelo modo de produção capitalista chegaria a um ponto emque a contribuição do trabalho vivo se tornaria insignificante em comparaçãocom a dos meios de produção, de tal maneira que perderiaqualquer propósito aplicar a lei do valor como critério de produtividadedo trabalho e de distribuição do produto social. Ora, sem lei do valor,carece de sentido a própria valorização do capital. Assim, o capitalismodeverá extinguir-se não pelo acúmulo de deficiências produtivas, porém,OS ECONOMISTAS16

ao contrário, em virtude da pletora de sua capacidade criadora de riqueza.Encontra-se nessa idéia um dos traços característicos da elaboração discursivamarxiana: certos fatores são isolados e desenvolvidos até o extremo,de tal maneira que venha a destacar-se o máximo de suas virtualidades.O resultado não constitui, todavia, a previsão de um curso inelutável,pois o próprio Marx revela, adiante, o jogo contraditório entre os váriosfatores postos em interação, o que altera os resultados extraídos da abstraçãodo desenvolvimento isolado de um deles.Tema de destaque nos Grundrisse, abordado em apreciações dispersase em toda um seção especial, é o das formas que precedem aseparação entre o agente do processo de trabalho e a propriedade dosmeios de produção. Tal separação constitui condição prévia indispensávelao surgimento do modo de produção capitalista e lhe marca ocaráter de organização social historicamente transitória. Isto porquesomente tal separação permite que o agente do processo de trabalho,como pura força de trabalho subjetiva, desprovida de posses objetivas,se disponha ao assalariamento regular, enquanto, para os proprietáriosdos meios de produção e de subsistência, a exploração da força detrabalho assalariada é a condição básica da acumulação do capitalmediante relações de produção já de natureza capitalista. As categoriasespecíficas do modo de produção capitalista não constituíam expressãode uma racionalidade supra-histórica, de leis naturais inalteráveis, conformepensavam os economistas clássicos, mas, ao contrário, seu surgimentotinha data recente e sua vigência marcaria não mais que certaépoca histórica delimitada. Em algumas dezenas de páginas, que têmsido editadas em separado sob o título de Formas Que Precedem aProdução Capitalista, foram compendiadas, a partir do exame de vastomaterial historiográfico, sugestões de extraordinária fecundidade, às

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quais o autor, infelizmente, não pôde dar seguimento, delas fazendoemprego esparso em O Capital. Nesta obra, a opção metodológica consistiuem concentrar o estudo da acumulação originária nas condiçõeshistóricas da Inglaterra.Os Grundrisse compõem-se de dois longos capítulos, dedicados aodinheiro e ao capital. Com formulações menos precisas e sem a mesmaorganicidade, aí encontramos parte da temática dos Livros Primeiro eSegundo de O Capital. Seria, contudo, incorreto passar por alto o avançopropriamente teórico cumprido entre os dois textos. Basta ver, por exemplo,que, na questão do dinheiro, Marx ainda se mostra, nos Grundrisse, presoa alguns aspectos da teoria ricardiana, contra a qual travará polêmicaresoluta logo em seguida, em Para a Crítica da Economia Política. Demaneira idêntica, a caracterização do escravismo plantacionista americanocomo anomalia capitalista sofrerá radical reformulação em O Capital, emcujas páginas a escravidão — a antiga e a moderna — é sempre incompatívelcom o modo de produção capitalista.A riqueza peculiar dos Grundrisse reside nas numerosas expli-MARX17

citações metodológicas, pouco encontradiças em O Capital. Por se tratarde rascunho, os Grundrisse exibem os andaimes metodológicos, depoisretirados do texto definitivo. E esses andaimes denunciam a forte impregnaçãohegeliana do pensamento do autor. Precisamente durantea redação do rascunho, Marx releu a Lógica de Hegel, conforme escreveua Engels. Não surpreende, por isso, que a própria linguagem seja, emvárias passagens, moldada por termos e giros discursivos do mestreda filosofia clássica alemã. A tal ponto que, a certa altura, ficou anotadoo propósito de dar nova redação ao trecho a fim de libertá-lo da formaidealista de exposição.Enquanto a crise econômica passava sem convulsionar a ordempolítica européia, Marx conseguiu chegar à redação final dos dois capítulosde Para a Crítica da Economia Política, publicada em 1859.Segundo o plano então em mente, o terceiro capítulo, dedicado ao capital,seria a continuação da Crítica, um segundo volume dela. Mas oque apareceu, afinal, oito anos depois, foi algo bem diverso, resultantede substancial mudança de plano.Em janeiro de 1866, Marx já possuía em rascunho todo o arcabouçode teses, tal qual se tornaram conhecidas nos três livros de OCapital, desde o capítulo inicial sobre a mercadoria até a teoria darenda da terra, passando pelas teorias da mais-valia, da acumulaçãodo capital, do exército industrial de reserva, da circulação e reproduçãodo capital social total, da transformação do valor em preço de produção,da queda tendencial da taxa média de lucro, dos ciclos econômicos eda distribuição da mais-valia nas formas particulares de lucro industrial,lucro comercial, juro e renda da terra. Nestes três livros, queformariam uma obra única, seriam abordados os temas não só do capital,mas também do trabalho assalariado e da propriedade territorial,que deixaram de constituir objeto de volumes especiais. O Estado, ocomércio internacional, o mercado mundial e as crises — planejadostambém para livros especiais — ficavam postergados. A nova obraseria intitulada O Capital e somente como subtítulo é que compareceriaa repetida Crítica da Economia Política. Por último, copiosos comentáriose dissertações já estavam redigidos para o também projetadolivro sobre a história das doutrinas econômicas. O autor podia, porconseguinte, lançar-se à redação final de posse de completo conjuntoteórico, que devia formar, nas suas palavras, um “todo artístico”.Em 1865, a redação de O Capital foi considerada tarefa prioritáriaacima do comparecimento ao Primeiro Congresso da Associação Internacionaldos Trabalhadores, realizado em Genebra sem a presença deMarx. Este, a conselho de Engels, decidiu-se à publicação isolada doLivro Primeiro, concentrando-se na sua redação final. Em setembrode 1867, o Livro Primeiro vinha a público na Alemanha, lançado peloeditor hamburguês Meissner.Graças, em boa parte, aos esforços publicitários de Engels, a “cons-OS ECONOMISTAS18

piração do silêncio”, que cercava os escritos marxianos nos meios cultos,começou a ser quebrada. Curiosamente, a primeira resenha, aliás favorável,

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de um professor universitário foi a de Eugen Dühring, o mesmocontra o qual Engels, dez anos depois, travaria implacável polêmica.Elogios calorosos chegaram de Ruge, o antigo companheiro da esquerdahegeliana, e de Feuerbach, o respeitado filósofo que marcara momentotão importante na evolução do pensamento marxiano.Embora a tradução inglesa não se concretizasse na ocasião, decepcionandoas expectativas do autor, houve a compensação da traduçãorussa já em 1872, lançada com notável êxito de venda. (No seu parecer,a censura czarista declarou tratar-se de livro sem dúvida socialista,mas inacessível à maioria em virtude da forma matemática de demonstraçãocientífica, motivo por que não seria possível persegui-lodiante dos tribunais). Em seguida, veio, editada em fascículos, a traduçãofrancesa, da qual o próprio autor fez a revisão, com o que atradução ganhou valor de original. Em 1873, foi publicada a segundaedição alemã, que trouxe um posfácio muito importante pelos esclarecimentosde caráter metodológico. Embora a segunda fosse a última emvida do autor, a edição definitiva é considerada a quarta, de 1890, naqual Engels introduziu modificações expressamente indicadas por Marx.Faltava, no entanto, a redação final dos Livros Segundo e Terceiro.Marx trabalhou neles até 1878, sem completar a tarefa. À ânsiainsaciável de novos conhecimentos e de rigorosa atualização com osacontecimentos da vida real já não correspondia a habitual capacidadede trabalho. Marx ficava impedido de qualquer esforço durante longosperíodos, debilitado por doenças crônicas agravadas.Além disso, absorviam-no as exigências da política prática. De1864 a 1873, empenhou-se nas articulações e campanhas da AssociaçãoInternacional dos Trabalhadores, que passou à história como a PrimeiraInternacional. Em 1865 pronunciou a conferência de publicação póstumasob o título Salário, Preço e Lucro.Um esforço intenso lhe exigiram, no seio da Associação, as divergênciascom os partidários de Proudhon e de Bakunin. Em 1871,chefiou a solidariedade internacional à Comuna de Paris e, acerca desua experiência política, escreveu A Guerra Civil na França. Ocuparam-no, em seguida, os problemas da social-democracia alemã, liderada,in loco, por Bebel e Liebknecht. A fusão dos adeptos da social-democraciade orientação marxista com os seguidores de Lassalle num partidooperário único ensejou a Marx, em 1875, a redação de notas, defundamental significação para a teoria do comunismo, reunidas no pequenovolume intitulado Crítica do Programa de Gotha. Em 1881-1882,após as escassas páginas em que foram escritas as Glosas Marginaisao Tratado de Economia Política de Adolph Wagner, a pena de Marx,que deslizara através de assombrosa quantidade de folhas de papel,colocava o definitivo ponto final. Esgotado e abatido pela morte daMARX19

esposa e de uma das filhas, apagou-se, em 1883, o cérebro daquele queEngels, na oração fúnebre, disse ter sido o maior pensador do seu tempo.Nos doze anos em que sobreviveu ao amigo, Engels continuoucriativo até os últimos dias, produzindo obras da altura de LudwigFeuerbach e o Fim da Filosofia Clássica Alemã. Sobre os seus ombrospesava a responsabilidade de coordenação do movimento socialista internacional,o que lhe impunha crescente carga de trabalho. No meiode toda essa atividade, nunca deixou de ter por tarefa primordial ade trazer a público os dois Livros de O Capital ainda inéditos. E cumpriua tarefa com exemplar competência e probidade.Os manuscritos de Marx encontravam-se em diversos graus depreparação. Só a menor parte ganhara redação definitiva. Havia, porém,longas exposições com lacunas e desprovidas de vínculos mediadores.Vários assuntos tinham sido abordados tão-somente em notas soltas.Por fim, um capítulo imprescindível apenas contava com o título. Tudoisso, sem falar na péssima caligrafia dos manuscritos, às vezes incompreensívelaté para o autor. A tarefa, por conseguinte, ia muito alémdo que, em regra, se atribui a um editor. Seria preciso que Engelsassumisse certo grau de co-autoria, o que fez, não obstante, com omáximo escrúpulo. Conforme explicou minuciosamente nos Prefácios,evitou substituir a redação de Marx pela sua própria em qualquerparte. Não queria que sua redação, superposta aos manuscritos originais,suscitasse discussões acerca da autenticidade do pensamento marxiano.

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Limitou-se a ordenar os manuscritos de acordo com as indicaçõesdo plano do autor, preenchendo as óbvias lacunas e introduzindo trechosde ligação ou de atualização, sempre entre colchetes e identificadospelas iniciais F. E., também presentes nas notas de rodapé destinadasa informações adicionais ou mesmo a desenvolvimentos teóricos. Igualmenteassinado com as iniciais F. E., escreveu por inteiro o CapítuloIV do Livro Terceiro, sobre a rotação do capital e respectiva influênciana taxa de lucro. Escreveu ainda vários Prefácios, admiráveis pelotratamento de problemas básicos e pela força polêmica, bem como doissuplementos ao Livro Terceiro: sobre a lei do valor e formação da taxamédia de lucro e sobre a Bolsa.Se, dessa maneira, foi possível salvar o legado de Marx e editaro Livro Segundo, em 1885, e o Livro Terceiro, em 1894, é evidenteque estes não poderiam apresentar a exposição acabada e brilhantedo Livro Primeiro. Mas Engels, ao morrer pouco depois de publicadoo último Livro, havia cumprido a tarefa. Restavam os manuscritossobre a história das doutrinas econômicas, que deveriam constituir oLivro Quarto. Ordenou-os e editou-os Kautsky, sob o título de Teoriasda Mais-Valia, entre 1905 e 1910. O Instituto de Marxismo-Leninismo(originalmente Instituto Marx-Engels, fundado por D. Riazanov e responsávelpela publicação dos manuscritos marxianos na União Sovié-OS ECONOMISTAS20

tica) lançou nova edição em 1954, expurgada das intervenções arbitráriasde Kautsky.Em 1933, o mesmo Instituto havia publicado o texto de um capítuloinédito, planejado para figurar no Livro Primeiro de O Capital e queMarx resolvera suprimir. Numerado como sexto e sob o título de Resultadosdo Processo Imediato da Produção, o capítulo contém uma síntese doLivro Primeiro e serviria também de transição ao Livro Segundo.III. Unificação Interdisciplinar das Ciências HumanasEm primeiro lugar, O Capital é, sem a menor dúvida, uma obrade Economia Política. A amplitude de sua concepção desta ciência supera,porém, os melhores clássicos burgueses e contrasta com a estritaespecialização em que o marginalismo pretendeu confinar a análiseeconômica. Nas seções subseqüentes, teremos oportunidade de focalizaro que se tornou a Economia Política submetida ao tratamento marxiano.Nesta altura, abordaremos outros aspectos.É que O Capital constitui, por excelência, uma obra de unificaçãointerdisciplinar das ciências humanas, com vistas ao estudo multilateralde determinada formação social. Unificação entre a EconomiaPolítica e a Sociologia, a Historiografia, a Demografia, a GeografiaEconômica e a Antropologia.As categorias econômicas, ainda quando analisadas em níveiselevados de abstração, se enlaçam, de momento a momento, com osfatores extra-econômicos inerentes à formação social. O Estado, a legislaçãocivil e penal (em especial, a legislação referente às relaçõesde trabalho), a organização familiar, as formas associativas das classessociais e seu comportamento em situações de conflito, as ideologias,os costumes tradicionais de nacionalidades e regiões, a psicologia social— tudo isso é focalizado com riqueza de detalhes, sempre que a explicaçãodos fenômenos propriamente econômicos adquira na interaçãocom fenômenos de outra ordem categorial uma iluminação indispensávelou um enriquecimento cognoscitivo. Assim, ao contrário do quepretendem críticas tão reiteradas, o enfoque marxiano da instânciaeconômica não é economicista, uma vez que não a isola da trama variadado tecido social. O que, convém enfatizar, não representa incoerência,mas, ao contrário, perfeita coerência com a concepção do materialismohistórico enquanto teoria sociológica geral: a concepção segundo a quala instância econômica, sendo a base da vida social dos homens, nãoexiste senão permeada por todos os aspectos dessa vida social, os quais,por sua vez, sob modalidades diferenciadas, são instâncias da superestruturapossuidoras de desenvolvimento autônomo relativo e influênciaretroativa sobre a estrutura econômica.Obra de Economia Política e de Sociologia, O Capital também éobra de Historiografia. A tese de que o modo de produção capitalistatem existência histórica, de que nasceu de determinadas condições cria-MARX

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das pelo desenvolvimento social e de que criará, ele próprio, as condiçõespara o seu desaparecimento e substituição por um novo modo de produção— esta tese, já por si mesma, também exige abordagem históricae, por conseguinte, implica o tratamento por meio de procedimentoscaracterísticos da Historiografia. Antes de tudo, sem dúvida, trata-sede Historiografia econômica, que abrange exposições eruditas sobre odesenvolvimento das forças produtivas, estudos especializados sobrequestões de tecnologia, pesquisas inovadoras sobre o comércio, o crédito,as formas de propriedade territorial e a gênese da renda da terra e,com destaque particular, sobre a formação da moderna classe operária.Mas, em relação mesmo com a história econômica, temos outrossim ahistória das instituições políticas, a evolução das normas jurídicas (vejaseo estudo pioneiro sobre a legislação trabalhista), a história das relaçõesinternacionais.Os estudos sobre a lei da população do modo de produção capitalista,bem como sobre migrações e colonização, focalizam temas deevidente contato entre a Economia Política e a Demografia. Por fim,encontramos incursões e sugestões nos âmbitos da Geografia econômicae da Antropologia.A decidida rejeição do geodeterminismo não conduz ao desconhecimentodos condicionamentos geográficos, cuja influência no desenvolvimentodas forças produtivas e das formações sociais é posta emdestaque.Em contrapartida, acentua-se a ação transformadora do meio geográficopelo homem, de tal maneira que as condições geográficas sehumanizam, à medida que se tornam prolongamento do próprio homem.Mas a humanização da natureza nem sempre tem sido um processoharmônico. Marx foi dos primeiros a apontarem o caráter predador daburguesia, com reiteradas referências, por exemplo, à destruição dosrecursos naturais pela agricultura capitalista. Sob este aspecto, mereceser considerado precursor dos modernos movimentos de defesa da ecologiaem benefício da vida humana.Do ponto de vista da Antropologia, o que sobreleva é a relaçãodo homem com a natureza por meio do trabalho e a humanização sobo aspecto de autocriação do homem no processo de transformação danatureza pelo trabalho. As mudanças nas formas de trabalho constituemos indicadores básicos da mudança das relações de produção edas formas sociais em geral do intercurso humano. O trabalho é, portanto,o fundamento antropológico das relações econômicas e sociaisem geral. Ou seja, em resumo, o que Marx propõe é a Antropologiado homo faber.Embora de maneira de todo não convencional, O Capital se credenciacomo realização filosófica basilar. Como sugeriu Jelezny, o livromarxiano faz parte das obras que assinalaram inovações essenciais naorientação lógica e metodológica do pensamento. Sem qualquer expo-OS ECONOMISTAS22

sição sistemática, porém aplicando-a em tudo e por tudo, Marx desenvolveua metodologia do materialismo dialético e se situou, a justotítulo, a par com aqueles criadores de idéias que marcaram época nopensamento sobre o pensamento — de Aristóteles a Descartes, Bacon,Locke, Leibniz, Kant e Hegel.Para este último, com o qual Marx teve relação direta de seqüênciae superação, a lógica por si mesma se identifica à ontologia,a Idéia Absoluta é o próprio Ser. Assim, a ontologia só podia ter caráteridealista e especulativo, obrigando a dialética — máxima conquista dafilosofia hegeliana — a abrir caminho em meio a esquemas pré-construídos.Com semelhante configuração, a dialética era imprestável aotrabalho científico e, por isso mesmo, foi sepultada no olvido peloscientistas, que a preteriram em favor do positivismo. Quando deu àdialética a configuração materialista necessária, Marx expurgou-a daspropensões especulativas e adequou-a ao trabalho científico. Ao invésde subsumir a ontologia na lógica, são as categorias econômicas e suahistória concreta que põem à prova as categorias lógicas e lhes imprimemmovimento. A lógica não se identifica à ontologia, o pensamentonão se identifica ao ser. A consciência é consciência do ser prático-materialque é o homem. A dialética do pensamento se torna a reprodução

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teórica da dialética originária inerente ao ser, reprodução isenta deesquemas pré-construídos e impostos de cima pela ontologia idealista.Mas, ao contrário de reprodução passiva, de reflexo especular do ser,o pensamento se manifesta através da ativa intervenção espiritual querealiza o trabalho infindável do conhecimento. Trabalho criador de hipóteses,categorias, teoremas, modelos, teorias e sistemas teóricos.Método e estrutura de “O Capital”A esta altura, chegamos a uma questão crucial nas discussõesmarxistas e marxológicas: a da influência de Hegel sobre Marx.Quando estudava a Ciência da Lógica, surpreendeu-se Lênin como máximo de materialismo ao longo da mais idealista das obras deHegel. Com ênfase peculiar, afirmou que não poderia compreender OCapital quem não fizesse o prévio estudo da Lógica hegeliana.Oposta foi a posição de Stálin. Considerou a filosofia hegelianarepresentativa da aristocracia reacionária e minimizou sua influênciana formação do marxismo. A desfiguração stalinista da dialética seconsumou num esquema petrificado para aplicação sem mediações aqualquer nível da realidade.Enquanto Rosdolsky ressaltou, por meio de análise minuciosados Grundrisse, a relação entre Hegel e Marx, quase ao mesmo tempo,Althusser, que nunca deu importância aos Grundrisse, enfatizou a supostaausência do hegelianismo na formação de Marx e a inexistênciade traços hegelianos na obra marxiana, acima de tudo em O Capital.Dentro de semelhante orientação, Althusser não se furtaria de louvarMARX23

Stálin por haver depurado o materialismo dialético da excrescênciahegeliana tão embaraçosa quanto a negação da negação. Segundo Godelier,esta seria uma categoria apenas aceita por Engels e não porMarx. Ademais, Godelier considerou embaraçosa a própria contradiçãodialética e propôs sua subordinação ao conceito de limite estrutural, oque, na prática, torna a contradição dialética dispensável ao processodiscursivo.A análise da estrutura lógica de O Capital feita por Jelezny confirma,não menos que a de Rosdolsky, o enfoque de Lênin e não o deStálin. É impossível captar o jogo das categorias na obra marxianasem dominar o procedimento da derivação dialética, a partir das contradiçõesinternas dos fenômenos, ou seja, a partir de um procedimentológico inaugurado, com caráter sistemático, por Hegel. Sem dúvida, épreciso frisar também que Marx rejeitou a identidade hegeliana doscontrários, distinguindo tal postulado idealista de sua própria concepçãomaterialista da unidade dos contrários (a este respeito, tem razão Godelierquando aponta a confusão em certas formulações de Lênin eMao-Tse-Tung sobre a “identidade dos contrários”).A derivação dialética materialista é aplicada em todo o trajetoda exposição marxiana, porém provoca impacto logo no capítulo inicialsobre a mercadoria, por isso mesmo causador de tropeços aos leitoresdesprovidos de familiaridade com o método dialético. Contudo, a derivaçãodialética, que opera com as contradições imanentes nos fenômenos,não suprime a derivação dedutiva própria da lógica formal, baseadajustamente no princípio da não-contradição. Em O Capital, são correntesas inferências dedutivas, acompanhadas de exposições por vialógico-formal. Daí, aliás, o recurso freqüente aos modelos matemáticosdemonstrativos, que revelam, dentro de estruturas categoriais definidas,o dinamismo das modificações quantitativas e põem à luz suasleis internas. Conquanto considerasse falsas as premissas das quaisMarx partiu, Böhm-Bawerk não deixou de manifestar admiração pelaforça lógica do adversário. Não obstante, seja frisado, a lógica formalestá para a lógica dialética, na obra marxiana, assim como a mecânicade Newton está para a teoria da relatividade de Einstein. Ou seja, aprimeira aplica-se a um nível inferior do conhecimento da realidadecom relação à segunda.Marx distinguiu entre investigação e exposição. A investigaçãoexige o máximo de esforço possível no domínio do material fatual. Opróprio Marx não descansava enquanto não houvesse consultado todasas fontes informativas de cuja existência tomasse conhecimento. O fimúltimo da investigação consiste em se apropriar em detalhe da matériainvestigada, analisar suas diversas formas de desenvolvimento e descobrir

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seus nexos internos. Somente depois de cumprida tal tarefa,seria possível passar à exposição, isto é, à reprodução ideal da vidada matéria. A esta altura, advertiu Marx que, se isto for conseguido,OS ECONOMISTAS24

“(...) então pode parecer que se está diante de uma construção a priori”.Por que semelhante advertência?É que a exposição deve figurar um “todo artístico”. Suas diversaspartes precisam se articular de maneira a constituírem uma totalidadeorgânica e não um dispositivo em que os elementos se justapõem comosomatório mecânico. Ora, a realização do “todo artístico” ou da “totalidadeorgânica” pressupunha a aplicação do modo lógico e não domodo histórico de exposição. Ou seja, as categorias deveriam comparecernão de acordo com a sucessão efetiva na história real, porémconforme as relações internas de suas determinações essenciais, noquadro da sociedade burguesa. Por conseguinte, o tratamento lógicoda matéria faz da exposição a forma organizacional apropriada do conhecimentoa nível categorial-sistemático e resulta na radical superaçãodo historicismo (entendido o historicismo, na acepção mais ampla, comoa compreensão da história por seu fluxo singular, consubstanciado nasucessão única de acontecimentos ou fatos sociais). A exposição lógicaafirma a orientação anti-historicista na substituição da sucessão históricapela articulação sistemática entre categorias abstratas, de acordocom suas determinações intrínsecas. Daí que possa assumir a aparênciade construção imposta à realidade de cima e por fora.Na verdade, trata-se apenas de impressão superficial contra aqual é preciso estar prevenido. Porque, se supera o histórico, o lógiconão o suprime. Em primeiro lugar, se o lógico é o fio orientador daexposição, o histórico não pode ser dispensado na condição de contraprova.Daí a passagem freqüente de níveis elevados de abstração aconcretizações fatuais em que a demonstração dos teoremas assumeprocedimentos historiográficos. Em segundo lugar, porém com aindamaior importância, porque o tratamento histórico se torna imprescindívelnos processos de gênese e transição, sem os quais a história seráimpensável. Em tais processos, o tratamento puramente lógico conduziriaaos esquemas arbitrários divorciados da realidade fatual. Por issomesmo, temas como os da acumulação originária do capital e da formaçãoda moderna indústria fabril foram expostos segundo o modohistórico, inserindo-se em O Capital na qualidade de estudos historiográficosde caráter monográfico.Em suma, o lógico não constitui o resumo do histórico, nem háparalelismo entre um e outro (conforme pretendeu Engels), porém entrelaçamento,cruzamento, circularidade.A interpretação althusseriana conferiu estatuto privilegiado aomodo de exposição e atribuiu às partes históricas de O Capital o caráterde mera ilustração empirista. Se bem que com justificadas razões pusesseem relevo a sistematicidade marxiana, Althusser fez dela umaestrutura formal desprendida da história concreta, o que o próprioMarx explicitamente rejeitou.O tratamento lógico é também o que melhor possibilita e, noMARX25

mais fundamental, o único que possibilita alcançar aquele nível daessência em que se revelam as leis do movimento da realidade objetiva.Porque, em O Capital, a finalidade do autor consistiu em desvendara lei econômica da sociedade burguesa ou, em diferente formulação,as leis do nascimento, desenvolvimento e morte do modo de produçãocapitalista.Numa época em que prevalecia a concepção mecanicista nas ciênciasfísicas, Marx foi capaz de desvencilhar-se dessa concepção e formularas leis econômicas precipuamente como leis tendenciais. Ou seja,como leis determinantes do curso dos fenômenos em meio a fatorescontrapostos, que provocam oscilações, desvios e atenuações provisórias.As leis tendenciais não são, nem por isso, leis estatísticas, probabilidadesem grandes massas, porém leis rigorosamente causais. A leitendencial sintetiza a manifestação direcionada, constante e regular— não ocasional — da interação e oposição entre fatores imanentesna realidade fenomenal.

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Como já observamos, o plano da estrutura de O Capital foi longamentetrabalhado e sofreu modificações, à medida que o autor ganhavamaior domínio da matéria. O resultado é uma arquitetura imponente,cheia de sutilezas imperceptíveis à primeira vista, cujo estudojá instigou abordagens especializadas.Sob a perspectiva de conjunto, há uma linha divisória entre osLivros Primeiro e Segundo, de um lado, e o Livro Terceiro, de outro.Linha divisória que não diz respeito à separação entre questões microeconômicase macroeconômicas, pois nos três Livros encontramosumas e outras, conquanto se possa afirmar que o Livro Segundo é omais voltado à macroeconomia. A distinção estrutural obedece a critériodiferente. Os dois primeiros Livros são dedicados ao “capital em geral”,ao capital em sua identidade uniforme. O Livro Terceiro aborda aconcorrência entre os capitais concretos, diferenciados pela função específicae pela modalidade de apropriação da mais-valia.O “capital em geral” é, segundo Marx, a “quintessência do capital”,aquilo que identifica o capital enquanto capital em qualquer circunstância.No Livro Primeiro, trata-se do capital em sua relação diretade exploração da força de trabalho assalariada. Por isso mesmo, o locuspreferencial é a fábrica e o tema principal é o processo de criação eacumulação da mais-valia. A modalidade exponencial do capital é ocapital industrial, pois somente ele atua no processo de criação damais-valia. No Livro Segundo, trata-se da circulação e da reproduçãodo capital social total. O capital é sempre plural, múltiplo, mas circulae se reproduz como se fosse um só capital social de acordo com exigênciasque se impõem em meio a inumeráveis flutuações e que dão ao movimentogeral do capital uma forma cíclica.No Livro Terceiro, os capitais se diferenciam, se individualizam,e o movimento global é enfocado sob o aspecto da concorrência entreOS ECONOMISTAS26

os capitais individuais. Por isso mesmo, é a esta altura que se abordao tema da formação da taxa média ou geral do lucro e da transformaçãodo valor em preço de produção. De acordo com as funções específicasque desempenham no circuito total da economia capitalista — na produção,na circulação e no crédito —, os capitais individuais apropriam-sede formas distintas de mais-valia: lucro industrial, lucro comercial,juros, cabendo à propriedade territorial a renda da terra, também elauma forma particular da mais-valia. A lei dinâmica direcionadora desseembate concorrencial entre os capitais individuais pela apropriação damais-valia é a lei da queda tendencial da taxa média de lucro.A estrutura de O Capital, segundo Lange, foi montada de acordocom um plano que parte do nível mais alto de abstração, no qual sefocalizam fatores isolados ou no menor número possível, daí procedendopor concretização progressiva, à medida que se acrescentam novos fatores,no sentido da aproximação cada vez maior e multilateral à realidadefatual. A esta interpretação, no geral correta, acrescentamosque o trânsito do abstrato ao concreto se faz em todo o percurso, acomeçar pelo Livro Primeiro. Já nele, encontramos o jogo dialético dapassagem do abstrato ao concreto real e vice-versa.Doravante, comentaremos alguns temas de O Capital, selecionadospor sua significação sistêmica ou pela relevância das controvérsiasque suscitaram.IV. Mercadoria e ValorDe Smith e Ricardo recebeu Marx a teoria do valor-trabalho: aidéia de que o trabalho exigido pela produção das mercadorias medeo valor de troca entre elas e constitui o eixo em torno do qual oscilamos preços expressos em dinheiro. Ao explicitar que se tratava do tempode trabalho incorporado às mercadorias, Ricardo clarificou a medidado valor de troca, embora se enredasse no insolúvel problema do padrãoinvariável do valor.Uma vez que partiam do valor-trabalho, Smith e Ricardo superarama concepção fisiocrática do excedente econômico em termos deproduto físico. O excedente devia ser compreendido, antes de tudo, emtermos de valor, ou seja, devia ser apreciado enquanto trabalho transferidoao produto. Mas a idéia de valor implica, por necessidade lógica,a troca de equivalentes: não se conceberia, de outra maneira, que ovalor-trabalho pudesse ser o determinante da relação de troca entre

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mercadorias diferentes pelo valor de uso. A questão a solucionar consistiaem tornar coerente a necessidade de troca de equivalentes coma apropriação do valor excedente pelo proprietário do capital.Smith enfrentara a questão com a idéia de que o valor das mercadoriasse media pela quantidade de trabalho que podiam comandar,sugerindo que havia uma diferença positiva entre o custo de cada mercadoriaem termos de trabalho consumido e em termos de trabalhoMARX27

que fosse capaz de comprar. Não obstante, a origem de tal diferençapositiva — o lucro do capital — ficava inexplicada no quadro de umregime de troca de equivalentes e, por isso mesmo, Smith designavao lucro como “dedução”. Ricardo desenvolveu a teoria do valor, ao defini-lo como tempo de trabalho incorporado à mercadoria, porém desviousua investigação da origem do excedente para o da distribuição doproduto entre assalariados, capitalistas e proprietários de terra. O lucrocontinuava, portanto, inexplicável em face da necessária equivalênciada troca entre capital e força de trabalho. Este, o primeiro impasse.O segundo grande impasse da teoria do valor-trabalho de Smithe Ricardo residia em que ambos identificavam, sem mediações, o valorao preço natural, como o chamava Smith, ou ao custo de produção, naformulação ricardiana. Semelhante identificação tornava impossível esclarecerpor que capitais com diferentes empregos de força de trabalhoobtinham taxas de lucros igualadas.A solução marxiana para a primeira questão crucial irresolvidaconsubstanciou-se na teoria da mais-valia. Ao expô-la no Livro Primeiro,Marx não partiu do conceito de valor, mas da mercadoria, isto é, dacélula germinativa de modo de produção capitalista. No entanto, oenfoque inicial da mercadoria ao longo do Capítulo I não a situa noquadro das relações de produção capitalistas, porém numa sociedadede pequenos produtores mercantis, donos dos meios de produção e desubsistência e, por conseguinte, donos também do produto integral doseu trabalho. Tal procedimento expositivo tem sido um dos pontos maiscontroversos de O Capital.Croce foi dos primeiros a argumentar que semelhante sociedade depequenos produtores mercantis não passaria da invenção teórica parafins heurísticos, isto é, para servir de contraste com a sociedade capitalistaconcreta. A interpretação de Croce não difere, no essencial, da recente deMorishima e Catephores, segundo os quais a sociedade de pequenos produtoresmercantis seria fictícia e teria validade tão-somente como tipoideal, na acepção de Max Weber (inspirando-se, por sinal, na afirmaçãodo próprio Weber de que todas as construções teóricas marxianas seriamtipos ideais sem efetividade empírica). Segue-se daí que a troca de equivalentes,na proporção do tempo de trabalho contido nas mercadorias,nunca foi norma concreta, uma vez que, na sociedade capitalista, segundoMarx, as trocas se realizam sob a norma dos preços de produção, nosquais o valor já aparece modificado e metamorfoseado.Cedendo à inclinação historicista que, às vezes, nele prevalecia,Engels atribuiu à sociedade de pequenos produtores mercantis, tal qualse apresenta no capítulo inicial do Livro Primeiro, existência históricaempírica e chegou a afirmar que a lei do valor, enquanto lei da trocaimediata de equivalentes, teria tido vigência num período de cinco asete milênios até o século XV, quando se dá o nascimento do capitalismo.As pesquisas historiográficas não confirmam o ponto de vista deOS ECONOMISTAS28

Engels. O próprio Marx assinalou, em várias passagens, que, nas formaçõessociais anteriores ao capitalismo, prevaleceu a produção paravalor de uso, ao passo que as trocas mercantis se faziam com excedentesresiduais do autoconsumo. O caráter ocasional e as pequenas proporçõesdas trocas deviam impedir ou dificultar sua prática de acordo com anorma regular da equivalência do conteúdo de trabalho incorporadoaos bens trocados. Intermediadas pelo capital comercial pré-capitalista,as trocas tampouco poderiam basear-se na equivalência, mas seriamtrocas desiguais.No entanto, na medida em que fossem trocas pessoais entre pequenosprodutores mercantis e se repetissem durante muito tempo com regularidade,a lei do valor, enquanto lei da troca imediata de equivalentes,

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seria atuante. De maneira aproximada, era o que, com efeito, sucedia nasfeiras medievais européias, onde costumavam encontrar-se camponeses eartesãos para intercâmbio dos respectivos produtos.Rubin apontou o caráter puramente lógico de certas mediaçõesdiscursivas marxianas, para as quais, por conseguinte, não faz sentidoprocurar correspondência histórica empírica. A sociedade de pequenosprodutores mercantis, tal qual vem descrita no capítulo inicial do LivroPrimeiro, é, sem dúvida, uma projeção lógica. Não obstante, como tambémafirma Rubin, aquela sociedade existiu de maneira rudimentarantes do capitalismo e, sendo assim, tinha razão Marx ao escrever queo valor-trabalho fora antecedente histórico (e não somente lógico) dopreço de produção.O capitalismo não pode surgir senão com as premissas dadas daprodução mercantil e da circulação monetária. Tais premissas não sãoimaginárias, porém historicamente concretas, tendo tido desenvolvimentona Europa sob o feudalismo. Assim, foi para estudar a formação do modode produção capitalista a partir daquelas premissas objetivas que Marxas projetou no modelo de uma sociedade de pequenos produtores mercantis.Mediante o recurso da abstração, determinado setor da realidade históricafoi isolado e extremado, não sendo difícil perceber que o modelo marxianoresultou da aplicação do método dialético e não da construção de um tipoideal weberiano. Este último, como se sabe, teve por matriz filosófica oformalismo neokantiano e sua construção para fins heurísticos obedece acritérios unilaterais subjetivos do observador — algo de todo contrário àmetodologia dialética-materialista.Ao começar sua exposição pela mercadoria — por ser ela a célulagerminativa do modo de produção capitalista —, examinou-a Marx,em primeiro lugar, como objeto que tem valor de uso. Mas, sob o aspectoapenas do valor de uso, a relação da mercadoria com o homem ganhacaráter individual e natural supra-histórico. O valor de uso, por si só,não nos informa acerca das relações sociais subjacentes à relação individualdo homem com a coisa. O sabor do trigo não muda pelo fatode ser produzido por um escravo, por um servo feudal ou por umMARX29

operário assalariado. Contudo, são improcedentes as críticas de quena obra marxiana se negligencia a significação do valor de uso enquantocategoria econômica.Marx, aliás, teve oportunidade de contestar semelhante críticanos comentários ao Tratado de Wagner. Comentários que poderia empregar,com idêntica pertinência, na refutação dos argumentos deBöhm-Bawerk, se ainda vivo estivesse quando vieram a público.No concernente à mercadoria, o valor de uso é o suporte físicodo valor. Não pode ter valor o que carece de valor de uso. Que amercadoria possua o caráter dúplice de valor de uso e valor resultado caráter também dúplice do próprio trabalho que a produz: trabalhoconcreto, que responde pelas qualidades físicas do objeto, e trabalhoabstrato, enquanto gasto indiferenciado de energia humana. O trabalhoabstrato, pelo fato de estabelecer uma relação de equivalência entreos variadíssimos trabalhos concretos, vem a ser a substância do valor.Smith e Ricardo falaram de valor e valor de troca, sem estabelecerentre eles diferença categorial, preocupados sobretudo com o problemada medida do valor. O próprio Marx, em Para a Crítica da EconomiaPolítica, não estabeleceu distinção terminológica entre valor e valorde troca. Mas, em O Capital, esta distinção foi firmada e salientada,pois se tornava clara a necessidade de focalizar no valor, em separado,a substância (trabalho abstrato cristalizado), a forma que se manifestana relação entre mercadorias (valor de troca) e a grandeza (tempo detrabalho abstrato).Vejamos, aqui, a questão da substância do valor.O trabalho criador de valor é o trabalho socialmente necessário,executado segundo as condições médias vigentes da técnica, destrezado operário e intensidade do esforço na realização da tarefa produtiva.O padrão é o do trabalho simples, ao qual o trabalho complexo (ouqualificado) é reduzido como certo múltiplo dele. Marx não analisoucomo se dá tal redução, porém indicou a linha geral dessa análise (adiferença de custo de formação da força de trabalho complexa em comparaçãocom a força de trabalho simples) e tomou a redução como

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dada. Trata-se de um procedimento adotado pelo autor em certos casos:tomar em consideração apenas o resultado dado de um processo, apontandoo caminho de sua análise, sem contudo desenvolvê-la, na medidaem que fosse dispensável para fins prioritários da demonstração.O problema da relação entre trabalho simples e complexo já mereceraa atenção de Hodgskin, o qual, no entanto, não conseguiu definiro critério econômico intrínseco à relação. Com o tempo, tornou-se umdos cavalos de batalha às mãos dos adversários da teoria do valor-trabalhoe, por isso mesmo, Böhm-Bawerk não haveria de omiti-lo. Mas,para efeito de argumentação, o líder da escola austríaca do marginalismoempregou exemplo tão fora de propósito como o da comparaçãoentre o trabalho do escultor e o de um pedreiro. Ora, o produto doOS ECONOMISTAS30

trabalho artístico, marcado pela originalidade e unicidade, não podeser comparado, enquanto mercadoria, com a produção mercantil repetida.A resposta de Hilferding a Böhm-Bawerk avançou um tanto nalinha analítica apontada por Marx. Mas o argumento voltaria a seresgrimido, em época recente, por Joan Robinson, com a indagação sobrea maneira de determinar a quantidade de trabalho abstrato contidona hora de trabalho de um engenheiro qualificado. Para a teoria dovalor-trabalho, o que importa é que a hora de trabalho do engenheiroconstitui um múltiplo (de cinco, dez ou quinze, não vem ao caso) dahora de trabalho do operário da construção civil, do operário soldadoretc., enquanto média socialmente funcional.O enfoque do valor pelo prisma de sua substância permitiu penetrarno universo histórico das relações sociais dentro do qual osprodutos do trabalho humano se tornam valores. Para Smith e Ricardo,o valor não era uma qualidade social dos produtos, mas algo naturalcomo o peso ou a consistência. Indiferente, portanto, às formas sociais.Para Marx, o valor é, antes de tudo, uma substância social-histórica.Nas organizações sociais em que a produção mercantil constitui atributode proprietários privados, entre os quais já exista divisão social dotrabalho bastante adiantada, somente de maneira indireta, pela trocamercantil, é que os produtos do trabalho privado se apresentam comoprodutos do trabalho social. O indicador do trabalho social é, precisamente,o valor, na condição de cristalização de trabalho abstrato, aopasso que o valor de troca, sendo a razão de intercâmbio entre asmercadorias, constitui a forma de manifestação do valor.Nas formações sociais em que predomina a produção para valordo uso, o caráter social do trabalho manifesta-se de maneira direta,sem desvios, relacionando-se os agentes da produção entre si cara acara, como pessoas. Já nas formações sociais onde predomina a produçãomercantil, o caráter social do trabalho não pode se manifestarsenão de maneira indireta, por meio de um desvio. Em suma, porintermédio do valor. A relação entre as pessoas se esconde atrás darelação entre as coisas.A lei do valor como reguladora da produçãoUma vez que é produção confiada a proprietários privados concorrentes,a produção capitalista — tipo generalizado e superior daprodução mercantil — não obedece a um plano centralizado, mas serealiza sob o impulso de decisões fragmentárias isoladas. Entre asparedes da empresa capitalista, a produção costuma ser conscientementeregulada e obedece a um plano estabelecido pela administração.Já no processo social global das relações entre as empresas, inexistea regulação consciente, o planejamento imperativo. O processo socialglobal da produção capitalista caracteriza-se, por isso, pela anarquia.Anarquia, entretanto, não quer dizer caos. Anárquica como seja,MARX31

a produção capitalista obedece a um regulador objetivo, que atua àrevelia da consciência dos produtores privados. Tal regulador é a leido valor. Justamente esta lei — por ser a lei de validação do carátersocial dos trabalhos privados — é que determina a distribuição dosmeios de produção e da força de trabalho entre os vários produtorese ramos da produção.A lei do valor cumpre sua função de reguladora da produçãosocial em meio a constantes oscilações e desequilíbrios provocados por

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sua própria atuação. O equilíbrio não pode ser mais do que uma tendênciaque pressiona em meio aos fatores desequilibrantes e se manifestaenquanto média de inumeráveis flutuações, jamais suscetível defixação. A concorrência entre os produtores privados dá lugar a umasucessão infindável de desequilíbrios e, ao mesmo tempo, atua no sentidode corrigir mais desequilíbrios, mediante a regulação do valor.Tal correção nunca consegue suprimir a anarquia, pois se efetua nofluxo incessante do processo concorrencial e implica inevitáveis desperdíciosde recursos econômicos. Simultaneamente, porém, a constanteacentuação do desequilíbrio e a tendência contrária ao equilíbrio, sórealizado como média variável das desproporções, compõem o dinamismopeculiar do processo capitalista de produção e tipificam sua modalidadeespecífica de desenvolvimento das forças produtivas. Assim,a lei do valor, na concepção marxiana da produção capitalista, é a leireguladora da distribuição das forças produtivas, porém não é sua lei doequilíbrio. O que Schumpeter percebeu, ao contrário de tantos marxistas.Neste ponto crucial, a concepção marxiana se contrapõe à tradiçãomais forte do pensamento burguês. Tradição que buscou apresentar aeconomia capitalista como consubstancial à natureza humana precisamentepor ser harmônica, por si mesma apta a estabelecer o estadode equilíbrio mais conveniente aos interesses supostamente gerais dasociedade. Não tem outra significação para Adam Smith a mão invisíveldo mercado, que faria do egoísmo dos produtores individuais o instrumentoda riqueza das nações. Ao proclamar que cada oferta cria suaprópria demanda, a chamada “lei dos mercados” de Say não passa deoutra formulação do mesmo teorema do equilíbrio. Seria, no entanto,com o marginalismo que a idéia do equilíbrio geral da economia capitalistaatingiria a formulação aparentemente mais conforme às exigênciasda demonstração científica, exposta que foi através de refinadaselaborações matemáticas. A doutrina marginalista do equilíbrio geralsofreu o impacto da “revolução keynesiana” sem que, não obstante, seperdesse a idéia do equilíbrio. Já que este não era mais concebívelcomo ajuste espontâneo das variações dos fatores, ajuste resultante dainteração automática e autocorretiva dos mecanismos inerentes ao mercado,Keynes incumbiu a mão visível do Estado de intervir no mercado,pôr as coisas em ordem e estabelecer o equilíbrio do pleno empregodesejável à segurança da organização social burguesa.OS ECONOMISTAS32

Apenas de passagem, lembremos que a teoria funcionalista representa,no âmbito da Sociologia, uma ramificação do mesmo troncoideológico do qual se projetou a idéia do equilíbrio natural e eficienteda economia capitalista.Feita a ressalva sobre a validez de tantos aspectos penetrantesde seus ensaios marxistas, cumpre mencionar o grave equívoco de Rubinao confundir a função reguladora da lei do valor com uma função deequilíbrio, ao ponto de sugerir que a teoria econômica marxiana seriauma teoria geral do equilíbrio da economia capitalista. Decerto, nenhummodo de produção pode funcionar sem algum princípio regulador. Nomodo de produção capitalista, tal princípio é a lei do valor. O quesucede é que, na concepção marxiana, este regulador opera através decontradições e desequilíbrios sempre renovados. Contradições e desequilíbriosinerentes à essência das relações de produção capitalistas enão meras disfunções, por isso mesmo sanáveis, como as conceberia ofuncionalismo.V. Capital, Fetichismo e Acumulação OrigináriaO desenvolvimento da forma do valor — o valor de troca — conduzao surgimento do dinheiro. Este não foi um dispositivo expressamente“inventado” para resolver dificuldades técnicas na realização cada vezmais complexa das trocas e dos pagamentos, embora viesse a servir paratal fim. Por meio da demonstração dialética, ressaltou Marx que a necessidadedo dinheiro já está implícita na relação mercantil mais simples ecasual. Assim que as trocas mercantis se reiteram e multiplicam, é inevitávelque se selecione entre as mercadorias aquela cujo valor de uso —representado por suas qualidades físicas — consistirá na reflexão do trabalhoabstrato de toda a sociedade, na encarnação indiferente do valorde todas as mercadorias. Os metais preciosos (ouro e prata) foram, afinal,selecionados para esta função de mercadoria absoluta.

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A circulação monetária constitui premissa necessária, porém nãosuficiente para o surgimento do modo de produção capitalista. Marx foitaxativo na refutação das interpretações historiográficas que viam na Antiguidadegreco-romana uma economia capitalista porque já então circulavao dinheiro. O capital comercial e o capital de empréstimo aparecemnas formações sociais anteriores ao capitalismo e nelas representam asmodalidades exponenciais do capital. Captam o produto excedente no processoda circulação mercantil e monetária, através das trocas desiguaise dos empréstimos usurários, porém não dominam o processo de produção.Somente com o capital industrial, que atua no processo de criação dosobreproduto mediante a exploração de trabalhadores assalariados, é quese constitui o modo de produção capitalista. O capital industrial torna-se,então, a modalidade exponencial do capital, que submete o capital comerciale o capital de empréstimo às exigências da reprodução e expansãodas relações de produção capitalistas.MARX33

A formação do capital industrial na Europa ocidental mereceude Marx extenso estudo historiográfico, no qual periodizou o processode formação nas etapas da cooperação simples, da manufatura e dafábrica mecanizada. Com esta última, que surge e começa a se generalizardurante a Revolução Industrial inglesa, o modo de produçãocapitalista adquiriu, afinal, a base técnica que lhe é apropriada.Que é, porém, o capital enquanto agente da produção?O capital não é coisa — ferramenta ou máquina. Nada mais despropositadodo que imputar ao arco-e-flecha do índio tribal a naturezade capital. Tampouco basta afirmar, como Ricardo, que o capital é “trabalhoacumulado”. O arco-e-flecha cristaliza trabalho acumulado e, todavia, nãoserve a nenhuma finalidade de valorização capitalista, ou seja, de incrementodo valor inicial adiantado. A fim de que o trabalho acumulado nosbens de produção assuma a função de capital é preciso que se convertaem instrumento de exploração do trabalho assalariado. Em vez de coisa,o capital é relação social, relação de exploração dos operários pelos capitalistas.As coisas — instalações, máquinas, matérias-primas etc. — constituema encarnação física do trabalho acumulado para servir de capital,na relação entre o proprietário dessas coisas e os operários contratadospara usá-las de maneira produtiva.Por conseguinte, a teoria marxiana conduz à desmistificação dofetichismo da mercadoria e do capital. Desvenda-se o caráter alienadode um mundo em que as coisas se movem como pessoas e as pessoassão dominadas pelas coisas que elas próprias criam. Durante o processode produção, a mercadoria ainda é matéria que o produtor domina etransforma em objeto útil. Uma vez posta à venda no processo decirculação, a situação se inverte: o objeto domina o produtor. O criadorperde o controle sobre sua criação e o destino dele passa a dependerdo movimento das coisas, que assumem poderes enigmáticos. Enquantoas coisas são animizadas e personificadas, o produtor se coisifica. Oshomens vivem, então, num mundo de mercadorias, um mundo de fetiches.Mas o fetichismo da mercadoria se prolonga e amplifica nofetichismo do capital.O capital se encarna em coisas: instrumentos de produção criadospelo homem. Contudo, no processo de produção capitalista, não é otrabalhador que usa os instrumentos de produção. Ao contrário: osinstrumentos de produção — convertidos em capital pela relação socialda propriedade privada — é que usam o trabalhador. Dentro da fábrica,o trabalhador se torna um apêndice da máquina e se subordina aosmovimentos dela, em obediência a uma finalidade — a do lucro — quelhe é alheia. O trabalho morto, acumulado no instrumento de produção,suga como um vampiro (a metáfora é de Marx) cada gota de sanguedo trabalho vivo fornecido pela força de trabalho, também ela convertidaem mercadoria, tão venal quanto qualquer outra.Contudo, seria errôneo, como ficou em voga no segundo pós-guer-OS ECONOMISTAS34

ra, fazer da alienação a categoria básica da teoria sócio-econômica marxiana.Com semelhante procedimento, efetua-se um retrocesso no concernenteà evolução do próprio Marx, a qual, como foi visto, superouo conceito de alienação quando aceitou a tese do valor-trabalho. Na

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verdade, as teses essenciais da teoria sócio-econômica marxiana seapóiam nas categorias de valor e mais-valia, a partir das quais a categoriade alienação, recebida de Hegel e Feuerbach, se concretizouna crítica conseqüente ao fetichismo do capital.A crítica ao fetichismo do capital vincula-se intimamente à decifraçãodo segredo da acumulação originária do próprio capital. Comoteria vindo ao mundo tão estranha entidade que conquistou a soberaniasobre os homens e as coisas?Sabemos de várias respostas. A de Nassau Senior: o capital nasceuda abstinência de uns poucos virtuosos, que preferiram poupar a consumir,assumindo o ônus de um sacrifício em benefício da sociedadejustamente recompensado. A de Weber: o capitalismo requer a atituderacionalista diante dos fatos econômicos e semelhante atitude procedeu,na Europa ocidental, da ética protestante. A de Schumpeter: os primeirosempresários foram homens de talento que tiveram a poupançaacumulada à sua disposição.Já segundo Marx, o capital, não mais como capital mercantil,porém como capital industrial promotor do modo de produção capitalista,surge somente com determinado grau histórico de desenvolvimentodas forças produtivas, grau este que implica determinado tipode divisão social do trabalho. Só então é que o dinheiro e os meios deprodução acumulados em poucas mãos podem ser valorizados mediantea exploração direta do trabalho assalariado. Fica, não obstante, a pergunta:como se acumularam o dinheiro e os meios de produção empoucas mãos?Dessa história não se extrai uma lição sobre a recompensa dasvirtudes morais. Mercadores e usurários — representantes do capitalmercantil pré-capitalista — concentraram a riqueza em dinheiro mediantetoda espécie de fraude e de extorsão, características da atuaçãodo capital nas formações sociais anteriores ao capitalismo. A aplicaçãodo dinheiro acumulado na circulação mercantil e monetária à produçãode mercadorias levou à exploração acentuada, à pauperização e à expropriaçãodos artesãos. Por sua vez, do próprio meio dos artesãos,emergiram os mestres que, em suas oficinas, se destacaram pela eficiênciana exploração dos aprendizes e companheiros e puderam passarda condição de mestres-trabalhadores à de mestres capitalistas, já porinteiro patrões. Esta formação endógena do capital industrial constituiu,aliás, segundo Marx, o caminho efetivamente revolucionário detransformação capitalista da antiga economia feudal.A acumulação originária do capital — conjunto de processos nãocapitalistasque prepararam e aceleraram o advento de modo de pro-MARX35

dução capitalista — assinalou-se como uma época de violenta subversãoda ordem existente, cuja ocorrência na Inglaterra foi estudada no famosocapítulo XXIV do Livro Primeiro de O Capital. Com especialrelevo figuraram nessa subversão: as enclosures (cercamentos) que expulsaramos camponeses de suas terras e as converteram em camposde pastagem de ovelhas, enquanto dos camponeses expropriados e despossuídosemergiria o moderno proletariado; o confisco das terras daIgreja Católica e sua distribuição entre aristocratas aburguesados enovos burgueses rurais; o crescimento da dívida pública, que transferiuriquezas concentradas pelo Estado às mãos de um punhado de privilegiados;o protecionismo, que garantiu à nascente burguesia industriala exclusividade de atuação desenfreada no mercado nacional e lhepermitiu arruinar e expropriar os artesãos, então obrigados ao trabalhoassalariado; a alta generalizada dos preços no século XVI, em conseqüênciado afluxo à Europa dos metais preciosos da América, trazendoconsigo a queda relativa dos salários e dos preços dos arrendamentosagrícolas a longo prazo, o que favoreceu a burguesia urbana e rural;e, por fim, porém não menos importante — o colonialismo da épocamercantilista, com o comércio ultramarino, a exploração escravista nasAméricas e o tráfico de escravos africanos.O capital emerge para a vida histórica, o que Marx acentuou emvárias passagens, como agente revolucionário implacável que destróias vetustas formações sociais localistas e instaura grandes mercadosnacionais unificados e um processo mundial de intercâmbio e produçãoacompanhado de rápida transformação das técnicas, das formas organizacionais

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da economia, das instituições e dos costumes etc. Se o nascimentodo capital exigiu o emprego da violência em grande escala,tampouco foi ela dispensada na sua trajetória expansionista. O capitalrealizou o veloz desenvolvimento das forças produtivas desinibido deconsiderações moralistas humanitárias, movido por uma avidez acumulativasem paralelo nas etapas históricas precedentes.O modo de produção capitalista se afirma à medida que dispensaos processos da acumulação originária e difunde processos específicosde exploração e valorização, que conduzem à produção da mais-valia.A tese segundo a qual o capital contém dois componentes distintos— o constante e o variável — constitui uma das proposições fundamentaisda Economia Política marxista. Insuspeito como crítico e adversário,Schumpeter reconheceu a superioridade desta proposição emface da de Ricardo.O capital constante representa trabalho morto, cristalizado e acumuladonos meios de produção. Durante o processo produtivo, seu valorse mantém constante, transferindo-se ao produto sem alteração quantitativa.O capital variável aplica-se nos salários que compram a forçade trabalho e, por isso, representa a única parte do capital que variano processo produtivo, uma vez que se incrementa pela produção deOS ECONOMISTAS36

mais-valia. A valorização particular do capital variável dá lugar à valorizaçãodo capital em sua totalidade.A relação quantitativa entre capital constante e capital variável,em termos de valor, recebeu de Marx a denominação de composiçãoorgânica do capital, tanto mais alta quanto maior for o coeficiente docapital constante e vice-versa. O sistema da Economia Política marxistatem nesta relação um dos eixos de sua articulação.A composição orgânica do capital não se confunde com sua composiçãotécnica, a qual diz respeito às características físicas do capitale não ao seu valor. Um capital com a composição técnica de 5 máquinas/1 operário pode ter a mesma composição orgânica de outro capitalcom a composição técnica de 10 máquinas/1 operário, se o valor decada uma das últimas dez máquinas for a metade do valor de cadauma das primeiras cinco máquinas, sendo os salários iguais nos doiscasos. Na perspectiva histórica de longo prazo, no entanto, a composiçãoorgânica do capital se eleva com o aumento da composição técnica,embora o faça em proporções menores.A distinção entre capital fixo e circulante, conhecida antes deMarx, diz respeito a outro aspecto da realidade, isto é, à transferênciaintegral do valor dos componentes do capital ao produto numa únicarotação produtiva (capital circulante) ou em várias rotações, gradualmente(capital fixo). Tal distinção nada explica acerca da valorizaçãodo capital, porém é imprescindível à análise da circulação, rotação ereprodução do capital.A esta altura, cumpre precisar qual foi a novidade trazida porMarx com a categoria de mais-valia. Já fora firmada a idéia de que aprodução podia criar um excedente sobre a grandeza inicial dos meiosde produção. Nas Teorias da Mais-Valia, incumbiu-se Marx de anotare comentar com minúcia os antecessores que escreveram sobre o excedenteeconômico. A novidade exposta em O Capital se resume emdois aspectos essenciais.Em primeiro lugar, a distinção entre trabalho e força de trabalho.O trabalho não é senão o uso da força de trabalho, cujo conteúdo consistenas aptidões físicas e intelectuais do operário. Sendo assim, o salárionão paga o valor do trabalho, mas o valor da força de trabalho, cujouso, no processo produtivo, cria um valor maior do que o contido nosalário. O valor de uso da força de trabalho consiste precisamente nacapacidade, que lhe é exclusiva, de criar um valor de grandeza superiorà sua própria. O dono do capital e empregador do operário se apropriadeste sobrevalor ou mais-valia sem retribuição. Mas, embora sem retribuição,a apropriação da mais-valia não viola a lei do valor enquantolei de troca de equivalentes, uma vez que o salário deve ser o equivalentemonetário do valor da força de trabalho. Assim, a relação mercantilentre capital e força de trabalho assume o caráter de troca de equi-MARX37

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valentes, ao passo que a criação da mais-valia se efetiva fora dessarelação, no processo de uso produtivo da força de trabalho.Embora não descurasse a circunstância de que, na prática doregime capitalista, o salário pode situar-se abaixo do valor da forçade trabalho, Marx pressupõe sempre, em todas as inferências do seusistema teórico, a troca de equivalentes e, por conseguinte, a equivalênciaentre salário e valor da força de trabalho. Em especial, o modode produção capitalista ficava marcado pela particularidade históricade generalizar a forma mercadoria, assumida também pela própriaforça de trabalho.Esclarecia-se, dessa maneira, que a quantidade de trabalho “comandado”pela mercadoria acima do trabalho que custara, segundo aconcepção de Smith, era precisamente a mais-valia. O lucro deixavade ser uma “dedução” do produto do trabalho e se identificava comosobreproduto, por isso mesmo apropriado pelo comprador da força detrabalho na sua condição de capitalista.Em segundo lugar, a concepção da mais-valia enquanto sobreprodutoabstraído de suas formas particulares (lucro industrial e comercial,juros e renda da terra). Justamente porque entenderam oexcedente imediatamente como lucro, sem se dar conta de sua naturezaoriginária de mais-valia, da qual o lucro é uma das formas particulares,justamente por não disporem da categoria mediadora da mais-valia éque Smith e Ricardo identificaram valor e preço de produção. Em conseqüência,colocaram a teoria do valor-trabalho em contradição discursivacom qualquer explicação coerente acerca do eixo em torno do qualdeviam oscilar os preços de mercado. A categoria de mais-valia veiopermitir também a superação deste impasse dos clássicos burgueses.No Prefácio ao Livro Segundo, afirmou Engels, com inspiraçãobrilhante, que a façanha teórica de Marx se comparava à de Lavoisier.Enquanto Priestley e Scheele, ao se defrontarem com o oxigênio emestado puro, insistiram em chamá-lo de flogisto, por incapacidade dedesprender-se da teoria química vigente, Lavoisier reconheceu no gásum novo elemento ao qual denominou oxigênio e, com isso, liquidoua velha teoria flogística. Ao contrário dos economistas que continuavama identificar o sobreproduto com uma das suas aparências fenomenais— a renda da terra, no caso dos fisiocratas, ou o lucro, no caso deSmith e Ricardo —, Marx abstraiu a mais-valia de suas manifestaçõesparticulares e, dessa maneira, cortou os vários nós górdios que obstaculizavamo desenvolvimento conseqüente da teoria do valor.A concepção categorial da mais-valia exige, não obstante, a caracterizaçãoprecisa do que seja trabalho produtivo. Smith distinguiuentre trabalho produtivo e trabalho improdutivo, conotando o primeiropela criação de bens materiais, dotados de consistência corpórea, e pelalucratividade. Isto implicava a exclusão da esfera do trabalho produtivode atividades que não criam bens materiais, pois se consomem no atoOS ECONOMISTAS38

imediato de sua execução (os chamados serviços), ou que, embora criembens materiais, não são lucrativas. Marx modificou as teses de Smith, aomesmo tempo deixando interrogações, dúvidas e problemas sem resposta,que suscitaram controvérsias ainda abertas entre os próprios marxistas.Antes de tudo, tendo em vista sempre a formação social burguesa,devia ficar inteiramente claro que só o trabalho produtivo cria valore mais-valia. Mas isto não significa que as atividades improdutivassejam todas desnecessárias ou mesmo nocivas. Umas são requeridaspela manutenção das condições gerais da vida social (os serviços doaparelho estatal), enquanto outras são indispensáveis à efetivação ininterruptados próprios processos econômicos. A atenção de Marx incidiuprincipalmente nestas últimas.Daí que começasse por criticar a rigidez da caracterização smithianaexcludente de todos os serviços da esfera do trabalho produtivo.Rigidez de inspiração fisiocrática e que levava a sobrepor a naturezafísica do produto do trabalho à sua forma social. Da análise do textode Smith, no volume I das Teorias da Mais-Valia, emergiram distinçõesbem definidas em O Capital. O capital produtivo é, por excelência, ocapital industrial, concebendo-se o capital agrícola como uma de suasmodalidades. O capital comercial e o capital bancário representam especializaçõesfuncionais improdutivas do capital social total, indispensáveis,

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porém, à sua circulação e rotação sob forma de mercadoriaespecífica e sob forma de dinheiro. Uma parte da mais-valia criada naesfera do capital industrial passa às esferas do comércio e dos negóciosbancários — assumindo as formas particulares de lucro comercial ede juros —, com ela se pagando o lucro de comerciantes e banqueiros,bem como o salário dos seus empregados. Mas há atividades que nãoproduzem bens materiais e, contudo, são necessárias ao processo deprodução ou o prolongam na esfera da circulação, devendo ser consideradasprodutivas e, portanto, criadoras de valor e mais-valia. Esteé o caso do transporte, armazenagem e distribuição de mercadorias.Uma vez que as mercadorias são valores de uso destinados à satisfaçãode necessidades (como bens de produção ou como bens de consumo),é evidente que transportá-las, conservá-las em locais apropriados edistribuí-las constituem tarefas produtivas, ainda que nada acrescentemà substância ou à conformação física das mercadorias. Por conseqüência,uma parte das atividades abrangidas pela rubrica do comérciotem natureza de trabalho produtivo. São somente improdutivas aquelasatividades comerciais que derivam das características mercantis dasrelações de produção capitalistas, dizendo respeito aos gastos com asoperações de compra e venda e com as suas implicações especulativas.Por conseguinte, Marx rejeitou a caracterização de Smith acercado trabalho produtivo restringido apenas à produção de bens materiaise incluiu determinados serviços no conceito de trabalho produtivo. Nãochegou, todavia, a realizar um estudo abrangente e conclusivo sobreMARX39

os serviços em geral. Recusou, por exemplo, a atribuição de produtividadeaos serviços médicos (o que, obviamente, não significa que osconsiderasse dispensáveis). Já com relação a atividades como as deensino, dos espetáculos, da hotelaria e outras, sua análise ficou nomeio do caminho, justificando-se com o pequeno peso dos serviços.O que era verdade para seu tempo, mas deixou de sê-lo para osdias atuais. Nos países capitalistas desenvolvidos, o setor terciário,que abrange os serviços, passou a ocupar o maior percentual da forçade trabalho e a responder, nas contas nacionais, por cerca de metadedo produto. Do ponto de vista da teoria econômica marxista, é inaceitável,não obstante, a inclusão no produto nacional de todos os serviçoscomputados pela estatística oficial. Mesmo esta, às vezes, adota timidamenteo conceito de produto real, do qual exclui os serviços governamentais,a intermediação financeira, os serviços de educação e saúdee alguns outros. Trata-se, sem dúvida, de importante campo da investigaçãoeconômica, em cujo âmbito as indicações de Marx são preciosaspara marxistas e não-marxistas.Por fim, Marx referiu-se ao que denominou de faux frais: falsosgastos inseridos no processo de produção, embora sem lhe dar contribuiçãodo ponto de vista técnico e produtivo. Um desses falsos gastosé o do trabalho de vigilância ou controle da força de trabalho, queimpõe um acréscimo de custos sem significação técnica para a produçãopropriamente dita, decorrendo tão-somente do caráter antagônico dasrelações de produção. Se, nesta questão, Marx estava certo do pontode vista de suas premissas, tanto mais quanto os serviços de controledos trabalhadores se sofisticaram nas grandes empresas modernas (coma expansão dos “serviços sociais” e congêneres), o mesmo não se podiadizer da imputação de faux frais à contabilidade. Afinal, a produçãoindustrial moderna, sejam os países capitalistas ou socialistas, é tecnicamenteimpraticável sem contabilidade. Como, por igual, no capitalismoavançado dos dias atuais seria errôneo deixar de qualificar apesquisa científica e o desenvolvimento de projetos como trabalho produtivo,ao passo que o marketing e a propaganda entram, sem dúvida,no âmbito do trabalho improdutivo, pois sua utilização não é suscitadasenão pela natureza mercantil e concorrencial do modo de produçãocapitalista.Mais-valia e acumulação de capitalAcumulação capitalista significa valorização do capital, o que,por sua vez, significa incremento do capital adiantado mediante produçãode mais-valia.Sob a compulsão da concorrência, que elimina as empresas estacionárias,os capitalistas, na condição de personificação do capital,

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anseiam por quantidades cada vez maiores de mais-valia. Nos primórdiosdo regime capitalista, quando as inovações técnicas avançavamOS ECONOMISTAS40

com lentidão, o aumento da quantidade de mais-valia por operárioocupado só era possível mediante criação de mais-valia absoluta, istoé, mediante prolongamento da jornada de trabalho ou intensificaçãodas tarefas, de tal maneira que o tempo de sobretrabalho (criador demais-valia) aumentasse, enquanto se conservava igual o tempo de trabalhonecessário (criador do valor do salário). No entanto, a característicamais essencial do modo de produção capitalista não é a criaçãode mais-valia absoluta, porém de mais-valia relativa. Esta resulta doacúmulo de inovações técnicas, que elevam a produtividade social dotrabalho e acabam por diminuir o valor dos bens de consumo nos quaisse traduz o valor da força de trabalho, exigindo menor tempo de trabalhopara a reprodução desta última. Por isso, sem que se alterem o tempoe a intensidade da jornada de trabalho, cuja grandeza permanece amesma, altera-se a relação entre seus componentes: se diminui o tempode trabalho necessário, deve crescer, em contrapartida, o tempo desobretrabalho.Cada capitalista forceja por ultrapassar os concorrentes e, paratanto, busca introduzir em sua empresa aperfeiçoamentos técnicos (naacepção mais ampla) que lhe dêem vantagem sobre os rivais. Enquantotais aperfeiçoamentos forem exclusivos de uma empresa, suas mercadoriasserão produzidas com um tempo de trabalho inferior ao socialmentenecessário, o que lhe propiciará certa quantidade de mais-valiaextra ou superlucro. Ao se difundirem os aperfeiçoamentos a princípiointroduzidos numa empresa isolada, desaparecerá a mais-valia extra,mas terá ido adiante o processo de aumento da produtividade socialdo trabalho, cuja resultante é a criação de mais-valia relativa.(O que Marx considera lucro ordinário, Marshall denomina de custodo fator capital. No sistema de Marshall, o superlucro marxiano entrano conceito de quase-renda. Schumpeter não considera o lucro ordináriocomo lucro, porém como remuneração do trabalho de administração, sendoo lucro verdadeiro equivalente apenas ao superlucro marxiano).À medida que se implementam inovações técnicas poupadorasde mão-de-obra, tais ou quais contingentes de operários são lançadosno desemprego, em que se mantêm por certo tempo, até quando aprópria acumulação do capital requeira maior quantidade de força detrabalho e dê origem a novos empregos. Assim, a própria dinâmica docapitalismo atua no sentido de criar uma superpopulação relativa flutuanteou exército industrial de reserva.Já Ricardo concluíra, com exemplar honestidade científica, quea introdução de maquinaria conduz ao crescimento da massa de trabalhadoresdesempregados e lhes traz os sofrimentos da desocupação.Mas justificou a vantagem da maquinaria para os capitalistas, semque, não obstante, enxergasse significação econômica estrutural namassa de desempregados. Do ponto de vista de Marx, o exército industrialde reserva representa elemento estrutural indispensável aoMARX41

modo de produção capitalista e daí sua incessante reconstituição medianteintrodução de inovações técnicas, o que torna essa reconstituiçãoindependente do crescimento vegetativo da população. O exército industrialde reserva funciona como regulador do nível geral de salários,impedindo que se eleve acima do valor da força de trabalho ou, sepossível e de preferência, situando-o abaixo desse valor. Outra funçãodo exército industrial de reserva consiste em colocar à disposição docapital a mão-de-obra suplementar de que carece nos momentos debrusca expansão produtiva, por motivo de abertura de novos mercados,de ingresso na fase de auge do ciclo econômico etc.Marx formulou uma lei geral absoluta da acumulação capitalista,segundo a qual se concentra, num pólo, a massa cada vez maior deriquezas à disposição do capital, enquanto, no pólo oposto, aumenta amiséria das massas trabalhadoras. Esta lei, apresentada no Livro Primeiro,tem sido objeto de variadas exegeses e acirradas discussões nosmeios marxistas, ao passo que os antimarxistas encontram nela reiteradomotivo para contestação.

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Certa parte dos marxistas interpretou a formulação marxianano sentido de inelutável pauperização absoluta ou queda secular dopadrão da existência material da classe operária no regime capitalista,inclusive sob o aspecto dos salários reais, que tenderiam a ser cadavez mais baixos, conforme sustentam, por exemplo, os autores do Manualde Economia Política da Academia de Ciências da URSS. Já RonaldMeek viu na referida lei um dos erros mais clamorosos de Marx,em face das evidentes melhoras das condições de vida dos operáriosingleses no decorrer do último século. Ambas as posições foram refutadaspor Mandel e Rosdolsky através de exaustiva análise da questãoà luz dos textos marxianos em confronto com os dados do desenvolvimentodo capitalismo. Dessa análise ressaltam os dois pontos seguintes.Em primeiro lugar, no referente aos salários reais, a posição deMarx evoluiu dos escritos econômicos dos anos quarenta às obras damaturidade, dos anos sessenta em diante. Nos anos quarenta, a idéiade Marx era a de que, conquanto os aumentos salariais pudessemrepresentar conquistas imediatas para os operários, atuava, a longoprazo, a tendência à queda dos salários reais até o nível mínimo dasubsistência física, ou seja, a tendência à pauperização absoluta. Influíam,então, sobre o pensamento marxiano, sem dúvida, as evidênciasda Revolução Industrial recém-concluída na Inglaterra e em curso nosdemais países da Europa ocidental, quando, com efeito, os saláriosreais foram rebaixados. Diferente veio a ser, não obstante, a perspectivados anos sessenta. Marx passou a enfatizar o fator luta de classes edemonstrou, do ponto de vista teórico e com apoio em dados estatísticos,que a classe operária podia conquistar aumentos efetivos dos saláriosreais e, na verdade, os havia conquistado na Inglaterra (Ver Salário,Preço e Lucro. Tal demonstração foi tanto mais notável quanto se opu-OS ECONOMISTAS42

nha às duas teses sobre salários então dominantes, tanto nos círculosprofissionais dos economistas quanto nos meios sindicais: a tese da leide “ferro” ou de “bronze”, defendida por Lassalle, segundo a qual ossalários deviam cair, de maneira inexorável, ao nível mínimo de subsistênciafísica dos trabalhadores; e a tese do “fundo de salários” defendidapor John Stuart Mill, segundo a qual, em cada situação dada,existe um fundo pré-fixado para os salários, sendo inútil tentar alterá-loe obter maiores salários reais por meio do aumento dos salários nominais.A história econômica desmentiu as formulações de Lassalle ede Stuart Mill e confirmou a de Marx, que chegou a intuir a elevaçãodos salários reais como tendência possível no capitalismo. De fato, nospaíses capitalistas desenvolvidos, a tendência secular tem sido a deelevação dos salários reais e, sob este ponto de vista estrito, não sepode falar em pauperização absoluta da classe operária, mas só relativa.Contudo, a elevação dos salários reais, embora tornada predominantepela luta de classes dos operários e pelo desenvolvimento das forçasprodutivas, não deixa de ser muito irregular, na medida em que adinâmica dos salários depende do movimento da acumulação do capitale não o contrário.Em segundo lugar, Marx entendia a questão da acentuação damiséria dos trabalhadores numa perspectiva abrangente, que não sereferia tão-somente aos operários regularmente empregados e aos seussalários reais, porém também devia incluir o que chamou de “tormentosdo trabalho”, bem como as condições de existência da massa crescentede operários desempregados, cujos tormentos decorriam, não do trabalhona empresa capitalista, porém da falta dele. Falta temporária,para o exército industrial de reserva, e falta permanente, para a superpopulaçãoconsolidada (aquela parte dos trabalhadores já sem perspectivade ocupação regular).Assim, por outro lado, seja pelo processo espontâneo de desenvolvimentodas forças produtivas, seja sobretudo por efeito da luta declasses, os trabalhadores conseguem incorporar ao seu padrão de vidaa satisfação de novas necessidades. Já no seu tempo, Marx observavaque a compra de um jornal diário fazia parte do valor da força detrabalho do operário inglês. O mesmo cabe ser dito, hoje, com relaçãoao aparelho de televisão, no caso do operário brasileiro. Por isso mesmo,podem vir a elevar-se os salários reais — medidos em termos de capacidadeaquisitiva de valores de uso — e o padrão de vida dos operários,

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sem que daí resulte necessariamente o aumento do salário emtermos de valor (medido em horas de trabalho necessárias à sua reprodução).Como é evidente, se a elevação da produtividade social dotrabalho tiver provocado a queda do valor dos bens-salário em certaproporção, torna-se possível a elevação dos salários reais sem elevaçãoqualquer ou sem elevação igualmente proporcional do valor do própriosalário. Mais ainda: os salários reais podem elevar-se e continuar abaixoMARX43

do valor da força de trabalho, uma vez que este valor se tenha acrescidopor motivo dos maiores gastos na formação da força de trabalho, dasexigências mais complexas do processo de produção, da criação de novasnecessidades materiais e culturais.Em qualquer caso, todo progresso no capitalismo suscita antagonismos.A elevação do salário real não raro vem acompanhada defenômenos como o desgaste mais acentuado das energias físicas e/oupsíquicas (constate-se, a propósito, o alto índice de doenças mentaisnos meios operários), maior insegurança de manutenção do emprego,crescimento do número de desempregados e dilatação dos períodos intermitentesde desocupação, o que aumenta a carga sobre os operáriosmomentaneamente empregados. Não se pode tampouco dissociar o estudodo padrão de vida geral da classe operária da situação peculiardaquelas camadas de trabalhadores mais sujeitos ao desemprego e aosbaixos salários. Ao padrão de vida dos operários alemães ou franceses,relativamente elevado, constitui elemento de contraste o mesquinhonível de condições de existência dos trabalhadores imigrantes procedentesda Europa meridional, África e Oriente Médio. De igual maneira,seria erro grosseiro abstrair, nos Estados Unidos, o alto nível de vidados operários brancos de todos os flagelos que se abatem sobre osoperários negros e de origem latino-americana.A tais fenômenos do cotidiano dito normal, acrescentem-se ascalamidades das crises econômicas que, apesar da inventividade keynesiana,continuam a fazer parte do ciclo capitalista.VI. Valor e Preço — O Problema da TransformaçãoA explicação das oscilações momentâneas dos preços de mercadopelas variações na oferta e demanda só pode satisfazer à observaçãodos fenômenos em sua superfície. Os economistas, que não se contentavamcom a observação superficial, entenderam que devia existir umregulador determinante, não das oscilações dos preços, mas do nívelem que elas ocorrem.Smith e Ricardo definiram aquele regulador como o valor-trabalho.Ao mesmo tempo, traduziram o valor-trabalho em termos de preço, semqualquer mediação. Por conseguinte, o preço natural (Smith) ou o custode produção (Ricardo) devia ser igual ao valor-trabalho, o que criava insolúvelimpasse, conforme já foi mencionado no início da seção IV.Marx esforçou-se no sentido de eliminar esta transição imediatado conceito abstrato de valor à realidade empírica dos preços. E o fezdescobrindo as mediações dialéticas que balizam o trajeto do valor aospreços de mercado.A primeira mediação consiste na taxa de mais-valia, que se distingueda taxa de lucro. A taxa de mais-valia é a relação entre amais-valia e o capital variável. A taxa de lucro é a relação entre amais-valia e o capital individual total (soma do capital variável comOS ECONOMISTAS44

o capital constante). A taxa de mais-valia revela o grau de exploraçãoda força de trabalho, ao passo que a taxa de lucro indica o grau devalorização do capital. Os capitalistas e os economistas, seus intelectuaisorgânicos, só se interessam pela taxa de lucro, que dá origem àilusão ideológica de que o sobreproduto é criado pelo capital em conjuntoe não somente por sua parte variável. Ilusão que reforça o fetichismodo capital.Como, porém, a composição orgânica do capital difere entre osvários ramos da produção, se a taxa de mais-valia for igual para todoseles (o que pode ser coerente, do ponto de vista teórico, e aproximado,do ponto de vista empírico), então as taxas de lucro serão desiguaisde um ramo para outro. Ora, a observação mais trivial indica que astaxas de lucro não variam em função do coeficiente de capital variável

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de cada capital individual. Em períodos plurianuais, os capitais individuaisvalorizam-se de acordo com uma taxa geral média, que nãotem relação com os diferentes quantitativos de força de trabalho empregadospelos capitais individuais.A formação dessa taxa média de lucro resulta da concorrência,que força parte dos capitais a se transferir, nas circunstâncias dadas,dos ramos com taxa de lucro cadente para os ramos com taxa de lucroascendente. Em conseqüência, o montante de mais-valia produzido portodos os capitais individuais se redistribui entre eles em proporção àcota-parte global de cada um e não à cota-parte da força de trabalhoempregada. Certa proporção de mais-valia se transfere dos capitaiscom baixa composição orgânica para os capitais com alta composiçãoorgânica, o que, em meio a inumeráveis e incessantes flutuações, estabelecea taxa geral ou taxa média de lucro. Esta, apesar de geral,não é uniforme em cada momento dado. Ao contrário, em cada momentodado, as taxas de lucro são diferentes nos vários ramos da produção,o que, precisamente, obriga os capitais concorrentes a se moverem deuns ramos para outros. É desse movimento que resulta a taxa média,em períodos que só podem ser plurianuais, emergindo a taxa médiada alternância entre taxas altas e baixas.A mediação entre a taxa de mais-valia e a taxa de lucro presidea transformação do valor em preço de produção. A fórmula do valoré: capital constante + capital variável + mais-valia. A fórmula do preçode produção é: capital constante + capital variável + lucro médio. Aosgastos correntes de capital constante e variável, num tempo de rotaçãodelimitado, Marx denomina de preço de custo. Somado o preço de custoao lucro médio, proporcional ao capital individual total investido, obtém-se o preço de produção.Recorrendo a um modelo aritmético de cinco setores, Marx demonstrou,no Livro Terceiro, como é possível a transformação do valorem preço de produção com a simultânea satisfação de duas equações:a da igualdade entre o total dos valores e o total dos preços de produção;MARX45

e a da igualdade entre o total da mais-valia e o total dos lucros. Trata-sedo que chamaremos doravante de teorema das duas igualdades.No modo de produção capitalista, a lei do valor manifesta-se nestasduas igualdades ao nível do sistema em conjunto, dado que, nastransações singulares, já não é possível, senão por acaso, a troca deequivalentes. Uma vez que o preço de produção é inexplicável sem opressuposto do valor, a lei do valor domina no modo de produção capitalistaporém o faz sob a metamorfose que converte o valor em preçode produção.Por conseguinte, o regulador do nível das oscilações dos preçosde mercado já não é diretamente o valor, mas sua forma transfiguradade preço de produção. Contudo, entre o preço de produção e os preçosde mercado, Marx colocou mais uma mediação categorial — a do valorde mercado. Cada mercadoria é lançada à venda com um valor individual,a partir do qual deverá concorrer com as mercadorias congêneresdo mesmo setor. Grosso modo, conforme a produtividade técnica aplicadaà sua produção e o grau de exploração da força de trabalho, asmercadorias se distribuem em três grupos: a) o de preço de produçãoigual à média socialmente necessária; b) o de preço de produção superiorà média; c) o de preço de produção inferior à média. Se a demandadas mercadorias em questão for maior do que sua oferta, os preços demercado tenderão a oscilar no patamar do grupo cujo preço de produçãoé superior à média, no qual se situará o valor de mercado, motivo porque os dois outros grupos auferirão um superlucro. Em caso contrário,sendo a oferta superior à demanda, o valor do mercado descerá aopatamar do grupo com preço de produção inferior à média, ou seja, dogrupo com mais alto índice de produtividade, cujo lucro corresponderáà taxa média, enquanto os demais operarão abaixo dela, até mesmocom prejuízo. Somente no caso de coincidência aproximada entre ofertae demanda é que os preços de mercado oscilarão no patamar do preçode produção e do valor de mercado do grupo médio, o que propiciarásuperlucro ao grupo de preço de produção inferior, ao passo que ogrupo de preço de produção superior não conseguirá chegar à taxamédia de lucro.

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Percebe-se, portanto, que, ao contrário da crítica de Böhm-Bawerke de opiniões correntes, Marx não desprezou a celebrada lei da ofertae da demanda. Só que admitiu sua atuação apenas à superfície dosfenômenos econômicos e rejeitou a explicação psicologista dessa atuação,posteriormente desenvolvida pela corrente marginalista, com ateoria subjetiva do valor. A oferta depende da aproximação dos preçosde mercado com relação ao preço de produção. Em última instância,portanto, dado certo preço de custo, depende de que o capitalista obtenhaa taxa média de lucro. Em caso contrário, reduzirá sua ofertaou transferirá seu capital para outro ramo. Mas a taxa média de lucroé determinada por fatores como a taxa de exploração da força de tra-OS ECONOMISTAS46

balho e a composição orgânica do capital, que nada têm a ver cominclinações subjetivas. Do outro lado, a demanda, por mais que a influenciempreferências individuais, está antes de tudo subordinada àprévia distribuição dos rendimentos, de acordo com a estrutura declasses existente. De nada adianta ao operário ter as mesmas preferênciasindividuais do seu patrão. A demanda efetiva do primeiro sóterá opções dentro dos limites do salário, enquanto o segundo disporádo lucro para consumo conspícuo e investimento.A publicação do Livro Terceiro de O Capital se deu vinte e seteanos após a do Livro Primeiro. Já então, a teoria marxiana conquistaracerta atenção nos meios acadêmicos, entre os quais se aguardava a solução,anunciada por Engels, da contradição entre valor e preço. Assim quechegou às prateleiras das livrarias, o Livro Terceiro desencadeou umapolêmica que, embora variando de aspectos, prossegue até hoje.Conrad Schmidt e Werner Sombart afirmaram de imediato que ovalor não passava de construção lógica, uma vez que só o preço de produçãotem existência histórica concreta. Engels apressou-se a refutá-los, escrevendoum ensaio que se integraria no Livro Terceiro com o caráter decomplemento. Se a afirmação de Engels sobre a atuação da lei do valorhá vários milênios carece, como já foi dito, de fundamentação historiográfica,suas indicações acerca da formação da taxa média de lucro nosprimórdios do capitalismo são pertinentes e sugestivas.Em 1896, já quando as cinzas de Engels haviam desaparecidono Mar do Norte, foi publicado o ensaio crítico de Böhm-Bawerk. Redigidocom rigor acadêmico e assinado por um dos mestres eminentesdo marginalismo, o ensaio definiu o padrão universitário de contestaçãoda teoria marxista do valor e, por conseguinte, de todo o sistema teóricoconstruído em O Capital. Na argumentação de Böhm-Bawerk, comoera de esperar, o ponto principal teria de ser a contradição entre oLivro Primeiro, no qual sempre se supõe a troca de equivalentes, e oLivro Terceiro, no qual a troca de equivalentes cede lugar à trocasegundo os preços de produção. A conclusão era a de que Marx fracassarana pretensão de explicar os preços a partir do pressuposto dovalor-trabalho.Em 1904, Hilferding se incumbiu de rebater a crítica. A par daargumentação circunstanciada acerca da coerência entre os três livros deO Capital, o eixo da resposta de Hilferding consistiu na tese de que osistema da Economia Política marxiana não podia ser reduzido a umateoria sobre os preços. A questão dos preços inseria-se no contexto muitomais amplo da análise das leis do movimento da sociedade burguesa.Embora salientasse na obra de Marx uma riqueza de elementosmenosprezada por Böhm-Bawerk, nem por isso Schumpeter deixariade declarar a teoria do valor-trabalho morta e enterrada. Aduziu, todavia,a observação original de que o valor-trabalho se aplicaria nocaso singularíssimo da concorrência perfeita, quando o trabalho homo-MARX47

gêneo fosse o fator de produção único. Referindo-se principalmente aRicardo, do qual Marx apenas teria extraído as conseqüências lógicas,Myrdal viu no conceito de valor-trabalho uma entidade metafísica, prejudicialà própria construção teórica ricardiana. Semelhante imputaçãopositivista ao conceito, que o coloca no reino da metafísica, repete-seem Robinson. Haveria um conflito entre o misticismo do Livro Primeiroe o senso comum do Livro Terceiro. Por felicidade, segundo a autora,o marxismo se salva para a ciência econômica, uma vez que nenhum

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ponto substancial da argumentação de Marx dependeria da teoria dovalor-trabalho. Para Morishima e Catephores, por último, o valor nãopassaria de um tipo ideal, instrumento heurístico adequado à clarificaçãodo funcionamento da economia capitalista.A polêmica sobre o problema da transformação tomou rumo peculiara partir de um artigo publicado em 1907, de autoria de Ladislausvon Bortkiewicz, economista germano-polonês de formação ricardiana.Considerando incoerente que Marx começasse com valores para chegaraos preços de produção, argumentou ele que, já no começo, os valoresprecisavam ser calculados como preços de produção. Em outros termos,era ilógico fazer entrar o insumo como valor e obter o produto, nasaída, como preço de produção. O sistema de equações montado porVon Bortkiewicz cumpriu várias exigências, porém deixou irresolvidaa exigência de uma das igualdades que a transformação implica, jáque o total dos preços de produção iniciais ficou situado abaixo dototal de preços de produção finais, isto é, após a transformação damais-valia em lucro.A abordagem de Von Bortkiewicz só foi retomada e revivida em1942, na Teoria do Desenvolvimento Capitalista de Sweezy, que precisou,do ponto de vista marxista, alguns aspectos do raciocínio daquele.A partir dos anos cinqüenta, novas tentativas de solução matemáticaforam empreendidas por Winternitz, Seton e Morishima. Usando umprocesso de iterações, o último se aproximou da demonstração do teoremadas duas igualdades a partir de preços de produção. Ainda assim,persistiram condições restritivas.A publicação, em 1960, do famoso trabalho de Sraffa (Produçãode Mercadorias por Meio de Mercadorias) foi recebida favoravelmentenos meios marxistas por trazer uma crítica original e coerente aosfundamentos da corrente marginalista ou neoclássica. Mais do queisso, a obra de Sraffa foi saudada por Meek e Dobb como contribuiçãodecisiva à solução do problema da transformação dos valores em preçosde produção. Para eles e vários outros marxistas, a mercadoria-padrãopareceu constituir o elo matemático de que Marx careceu a fim dedemonstrar seu teorema das duas igualdades, tendo os preços de produçãocomo pontos de partida e de chegada.Essa avaliação tão alvissareira da obra de Sraffa não se generalizou,contudo, entre os marxistas. Se, por um lado, era preciso ad-OS ECONOMISTAS48

mitir o mérito da crítica aos postulados neoclássicos, tampouco erapossível fechar os olhos à oposição entre Marx e Sraffa, uma vez queo último colocara sua demonstração do movimento dos preços sobre abase das quantidades físicas das mercadorias (retornando ao enfoquede Ricardo no seu Essay on Profits, de 1815, com a diferença de quesubstituía o trigo por uma mercadoria composta). Do ponto de vistateórico, isso equivalia a tomar por um atalho que excluía o valor-trabalho,a mais-valia e a composição orgânica do capital. Que excluía,por conseguinte, o essencial da Economia Política marxiana. Seria possívelsalvar esta última com base no próprio Sraffa, ou seja, na suademonstração neo-ricardiana do movimento dos preços e da distribuiçãodo produto social?Tentou-o Garegnani, porém é forçoso reconhecer que o fez demaneira a retirar com uma das mãos o que concedia com a outra. Oresultado foi a mutilação do sistema de Marx para que pudesse caberno de Sraffa, convertendo este último num verdadeiro leito de Procusto.Consciente da incompatibilidade, Napoleoni optou por Sraffa e,com um radicalismo coerente, afirmou que, depois dele, o marxismonão podia mais contar com a ciência econômica e se deveria “começartudo de novo”.Tais as coordenadas de uma polêmica sobre a qual a literaturainternacional já é pletórica, cabendo registrar também a contribuiçãobrasileira.A nosso ver, a abordagem da transformação do valor em preçode produção, iniciada por Von Bortkiewicz, confundiu um problemafalso com um verdadeiro. Semelhante confusão persiste e impede quese alcance clareza acerca da questão.O problema falso consiste em pretender demonstrar o teoremadas duas igualdades a partir de preços de produção. Mesmo que isto

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seja conseguido sem condições restritivas, o teorema não ficará demonstradopor motivo de carência lógica. Para demonstrá-lo, é precisopartir de valores, como fez Marx. Porque só assim estará provado que,quaisquer que sejam os preços das mercadorias e a não-equivalêncianas suas trocas singulares, a sociedade disporá unicamente da somade valores igual àquela incorporada às mercadorias (nem mais, nemmenos), enquanto a classe capitalista não terá senão um lucro totaligual à mais-valia total (nem mais nem menos). O enfoque metodológiconão pode ser diferente no caso, embora seja lícito substituir, se possível,o procedimento aritmético marxiano por outro algébrico atualizado. Opróprio Marx não foi especialista em matemática, porém Morishima,autoridade no assunto, elogia suas intuições e contribuições no âmbitoda Economia matemática. Marx aprovaria certamente a elaboraçãomatemática moderna de suas teses sob a condição, está claro, de quenão se autonomizassem os aspectos quantitativos com relação aos qua-MARX49

litativos, o que conduziria, como se deu com a escola neoclássica, afórmulas vazias de substância histórico-social.O problema verdadeiro foi apontado pelo próprio Marx, que nãoignorava já entrarem as mercadorias no preço de custo calculadas pelopreço de produção e não pelo valor. Advertiu que isso poderia induzira erro, quando se identifica o preço de custo da mercadoria com o valordos bens nela consumidos. Não obstante, afirmou que a questão nãorequeria exame pormenorizado para o estudo da transformação de valoresem preços de produção. Ora, se é correto que Marx não precisavagastar energias num aspecto derivado da sua questão central, daí nãose segue que tal aspecto não mereça a atenção dos economistas e seafirme não haver nenhum problema. Bem pelo contrário, é justificávelque se investigue a conversão do insumo em produto, tomados amboscomo preços de produção. O que não se pode absolutamente pretenderdesta maneira, conforme tem sido questão de princípio para tantospesquisadores, é chegar a alguma fórmula de equilíbrio geral, ao menosse nos ativermos aos pressupostos marxistas fundamentais.Por último, uma apreciação de natureza epistemológica.Se é inconcebível a teoria econômica do capitalismo sem a demonstraçãodos fatores do movimento dos preços — o que para Marxera evidente, tanto se esforçou a fim de eliminar o impasse em que,a este respeito, ficaram Smith e Ricardo —, daí não se segue, todavia,que a questão especial dos preços deva ser considerada, em si mesma,a pedra de toque da veracidade dos sistemas de teoria econômica. Comotambém é inconsistente pretender que a demonstração mais direta esimples seja, por um sequitur lógico, a verdadeira.Os preços constituem evidência fenomenal de processos econômicosprofundos e a explicação restrita dos preços, por mais sofisticadaque se apresente no tratamento matemático, na análise estatística etc.,não colocará em foco as forças que lhes são subjacentes. A teoria marxianaabarcou os processos profundos num amplo conjunto — o dasrelações de produção e das leis que lhes determinam o desenvolvimento— e sua validade científica não deve ser julgada senão em funçãodesse enfoque. A partir dele, a demonstração do movimento dos preçosnão dispensa o desvio do valor-trabalho, da mais-valia e da composiçãoorgânica do capital. Tal desvio não constitui um complicador desnecessário,conducente à invenção de entes de razão, mas é imposto àteoria pela própria realidade das sociedades em que não pode ser diretaa divisão social do trabalho entre proprietários privados dos meios deprodução e de subsistência. Em tais sociedades, a divisão social dotrabalho se realiza indiretamente, por meio do desvio do valor, combase no qual se demonstra muitíssimo mais do que o movimento dospreços. Justamente a partir do valor-trabalho é que Marx pôde elucidara contradição fundamental do modo de produção capitalista como sendoa contradição entre a forma privada de apropriação e o caráter socialOS ECONOMISTAS50

do processo de produção. E ainda a criação da mais-valia como impulsomotor do modo de produção capitalista; a luta de classes entre a burguesiae o proletariado como inerente à formação social capitalista; adinâmica entre acumulação de capital e exército industrial de reserva;

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as contradições da reprodução do capital social total e a necessidadede sua trajetória cíclica; o impulso do capital ao desenvolvimento máximodas forças produtivas e o limite cada vez mais estreito que opróprio capital impõe a esse desenvolvimento; a lei da queda tendencialda taxa de lucro enquanto expressão concentrada das contradições docapitalismo. Com inteira razão, enfatizou Bob Rowthorn que a problemáticada Economia Política marxista se diferencia profundamente daneo-ricardiana, sendo perda de tempo enfocar a problemática marxistapela via do sistema de Sraffa.Em seguida a Marx, cabe admitir que a questão dos preços recebeuescasso tratamento por parte dos economistas marxistas, ficandoo tema entregue à corrente neoclássica. A este respeito, uma exceçãofoi a de Rubin, que conseguiu demonstrar como a explicação marginalistada dinâmica dos preços, feita por Marshall, podia ser substituídapor uma explicação baseada no valor-trabalho. A demonstração do economistarusso veio confirmar que a teoria especial dos preços dispunhade condições para ser desenvolvida com suficiente coerência nos quadrossistemáticos da Economia Política marxista. Inclusive com o aproveitamentoda contribuição de outras correntes do pensamento econômico,a exemplo, nos anos recentes, da contribuição neo-ricardiana.VII. Tendências do Desenvolvimento doModo de Produção CapitalistaO sistema teórico marxiano distingue-se pela exposição das tendênciasdinâmicas inerentes ao modo de produção capitalista, as quais,se lhe impulsionam o crescimento, ao mesmo tempo desenvolvem suascontradições internas e o conduzem à decadência e à substituição porum novo modo de produção.O modo de produção capitalista não é visto, por conseguinte,como encarnação da racionalidade supra-histórica, nem suas leis específicasassumem o caráter de leis naturais, cuja suposta imanênciaà natureza humana imporia a adequação eterna das instituições sociaisàs exigências de sua livre atuação. A concepção dialética marxista opôsseà tradição jusnaturalista da ideologia burguesa, que impregnou osclássicos da Economia Política. Por isso mesmo, o modo de produçãocapitalista não é visto como aberração, nem tampouco o foram, antesdele, os modos de produção asiático, escravista e feudal. Todos representamgrandes etapas do desenvolvimento histórico, cujo princípioexplicativo reside na correspondência entre as relações de produção eo caráter das forças produtivas. A cessação de tal correspondência tornaos homens conscientes, cedo ou tarde, da necessidade de substituir oMARX51

modo de produção decadente por um novo modo de produção, ou seja,no essencial, da necessidade de favorecer a implantação e expansãode novas relações de produção adequadas ao desenvolvimento desobstruídodas forças produtivas. O modo de produção capitalista, em virtudedas contradições do seu próprio movimento, teria de ceder lugarao modo de produção comunista. Se foi enfático no concernente a estaconclusão, Marx não deixou senão escassas e sucintas idéias acercadas características do comunismo. Rejeitou as idealizações utópicas eateve-se àquelas inferências possíveis a partir do próprio capitalismo.Marx se pretendia cientista e não profeta.Os temas a seguir abordados foram escolhidos pela relevânciaque assumem na concepção marxiana sobre a dinâmica do modo deprodução capitalista.O capital social total e as contradições de sua reproduçãoNo Livro Segundo — conforme já observado, aquele mais dedicadoà macroeconomia —, Marx buscou esclarecer como era possível efetivar-se a reprodução do capital social total, uma vez que este se constituíade numerosos capitais individuais concorrentes, cuja atuação,pela própria natureza do capitalismo, pressupunha a ausência de subordinaçãoa uma planificação centralizada.Todo modo de produção deve ser também um modo de reprodução.Por força, no fundamental, dos mecanismos econômicos e também pelosuporte que o modo de produção recebe das instituições político-jurídicasconsolidadas, da ideologia dominante, dos costumes da vida cotidianaetc., cada circuito da produção é sucedido por novo circuito, numa reiteraçãoincessante. De outra maneira, seria inevitável a cessação da

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existência da própria sociedade. Se a evidência empírica comprova quea reprodução também ocorre na formação social capitalista, a questãoa elucidar consiste na demonstração de como isto é possível num regimeem que a produção socializada se realiza entre as paredes de empresasde propriedade privada.O feito de Marx, no Livro Segundo, encontrou precedente e fontede inspiração no Tableau Économique de Quesnay. Marx o tinha em altaconta e realçou sua grande significação científica. Não obstante, entre oTableau e os esquemas da reprodução do Livro Segundo medeia umadistância enorme, de cujos marcos basilares basta assinalar o primeiro:a teoria do valor-trabalho, ausente na concepção do precursor francês.Os esquemas da reprodução formulam-se em termos de valor,discriminando-se o produto social anual em três partes: capital constante,capital variável e mais-valia. Ao mesmo tempo, o produto socialtem a composição bissegmentada por uma grande linha divisória determinada,não pelo valor, mas pelo valor de uso. Em conseqüência,o produto social procede de dois departamentos: o Departamento I —produtor de bens de produção; e o Departamento II — produtor deOS ECONOMISTAS52

bens de consumo (de capitalistas e operários, únicas classes inclusasno modelo). Por conseguinte, a fim de que decorra sem tropeços, areprodução anual do capital social total depende de que o produtosocial possua uma composição quantitativa proporcional em termos devalor e, ao mesmo tempo, uma composição qualitativa proporcional emtermos de valor de uso. O intercâmbio mercantil se efetiva dentro decada Departamento e entre ambos.Marx elaborou dois modelos matemáticos de esquemas, que satisfazemtodos os requisitos da proporcionalidade. O primeiro esquemaé o da reprodução simples, no qual se supõe que os capitalistas gastamtoda mais-valia no consumo pessoal, de tal maneira que o produtosocial se repete em dimensões iguais às anteriores. No funcionamentodo capitalismo, a reprodução simples não constitui senão momentoabstrato da reprodução ampliada. Já nesta, uma parte da mais-valia,em vez de absorvida pelo consumo pessoal, é produtivamente investida,daí decorrendo a reprodução do produto social em dimensões incrementadas.Dados os imperativos da acumulação do capital, a reproduçãoampliada é uma exigência do modo de produção capitalista e sua nãoefetivaçãosignifica indício de crise.Os modelos matemáticos marxianos da reprodução do capital socialtotal não são fórmulas dinâmicas, mas a fixação abstrata de uminstantâneo, algo assim como um flash fotográfico que capta condiçõesfugazes da reprodução em estado de completo equilíbrio. Desses modelosnão se podem inferir senão os requisitos essenciais à reprodução equilibradado capital social total. A inferência acerca da continuidade detais requisitos se contrapõe à argumentação do Livro Segundo.No processo de circulação, o capital atravessa as fases de capitaldinheiro, capital produtivo e capital mercadoria. A fim de retornar à configuraçãoinicial de capital dinheiro, é necessária a realização do capitalmercadoria, o que significa, em termos correntes, precisamente a vendadas mercadorias produzidas. Já aí aparecem tropeços reincidentes, umavez que os atos de compra e venda, intermediados pelo dinheiro, não seefetuam na velocidade ideal ou simplesmente deixam de se efetuar. Narealidade capitalista, a oferta nem sempre cria a procura correspondente.A esta altura, cumpre acentuar ter sido, muito antes de Keynes, a chamada“lei dos mercados” de Say submetida à crítica radical de Marx, que, aomesmo tempo, rejeitou a teoria subconsumista de Sismondi, apesar deapreciar sua posição de crítico do capitalismo.Mas os obstáculos à reprodução fluente e desimpedida procedemainda de várias outras características da produção capitalista, cujafinalidade vital consiste na valorização do capital. Procedem das diferençasdos tempos de rotação entre os capitais individuais dos diversosramos industriais e entre o capital fixo e o capital circulante na composiçãode cada capital individual. Procedem da especialização de funçõesentre o capital industrial, o capital comercial e o capital bancário,MARX53

cada qual submetido a giros próprios, em discordância maior ou menor

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com os demais, de tal maneira que a concordância representa meroacaso (tema que tornará a ser abordado no Livro Terceiro). Procedemdas inovações tecnológicas, que alteram os requisitos das proporçõesanteriores de composição do produto social sob o aspecto do valor deuso. Procedem, enfim, da prática maior ou menor do entesouramento,em resposta a características objetivas da reprodução ou a expectativassubjetivas dos capitalistas.De tudo isso não se segue que a reprodução do capital socialtotal seja impossível, mesmo nas condições de sistema fechado, que éo pressuposto permanente da construção teórica marxiana, entrandoo comércio exterior como fator contingente. Da argumentação marxianadecorre tão-somente que a efetivação da reprodução do capital socialtotal não se dá em estado de equilíbrio. Este estado é apenas umatendência atuante em meio a inumeráveis e incessantes desequilíbrios,cuja autocorreção pelo mercado não impede que prevaleça a acentuaçãoda desproporcionalidade e a superacumulação de capital em face dademanda solvente (o mesmo que demanda efetiva, na terminologia keynesiana).Situação que, no ápice, desemboca e se resolve na crise cíclica.Os esquemas marxianos da reprodução do capital social totalensejaram acesas polêmicas já no final do século passado. Tugan-Baranovski,destacadamente, extraiu deles a conclusão de que o capitalismopoderia desenvolver-se a perder de vista, a salvo de crises econômicas,se fossem cumpridos os requisitos da proporcionalidade dareprodução. Tais requisitos, por sua vez, dispensariam a exigência deampliação do consumo pessoal, sendo possível imaginar o capitalismofuncionando com o proletariado constituído por um único indivíduo.Embora recusasse a loucura metódica de Tugan-Baranovski, admitiuHilferding estar implícita nos esquemas marxianos uma concepção harmonicistae afirmou que, com base neles, seria impossível provar aderrocada inelutável do capitalismo.Os esquemas marxianos constituíram, no entanto, um dos argumentoscentrais apresentados por Lênin em sua polêmica com os populistasrussos. Em obras como Sobre a Questão Chamada dos Mercadose O Desenvolvimento do Capitalismo na Rússia, os esquemasmarxianos da reprodução social foram utilizados a fim de rebater atese populista acerca de impossibilidade da formação do mercado internocapitalista nas condições russas. Conquanto recorresse às análisesde Tugan-Baranovski, então um dos chamados “marxistas legais”, Lêninrejeitou a interpretação harmonicista corrente entre estes últimos.Motivada, precisamente, pela necessidade de uma réplica à interpretaçãoharmonicista, Rosa Luxemburgo criticou os esquemas marxianose desviou a explicação da contradição fundamental do capitalismopara a questão da suposta realização inviável em face da insuficiênciados mercados num sistema capitalista fechado. Inaugurava-seOS ECONOMISTAS54

em grande estilo, no âmbito do marxismo, o enfoque subconsumista.Tanto Luxemburgo como Hilferding, embora situados em posições políticasmuito diferentes no âmbito da social-democracia, não perceberamo caráter estático dos modelos marxianos da reprodução social e consideraramimpossível evitar a interpretação harmonicista com referênciaa eles.Quando, na década dos vinte do século atual, os economistassoviéticos começaram a enfrentar os problemas da planificação centralizada,a teoria marxista da reprodução do capital social total colocou-seno foco das atenções e diretamente nela se inspirou a metodologia dosbalanços. Foi sob a motivação do estudo desses problemas macroeconômicosque Leontief, então ainda na União Soviética, iniciou as pesquisasque, nos Estados Unidos, culminaram na elaboração das matrizesde insumo-produto.Ainda na década dos vinte, a teoria marxista da reprodução socialforneceu ao economista soviético G. Feldman o instrumental conceitualpara o primeiro modelo matemático do desenvolvimento dinâmico dareprodução macroeconômica, nas condições do socialismo. Feldman antecipou-se, portanto, às fórmulas macrodinâmicas de Harrod e Domar,inspiradas na macroestática de Keynes. Os keynesianos de esquerda,como Robinson, apreciaram o mérito dos esquemas da reprodução doLivro Segundo e encontraram neles uma das razões para sua aproximação

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ao marxismo.Os ciclos econômicosSchumpeter, um dos principais estudiosos modernos do tema,afirmou que Marx foi pioneiro na apresentação de uma teoria consistentedos ciclos econômicos (e não só das crises), embora o fizesse semconcatenação sistemática. Decerto, partindo do mundo acadêmico ocidental,seria difícil elogio mais eminente à realização de Marx.É fato que não encontramos, em O Capital, uma exposição sistemáticasobre os ciclos econômicos. As referências são fragmentáriase se acham dispersas nos três Livros e ainda em outras obras comoTeorias da Mais-Valia. O estudo da teoria marxiana dos ciclos só épossível com a reunião de todas essas referências, levando-se em contao contexto em que cada uma está inserida. Justamente a falta ou adificuldade de semelhante enfoque abrangente tem acentuado as diferençasde exegese e as posições polêmicas.Ao estudar, no Livro Segundo, a reprodução do capital socialtotal, assinalou Marx, em diversas passagens, a natureza cíclica dessareprodução. Ultrapassada a fase de crise, cada ciclo se renova atravésde fases sucessivas de depressão, reanimação e auge, que desembocana crise seguinte, a partir da qual se origina novo ciclo. Esta naturezacíclica do movimento da reprodução tem a causa fundamental no impulsoinelutável do capital à sua valorização (de outra maneira, nãoMARX55

seria capital), o que o leva a chocar-se numa frente geral, periodicamente,com as barreiras que a própria valorização cria para o desenvolvimentodas forças produtivas. Tais barreiras inexistiriam se o capitalnão precisasse valorizar-se e conduzir a acumulação ilimitada acolidir com a forma capitalista de sua concretização.Quatro aspectos primordiais do movimento cíclico foram abordadospor Marx.O primeiro consistiu na definição das barreiras principais que opróprio capital ergue à sua expansão. Duas são estas barreiras principais:a) a desproporcionalidade do crescimento dos vários ramos daprodução, em particular a desproporcionalidade entre os DepartamentosI (produtor de bens de produção) e II (produtor de bens de consumo);b) a exploração dos trabalhadores que rebaixa o nível de consumo dasmassas ou impede sua elevação nas proporções de uma demanda solventecompatível com a ampliação da oferta. Ambas as barreiras nãoconstituem contingências elimináveis, porém surgem inexoravelmenteda contradição entre o impulso à acumulação do capital e o envoltóriocada vez mais estreito das relações de produção capitalistas.O segundo aspecto refere-se ao descolamento e à autonomizaçãoda esfera bancária com relação à esfera produtiva de atuação do capital.A possibilidade de o capital bancário criar moeda escritural dá ensejoà expansão do crédito em ritmo mais veloz do que o da produção real.Daí se exacerbarem as tendências especulativas que, por fim, já nadatêm a ver com as condições viáveis de realização das mercadorias produzidase, portanto, de sua conversão em capital dinheiro.O terceiro aspecto foi o da caracterização da base técnico-materialpara o movimento cíclico. Segundo Marx, essa base se encontraria naperiodicidade da renovação do capital fixo, por exigência do desgastefísico e da obsolescência tecnológica. No século XIX, tal periodicidadeera aproximadamente decenal, ou seja, a renovação em grande escalado capital fixo fornecia, a cada dez anos, o ponto de partida de umnovo ciclo. Embora Marx não houvesse apresentado uma demonstraçãotécnica-empírica da sua tese, é inegável que nela expôs uma idéiadepois detalhada e aprofundada nos estudos da função do investimentonos ciclos econômicos.O último aspecto diz respeito às crises, tomadas como fase dedesenlace do ciclo econômico.É por demais claro e incontestável que Marx recusou a idéia deque a crise cíclica se desencadeasse por efeito da insuficiência da demandasolvente (ou demanda efetiva). Frisou que, justamente na fasede auge, antecedendo a crise de maneira imediata, a oferta de empregosse amplia ao máximo e os salários sobem ao patamar mais alto possível.Por conseqüência, a crise não se segue a uma queda do consumo, porém,muito ao contrário, à sua elevação mais acentuada nas condições específicas

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do capitalismo.OS ECONOMISTAS56

O que sucede é que a elevação conjuntural dos salários — nascondições de exaustão do exército industrial de reserva — importa emdecremento da taxa de mais-valia e, por conseguinte, da taxa de lucro,o que, por sua vez, desacelera e acaba freando o processo de acumulaçãodo capital. Mas esta mesma elevação conjuntural dos salários resultada prévia superacumulação de capital em que o auge do ciclo culminae conduz à mobilização completa ou quase completa do efetivo operáriodisponível. A superacumulação do capital traz consigo o agravamentoda desproporcionalidade entre os dois departamentos da produção sociale a superprodução de mercadorias postas à venda, acabando por provocarinsuficiência catastrófica de demanda e crise aguda de realizaçãosobretudo de bens de produção. Tal insuficiência da demanda não constitui,portanto, causa, mas conseqüência da superprodução, entendida,antes de tudo, como superprodução de capital. A expansão da produçãoalém das barreiras erguidas pelo próprio capital incide na esfera docrédito e termina por suscitar drástica retração das disponibilidadeslíquidas, o que, por sua vez, agrava a retração dos investimentos.A síntese acima não deve ser tomada por modelo uniforme paratodas as crises cíclicas. Marx observou que o andamento de cada umadelas apresentava peculiaridades, porém considerou que os fatores enumeradostinham atuação generalizada.As crises cíclicas cumprem a função precípua de recuperação passageirado equilíbrio do sistema capitalista, justamente por haver suatendência ao desequilíbrio atingido um grau paroxístico. Mas este equilíbriomomentâneo só se efetiva mediante tremenda devastação dasforças produtivas até então acumuladas. Devastação manifestada nadepreciação das mercadorias ou simplesmente na destruição dos estoquesinvendáveis, no surgimento de alto grau de capacidade ociosanas empresas, na falência de muitas delas e sua absorção por outrasa preço vil, na desvalorização geral do capital e, por fim, no desempregomaciço, que inutiliza grande parte da força produtiva humana e reconstitui,em proporções maiores, o exército industrial de reserva.A desvalorização geral do capital, a reconstituição do exércitoindustrial de reserva e a renovação do capital fixo permitem a elevaçãoda taxa de lucro deprimida pela conjuntura e seriam, por conseguinte,os fatores decisivos que impelem a economia capitalista a ultrapassara depressão subseqüente à crise e atravessar, mais uma vez, as fasesde reanimação e auge do ciclo econômico.Observe-se que não há em Marx qualquer referência aos chamadosciclos longos, cuja ocorrência foi primeiro assinalada por Kondratiefe, mais tarde, estudada por Schumpeter e Mandel. Somente os ciclosde escala decenal foram examinados na bibliografia marxiana.A teoria marxiana sobre os ciclos econômicos foi posta em causapor uma corrente, surgida no próprio seio do marxismo no final doséculo passado e celebrizada pela designação pejorativa de “revisionis-MARX57

ta”. Eduard Bernstein, seu líder, argumentou que as crises econômicasvinham se tornando cada vez mais fracas e que o capitalismo já possuíainstrumentos organizacionais (centralização bancária, cartelização, velocidadedas comunicações) que o capacitavam a evitá-las. Contra aargumentação de Bernstein, que propugnava a conquista do socialismopelo caminho das reformas graduais, polemizaram Kautsky e Luxemburgo.Enquanto Kautsky prognosticou um futuro estado final de depressãocrônica para o capitalismo, Luxemburgo desenvolveu a concepçãosobre o subconsumo estrutural inerente ao próprio sistema capitalista,daí inferindo que sua existência dependia do intercâmbiocom um ambiente não-capitalista. Neste ínterim, fora do campo domarxismo, os ciclos econômicos foram estudados por Aftalion e Mitchell,numa época, precisamente, em que o domínio da corrente neoclássicanos meios acadêmicos concedia ao tema atenção negligente, dada apremissa do equilíbrio autocorretivo do emprego dos fatores num mercadoconcorrencial, no qual as crises apenas seriam acidentes de percursodevidas a erros do Estado, dos agentes econômicos etc.A Grande Depressão de 1929-1933 abalou o edifício teórico neoclássico

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e propiciou a eclosão da revolução keynesiana. A idéia (elaborada,de maneira independente, por Keynes e Kalecki) de que as crisespoderiam ser submetidas a certo grau de controle e atenuadas pelaintervenção do Estado burguês representou inovação válida tambémpara a Economia Política marxista. A inovação, surgida de motivaçãoprática, suscitou estudos objetivos dos mecanismos da economia capitalista,os quais produziram aquisições teóricas importantes. Não restadúvida de que partiu de Keynes a inspiração para a reaproximaçãodo pensamento acadêmico à realidade concreta do capitalismo. No campomesmo do marxismo, certas idéias de Keynes reforçaram o enfoquesubconsumista e confluíram para as teses sobre a tendência do capitalismomonopolista à estagnação permanente. Tal é o caso das tesesde Kalecki, Steindl, Baran e Sweezy. Em conseqüência, obscurecia-seou perdia-se a perspectiva do ciclo, na acepção marxiana.Em contrapartida, não faltaram os keynesianos que, inspirados nopróprio mestre, consideraram não só que as crises poderiam ser atenuadaspelo Estado burguês, como seria possível eliminá-las de todo e manterindefinidamente o equilíbrio do pleno emprego nas condições do capitalismo.Embora crítico de Keynes, o marxista inglês Ronald Meek nãodeixou de se contagiar pelo otimismo keynesiano e, no ambiente de prosperidadecapitalista mundial dos anos sessenta, incluiu a tese sobre ainevitabilidade das crises entre os fracassos teóricos de Marx.A crise deflagrada em 1980 fez a economia mundial ingressarnuma depressão (ou recessão) que só cede em gravidade à de 1929-1933.Segundo o Economic Outlook da OCDE (Organização para a Cooperaçãoe o Desenvolvimento Econômico), os 24 países associados, entre osquais figuram os mais avançados do mundo capitalista, registraram,OS ECONOMISTAS58

no segundo semestre de 1982, uma taxa de desemprego de 9,0% daforça de trabalho total, o equivalente, em números absolutos, a 31,75milhões de trabalhadores. Somente nos Estados Unidos, neste mesmoperíodo, o desemprego atingia 10,0% da força de trabalho do país, comcerca de doze milhões de operários fora do trabalho. Já a Inglaterrase destacava, entre os países europeus, precisamente pela magnitudeda desocupação: em janeiro de 1983, registrava 3,2 milhões de desempregados,o equivalente, em termos relativos, a 13,8% da força de trabalhonacional. O aumento extraordinário da capacidade ociosa do aparelhoprodutivo e o desemprego maciço também se alastraram nos paísescapitalistas recém-desenvolvidos, como o Brasil, e nos países subdesenvolvidosem geral.O otimismo keynesiano foi, portanto, dissolvido pelos fatos, emboranão se deva subestimar, mesmo nas condições atuais, a eficáciade alguns instrumentos anticíclicos idealizados por Keynes e sua escola.Eficácia cuja confiabilidade, seja notado, ficou diminuída nos círculosda burguesia diante da propensão das práticas keynesianas a provocarefeitos estatizantes e inflacionários cumulativos. O que explica, decerto,o prestígio conquistado pela escola monetarista de Friedman com suaproposta de um neoliberalismo econômico.Seja como for, a evidência fatual do segundo pós-guerra veio confirmaro acerto da teoria de Marx sobre os ciclos e as crises na economiacapitalista. O movimento do modo de produção capitalista continua aser não só prosperidade, nem só depressão, mas a alternância de umaa outra. Alternância bastante irregular na etapa do capital monopolista,porém tão inevitável quanto na etapa precedente. Em especial, comprovou-o a situação da Inglaterra, num cabal desmentido ao prognósticofeito por Meek, em 1967.A lei da queda tendencial da taxa de lucroOs capítulos XIII, XIV e XV do Livro Terceiro podem ser consideradosa súmula conclusiva de O Capital. A aplicação da lógica dialéticaalcança ali raras culminâncias e desvela o complexo de antagonismosque constituem a dinâmica mais profunda do modo de produçãocapitalista, ao mesmo tempo impelindo-o a desenvolver as forças produtivase a engendrar, ele próprio, o limite da sua existência histórica.A queda da taxa de lucro já fora constatada por Smith, que ainferiu da queda da taxa de juros, acerca da qual os dados estatísticoseram, então, quase os únicos confiáveis e acessíveis. Smith explicou ofenômeno pela concorrência entre os capitais cada vez mais acumulados.

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A concorrência impelia os salários para cima e induzia a baixa da taxade lucros. Mas esta baixa não foi vista sob uma perspectiva sombria.Na época da Revolução Industrial, difundiu-se na Inglaterra a alegaçãoideológica acerca da vantagem dos lucros baixos, mas abundantes eregulares, com o que se beneficiariam os capitalistas e toda a sociedade.MARX59

A visão de Ricardo foi bem diversa. Em primeiro lugar, baseousua explicação sobre a queda da taxa de lucros na lei dos rendimentosdecrescentes na agricultura. Uma vez que a produção agrícola sempreatinge um ponto em que não satisfaz a demanda, a agricultura é obrigadaa deslocar-se para terrenos cada vez menos férteis e distantesdos centros de consumo. Em conseqüência, decaem os rendimentos daterra, aumenta a quantidade de renda diferencial apropriada pela ociosaclasse dos landlords, enquanto sobem os preços dos gêneros alimentícios,provocando, por sua vez, a elevação dos salários nominais. Oresultado é que a taxa de lucro se vê cada vez mais comprimida, atéque o sistema tomba num estado estacionário. Com essa explicação,Ricardo fornecia à burguesia industrial um argumento teórico para aluta contra as Corn Laws, que impediam a importação de trigo e obarateamento dos salários nominais. No mesmo passo, não deixava deintuir um possível limite ao desenvolvimento do capitalismo.Quando abordou a questão, Marx se desfez do simplismo de Smithe rejeitou a explicação ricardiana. Argumentando que esta última relacionavaum fato social (a queda da taxa de lucro) a uma causa natural(o limite de fertilidade das terras cultiváveis), Marx elaborou sua própriateoria da renda capitalista da terra, que se opõe à lei ricardianados rendimentos decrescentes. Além de afirmar a existência da rendaabsoluta — paga pelo arrendamento da pior terra em cultivo — e nãosó da renda diferencial (a única admitida por Ricardo), Marx procuroudemonstrar que, teórica e empiricamente, não era obrigatória a passagemdo cultivo de terrenos mais férteis a terrenos menos férteis.Em vários casos, dava-se o contrário, o que anulava a suposta lei dosrendimentos decrescentes. A teoria marxiana da renda da terra, nofinal do Livro Terceiro, constitui construção de grande complexidadee para ela chamamos a atenção, dado não caber aqui uma digressãoespecial a respeito.A explicação marxiana acerca da queda histórica da taxa de lucrorepresenta inferência lógica da sua teoria do valor, da mais-valia e dacomposição orgânica do capital. Embora a taxa de lucro seja a relaçãodo lucro com o capital total (soma, por sua vez, do capital constantee do capital variável), o próprio lucro só é criado pelo capital variável.Assim, com a mesma taxa de mais-valia, a redução do coeficiente docapital variável no capital total teria forçosamente de importar numaqueda da taxa de lucro. Ora, a tendência histórica do capitalismo consiste,precisamente, na elevação da composição orgânica, ou seja, naelevação do coeficiente do capital constante no capital global. Tal elevaçãoexpressa, de uma parte, o resultado da tendência à valorizaçãoe à acumulação, imperativa para o capital; de outra parte, expressa ocrescimento da produtividade do trabalho, cujos índices principais sãoo aumento da massa e do valor dos meios de produção por trabalhadorocupado e a redução do valor por unidade de produto. Ao mesmo tempo,OS ECONOMISTAS60

o trabalho vivo por unidade de produto representa proporção cada vezmenor em confronto com o trabalho morto (correspondente à transferênciado valor dos meios de produção gastos na fabricação do produto).Não havia, portanto, dificuldade lógica na explicação da quedada taxa geral de lucro. A dificuldade advinha do seu movimento muitolento e dos seus efeitos perceptíveis tão-somente a longo prazo.É que a mesma elevação da composição orgânica do capital, conducenteà queda da taxa de lucro, também traz consigo efeitos contráriosa esta queda, atenuando-a ou até aumentando a taxa de lucro durantecertos prazos mais ou menos prolongados. Tais efeitos decorrem docrescimento da produtividade do trabalho e consistem:a) no barateamento dos elementos do capital constante — sejam osdo capital fixo, sejam os do capital circulante —, o que baixa a composiçãoorgânica do capital e, por conseguinte, eleva a taxa de lucro;

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b) no barateamento dos bens-salário, o que diminui o tempo detrabalho necessário e, com a mesma jornada de trabalho, aumenta otempo de sobretrabalho, resultando na criação de mais-valia relativa,no aumento da taxa de mais-valia e, por conseguinte, no aumento dataxa de lucro.Oriundos da própria lei, estes efeitos dão à queda da taxa delucro seu caráter tendencial irregular. Mas são efeitos limitados emsua contraposição à queda da taxa de lucro. O barateamento dos elementosdo capital constante, além de depender, em alguma medida,da disponibilidade de recursos naturais, conduz ao recrudescimento daacumulação do capital, da qual, por sua vez, procede nova elevação dacomposição orgânica, embora cresça mais depressa a massa física demeios de produção por operário do que o valor neles incorporado. Quantoà criação de mais-valia relativa, esta tem limite absoluto insuperávelno dia de 24 horas, ainda que o tempo de trabalho necessário se reduzissea zero.Marx aduziu outros fatores que, sem serem consubstanciais à atuaçãoda lei, também contribuíam para atenuar ou deter temporariamentea queda da taxa de lucro. Um deles é o comércio exterior, que permiteobter bens de produção e/ou bens-salário mais baratos, coincidindo, portanto,com os efeitos apontados acima. O outro fator é a exportação decapitais aos países atrasados, onde a taxa de lucro costuma ser maiselevada, motivo por que os lucros dos investimentos no exterior impelempara cima a taxa de lucro no país exportador de capitais.A esta altura, referindo-se à superacumulação de capital, Marxcriou o conceito de capital excedente, ou seja, daquela porção de capitalcuja aplicação não traz nenhum acréscimo à massa de lucro produzidapelo capital já em função (o raciocínio tem feição notavelmente marginalista)e, em conseqüência, permanece ocioso ou é exportado. Aoextrair inferências teóricas de um fenômeno — a exportação de capitais— à sua época embrionário, mas cujas proporções viriam a ser gigan-MARX61

tescas a partir do final do século XIX, Marx fez da lei da queda tendencialda taxa de lucro, por antecipação, o princípio explicativo maisprofundo da etapa imperialista do capitalismo.Por fim, embora não se relacione diretamente com as crises cíclicas,estas produzem efeito oposto à atuação da lei. A desvalorizaçãoperiódica do capital, ocorrente em cada crise cíclica, empurra parabaixo, durante certo lapso de tempo, a composição orgânica e eleva ataxa de lucro, permitindo, conforme já visto, o decurso de novo cicloeconômico.A lei da queda tendencial da taxa de lucro, como escreveu Marx,é uma faca de dois gumes. Manifesta o impulso do capital à expansãosem consideração de outros limites que não o da própria valorização,com isto obrigando-o a desenvolver as forças produtivas. Embora tenhamdiminuída sua taxa, os lucros aumentam na sua massa à medidaque avança a acumulação de capital, o que, por sua vez, incrementaainda mais esta acumulação. Mas a queda da taxa de lucro indica quea direção social da riqueza pelo capital se detém nele próprio e que oregime capitalista de produção não constitui a forma absoluta, porémhistoricamente transitória, da organização produtiva.Dada sua posição crucial no sistema teórico de O Capital, não éde surpreender que a lei da queda tendencial da taxa de lucro viriaa figurar entre as questões mais controversas. Em oposição à correnterevisionista, partidária da evolução gradual do capitalismo, surgiu, nocampo marxista, um grupo de autores que interpretou o texto de Marxno sentido da afirmação da derrocada do capitalismo por força de mecanismospuramente econômicos. Entre tais mecanismos, a queda dataxa de lucro devia ganhar especial relevo. Nos debates sobre a derrocadado capitalismo, Henryk Grossmann expôs um modelo matemáticosegundo o qual, após 35 ciclos, a taxa de lucro chegaria ao pontoem que a acumulação se tornaria insustentável, impedindo o prolongamentoda existência do capitalismo.O próprio Marx imaginou, nos Grundrisse, que o capitalismo alcançariauma composição orgânica do capital tão elevada quando o trabalhovivo adicionado, por suas proporções insignificantes, tornaria inviável aaplicação da medida do valor. Tratava-se aí, não obstante, de extrapolação

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especulativa e, em O Capital, a lei da queda tendencial da taxa de lucroatua como contradição do desenvolvimento do capitalismo e não comomecanismo automático de sua derrocada. Na concepção marxiana, o surgimentodo socialismo exige a ação política revolucionária dos operários,cujo êxito, isto sim, será sempre condicionado pelo desenvolvimento dosfatores econômicos e pelo aguçamento das contradições do sistema capitalista,em todas as instâncias da vida social.Se alguns marxistas identificaram na lei da queda tendencial dataxa de lucro o mecanismo automático da derrocada do capitalismo,outros puseram-na em dúvida ou a rejeitaram de todo. Steindl cercou-aOS ECONOMISTAS62

de restrições que a tornam inoperante e, portanto, negligenciável. JáSweezy e Baran afirmaram que a lei teria sua razão de ser na etapaconcorrencial do capitalismo, porém deixaria de atuar na etapa monopolista,uma vez que nesta prevaleceria a tendência à elevação da taxade lucro. Tal afirmação parecia tanto mais persuasiva quanto, entreos anos vinte e cinqüenta do século atual, a implementação de umpacote de grandes invenções técnicas e a situação defensiva da classeoperária produziram, simultaneamente, o barateamento dos elementosdo capital constante e a elevação da taxa de mais-valia. Em conseqüência,subiu, de fato, a taxa de lucro nos Estados Unidos, duranteos anos quarenta.A contra-argumentação, segundo a qual a lei atua pelos efeitosopostos à queda da taxa de lucro que ela mesma suscita (imperialismo,armamentismo, inflação etc.), deve ser levada em conta, uma vez quese evidencia entre tais efeitos e a atuação da lei uma conexão dialética.Acontece que, por exigência da metodologia dialético-materialista, nenhumademonstração lógica dispensa a comprovação empírica a fimde alcançar o grau de suficiente convicção. Assim, o problema consistena evidência empírica confirmadora de que, apesar da atuação lentae irregular, a lei tem conduzido a um declínio secular da taxa de lucro.É por demais conhecido o fato de que as taxas de lucro, em paísescomo Inglaterra, França, Alemanha e outros, foram consideravelmentemais altas na etapa inicial do capitalismo do que na sua etapa de“maturidade”. Ainda hoje, é possível observar que as taxas de lucrosão mais altas nos países atrasados do que nos países avançados, oque, precisamente, atrai a exportação de capitais dos últimos aos primeiros.Ora, não é difícil verificar que, nos países atrasados, a composiçãoorgânica do capital é mais baixa do que nos países avançados.Resta, apesar disto, a tese de Sweezy e Baran acerca da cessaçãoda lei nas condições de domínio do capital monopolista. A este respeito,apresentamos aqui algumas evidências sumárias em sentido contrário.A primeira diz respeito à refutação de Mandel por Rowthorn. Apoiadona série histórica da relação capital/produto elaborada por Kuznetspara o período 1880-1948, nos Estados Unidos, Rowthorn concluiu que,ao contrário do suposto por Mandel, a composição orgânica do capitalvem caindo. Sucede que, na relação capital/produto, o termo capital ésomente capital fixo, não incluindo o capital circulante também componentedo capital constante. Ora, a redução do valor e mesmo damassa do capital fixo nada nos diz acerca do valor e da massa docapital circulante (matérias-primas e matérias auxiliares) correspondentesà operação desse mesmo capital fixo. A tendência tecnológicapredominante atua, no entanto, no sentido da operação de quantidadescrescentes de matérias-primas por unidade de capital fixo.De tal ponto de vista, observa-se que, na indústria de transformaçãodos Estados Unidos, segundo dados do Joint Economic Com-MARX63

mittee, o produto por homem-hora de trabalho considerando 1947-1949= 100, subiu de 35,4, em 1909, para 99,8, em 1948 (último ano dasérie de Kuznets). Em 1956, o produto por homem-hora já alcançavao índice de 138,5, ou seja, uma elevação de quase quatro vezes, entre1909 e 1956. Concomitantemente, os salários nominais por unidadede produto tiveram elevação bem menor: 44,4, em 1909; 102,0, em1948; e 112,0, em 1956. (v. The Economic Almanac — 1958, NovaYork, Thomas Y. Crowell Comp., p. 191). Tais cifras demonstram oaumento da produtividade do trabalho na indústria norte-americana

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e também, de maneira inequívoca, a elevação da composição orgânicado capital.A elevação da composição orgânica se patenteia, igualmente, nasérie histórica apresentada por Paul Bairoch. Em dólares de 1929, ocapital por operário, na indústria de transformação dos Estados Unidos,evoluiu da seguinte maneira: 1879 — US$ 1 764; 1889 — US$ 2 702;1899 — US$ 3 655; 1909 — US$ 5 040; 1929 — US$ 7 530; 1948 —US$ 6 543; 1953 — US$ 7 859.Cabe, todavia, indagar: correlaciona-se esta elevação da composiçãodo capital com a queda da taxa de lucro?A tal indagação respondem os resultados da pesquisa de C. Goux,precisamente abrangente do período mais recente e concernente àssociedades anônimas financeiras e não-financeiras dos Estados Unidos(o que permite levar em conta o total da mais-valia sob as modalidadesde lucro industrial, lucro comercial e juros). Confirmando a lei tendencialdescoberta por Marx, a referida pesquisa constatou a seguinteevolução da taxa de lucro: 1946 — 11,6%; 1950 — 12,9%; 1960 —8,3%; 1970 — 6,3%; 1976 — 6,6%.Concorrência e monopólioA idéia de um capital único é uma contradição em termos, umanegação lógico-formal do conceito de capital. Por conseguinte, uma utopia.O capital existe somente enquanto multiplicidade de capitais individuaisconcorrentes.Segue-se daí a essencialidade da concorrência para o modo deprodução capitalista. Embora, conforme já vimos, os capitais individuaisdevam atuar com a natureza de capital social total no processo decirculação e reprodução, esses mesmos capitais individuais só circulame se reproduzem em incessante concorrência recíproca. Sem considerartal concorrência, a dinâmica do capitalismo e suas leis se tornariamincompreensíveis.Não obstante, a concorrência não constituiu objeto de uma teoriaespecial na obra de Marx, mas foi analisada em conexão com a explicaçãodos processos gerais do sistema capitalista. Apesar disso, as numerosasreferências a respeito deixaram esclarecido o que Marx entendia por concorrência,na época anterior ao domínio do capital monopolista.OS ECONOMISTAS64

A concepção marxiana nada tem de assemelhado com a concorrência“pura” ou “perfeita”, postulado da escola neoclássica submetidoà crítica de Sraffa, Robinson e Chamberlin. Na concepção marxiana,a condição suficiente da concorrência consiste na generalidade de plantasde dimensões acessíveis a numerosos capitais nos vários ramos daprodução, de maneira a possibilitar sua mobilidade entre esses ramos.Implícita a esta condição, figura a tecnologia básica também difundidae acessível. Em semelhante situação, o tamanho da planta não constituiuma “barreira à entrada” que impeça a concorrência. Os monopólioseram casos de exceção, devendo-se, àquela época, quase sempre a circunstânciasnaturais ou institucionais.Ao mesmo tempo, Marx entendia a concorrência capitalista comoluta de vida e morte, que elimina os mais fracos e conduz ao estreitamentodo círculo de capitais individuais em operação. Observou, porisso, que, no caso de domínio de certo setor por empresas de grandesdimensões, não restava aos capitais incapazes de se alçar àquelas dimensõessenão servir às empresas já operantes através do sistema decrédito, sob a forma de depósitos, ou através da participação acionárianas sociedades anônimas.Numa época em que os fundadores do marginalismo trabalhavamcom a idéia da manutenção inalterável da concorrência pura, Marxpreviu, com inteira clareza, a tendência da transição inevitável daconcorrência ao monopólio. Tendência que deduziu do curso da acumulaçãocapitalista por meio de dois processos principais: o da concentraçãoe o da centralização dos capitais. No primeiro processo, certoscapitais individuais se incrementam mais depressa pelo ganho de superlucrose pela reprodução ampliada em condições mais favoráveis.No segundo processo, as empresas melhor sucedidas na competiçãoabsorvem suas concorrentes, o que ocorre com maior frequência nasfases de crise e depressão do ciclo econômico. Ademais, o processo decentralização encontra nas sociedades anônimas formidável mecanismo

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propulsor, que potencia capitais dispersos e faz avançar a socializaçãodas forças produtivas ainda dentro do envoltório capitalista.A própria dinâmica da concorrência capitalista conduz ao monopólio,sob cujo domínio o capitalismo se tornaria um entrave cada vez menostolerável ao desenvolvimento das forças produtivas. Por conseguinte, jáem O Capital se expõe o fundamento teórico para o enfoque da etapamonopolista do capitalismo, que iria adquirir configuração concreta nofinal do século XIX. Além de Hobson, fora do campo do marxismo, Hilferding,Luxemburgo, Bukharin e Lênin inauguraram o estudo da etapamonopolista nas suas obras, que lançaram as bases da teoria do imperialismo.A concorrência capitalista não desapareceu, em absoluto, sob oimperialismo, mas passou a se travar através de processos peculiares, àsvezes ainda mais violentos, no terreno dos oligopólios.Com a teoria do imperialismo, desenvolveu-se, no âmbito do mar-MARX65

xismo, o estudo do capitalismo enquanto sistema mundial que incluia exploração colonialista, tema apreciado pelo próprio Marx somenteem passagens dispersas. Uma vez que a acelerada internacionalizaçãodas forças produtivas e a proliferação das firmas multinacionais, nosegundo pós-guerra, reforçaram as características que fazem do capitalismoum sistema mundial, o estudo do tema incluiu-se entre aspropriedades dos pesquisadores marxistas.Marx escreveu O Capital na Inglaterra e tomando este país comocampo preferencial de observação empírica. Mas a estrutura lógica,que deu à obra, tornou-a instrumento teórico válido para o estudo docapitalismo em quaisquer países e circunstâncias concretas, sob a condiçãode não se perder de vista a relação entre os procedimentos lógicoe histórico de abordagem científica, imposta pela metodologia dialéticomaterialista.Se o modo de produção capitalista possui as mesmas categoriase leis em toda parte, o curso do desenvolvimento capitalistanão pode deixar de se diferenciar conforme a acumulação origináriado capital se tenha efetivado a partir do feudalismo, como na Europa,ou a partir do escravismo colonial, como no Brasil.Jacob Gorender