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Os efeitos da Revolução de São Domingos em relação ao abolicionismo anglo-
americano e à segunda escravidão (1789-1815).
Amanda Bastos da Silva1
Resumo: Em finais do século XVIII, São Domingos foi alcunhada de “pérola das Antilhas”.
Tratava-se da colônia mais lucrativa e cobiçada. No entanto, treze anos de movimento
revolucionário devastaram a região e trouxeram à tona novas questões. O abolicionismo
ganhou força e culminou na lei britânica de fim do tráfico de 1807. Em paralelo, a segunda
escravidão se estruturou e Cuba, até então com pouca evidência, ascendeu ao longo do século
XIX. Dois grupos de fontes se tornam centrais à pesquisa, as obras do soldado britânico
Marcus Rainsford e os livros do francês Jean Louis Dubroca.
Palavras-chave: São Domingos. Abolicionismo. Segunda escravidão. Colonialismo.
Imagens.
Abstract: In the late eighteenth century, St. Domingue was nicknamed "pearl of the Antilles".
It was the most lucrative and coveted colony. Nevertheless, thirteen years of revolutionary
movement devastated the region and raised new questions. Abolitionism gained momentum
and culminated in the British End of Trafficking Act of 1807. In parallel, the second slavery
was structured and Cuba, until then with little evidence, ascended throughout the nineteenth
century. Two groups of sources become central to the research. The British soldier works
Marcus Rainsford and the books of the Frenchman Jean Louis Dubroca.
Key-words: Saint Domingue. Abolitionism. Second slavery. Colonialism. Pictures.
1. O Atlântico integrado:
O período compreendido entre os séculos XVI e XIX comportou a maior experiência
escravista da história da humanidade. Tratava-se de uma estrutura inédita, altamente
comercial e comprometida em promover a exploração de milhões de africanos pelas
Américas. Ainda assim, a escravidão não era um sistema uniforme e o mundo atlântico
vivenciou um desenvolvimento desigual. E combinado2.
O Atlântico não deve ser reduzido a um conjunto de regiões distintas entre si. O
historiador Dale Tomich acentua que a fim de evitar o determinismo geográfico, muitos
1 Amanda Bastos da Silva, mestranda PPGH/UFF. E-mail: [email protected]
2 BLACKBURN, Robin. A construção do escravismo no Novo Mundo. Rio de Janeiro: Record, 2003. p. 4.
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pesquisadores esquivam-se de abordar o Atlântico como espaço histórico-social e considerá-
lo uma unidade de análise. Nesse ponto de vista, as fronteiras dos impérios se convertem em
mundos separados: britânico, holandês, espanhol, francês e português. Todos são tratados
como espaço fechado, coerente e de história própria3. Tomich se propõe a ponderar sobre a
questão e utiliza como base o conceito de “economia-mundo capitalista”. Em sua
argumentação, o Atlântico passa a ser tratado na sua singularidade e associado a um horizonte
maior de relações4.
Nesse contexto, Robin Blackburn acentua que a necessidade de açúcar em Londres ou
Amsterdã culminou em plantações nas Américas. Como Europa não dominava essas técnicas
agrícolas, precisou aprender o assunto com terceiros. Os empréstimos vieram acompanhados
de inovações, adaptações e se converteram em novas instituições e práticas sociais. A
colonização combinou negócios europeus e agricultura africana, processos americanos e
orientais, patrimonialismo tradicional e propriedade individual5. Essa rede exigia relações
imbricadas e organização extrema. Eram necessários planejamentos, controle dos gastos e a
garantia de que conseguiriam conter os riscos e cobrir os prejuízos6.
O escravismo do Novo Mundo apreendeu modelos da Antiguidade, mas de muitas
maneiras, se mostrou compatível à Era Moderna. Utilizou o transporte marítimo em grande
escala e antecipou os formatos modernos de consumo. “A ligação entre modernidade e
escravidão nos dá boas razões para estarmos em atenção ao lado obscuro do progresso.
Poderes sociais modernos - como agora temos muitas razões para saber - podem conduzir a
fins altamente destrutivos e desumanos” 7.
No tocante à pesquisa, o caso caribenho é de extrema importância. O Caribe colonial
possui simultaneamente a unidade e a diversidade atreladas à sua estrutura. Trata-se de uma
região heterogênea e vinculada a múltiplos grupos sociais, línguas, culturas, divisões políticas
e possibilidades econômicas. Essa complexidade foi acentuada quando a escravidão, o
colonialismo e o sistema de plantation impuseram uma unidade ao espaço. Invariavelmente, o
Caribe estava resignado ao sistema europeu e atrelado à desigualdade racial: Espanha,
Holanda, Grã-Bretanha e França, impuseram um preceito agrícola e, em grande medida,
açucareiro8. No entanto, a sua história vai além desse modelo.
3 TOMICH, Dale. O Atlântico como espaço histórico. Estudos Afro-Asiáticos, v. 26, n. 2, p. 221-240, mai./ago.
2004. 4 Ibidem. p. 224-225.
5 BLACKBURN, Robin. Op. Cit. p. 17.
6 BLACKBURN, Robin. Op. Cit. p. 4.
7 BLACKBURN, Robin. Op. Cit. p. 6.
8 TOMICH, Dale. Pelo prisma da escravidão. São Paulo: Edusp, 2011. p. 96.
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A começar, mesmo com a predominância do açúcar, outras matérias-primas
emergiram, por exemplo, o café e o tabaco. Além disso, em meio ao escravismo, pequenos
plantadores ascendiam e grupos escravos se rebelavam. Finalmente, a despeito das
imposições culturais europeias, negros desenvolviam e consolidavam expressões artísticas,
sentimentos religiosos e variações linguísticas9. Compreender o Caribe como um todo ou
apurar alguma de suas regiões, significa desvendar essas múltiplas camadas. Ou seja,
esmiuçar quebra de padrões; conceber temporalidades históricas diferenciadas e estruturar as
relações entre o Caribe, as demais colônias Atlânticas e as suas respectivas metrópoles
europeias10
.
Essa pesquisa se propõe a apreender a complexidade caribenha através de alguns
pontos específicos. No final do século XVIII, São Domingos era a região mais próspera do
Novo Mundo e atrelava-se aos interesses da sua metrópole, a França, mas também Inglaterra e
Espanha. Apesar de subjugada, a colônia estava em constante busca por autonomia.
Participou de uma intensa troca de influências com as colônias vizinhas - o artigo enfatizará o
caso cubano -, produziu manifestos coloniais contra as imposições metropolitanas e
consolidou a principal revolução escrava da história da humanidade.
2. A colônia de São Domingos: tão afortunada quanto revolucionária.
São Domingos é comumente definido como a colônia mais bem-sucedida do século
XVIII, a “pérola das Antilhas”. Os adjetivos não são gratuitos. O antropólogo Sidney Mintz
acentua que a região estruturou o mais diversificado, tecnológico, avançado e bem fortificado
sistema escravista do Novo Mundo11
. Foram pioneiros na produção de café, melhoraram a
cana usada para fazer o açúcar e desenvolveram um elaborado sistema de irrigação. Sozinho,
São Domingos lucrava mais que todas as outras colônias juntas da metrópole francesa12
. Em
1789, alvorecer da Revolução Francesa, São Domingos representava dois terços do comércio
da França com o exterior e se tratava da principal entrada do tráfico de escravos europeu. A
quantidade de africanos que desembarcou na região é enorme. Em 1720, 47 mil; em 1730, 80
mil, de forma que em 1789 existiam mais de 400 mil escravos na colônia13
.
Elevados números não vieram sem intensa exploração. O trabalho em São Domingos
começava muito cedo, ainda na madrugada. Às 8h havia um breve café da manhã e então
9 Ibidem. p. 96.
10 Ibidem. p. 96.
11 MINTZ, Sidney. Caribbean transformations. New York: Columbia University Press, 1989.
12VIANA, Larissa; SECRETO, María Verónica; ALADRÉN, Gabriel (Org). História da América II. Rio de
Janeiro: Fundação Cecierj. 2011. p. 90. 13
BLACKBURN, Robin. Op. Cit. p. 235.
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seguiam trabalhando até o meio dia. Às 14h retomavam e iam até as 22h, às vezes 23h14
.
Dormiam em cabanas com aproximadamente 06 metros de comprimento por 03 de largura e
3,5 de altura. O solo era de terra batida e as paredes de palha. Não havia janelas. Nesse espaço
moravam famílias inteiras. C. L. R James ressalta que precisavam conviver com o medo, o
excesso de trabalho e a desnutrição. Alguns cultivavam galinha e vegetais para trocar por
outras mercadorias e, em casos excepcionais, conseguiam juntar dinheiro suficiente para
comprar a própria liberdade15
.
Nesse contexto, os castigos eram intensos, as chicotadas frequentes e a mutilação
costumeira. A depressão e o suicídio eram habituais, bem como o ódio pelo seu senhor. À
noite, celebravam o vodu e cantavam a sua canção favorita: “Juramos destruir aos brancos de
todas as suas possessões, melhor morrer do que faltar a esse juramento” 16
. De acordo com
Gèrdes Fleurant, o vodu é uma prática religiosa que sintetiza elementos das culturas Ewe-fone
Ioruba. Ele esteve presente na África antes do tráfico atlântico e o termo deriva da palavra
“deus”. A religião se tornou uma forma de oposição ao regime escravista e a religião oficial17
.
Em 1789, a França deu início ao seu movimento revolucionário. O processo findou um
sistema absolutista de mais de mil anos, condenou o privilégio de alguns estamentos, como a
nobreza e o clero, e se tornou o marco de passagem da Idade Moderna para a
Contemporânea18
. Ainda assim, o evidente paradoxo entre os ideais de igualdade, liberdade e
fraternidade pregados na Europa e a manutenção da escravatura nas colônias foi, ao menos
inicialmente, ignorado pela França.
São Domingos possuía as pré-condições para uma revolta e era natural que odiassem
os seus senhores e desejassem destruí-los. Sobre essa conjuntura, Eugene Genovese sublinha
que os negros de São Domingos não precisavam dos jacobinos brancos de Paris para lutar
pela liberdade, bem como os brancos não aprenderam com os negros sobre a igualdade. Mas,
ao mesmo tempo, esse ideal revolucionário se consolidou nos dois lados do Atlântico19
.
Em agosto de 1791, alguns negros de São Domingos se reuniram na floresta de Bois
Caïman. Os escravos atravessaram a ilha, viajaram quilômetros e apesar dos impedimentos,
dançaram, cantaram, praticaram o vodu e... Conspiraram. Um dos primeiros líderes foi Dutty
Boukman, um sacerdote negro, e os relatos destacam que ele estava inspirado. Falou sobre
14
JAMES, C.L.R. Os jacobinos Negros. São Paulo: Editora Boitempo, 1938. p. 27. 15
Ibidem. p. 28. 16
No original, “Eh! Eh! Bomba! Heu! Heu! Canga! Bafio té! Canga, mouné de lé! Canga, do ki la Canga, li”.
Tradução: ibidem. p. 33. 17
FLEURANT, Gèrdes. Dancing Spirits. Rhythms and Rituals of the Haitian Vodun, the Rada Rite. Westport,
Connecticut: Greenwood Press. 1996. p. 209. 18
VOVELLE, Michel. Breve História da Revolução francesa. Lisboa: Ed. Presença, 1994. 19
GENOVESE, Eugene. Da rebelião à Revolução. São Paulo: Global Editora, 1983. p. 88.
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deus e vingança, enfatizou a necessidade de serem livres e respeitarem as tradições20
. O plano
possuía uma dimensão grandiosa, havia pelo menos 12 mil escravos em Le Cap, e o objetivo
era o extermínio dos brancos21
.
De início, essas lutas não almejavam separar a metrópole da colônia, mas nem por isso
eram menos políticas. Segundo a filósofa política Hannah Arendt as revoluções são mais que
meras mudanças ou acontecimentos violentos. Elas ocorrem quando a população deixa de
acreditar que a pobreza lhes é inerente. Começam a duvidar das distinções sociais e passam a
perceber que o modo em que vivem não precisa ser inevitável ou eterno22
. Na mesma linha, o
historiador Valério Arcary sublinha que uma revolução se estrutura quando pessoas, até então
indiferentes ao coletivo, despertam à luta política. São processos que acontecem com alguma
raridade. As massas oprimidas reclamam e até resistem, mas hesitam em acreditar. Estão
atreladas ao medo, receosas às represálias dos poderosos23
. Vez ou outra insistem e
desenvolvem movimentos de participação popular “tão ou mais autênticos, verdadeiros e
representativos que eleições” 24
.
A Revolução de São Domingos não possui precedência. Acentuou as tensões
iluminismo, inverteu os princípios dos Direitos do Homem e redefiniu o significado de
liberdade. A luta pela emancipação e autonomia distinguiu o conflito não só de outros
burgueses, mas também de todas as outras revoltas e rebeliões escravas25
. Trata-se da primeira
grande quebra da escravidão, que culminou na primeira república formada por ex-escravos, a
segunda do Novo Mundo e a terceira da História, até aquele momento.
O antropólogo Michel Trouillot considera que alguns meses antes da revolução ter
início, um colono francês afirmou a sua esposa que os negros jamais seriam capazes de se
rebelar. Eram muito obedientes e submissos26
. Quando as primeiras notícias do movimento
chegaram à Europa a principal reação foi à descrença: o que estava sendo dito deveria ser
falso. A revolução haitiana, por muito tempo significou pensar o impensável e foi a partir dela
que muitos repaginaram as análises sobre o conceito de raça, a escravidão nas Américas e o
colonialismo27
.
20
FERRER, Ada. Freedom’s mirror: Cuba and Haiti in the Age of Revolution. New York: Cambridge
University Prress, 2014. p. 17. 21
JAMES, CLR. Op. Cit. p. 91. 22
ARENDT, Hannah. Da revolução. São Paulo: Editora Ática, 1990. p.17. 23
ARCARY, Valério. O que é uma revolução? In: Revista Dialetus, v. 2, n.5, p. 51-63, ago./dez. 2014. 24
Ibidem. p. 55. 25
FICK, Carolyn. Para uma (re)definição de liberdade: a Revolução no Haiti e os paradigmas da Liberdade e
Igualdade. In: Estudos Afro-Asiáticos. v. 26, n. 2, p. 359-361, mai./ago. 2004 26
TROUILLOT, Michel-Rolph. Power and the Production of History. Boston: Beacon Press, 1995. p. 72. 27
Ibidem. p. 72.
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As notícias chegaram à França por meio de um embaixador inglês. Apesar do
sentimento catatônico, seis mil franceses, quatro mil da guarda nacional e dois mil de tropas
regulares, saíram da França para São Domingos a fim de acabar com a revolução28
. Os
comissários eram Sonthonax, Polverel e Aihaud. Pouco depois, Laveaux uniu-se a eles29
.
Além disso, diversas medidas foram tomadas. Em abril de 1792, a França decretou igualdade
entre homens livres de todas as cores. Em agosto de 1793, comissários coloniais
estabeleceram o fim da escravidão em São Domingos. Pouco depois a metrópole fez o mesmo
e afirmou que todos os homens que viviam nas colônias, independente da cor, eram cidadãos
franceses. De início a lei se aplicava a São Domingos, mas em 1795 a Convenção estendeu o
decreto a todo o território francês30
A França acreditava que conseguiria atrair os negros e afastá-los de invasores. As
medidas eram um avanço, mas também uma tentativa de subjugar os rebeldes e mantê-los
contidos até que a revolução se esvaísse. Em 1802, Napoleão Bonaparte desistiu da iniciativa,
retomou a escravidão nas colônias e recrudesceu o ataque a São Domingos. Apesar de uma
estratégia bem planejada, Bonaparte não saiu vitorioso e em 01 de janeiro de 1804 São
Domingos se converteu no independente Haiti. O processo atraiu a atenção de inúmeros
indivíduos e gerou diversos pontos-de-vista. Nesse contexto, o artigo analisará as abordagens
do britânico Marcus Rainsford e do francês Jean Louis Dubroca. À primeira vista opostos, de
vez em quando complementares.
3. O abolicionismo em Marcus Rainsford:
Em 1798, os britânicos foram expulsos de São Domingos. A medida ambicionava
trazer o controle total da ilha aos negros e causou certo impacto. Pouco depois, o soldado
britânico Marcus Rainsford desembarcou na colônia. Precisou fingir ser americano para que
pudesse transitar pela região e durante um tempo foi bem-sucedido. Nos anos seguintes
publicou dois livros sobre a viagem: A memoir of transactions that took place in St. Domingo,
in the spring, de 1802 e An historical account of the Black empire of Hayti: comprehending a
view of the principal transactions in the revolution of Saint Domingo, de 1805.
O primeiro se constitui de um relato pessoal de 31 páginas sobre a estadia de Marcus
Rainsford em São Domingos. Em seu texto, Rainsford trata a si mesmo como um simples
28
DRESCHER, Seymour. Abolição: uma história da escravidão e do antiescravismo. São Paulo: Unesp, 2011.
p. 161. 29
DRESCHER, Seymour. Op. Cit. p. 161. 30
BLACKBURN, Robin. The American Crucible: Slavery, Emancipation And Human Rights. New York: Verso,
2007. p. 161.
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soldado disposto a desmistificar São Domingos e combater preconceitos31
. De acordo com
Rainsford, falava-se sobre São Domingos: muitos alarmes, conjecturas e crises de ansiedade.
O autor se sentia no dever moral de negar essas questões. O movimento era legítimo e não
existiam razões para a Grã Bretanha se sentir temerosa.
Apesar de os negros no geral causarem boa impressão ao soldado, o maior responsável
pelas benesses de São Domingos foi o líder revolucionário Toussaint Louverture. Tratava-se
de um indivíduo letrado, convertido ao catolicismo e integrado ao militarismo. Em meio à
destruição da guerra, Toussaint brilhava e conduzia negros e estrangeiros com perspicácia.
Em certo momento, Rainsford teve a oportunidade de jantar com Toussaint e o britânico
enfatiza que Louverture esbanjou humildade e fez questão de não sentar à cabeceira da
mesa32
.
No entanto, após três semanas na ilha, Rainsford foi descoberto. Faltavam passaportes
e outros documentos que comprovassem a sua nacionalidade. Depois de um rápido
julgamento, o britânico foi condenado à morte; acusaram-no de ser espião. Contudo, em uma
virada na história, Toussaint em pessoa decidiu dar uma segunda chance à Rainsford. Anulou
a pena de morte e determinou que o soldado não voltasse à ilha sem os papeis necessários33
.
Rainsford estava salvo. Toussaint reafirmara a sua grandiosidade. Havia a necessidade de um
segundo livro.
Para o autor, essa segunda obra era indispensável. Em consonância ao seu primeiro
texto, Rainsford utiliza 544 páginas para destacar que os eventos em São Domingos eram
grandiosos e provavelmente alterariam a história da humanidade. No entanto, as falhas da
sociedade iluminista, os preconceitos frequentes e medos infundados nublavam a
compreensão geral. Daí a importância de seus relatos; por mais falhos e parciais que fossem,
eram genuínos34
.
Negros foram capazes de repelir os seus inimigos com vigor, em seu próprio país.
Rainsfod afirmava compreender a questão, dizia-se cônscio das consequências e apto a tratar
do assunto. O soldado comenta que outros textos antes do seu foram produzidos, todos sem
cautela e embasamento35
. Para suprir essa carência e evitar que o movimento fosse creditado
em outra época, por pessoas não contemporâneas aos fatos, o britânico apressou-se a escrever
31
RAINSFORD, Marcus. A memoir of transactions that took place in St. Domingo, in the spring. London: John
Carter Brown Library, 1802. p. 8. 32
Ibidem. p. 14. 33
Ibidem. p. 30. 34
RAINSFORD, Marcus. An historical account of the Black empire of Hayti: comprehending a view of the
principal transactions in the revolution of Saint Domingo. London: John Carter Brown Library, 1805. p. 40. 35
Ibidem. p. 44.
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o relato de 1802. Três anos depois, com mais tempo e discernimento “encontrar-se-á uma
versão sucinta e confiável, na qual a impolidez da crueldade e os erros da injustiça são
expostos, preferencialmente que qualquer preconceito ou hábito nacional” 36
.
Rainsford desejava elencar os pontos positivos da população de São Domingos. Ao
seu modo. A começar, hospedou-se no Hotel da República, edifício elegante e bem
organizado. Exceto pela pele predominantemente negra, não notou grandes diferenças de uma
hospedagem europeia. No local em que fez as suas refeições, foi tratado com cordialidade e
educação e sentiu-se como em um café londrino. No campo das artes, assistiu a uma
encenação de Molière com precisão idêntica aos franceses37
. Quando disse que combateria
preconceitos, Rainsford o fez de forma segura. Não se propôs a esmiuçar a cultura africana
em São Domingos, a construção do créole, ou as influências que os negros deram aos homens
brancos.
Nesse ponto de vista, os negros eram tão gentis, estáveis e obedientes que dificilmente
se rebelariam por conta própria. Para Rainsford, os escravos poderiam ser felizes em São
Domingos. O clima era agradável, estavam bem vestidos e alguns possuíam pequenas
plantações ou criavam galinhas, porcos e até cavalos. No entanto, os colonos não hesitaram
em explorá-los e tratá-los como a classe mais ordinária de seres humanos. Os franceses não
eram necessariamente maus, mas consideravam a sua estadia na ilha provisória, estavam ali
para fazer ou reconstruir fortunas. Não havia tempo para desenvolver laços. Como
consequência, o espírito revolucionário cresceu e se consolidou ao longo dos anos38
.
Novamente Rainsford mostrou-se reticente em quebrar padrões europeus. Os negros,
obedientes e submissos, iniciaram o movimento devido à incompetência francesa. Não porque
desejaram e podiam, porque jamais estariam plenos com a liberdade cerceada. Para o autor, o
tráfico e a escravidão eram possibilidades plausíveis. Bastava que os senhores não se
excedessem e nem abusassem do poder que possuíam. Diante de um cenário negativo e já
desgastado, a abolição emergia com um caminho que, ao menos para Rainsford, deveria ser
percorrido com cuidado39
.
A ideia era comum. O movimento abolicionista estava extremamente atrelado ao
contexto em que se inseria, possuía objetivos diversos e iniciativas não coordenadas40
. Os
36
Ibidem. p. 48. 37
Ibidem. p. 280. 38
Ibidem. p. 122. 39
Ibidem. p. 160. 40
TEMPERLEY, Howard. Eric Williams and Abolition: The Birth of a New Orthodoxy. In: SOLOW, Barbara
L.; ENGERMAN, Stanley L (Org). British Capitalism and Caribbean Slavery. The legacy of Eric Williams.
Cambridge: Cambridge University Press, 1987. p. 229-257.
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primeiros impulsos para mudança giravam mais em torno de melhorias que na abolição do
tráfico e emancipação da escravatura. Rainsford, inclusive, acreditava que a Grã Bretanha
com as suas fábricas possuía formas de trabalho tão virulentas quanto o escravismo das
colônias41
.
Além disso, havia os fatores econômicos como possíveis embargadores. Em 1807,
ano de fim do tráfico, a Grã Bretanha era a maior potência europeia e as suas colônias
rendiam altos lucros. Em meados de 1815, nem Cuba ou Brasil ultrapassaram a liderança da
Grã Bretanha na produção de açúcar e café. A ascensão da indústria também não funcionou
como justificativa, havia a plena capacidade dos dois sistemas conviverem. E conviviam42
. Os
próprios abolicionistas reconheciam que o escravismo era altamente lucrativo. Rainsford
afirma que em termos estritamente econômicos, não havia motivos para abolir o tráfico ou
emancipar escravos43
.
De acordo com o historiador Christopher Brown, a campanha antiescravista britânica
precisava de alguns elementos para se desenvolver. A começar, a escravidão deveria ser
considerada um erro moral. Em seguida, esse erro precisava receber cunho político, atrair
interesse sustentado e se tornar fonte de preocupação. Nesse contexto, os envolvidos
(políticos, grupos religiosos, filantropos) deveriam estruturar as novas inquietações.
Finalmente, o confronto com o sistema escravo tinha de ser problema pessoal e coletivo,
prioridade para além dos protestos iniciais, sustentada em uma organização coerente e
institucional44
.
A conjuntura estava diretamente atrelada à Revolução Americana. O conflito não
causou o abolicionismo britânico, mas influenciou significativamente o caráter moral das
instituições coloniais e práticas imperiais. O escravismo foi repensado, transformou-se em
símbolo e fonte de auto-exame. Ambos os abolicionismos foram organizados em bases
reformistas, com participação de comunidades religiosas e direcionados à ação legislativa,
além de promoverem debates públicos e participação popular45
.
A Grã Bretanha era uma grande potência, provavelmente a maior, mas não era a única
nação do mundo. Não existia poder dentro ou fora da lei que fizesse com que a Grã Bretanha
pudesse abolir o tráfico em todo o globo. Aliás, até o último momento havia dúvidas se o
41
RAINSFORD, Marcus. Op. Cit. p. 160. 42
DRECHER, Seymour. Le “déclin” du système esclavagiste britannique et l’abolition de la traite. In: Annales.
Histoire, Sciences Sociales, v. 31, n. 2, p. 414-435, mar./abr. 1976. 43
RAINSFORD, Marcus. Op. Cit. p. 160. 44
BROWN, Christopher. Moral Capital. North Carolina: The University of North Carolina Press, 2006. p. 36. 45
Ibidem. p. 27.
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tráfico se tornaria ilegal na Grã Bretanha. Em concomitância aos projetos abolicionistas,
desenvolveu-se a chamada segunda escravidão.
4. Jean Louis Dubroca: São Domingos e a segunda escravidão.
A revolução de São Domingos devastou economicamente a colônia e outras regiões
emergiram como substitutas no contexto da segunda escravidão. De acordo com Dale
Tomich, os interesses da Grã Bretanha prevaleceram à medida que a hegemonia da região, a
economia-mundo e a Revolução Industrial se mostraram capazes de reestruturar as
necessidades e solidificar essa nova escravidão. Nesse contexto, o desenvolvimento da classe
média, o aumento do número de trabalhadores e a procura por novas matérias primas
consolidaram o açúcar, o café e o algodão como bens primordiais46
. Enquanto os antigos
centros escravistas declinavam, Cuba, Brasil e o Sul em dos Estados Unidos ascendiam. Além
disso, o historiador Tâmis Parron estruturou a necessidade de se pensar além do ponto de vista
econômico. Parron acredita que em adição à hegemonia britânica, é preciso compreender as
ações de senhores e escravos, a dimensão política e os fatores culturais47
.
Entre a primeira e a segunda escravidão existem semelhanças e descontinuidades. A
primeira escravidão associava-se aos sistemas da Espanha, Portugal, Países-Baixos, Grã
Bretanha e França. Possuiu caráter colonial, mercantil e atrelado ao tráfico de escravos e a
plantation. A sua estrutura era um acontecimento inédito. Impérios marítimos europeus
compravam seres humanos no continente africano para utilizá-los como mão-de-obra nas
Américas. Era pouco diversificada, concentrada no trabalho braçal e racial dos africanos. Em
colônias mais bem sucedidas, como São Domingos, o número de escravos era maior que de
homens brancos48
A segunda escravidão negava esse status de colônia, seja de forma efetiva, como no
caso dos Estados Unidos ou por meio de aspirações, como Brasil e Cuba. Apresentava um
regime mais autônomo, que reivindicava soberania e era capaz de suportar movimentos
revolucionários, além de atender às demandas do pós-colonialismo. Certamente precisava de
um Estado que a amparasse, mas não que a controlasse. Provavelmente era mais moderna e
produtiva, definitivamente não era mais humana. Ambos os modelos utilizaram cativos a
46
TOMICH, Dale. Pelo o prisma da escravidão. São Paulo: Edusp, 2011. p. 83-89. 47
PARRON, Tâmis. A política da escravidão na era da liberdade: Estados Unidos, Brasil e Cuba, 1787-1846.
Tese (Doutorado em História Social) – Programa de Pós-graduação em História Social, Universidade de São
Paulo, São Paulo, 2015. p. 14. 48
BLACKBURN, Robin. Por que a segunda escravidão? In: MARQUESE, Rafael. SALLES, Ricardo.
Escravidão e capitalismo histórico no século XIX. Cuba Brasil e Estados Unidos. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2016. p. 14.
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partir de critérios sub-raciais, lançaram mão do trabalho forçado e trataram os escravos como
mercadorias que poderiam ser compradas e vendidas49
No tocante à pesquisa, o caso cubano é de extrema importância. Cuba possuía
escravos antes de São Domingos organizar a sua Revolução. No entanto, até finais do século
XVII a colônia era mais uma sociedade com escravos que uma sociedade de escravos. Com a
queda econômica de São Domingos, o cenário tomou novas proporções. Plantadores cubanos
compreenderam que o espaço deixado por São Domingos, em breve Haiti, não poderia ser
desperdiçado e trabalharam para expandir a escravidão e o açúcar50
.
Desde 1780, os plantadores de Havana enviaram petições ao rei solicitando a abertura
do comércio de escravos. Destacavam o potencial de Cuba e a possibilidade de a Espanha
competir diretamente com Portugal e Inglaterra. O crioulo e advogado Francisco Arango y
Parreño viajou à Madri e tornou-se uma espécie de porta-voz da causa. As medidas surtiram
efeito. O império espanhol comprometeu-se a reestruturar a região e o açúcar, bem como a
escravidão cresceram a olhos vistos51
.
Nesse novo cenário, os plantadores cubanos passaram a se preocupar em expandir a
produção, elevar a qualidade do produto e reduzir os custos. A agricultura açucareira ficou
centrada na parte ocidental da ilha e se expandiu pelo sul e oeste de Havana. Essa indústria
corroborou para a construção de ferrovias, estruturou novos engenhos e tecnologias e
deslocou a produção de tabaco e café para outras regiões52
.
Até 1791, São Domingos emergiu como um exemplo. A próxima e próspera colônia
era um esquema a ser imitado e, quem sabe, superado. Quando a rebelião de escravos tornou-
se evidente, os senhores mudaram de posicionamento, mas notaram que o vácuo econômico
deixado parecia tão bom quanto uma ajuda divina53
. Pouco depois, compreenderam que a
situação era mais complexa. Em novembro do mesmo ano, relatos da revolução já estavam
difundidos e a suposta benção ganhou ares de maldição. E se os horrores de São Domingos se
repetissem em Cuba?
Arango estava otimista. Acreditava a revolução não se estenderia e por mais intensa
que parecesse, tratar-se-ia de um momento breve para Cuba ampliar as suas produções e se
manter em alta quando a França recuperasse a colônia. Nesse ponto de vista, era válido seguir
os passos de São Domingos em relação ao colonialismo, o açúcar e a escravidão, mas tomar
49
Ibidem. p. 19. 50
FERRER, Ada. Freedom’s mirror: Cuba and Haiti in the Age of Revolution. New York: Cambridge
University Prress, 2014. p. 30. 51
Ibidem. p. 33. 52
TOMICH, Dale. Op. Cit. p. 131. 53
FERRER, Ada. Op. Cit. p. 34-37.
1078
cuidado com as convulsões e conter a iminência do Haiti54
. Ao longo dos anos, outras
medidas foram tomadas por Arango e seus companheiros. Por exemplo, tornou-se necessário
vigiar os territórios cubanos mais afastados, realizar contagens da população e, na medida do
possível, exigir relatórios mensais dos colonos sobre a mão de obra escrava55
.
Na teoria, havia até dúvidas se os escravos de fato iniciaram a revolução. Relatos
afirmavam que os verdadeiros líderes eram mulatos ou brancos rebeldes e os escravos meros
seguidores. Na prática, várias restrições foram elaboradas ou reafirmadas. Desde a Revolução
Francesa as autoridades espanholas em Cuba confiscavam jornais, panfletos e cartas vindos
da França que poderiam incutir o espírito revolucionário. Em meio ao caos de São Domingos,
a coroa passou a se preocupar também com a procedência dos negros vindos do tráfico56
.
Traficantes e colonos asseguravam que os escravos vinham diretamente da África. Na
verdade, não era fácil saber a real origem dos negros e os navios poderiam vir com indivíduos
que presenciaram ou até participaram da Revolução de São Domingos. Ao longo dos 13 anos
de movimento, a Espanha ordenou e revogou leis que proibiam os escravos franceses em seus
territórios. Nunca foi simples. Os decretos demoravam a chegar, nem sempre eram
obedecidos e muitas vezes os lucros faziam valer os riscos57
.
Paralelamente, em 1802, Napoleão Bonaparte decidiu retomar o controle de São
Domingos. Extinguiu a relação amistosa que vinha levando com Toussaint, restabeleceu a
escravidão nas colônias e... Contratou o escritor francês Jean Louis Dubroca para
desmoralizar os principais líderes do movimento revolucionário. A encomenda se consolidou
em duas obras: La vie de Toussaint Louverture, de 1802, sem ilustrações, e La vie de Jean
Jacques Dessalines, de 1806, com 10 litografias.
Curiosamente, os livros foram lançados primeiro em espanhol, na famosa editora
Mariano Zúñiga y Ontiveros. Meses depois elas foram editadas em outros idiomas: francês,
inglês, alemão e holandês. As justificativas remetiam à facilidade na publicação imediata das
obras58
. De forma consciente, ou não, alguns elementos vieram à tona quando esses textos e
imagens propagandísticos passaram a circular pela Espanha e suas colônias.
Segundo Dubroca, não havia como a Europa permanecer indiferente ao que acontecia
em outras nações. A questão se esclareceria após todos tomarem conhecimento dos
tenebrosos acontecimentos em São Domingos. De acordo com o autor, a desunião dos
54
FERRER, Ada. Op. Cit. p. 41. 55
FERRER, Ada. Op. Cit. p. 43. 56
FERER, Ada. Op. Cit. p. 56. 57
FERRER, Ada. Op. Cit. p. 56. 58
MORA, Arturo Soberón. Felipe de Zuñiga y Ontiveros, um impresor ilustrado de la Nueva España. TEMPUS:
Revista de História de la Facultad de Filosofia y Letras, Unam, v.1, n. 1, p. 52-74, jan./dez. 1993.
1079
brancos da ilha fez com que os negros se apoderassem dela. A partir de então, agiram com as
próprias mãos, em meio a uma crueldade sem precedentes 59
.
Na primeira obra Toussaint é deslegitimado em cerca de 64 páginas. De acordo com
Dubroca, o negro era um exímio cavaleiro, dedicado ao movimento e pouco suscetível a
distrações60
. Os únicos elogios convertiam-se nos principais defeitos. Aparentemente,
Toussaint utilizava essas habilidades para cometer crimes e traições, matar seres humanos se
assim julgasse conveniente. Além disso, deturpava os ensinamentos do catolicismo; vivia
cercado de sacerdotes, mas não hesitava em trocar o altar pela carnificina. Dizia-se letrado,
integrado à cultura europeia, mas mal falava o francês e muitos dos seus textos eram escritos
pelos seus comissários61
.
As acusações a Jean Jacques Dessalines eram tão ou mais intensas. Em 140 páginas o
africano é descrito como um ser atroz, coberto de sangue humano e destituído dos costumes
da civilização europeia. Nos parcos momentos pacíficos com os homens brancos, Dessalines
não hesitou em matar os negros, separar mães dos filhos e estuprar mulheres. Ainda que não
possuísse intelectualidade, era movido por ambição e juntamente à Toussaint promoveu a pior
sucessão de eventos da história da humanidade62
.
As litografias consolidavam o cenário e traziam à tona a brutalidade da revolução.
Imagens gráficas foram valorizadas, com assassinatos, decapitações e desmembramentos.
Naturalmente, não se tratam de documentos neutros. Segundo Peter Burke: “As imagens não
devem ser consideradas simples reflexos de suas épocas e lugares, mas sim extensões dos
contextos sociais em que elas foram produzidas e, como tal, devem ser submetidas a uma
minuciosa análise, principalmente de seus conteúdos subjetivos.” 63
.
59
DUBROCA, Jean Louis. La vie de Jean Jacques Dessalines. London: John Carter Brown Library, 1806. p. 1. 60
DUBROCA, Jean Louis. La vie de Toussaint Louverture. London: John Carter Brown Library, 1802. p. 62. 61
Ibidem. p. 63. 62
DUBROCA, Jean Louis. Op. Cit. p. 18. 63
BURKE, Peter. Testemunha ocular. História e imagem. São Paulo: Edusc, 2004. p. 11-25.
1080
Figura 1: Coroação de Juan Santiago Desalines primeiro imperador do Haiti.64
A figura corresponde à última imagem do livro 65
. O imperador ocupa um trono alto
sobre um dossel, possui uma coroa imperial em sua cabeça, uma manta de arminho sobre os
ombros e o cetro na mão direita. O seu olhar está voltado ao espectador e com a mão esquerda
aponta para sua corte de negros, agora cidadãos haitianos66
. Estão reunidos em um palácio de
arquitetura clássica. No livro, a figura está atrelada ao texto da nova constituição, com suas
declarações contra europeus e católicos.
64
Cf: DUBROCA, Jean Louis. La vie de Jean Jacques Dessalines. London: John Carter Brown Library, 1806, p.
82. 65
No original: Coronacion de Juan Santiago Desalines primer emperador de Hayti.Tradução minha. Na
verdade, o sobrenome do novo imperador era Dessalines, com dois S, e esse desvio ortográfico foi cometido
durante todo o livro. Descuido ou descaso? Juan Santiago correspondia a uma das regiões tomadas pelo negro e
provavelmente local de sua coroação. Nos dias de hoje, Juan Santiago faz parte da República Dominicana e não
do Haiti. 66
DUBROCA, Jean Louis. Op. Cit. p. 82.
1081
De acordo com Dubroca, os colonos foram descuidados, mas os únicos responsáveis
pelo caos de São Domingos eram os negros. Incivilizados, violentos e rebeldes. A solução não
estava em melhorar as condições de vida dos escravos. Muito menos no fim do tráfico ou da
escravidão. Os homens brancos deveriam intensificar a repressão, extinguir as possibilidades
de organização negra e divulgar as atrocidades que ocorrera em São Domingos. É sabido que
a França não recuperou São Domingos, mas os textos e imagens de Dubroca mantiveram-se
úteis a outros cenários, como o cubano.
Imagens como essa serviam para ilustrar o texto, reforçar intenções ou sintetizar
conteúdo. Ao mesmo tempo, eram capazes de ofuscar e alterar o sentido das palavras. Havia
ainda a possibilidade de enfatizar certos momentos da historia67
. As ilustrações de Dubroca
possuem um sentido anti-abolicionista. Não representam acontecimentos fundamentais da
Revolução de São Domingos, não existem cenas efetivas de batalha e a coroação de
Dessalines corresponde ao único evento ilustrado que com certeza ocorreu. Não
necessariamente dessa forma. As demais imagens retratam episódios menores, algumas não
foram descritas no livro e podem simplesmente ter sido inventadas.
O Dessalines da imagem é convertido em um imperador de símbolos ocidentais. No
entanto, trata-se de um soberano e de uma corte negras. Os homens brancos não são sequer
bem-vindos. Os negros costumavam ser concebidos como seres menores, pobres e exóticos.
São Domingos não só inverteu essa hierarquia, como também extirpou os brancos. A
recordação do europeu que fechasse o livro após ver Dessalines nessa posição não poderia ser
positiva. Espanha e Cuba deveriam permanecer atentos e até pelo menos 1815, as obras de
Dubroca foram prioridade de publicação na editora do império espanhol68
.
5. Conclusão:
É difícil precisar se Marcus Rainsford e Jean Louis Dubroca possuíam consciência do
lugar de suas obras. Alguma noção é provável que sim. Rainsford relacionava-se ao
abolicionismo e Dubroca foi contratado por Napoleão Bonaparte. Além disso, ambos
escreveram textos de fôlego e mostraram-se determinados a disseminar suas respectivas
mensagens. Em certa medida opostas, de vez em quando complementares.
Ao mesmo tempo, se hoje é relativamente possível estruturar o abolicionismo anglo-
americano, os conceitos de primeira e segunda escravidão e a ascensão de Cuba enquanto
colônia, Rainsford e Dubroca foram contemporâneos a essas questões. Por mais engajados
67
BURKE, Peter. Op. Cit. p. 11-25. 68
MORA, Arturo Soberón. Op. Cit. p. 52-74.
1082
que estivessem ao período de seus livros, não havia como saber que o tráfico britânico
findaria pouco depois, que a segunda escravidão se consolidaria ao longo do século XIX e
Cuba se tornaria a “pérola” que fora São Domingos.
À indiscutível parcialidade desses autores, somam-se uma série de dúvidas e
imprecisões. Não por isso Rainsford e Dubroca são menos válidos como fonte de pesquisa.
Cabe ao historiador assimilar e ordenar esses processos em pesquisas acadêmicas e
seminários temáticos.
Fontes primárias:
DUBROCA, Jean Louis. La vie de Toussaint Louverture. London: John Carter Brown
Library, 1802.
DUBROCA, Jean Louis. La vie de Jean Jacques Dessalines. London: John Carter Brown
Library, 1806.
RAINSFORD, Marcus. A memoir of transactions that took place in St. Domingo, in the
spring. London: John Carter Brown Library, 1802.
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view of the principal transactions in the revolution of Saint Domingo. London: John Carter
Brown Library, 1805.
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