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OS EIXOS BIOLÓGICO E SOCIAL DO PSIQUISMO RESUMO Este artigo trata da influência interpretativa dos eixos biológico e social no psiquismo. Vários siste- mas psicológicos são questionados e comparados a este respeito. Considera a psicanálise a partir de uma exterior idade crítica a tal questão. Palavras-chave: sistemas psicológicos; psicanálise; psiq uismo. BIOLOGICAL AND SOCIAL AXLES IN THE PSYCAL STRUCTURE ABSTRACT This paper treats the influence ofbiological and social axles the psyche. Many psychological systems are focussed and compared. The question treared is considered as exterior to Psychoanalysis, whose point of view is critical. Key words: psychological systems; psychoanalysis; psyche . . Professsor Adjunto do Departamento de Psicologia da UFC. Doutor em Psicologia pela Université Paris XIII. Psicanalista membro do Corpo Freudiano de Fortaleza - Escola de Psicanálise. S4 REVISTA DE PSICOLOGIA, FORTALEZA, Y.20(l), P. 54-61, JAN.lJUN.2002

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OS EIXOS BIOLÓGICO E SOCIAL DOPSIQUISMO

RESUMO

Este artigo trata da influência interpretativa dos eixos biológico e social no psiquismo. Vários siste-mas psicológicos são questionados e comparados a este respeito. Considera a psicanálise a partir de umaexterior idade crítica a tal questão.

Palavras-chave: sistemas psicológicos; psicanálise; psiq uismo.

BIOLOGICAL AND SOCIAL AXLES IN THE PSYCAL STRUCTURE

ABSTRACT

This paper treats the influence ofbiological and social axles the psyche. Many psychological systemsare focussed and compared. The question treared is considered as exterior to Psychoanalysis, whose pointof view is critical.

Key words: psychological systems; psychoanalysis; psyche .

. Professsor Adjunto do Departamento de Psicologia da UFC. Doutor em Psicologia pela Université Paris XIII. Psicanalistamembro do Corpo Freudiano de Fortaleza - Escola de Psicanálise.

S4REVISTA DE PSICOLOGIA, FORTALEZA, Y.20(l), P. 54-61, JAN.lJUN.2002

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INTRODUÇÃO

A Psicologia, ao constituir-se como ciência,separa-se da Filosofia, na medida em que formulaobjetos científicos e métodos de acesso a tais objetos.O princípio de circularidade das ciências faz, noentanto, com que ela mantenha relações não só coma Filosofia, mas também com outras disciplinascomo as Ciências Sociais, a História e a Biologia.

O surgimento da Psicologia dá-se, de fato, coma tentativa de acesso aos métodos das ciências ditasnaturais. Dessa forma, o experimentalismo semprefoi um ideal na busca, por parte dessa ciência, decritérios de cientificidade. A Psicologia consideradacientífica buscou as bases biológicas do psiquismo.

Podemos, juntamente com Japiassu (1978), emNascimento e Morte das Ciências Humanas, perceberdois eixos epistemológicos na constituição da Psicolo-gia. Estamos cientes de que, de forma alguma, poderí-amos abordar a questão dos fundamentos biológicos esociais do desenvolvimento do psiquismo, sem acen-ruarrnos o fato de que esses eixos têm atravessado ahistória da disciplina em questão. A tensão entre asbases biológicas e sociais do psiquismo verifica-se noestabelecimento de qualquer sistema de Psicologia.

Eixos epistemológicos seriam os solos ou oshorizontes epistemológicos sobre os quais as CiênciasHumanas se constituem. Seriam as bases sólidas sobreas quais as Ciências Humanas nasceram e nos quais seapoiaram em seu percurso lento e conílituoso delibertação da tutela filosófica. A proposta do eixoepistemológico da Biologia em Psicologia é que osfenômenos não são independentes das condições físico-químicas de seu aparecimento. Tais condições possuemum primado sobre outros determinismos. A consciênciae seus derivados culturais, o conhecimento e asatividades criadoras, possuem múltiplas significações ecorrespondem ao exercício das funções vitais. Assim,roda ciência humana emprega, de uma forma ou deoutra, significações da espontaneidade biológica.

Um outro eixo, constitutivo da Psicologia en-quanto ciência humana, seria o eixo da Cultura e daHistória. Em uma de suas acepções, esse eixo indicaque toda ciência se inscreve num contexto cultural,dimensão fundamental dos fatos de terminantes paraa realidade humana. O ser humano, orgânico emsua estrutura, é cultural em seu desenvolvimento.Seria da natureza do homem não possuir natureza.

Tendo situado a Psicologia, sob uma oticaepistemológica, na interseção de modelos biológi-cos e histórico-culturais, torna-se mais fácil com-preender a tensão entre esses termos, que prevaleceno centro de um determinado sistema, bem comona interrelação entre as várias correntes da Psicolo-gia. O peso dado ao fator biológico ou social nodesenvolvimento do psiquismo vai depender daabordagem ou linha teórica, não havendo, em Psi-cologia, um consenso em relação a essa questão.

Dessa forma, pretendemos abordar o assunto apartir da posição de alguns sistemas de Psicologiaconcernentes aos fatores biológicos e sociais no desen-volvimento do psiquismo. Selecionamos os sistemaslevando em conta a valorização que lhes é atribuídapela literatura especializada, pela contemporaneidadedos sistemas e pela clareza de suas posições em relaçãoàs tendências biológicas ou sociais na explicação doadvento do psíquico. Privilegiar uma única linha deanálise seria uma forma parcial e ideológica de inter-pretação do problema. Contribuiria mais para a obs-curidade que para clareza em relação ao tema.

O BEHAVIORISMO

O Behaviorismo, mesmo levando em conta adiversidade das idéias de seus representantes, defen-de o organismo como respondente a estímulos. Des-sa forma, mantém-se em continuidade com aPsicofisiologia. O Behaviorismo, ao negar a existên-cia da mente, direciona-se para um monismo pura-mente físico. O que é chamado de atributo da menteé, na verdade, atributo da complexa organização fisi-ológica do corpo humano. Entre as argumentaçõesbehavioristas pela defesa da tese da identidade do psí-quico com as funções fisiológicas, repousa a suposi-ção da Física de que eventos não físicos (como aconsciência) possam interatuar com eventos físicos.Caso isso fosse possível, o princípio da conservaçãode energia seria violado. Se as idéias podem influen-ciar músculos, então elas próprias devem, também,ser eventos físicos que ocorrem no sistema nervoso e,por conseguinte, não mentais. Essa posição pode serencontrada, de forma clara, nos trabalhos de Watson(1974) e Lashey (1978).

A experimentação behaviorista na área da Psi-cologia Comparada parte do princípio da continui-

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dade entre o animal e o homem. Embora a diversi-dade das concepções behavioristas postulem o ad-vento do psíquico a partir de situações psicológicas,elas vão divergir quanto ao peso dessas determina-ções. O papel das variáveis internas é relativizadopela importância da estirnulação externa do meioambiente.

Entre os behavioristas, aqueles que enfatizama perspectiva inrernalista, com a prevalência do mo-delo biológico, estão bem representados em Hull eseus discípulos Holland e Miller (apud Hall eLindzey, 1973). Hull defende o estabelecimento derespostas comportamentais como hábitos. O orga-nismo teria impulsos primários e secundários, queo reforçamento do meio trataria de expandir ou re-fratar. A ação do organismo se daria no sentido deredução dos impulsos ou drives. As atividades segui-das de redução de drives são reforçadas. Essa pers-pectiva de Hull (apud Hall e Lindzey, 1973)encontra-se no esquema S®O®R (estímulo-orga-nismo-resposta). É diversa da estabeleci da porWatson (1974) e Skinner (1953) que defendem oesquema S®R. Vemos como tal esquema, emboraleve em conta a continuidade com o fisiológico, vaiexplorar basicamente a estirnulaçâo externa.

o caso de Watson (1974), uma de suas tesesfundamentais situa o organismo como dispondo deestruturas hábeis para certos comportamentos, osquais caberia a aprendizagem reforçá-los ou não. Aopropor, na modificação do comportamento, odescondicionamento, Watson privilegia a ação deestÍmulos externos, ou do meio ambiente.

A influência do meio ambiente no compor-tamento ganha contornos mais visíveis a partir dacategoria de condicionamento operante, formuladapor Skinner. O condicionamento operante apóia-se em repostas do tipo instrumental. Ou seja, emrelação a respostas emitidas e não eliciadas, seguem-se eventos reforçadores. Com o condicionamentooperante, parte-se de condutas imprevisíveis visan-do a um estado de previsão e controle. O métodoexperimental, ao trabalhar com eventos reforçadores,objetivando previsão e controle do comportamen-to, acentua o papel do meio ambiente, ou do socialna fabricação dos comportamentos. O social seria

condicionante e o organismo adaptativo a ele. Vere-mos, posteriormente, como a Psicologia russa vaiinverter a equação organismo-meio, da forma comoé postulada pelos behavioristas. Vejamos antes, po-rém, como a Psicanálise distribui o peso dodeterminismo biológico e cultural no centro de seuaparato conceitual. Centralizaremos nossa discus-são nos pressupostos freudianos e na leitura queJacques Lacan estabelece dos mesmos. Assim, comooutros, a Psicanálise não é um sistema uniforme erecebe leituras a partir dos lugares que a tomamcomo discurso. Entre eles estão a Psicologia do egoamericana (representada por Lowensrei n, Kris eHartmann), a escola inglesa (representada porMelanie Klein e Winnicott), para citarmos apenasalguns expoentes. Deter-nos-ernos em Freud (1978),por sua obra manter a virulência da descobertapsicanalítica do Inconsciente e servir, de uma formaou de outra, para referência das outras escolas. Lacanserá citado por sua lealdade à descoberta freudiana,bem como pelo redimensionarnento conceitual,facilitador de explicações.

A PSICANÁLISE 1

Já a partir de sua pré-história, com Charcot,encontramos elementos de dissidência da Psicanáliseem relação ao modelo biológico. Charcot (apud GAY,1999), ao produzir através de drogas a hipnose, a re-gularidade do quadro histérico, rompe com a tradi-ção de se vincular a sintomatologia histérica areferentes neurológicos.

Entretanto, autores como Japiassu (1978) ale-gam que a Psicanálise funda-se sobre um modelobiológico. O primeiro trabalho de Freud (1978), quetentava sistematizar o funcionamento psíquico, Pro-jeto para uma Psicologia científica, realmente utilizaterminologias da Fisiologia e Neuroanatomia na ex-plicação do dinamismo psíquico. Fá-Ío, no entan-to, no sentido metafórico. Freud recorre nestetrabalho ao neurológico enquanto modelo cien-tífico, a partir do qual se pode pensar a atividadepsíquica. Não significa, porém, que as categoriaspor ele trabalhadas possam ser avaliadas do pon-to de vista experimental, por exemplo.

1 Queremos enfatizar que, embora exploremos os eixos biológicos e sociais na Psicanálise, a mesma constitui um saber espe-cífico, independente de outro qualquer.

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Aq ui, temos a primeira referência da teoriapsicanalítica ao eixo biológico das ciências. Esseeixo é tomado como modelo explicativo do fun-cionamento psíquico, não constituindo, no en-tanto, a base determinista do funcionamentopsíquico. A parte mais hipotética da teoriafreudiana, que trata da dualidade das pulsões, en-tre pulsôes de vida e pulsões de morte, mantémuma fidedignidade com pressupostos biológicos dahorneostase dos organismos. O ponto de vista eco-nômico da primeira tópica pressupõe o princípioda homeostase, em que o nível energético dopsiquismo tenderia nas suas relações com o meio adirecionar-se para níveis de energia menores (pra-zer). É nessa dimensão, que possibilita uma tradu-ção biologizante, que Reich (1978) vai desenvolversua abordagem corporal.

No entanto, a estruturação psíquica, paraFreud, na evolução de sua obra, é situada na esfera dafantasia. A fantasia é uma articulação do sujeito parafazer frente à castração, estruturante para o mesmo.Com o conceito de fantasia Freud rompe com qual-quer possibilidade de biologização do psiquismo.

A estruturação do psiquismo advém da or-dem simbólica. Essa ordem marca a inserção dosocial no psíquico, e o antecede. Mesmo antes denascer o indivíduo é desejado ou não, mas éposicionado em relação ao desejo dos pais. Essesdesejos são simbolizados no universo da lingua-gem, a partir da história significante daqueles quedesempenham as funções paterna e materna. Osdiscursos que permeiam o sujeito, por serem dis-cursos do desejo, situarão o falante nas posiçõesexistenciais que ele poderá vir a ocupar. Forne-cem uma organização para o sujeito em termosde iden tidade, sexualidade, restrições, etc. Porestar imerso num mundo de cultura, ou lingua-gem, o sujeito já é social. Os significantes do có-digo lingüístico, no entanto, reportam-se a desejosinconscientes e ganham especificidade nahistoricidade desses desejos.

Em As pulsões e seus destinos, de 1915, Freudvai estabelecer a pulsão como diferente do instinto,formando-se na fronteira do biológico com o psí-quico. A pulsão oral, dessa forma, apóia-se na ne-cessidade de alimentar, mas significa um saltoqualitativo em relação à mesma. A pulsão oral cons-titui-se em relação ao desejo, transcendendo a ne-

cessidade orgânica. Tal ponto pode ser ilustrado pelomovimento de sucção que a criança apresenta de-pois da amamentação. Mesmo depois de satisfeita anecessidade alimentar, o desejo resta, permanece.

Podemos resumir o ponto de vista freudianosobre as determinações do biológico e do social daseguinte forma: Freud, mesmo reconhecendo que opsíquico se estabelece em uma base orgânica (noçãode apoio funcional), coloca que o psíquico a trans-cende. Por outro lado, no psíquico estão implicadasas formas simbólicas do social. A inserção das palavrasno código lingüística, bem corno sua historicidade noscomplexos familiares vão ser determinantes para o des-tino do sujeito.

Se tomarmos como metáforas úteis à nossadiscussão os conceitos de infra-estrutura e desuperestrutura, fatalmente os ligaremos aomaterialismo dialérico de Marx. Para Marx, a infra-estrutura consistia nas relações da produção quesustentavam uma determinada organização social.Essas relações, nas formações sociais capitalistas,trazem em si o germe da contradição, do conflitoentre burgueses e operários. A superestruturaconsiste numa criação ideológica do Estado para amanutenção dos privilégios burgueses. A infra-estrutura é, portanto, o fator determinante dasrelações que a superestrutura deve legitimar atravésda ideologia, como nos evoca Marx em A ideologiaalemã de 1983. Fizemos aqui essa referência, paracolocar que, do ponto de vista desta lógica, queimplica o infra-estrutural como dererminanre, nocaso da Psicanálise, ele só poderia ser situado nolado do social, da ordem simbólica, com aanterioridade do mundo da cultura em relação aosujeito. Claro que o infra-estrutural psicanalítico,o Simbólico, vem se inscrever na base do Realorgânico. Mas o biológico não é, para a psicanálise,o fator de determinação psíquica.

> Iesmo na Psicologia, o biológico não seria sem-pre o iníra-esrrurural. Há uma linha de raciocínio queconfunde o iníra-estrurural, enquanto síntese de múl-riplas determinações, com a base orgânica da qual nãoe pode fugir em Psicologia. Afinal, só pode existir

psiquismo em corporalidades. Piaget (1971), na for-mulação da Psicologia Genética, também se insere entreos que situam o psíquica como especificidade, no caso,como salto, tanto em relação às determinações bioló-

. . .glcas quanto SOCiaiS.

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De acordo com Ivan Corrêa'', a tendência deinterpretar textos freudianos, como Projetopara umaPsicologia científica, à luz de categorias da fisiologia,deu-se pela dificuldade de algumas culturas, comoa inglesa, de aceitar algumas formulações de Freud,entre as quais aquelas que se referiam à sexualidade.A tradução forjou a mudança de alguns termos,como pulsão (Trieb) para instinto (Instinkt), na ten-tativa da obra freudiana ser mais aceita na comuni-dade científica e pela sociedade em geral.

Tanto o equívoco na tradução da obra freudiana,quamo a formulação inicial, por Freud, sobre a neuro-se atual tiveram implicações para o desenvolvimento,por Reich (1978), da Análise do Caráter, que lançouos fundamemos para as abordagens corporais atuais,como a de Alexander Lowen - a Bioenergética.Wilhelm Reich (1978) propõe uma integração no pla-no interno de represarnento da energia sexual e o pla-no das repressões sociais úteis às manutenções desistemas políticos.

Antes de sistematizar o papel da fantasia naestruturaçâo psíquica, Freud (1978) formulava a "neu-rose atual" como conjunto sintomático da atividadebloqueada ou pouco satisfatória, como o coito inrer-rompido, estados de abstinências, etc. Esta idéia é to-mada por Reich (1980) com o conceito da estaselibidinal em A fUnção do orgasmo. A estase libidinalcaracterizaria um represamemo energético. Por outrolado do pomo de vista social haveria um interesse doEstado de, com a moral burguesa, manter essa repres-são, cuja energia desviada do fins sexuais serviria aosistema econômico. Em A revolução sexual, Reich(1988) discute sobre a necessidade de se atuar de for-ma revolucionária em relação às elites capitalistas,rnantenedoras da miséria sexual e, conseqüentemente,da miséria psíquica.

Reich (1980), ao sustentar o caminho para asaúde como desbloqueamento da energia sexual, partedo pressuposto da sexualidade como biológica,instintiva. Freud (1978), ao se deter no estudo dapsiconeurose, em que a fantasia tem papel fundamental,demonstra que a sexualidade surge por representantespulsionais, cujo objeto do desejo é desde sempreperdido. A completude genital, como é postulada porReich (1980), é um malogro na perspectiva freudiana.

De qualquer forma, vemos em Reich (1980) umaintegração do biológico e do social no desenvolvimentodo psiquismo. As repressões são internalizadas emtermos de retenção muscular de energia, numa relaçãodireta com as tentativas moralizantes da sociedade, queutilizam a energia represada no processo produtivo ena domesticação dos indivíduos. Vejamos como Piaget(1971) situa sua teoria em relação ao eixo biológico ecultural do psiquismo.

A EPISTEMOLOGIA GENÉTICA

A área central dos estudos piagetianos seria oterreno das formações cognitivas. Para Piaget (1971),as estruturas do conhecimento tornam-se necessá-rias ao cabo de um processo de desenvolvimento,sem o serem desde o início e não comportam pro-gramação prévia. Nas formações cognitivas a here-ditariedade e a maturação se limitam a determinaras zonas de impossibilidade ou de possibilidade deaquisições. É esse o relevo das bases biológicas dopsíquico. A partir das aquisições, Piaget (1971) si-tua o papel do meio no desenvolvimento cognitivo.As aquisições exigem atualizações que comportamcontribuições externas devidas à experiência, por-tanto, ao meio, e uma organização progressiva in-terna produzindo auto-regulações. Com a noção deauto-regulação, temos um dos conceitos fundamen-tais da Psicologia Genética. Com esse conceito,Piaget (1971) pretende ultrapassar tanto o inatisrno,quanto o ambientalismo.

A Psicologia genética defende a interaçâo dosistema vivo com o meio, realizando-se a partir daindivisibilidade dos processos de assimilação eacomodação. a assimilação, o organismo, de certomodo, impõe sua estrutura e esquemas cognitivos aomeio. Na acomodação, reestrutura em esquemas deconsonância com as particularidades do meio. Piagetestabelece, portanto, a idéia de ação do organismo noprocesso de conhecimento, eixo central do sujeito, emsua vida intelectual ou emocional. Distancia-se, dessaforma, dos behavioristas clássicos, que defendiam a tesedo sujeito como respondente ao meio. Em Piaget, a açãoé central e não os sentidos. Piaget rejeita a tesebehavioristade resposta a qualquer estímulo. Desenvolve a noção de

2 Palestra proferida aos membros da CLEF (Clínica e Estudos Freud-Iacanianos de Fortaleza) em 1991.

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competência, ou seja, a capacidade de um organismoresponder a estímulos específicos e não a outros. Essasrespostas são dadas a partir da estruturação cognitiva dosujeito. A relação entre o indivíduo e o social é medidapela evolução dos estágioscognitivos. Piaget, dessa forma,não privilegia as bases biológicas da cognição nem asinfluências ambientais. O estruturante do sujeito estariavinculado a sua organização cognitiva interna. Leva emconta, entretanto, a influência desses fatores noestabelecimento dos estágios cognitivos.

Tendo uma perspectiva genérica, Piaget pos-rula o desenvolvimento cognitivo como um ptocessode superação constante de estágios. O pensamento ea linguagem, através de um processo de descentraçãoprogressiva, partem do egocentrismo que, em redu-ção gradual, direciona os sujeitos para uma socializa-ção progressiva do pensamento e da linguagem.

AS CORRENTES SÓCIO-HISTÓRICAS DAPSICOLOGIA

Pensamos em situar, por fim, a questão das de-terminações biológicas e sociais para o psiquismo, daforma como ela tem se dado na Psicologia da antigaUnião Soviética. Tal escolha funda-se em dois fato-res. Um deles é que as preocupações dessa escola gi-ram em torno desses eixos que situamos já em relaçãoa quatro outros sistemas. O segundo seria ourgimento do referencial mencionado, principal-

mente, na Psicologia Social da América Latina.A corrente sócio-histórica tem se caracterizado

pela tentativa de abordar o psíquico, enquanto objetoda Psicologia, a partir do solo epistemológico do ma-terialismo histórico dialético. O problema central des-a escola era o fato da descoberta marxista ter comoreferencial o processo econômico, social e histórico enenhuma referência direta aos processos de desenvol-vimento psíquico.

Se, para Marx (1978), a história das socieda-des era regida pelas relações veladas, porém concre-tas, entre as forças produtivas e os modos deprodução, caberia à Psicologia definir as relações dopsíquico com o concreto. O psíquico não poderia,simplesmente, ser colocado como o imaterial e abs-trato de concepções que se baseavam no pressupos-to da Idéia hegeliana, prevalenre em relação ao real.

Para estabelecer o conceito de real em Psico-logia, a Psicologia soviética teve um percurso tortu-

oso. Inicialmente, procurou-se um caminho na"reflexologia". O psicofísico certamente responde-ria como uma base material do psiquismo. Esse erao postulado que poderia ser obtido através dos tra-balhos de vários expoentes da psicologia russa. Cons-tituiria uma infra-estru tura biológica para opsiquismo. Ao longo dos trabalhos experimentais edas discussões teóricas, um problema sério se deli-neava. Ao organismo como respondente a esrfrnu-los não poderia ser atribuída a categoria de atividade.Seria um organismo meramente passivo. Tal fato sechocava com a idéia marxista do homem como su-jeito de história e de que o homem seria um sernaturalmente ativo.

Nesse momento, na década de 30, entra emcena uma corrente que concebe o princípio de uma"unidade dialética" da consciência e do comporta-mento, enquadrado no conceito da atividade hu-mana, de Marx. Segundo esta perspectiva, atravésda atividade o indivíduo se revela objetivando omundo interior de sua consciência. Ao mesmo tem-po, o homem por sua atividade desenvolve seu mun-do subjetivo. Essa atividade não é meramenteindividual, mas, principalmente, social. esse sen-tido, a consciência e o social se dão num processointerativo, em que cada um dos termos interfere emodifica o outro. A consciência, enquanto catego-ria fundamental, é determinada tanto pelo concre-to biológico quanto pelas condições sociais dohomem, ao mesmo tempo em que interfere no mun-do. Portanto, o peso das determinações biológicas édividido com as determinações sociais. Vale ressal-tar que, se a "reflexologia" refere-se ao meio ambi-ente, de onde provêm estímulos, o ambiente nãoconstitui o social marxista, multiplamente determi-nado pelo sistema produtivo. O social constitui umtodo organizado determinado historicamente pelosmodos de produção e conflitos classistas.

Vygotsky (1973) que, inicialmente, aproxima-va-se das concepções reflexas, tentando ver a consci-ência como combinações de reflexos condicionados,dá um passo na direção do método histórico. A teo-ria elaborada por Vygotsky (1973) é denominadahistórico-cultural. Se a teoria marxista assinala na pre-paração de instrumentos de trabalho o papel da es-trutura geral de produção material, pode-se deduzirque o trabalho implica, também, a produção que ohomem faz de si mesmo, de suas forças essenciais.

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A produção material, que constitui a infra-estrutura social, implica a produção espiritual,superestrutural. A linguagem constitui o principalinsrrumento da produção espiritual. Os atos de cons-ciência seriam formados de signos verbais.

A corrente sócio-histórica sustenta que as fun-ções psíquicas "inferiores" ou "naturais" são trans-formadas em superiores, a partir de uma sériedeterrn inante histórico-cultural. O mundo dos sig-nos não existe por si mesmo. Somente se dá atravésda comunicação, sendo toda comunicação socialmesmo a estrutura da relação social que vai interfe-rir no significado lingüístico. Vale a pena ressaltarque essas idéias estão presentes em Saussure (1980).Em Curso de lingüística geral, esse autor se refere aocaráter arbitrário do signo, dependente do eixo his-tórico da língua.

Para Vygotsky (1973), o instrumental, o realdas relações sociais são atualizados no psiquismo.Da mesma forma como uma ferramenta que, seana-lisada, reflete todo o mundo social de trabalho: uti-lidade, evolução, divisão de trabalho; o signo possuias mesmas determinações. Sendo instrumento daconsciência, é, por outro lado, capaz de modificar otodo social, contribuindo para a ação do sujeito.

Podemos perceber o endossamento por partede Leontiev (1978) das idéias de Vygotsky (1973).Para Leontiev (l9 8), o psiquismo está intimamen-te a ociado ao desenvolvimento da "matéria viva"que erve para orientar o organismos com respeitoa eu ambiente e reze eu comportamento. O de-envolvirnenro da mente especificamente humana,no cur o da evolução histórica, é considerado comouma con eqüência das atividades sociais ligadas aotrabalho humano, requerendo comunicaçãointerpessoal e facilitando o desenvolvimento da cons-ciência como uma forma especial de reflexo da rea-lidade. A linguagem se torna o meio da consciênciasocial e o substrato da consciência dos indivíduos.

Dessa forma, podemos perceber no movimen-to das idéias da Psicologia Russa acerca do desenvol-vimento psíquico dois movimentos. O primeiro delesconsistiu numa tentativa de se estabelecer uma equi-valência entre a infra-estrutura social e a base reflexado psiquismo. Dentro das impossibilidades de se uniro reflexo com a consciência e a atividade do sujeito,estabeleceu-se o segundo movimento com Vygotsky(1973) e Leonriev (1978). A base material da consci-

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ência estaria no signo lingüístico em suas relações como mundo do trabalho. A partir desse segundo mo-mento, a consciência e o trabalho são determinadose determinantes em relação ao mundo social. A infra-estrutura é, na verdade, social. Ela determina o con-creto dos elementos da consciência e das atividadesdo sujeito. Modifica o indivíduo em sua ontologia:percepção, vontade, constituição física, nas bases con-cretas do ser. Essa última idéia aponta para umadialetização na medida em que as bases concretas doser retornam ao social. No entanto, o concreto doorganismo não poderia jamais, nessa visão, ser con-fundido com o conceito empírico do biológico. Umainterpretação com esse teor desconheceria em pro-fundidade a coerência da última fase da Psicologiarussa com as bases epistemológicas do marxismo, parao qual o concreto é a síntese das contradições sociaise não o real empírico, social ou biológico.

CONCLUSÃO

Durante nossa expOSlçao procuramos de-monstrar a forma como cinco sistemas psicológi-cos situaram a questão das bases biológicas e sociaisno desenvolvimento do psiquismo. Piaget chamaa atenção para o fato de haver, em Psicologia, umatendência a reduzir eventos observáveis à fisiolo-gia, por um lado, e à sociologia, por outro, elimi-nando-se assim a especificidade do mental. Japiassu(1978), em Nascimento e morte das ciências huma-nas, concorda com Piaget ao colocar que a falta declareza em relação aos eixos epistemológicos de umaciência dificulta o estabelecimento do objeto damesma e, portanto, de sua direção no processo ci-entífico. Nossa forma de exposição, ao analisar aposição de sistemas importantes quanto ao eixo bi-ológico e social no advento do psíquico, permitiua formação de um quadro em que as diferenças esemelhanças de pontos de vista fossem visíveis.Como analisamos anteriormente, a eleição de ape-nas um ou dois referenciais seria uma maneira par-cial de tratar o problema. A parcialidade facilita aatitude ideológica que, atravessada por poderes,obstrui a busca da verdade. O movimento da ver-dade constitui a razão de toda ciência.

Sistemas importantes como a PsicologiaHumanista e Psicologia da Gestalt não foram abor-dados. Deixamos tal tarefa para um outro trabalho.

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