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Os filhos do discurso, os filhos da prática e a não aceitação do indígena como civilização Genaro Luiz Hamermuller 1 Prof. Dr. José Kuiava 2 Disciplina: Literatura Comparada na América Latina e Tradução Introdução A não aceitação das diferenças sociais no contexto brasileiro data de séculos e sua base ideológica, oriunda da constituição mesmo da sociedade brasileira, segue livre no imaginário e no consciente coletivo da população estendendo-se ao longo dos períodos históricos, repassando preconceitos velados de geração para geração. Não há como negar que em nosso país, na atualidade, existe uma onda conservadora desenvolvendo-se a partir de um grupo de políticos bancados por seus seguidores fundamentalistas, destilando a naturalização do ódio e da violência no dia a dia. Isso tudo é promovido a partir das redes sociais e da grande mídia, geralmente pautadas no senso comum que reforça ideologias eurocêntricas arcaicas, na busca do ser humano ideal dentro de um contexto de sociedade neoliberalista. Tais conceitos muitas vezes, são travestidos pela religião. Nesse contexto também notamos a destituição de direitos adquiridos a partir de muitas lutas pela classe trabalhadora e uma crescente perseguição aos educadores do país efetivada, entre outras vias, pela elaboração de leis para que não se discutam questões sociais, políticas e de gênero em sala de aula e desvalorização profissional. A situação se agrava quando voltamos nossos olhos aos movimentos sociais como dos indígenas, sem terras, feministas, organizações sindicais, movimento LGBT, negros e demais agremiações que lutam em prol da equiparação de direitos humanos e que tentam desencadear processos de descolonização da mente. Ao longo deste texto vamos refletir sobre a questão da disseminação de preconceitos raciais, baseando nossas considerações a respeito dessa temática a partir de aspectos ligados à colonização do nosso país, essencialmente àqueles que nos levam à dicotomia que diferenciava, 1 Acadêmico do curso de Pós-graduação Stricto Sensu em Letras nível de Mestrado Área de concentração em Literatura, Memória, Cultura e Ensino, da Universidade Estadual do Oeste do Paraná Unioeste, campus Cascavel; 2 Professor, doutor, docente do mestrado em Letras/Literatura

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Os filhos do discurso, os filhos da prática e a não aceitação do indígena como civilização

Genaro Luiz Hamermuller1

Prof. Dr. José Kuiava 2

Disciplina: Literatura Comparada na América Latina e Tradução

Introdução

A não aceitação das diferenças sociais no contexto brasileiro data de séculos e sua base

ideológica, oriunda da constituição mesmo da sociedade brasileira, segue livre no imaginário

e no consciente coletivo da população estendendo-se ao longo dos períodos históricos,

repassando preconceitos velados de geração para geração.

Não há como negar que em nosso país, na atualidade, existe uma onda conservadora

desenvolvendo-se a partir de um grupo de políticos bancados por seus seguidores

fundamentalistas, destilando a naturalização do ódio e da violência no dia a dia. Isso tudo é

promovido a partir das redes sociais e da grande mídia, geralmente pautadas no senso comum

que reforça ideologias eurocêntricas arcaicas, na busca do ser humano ideal dentro de um

contexto de sociedade neoliberalista. Tais conceitos muitas vezes, são travestidos pela religião.

Nesse contexto também notamos a destituição de direitos adquiridos a partir de muitas

lutas pela classe trabalhadora e uma crescente perseguição aos educadores do país efetivada,

entre outras vias, pela elaboração de leis para que não se discutam questões sociais, políticas e

de gênero em sala de aula e desvalorização profissional.

A situação se agrava quando voltamos nossos olhos aos movimentos sociais – como

dos indígenas, sem terras, feministas, organizações sindicais, movimento LGBT, negros e

demais agremiações – que lutam em prol da equiparação de direitos humanos e que tentam

desencadear processos de descolonização da mente.

Ao longo deste texto vamos refletir sobre a questão da disseminação de preconceitos

raciais, baseando nossas considerações a respeito dessa temática a partir de aspectos ligados à

colonização do nosso país, essencialmente àqueles que nos levam à dicotomia que diferenciava,

1 Acadêmico do curso de Pós-graduação Stricto Sensu em Letras – nível de Mestrado Área de concentração em

Literatura, Memória, Cultura e Ensino, da Universidade Estadual do Oeste do Paraná – Unioeste, campus

Cascavel; 2 Professor, doutor, docente do mestrado em Letras/Literatura

na época, por um lado os filhos do discurso eurocentrista que impôs um perfil de ser humano

ideal – baseado nos princípios da unidade, em “um só Deus, um só Rei, uma só Língua: o

verdadeiro Deus, o verdadeiro Rei, a verdadeira Língua” (SANTIAGO, 2000, p. 14), princípios

embasadores da pureza racial e, por outro, os filhos da efetiva prática colonizadora – resultantes

da mestiçagem sem restrições e da hibridação cultural.

Essas “duas parcelas” de sujeitos – bastante desiguais em todos os aspectos, inclusive

o numérico – gerados no início do processo de colonização tanto do Brasil como dos países

hispano-americanos dariam origem às futuras nações independentes nesse continente. As

diferenças entre elas, contudo, jamais desapareceriam de fato. Ao contrário, agravaram-se ao

longo da história e deram lugar a uma estrita divisão social de classes mais e menos

privilegiadas.

A princípio desse processo buscou-se, pela catequização, certo equilíbrio – sempre

vantajoso à parcela dominadora – mas quem não se encaixava nesses pressupostos logo era

perseguido e, não raro, morto, por mãos que diziam ter vindo para o continente para civilizar o

“selvagem”, oferecer-lhes a redenção para suas almas ímpias, mostrando-lhes os caminhos da

“verdadeira” fé. Assim pereceram milhões de indígenas no nosso continente.

Além desses assuntos, também debateremos ao longo dessa escrita a questão da

hibridização racial do indígena com os degredados europeus lançados à própria sorte nas novas

terras pela metrópole que os excluía de seu convívio e a consequente não aceitação da cultura

dos povos nativos como válida e igualmente praticável.

Desenvolvimento

Antes de problematizarmos a situação atual do indígena e a perseguição que ele sofre a

todo o momento por mentes que ainda seguem a cartilha colonizadora trazidas pelas naus

europeias, analisaremos alguns aspectos inerentes às questões ideológicas eurocentristas para

tentar entender o porquê deste pensamento retrógrado que não reconhecia (e ainda não

reconhece) os povos habitantes destas terras como civilizações próprias.

Para isso, analisaremos parte da tese da Teoria da Escravidão Natural, defendida no ano

de 1550 por Juan Ginés de Sepúlveda, um sacerdote católico, que também fazia estudos nas

áreas de filosofia e direito, além de ter sido um historiador que defendeu a guerra e dizimação

dos indígenas. Do lado oposto desta teoria estava Frei Bartolomé de Las Casas que defendeu

veementemente a prática humanitária a favor dos aborígenes latino americanos.

Neste debate histórico e polêmico Las Casas (2016) apresenta argumentos contra a tese

de Sepúlveda que:

Considerava os indígenas bárbaros e selvagens apresentando uma tipologia

de quatro diferentes tipos de bárbaros, que foi considerada um dos primeiros

ensaios de etnologia comparada. [...] refutou a tese que os “pecados contra a

natureza” e a “infidelidade” seriam causas para uma “guerra justa” contra os

índios, pois procurava entender suas manifestações culturais como uma forma

de religiosidade que só poderia ser modificada com o tempo e persuasão, mas

nunca pela força. (Las Casas. p. 1384).

Logo o que vimos neste recorte em contraposição da tese de Sepúlveda, que era

justamente o uso indiscriminado da religião como simulacro de um ser humano ideal as vistas

do criador, uma preparação junto ao imaginário popular, da legalização do preconceito e da

escravidão, por serem os autóctones “pecadores naturais” as vistas do clero.

Porém a luta de Las Casas, não surtiu o efeito desejado, pois em 1552, suas obras foram

proibidas e censuradas para a leitura, morrendo com ele o ideário de humanização no que dizia

respeito ao indígena e a interpretação deste como civilização.

Outra análise cabe ser expressa pela ótica de Santiago (2006. p. 67), onde o mesmo

retrata o posicionamento dos monges da Ordem de São Jerônimo, estudados por Levi Straus e

de ordem psicossociológica, quando questionam se os índios eram capazes “de viver por eles

próprios, como camponeses de Castilla”. Um pouco mais adiante, afirmam que “[...] Seria

melhor para os índios que se transformassem em homens escravos do que continuassem a ser

animais livres...”, logo, notamos por estas declarações o quão natural soava a questão de

servilidade dos indígenas deste continente pois os mesmos nem alma teriam; comparados com

animais, a escravidão seria de certa forma, até um favor para que salvas fossem suas almas.

Segundo expõe Seffner (1993. p. 08), a fome e as pestilências contraponteavam com o

luxo desvairado do clero e da nobreza. Tal situação de extremos gerou uma legião de

flagelantes, miseráveis os quais, apesar de todas estas agruras, ainda tinham de pagar seus

impostos (capitação, dízimo, taxa de nascimento, taxa de casamento talha, corveia,

banalidades, mão morta), para seu senhor feudal. Este, mantinha os exércitos para seu rei, e

também cobrava os dízimos dos vassalos para manter o clero, o qual lhe garantiria entrada

franca aos portões celestiais após a morte. Como se não bastasse tudo isso, ainda havia o

processo de transição do feudalismo para o mercantilismo, ou por que não dizer capitalista.

Nesse interim, e como se ainda já não fosse muito, aconteciam os processos de Reforma

Luterana e Contra Reforma Católica quando Martinho Lutero enfrenta a tirania da igreja da

época e a mesma responde ainda com mais severidade inquisitorial. Obviamente era uma

estrutura social doente e necessitava de cuidados urgentes que, como veremos a seguir,

estruturava-se política e socialmente em bases conservadoristas clericais. Estas não raro

vendiam cargos para os mais abonados, ignorando a vocação para a vida religiosa, como citado

em Seffner (1993):

O clero era constituído, em sua maioria, ou por indivíduos muito ricos, que

compravam os cargos superiores de bispo, cardeal e arcebispo, ou então por

padres de paróquia que não tinham quase nenhuma instrução ou vocação, mas

viam nessa função uma maneira de enriquecer à custa dos tributos dos

camponeses e artesãos. (SEFFNER. p 06).

Entendem-se, pelo visto acima, algumas convicções básicas da formação do ideário

daquele povo, o qual primava sempre pela manutenção de um “modus vivendi” pautado na

religião, no conservadorismo, mas sem deixar de lado a influência do poder advindo das posses

e do dinheiro. Isto, basicamente, entraria em choque direto com os nativos do continente sul-

americano, que tinham uma base social totalmente adversa às eurocentristas, não conheciam e

não queriam conhecer o dinheiro. É, justamente, este choque de culturas que mais tarde faria

acontecer a matança indiscriminada de nativos, pela não aceitação de parte dos europeus da

cultura dos mesmos como expressões da civilização que os gerou.

O europeu chegou ao “Novo Mundo” com uma série de rituais e até mesmo crendices

e misticismos desconhecidos pelo nativo. Contudo, este é conquistado pelos religiosos que se

utilizaram de práticas didáticas, no mínimo inteligentes, como a música e as artes para ganhar

a confiança do indígena tão logo decifraram sua linguagem. Sobre estes rituais notamos,

novamente em Seffner (1993) que:

[...] a vida cotidiana era toda impregnada por pequenos rituais católicos:

fórmulas para benzer alimentos que iam ser ingeridos, a água, as frutas, o

óleo, o pão; rezas pedindo proteção contra catástrofes, contra os perigos das

viagens, dos animais, das pragas. Praticamente todas as formas de doença e

loucura eram atribuídas a feitiços do diabo, e eram resolvidas por meio de

exorcismos, sinais-da-cruz, água benta, preces, missas. Todas as

manifestações culturais – pintura, música, literatura, arquitetura... –

utilizavam elementos ligados ao sagrado. (SEFFNER. p. 05).

Diante deste contexto do conservadorismo, da família “de bem”, das boas práticas

sociais e religiosas e da perseguição incansável do ser humano “ideal”, defendidos pelo

discurso da moral religiosa e do poder político das metrópoles colonizadoras, há que se fazer

contraponto com as ações daqueles sujeitos europeus que, de fato, levaram a cabo o processo

de colonização e que, na sua prática efetiva, geraram os milhões de filhos mestiços,

considerados bastardos e inadequados como herdeiros legítimos de seu progenitor masculino.

Situação social e histórica que a metrópole buscou contornar ao enviar à colônia as “mulheres

brancas e cristãs” para, assim, gerar os filhos do discurso – estes sim, aptos e aceitos para herdar

de seus pais – brancos – o nome, as posses e os direitos europeus transladados ao “Novo

Mundo”.

Vejamos, a seguir, alguns aspectos relacionados à questão dos degredados, sujeitos

enviados pelas coroas europeias para dar início ao processo de colonização das terras recém-

anexadas aos seus domínios na América.

Segundo Torero (1963), que relata com riqueza de detalhes a questão exposta acima,

esses degredados foram descritos de forma contundente e peculiar na narrativa de Cosme

Fernandes Pessoa – o bacharel de Cananeia.

Cosme, possivelmente um cristão novo, que entrou em desgraça ao ter relações sexuais

com Lianor, filha de um fidalgo português, réu confesso foi enviado junto as naus de Pedro

Álvares, punido com o degredo por atentar contra a ordem, a moral e os bons costumes. Ao ser

deixado nestas terras e após passar por diversas agruras, mudou-se para o povoado São Vicente

e casando-se com uma índia, ficou muito rico.

Em seu diário descreveu suas desventuras na Europa e como que, da condição de

religioso, tornou-se um marginal confessando seu pecado para seus superiores imediatos:

“ A culpa foi toda minha. Eu sugeri que fôssemos até a despensa! Eu a seduzi

como uma vil serpente! Eu a desnudei! Eu me aproveitei de sua inocência e

pequei contra a castidade! Sei que não sou digno de me tornar um pregador

da palavra de Deus. Pagarei com devoção e ofertas mil vezes a penitência que

me derdes! Voltarei à minha casa e manterei silêncio sobre isso. Apenas não

castiguem a gentil Lianor, pois nunca houve criatura mais bela e virtuosa sob

o céu!” (Torero. p. 18).

Pouco mais adiante em seu relato já a bordo, descreve nomes de alguns degredados e

seus pecados:

* Álvaro, Miguel e Gaspar Vaz por serem salteadores na região de Penafiel.

Eram procurados havia três anos. Só conseguiram prendê-los porque, depois

de assaltarem um carregamento de vinho, beberam o roubo em vez de vendê-

lo, no que foram encontrados desmaiados à beira da estrada; [...] * Amador

Fróis por ter chamado um ouvidor de Cu das Gentes; [...] * Baltazar Gançoso

por pregar que não há maldade em deitar-se com as filhas; [...] * João

Ramalho, por ter dito que a religião é um engodo e é asno quem dá dinheiro

aos padres;[...] * Afonso Ribeiro por ter abusado de uma freira; * José de

Sant’ Anna por vestir se de padre para pedir esmolas; [...] * Pires Gatão, por

ter sido encontrado sob a cama da rainha; (Torero. p. 28).

Analisamos aqui o processo considerado pecaminoso de Cosme Fernandes, os

criminosos e seus crimes, os quais as vistas do direito penal, nada mais fizeram que, ou

questionar o sistema ou desafiar a igreja, além de alguns desajustes sexuais, comuns para

aquela época.

Esses sujeitos, menosprezados pelo sistema social, político e econômico de seu local de

origem, tiveram uma importância significativa no processo de mestiçagem e hibridização dos

povos latino-americanos, pois foram eles quem geraram muitos daqueles que chamamos de “os

filhos da prática”. Longe do poder coercivo da metrópole, encontraram aqui um espaço de

liberdade jamais experimentado no universo europeu e esse inclui também as múltiplas e livres

relações sexuais. Vejamos o que contou o degredado Cosme sobre isso:

Como já disse, era filha do chefe Piquerobi e chamava-se Terebê. Tomei-a

por esposa, considerando que era grande honra deitar-me com a filha de um

principal, e acreditava que se a tratasse bem poderia interceder por nós quando

fosse preciso, mas era isso um engano, porque entre essa gente vale tanto a

palavra de uma mulher como a de um papagaio. (Torero. p. 63).

Os tantos indivíduos gerados nessas relações entre degradados e nativas eram filhos não

reconhecidos pelo sistema religioso europeu, bastardos como eram denominados não possuíam

direito a reclamar a paternidade.

Quanto a outra parcela, aos que chamamos de “os filhos do discurso”, estes eram

reconhecidos pelo poder colonial português, pois eram oriundos das relações estáveis e

reconhecidas entre brancos europeus. Após terem gerado muitos filhos bastardos, mestiços,

vários desses colonizadores buscavam uma jovem católica e branca (mulher para se casar),

para contrair matrimônio e educar os futuros herdeiros de suas posses dentro dos preceitos

defendidos pela ideologia da “unidade e pureza”. Com esta mulher teriam poucos filhos, para

que estes não brigassem pela herança, em caso de morte de seu genitor. A vinda de tais esposas

para o Novo Mundo, se dava de diferentes formas. Segundo Ramos (2015)

As crianças subiam a bordo somente na condição de grumetes e pagens, como

órfãos do Rei enviadas ao Brasil para se casarem com os súditos da Coroa,

ou como passageiros embarcados em companhia dos pais ou algum parente.

[...] Crianças, mesmo acompanhadas dos pais, eram violadas por pedófilos e

as órfãs tinham que ser guardadas e vigiadas cuidadosamente a fim de manter-

se (sic) virgens, pelo menos, até que chegassem à colônia”. (Ramos. p. 19).

Outro aspecto a ser analisado, foi quando da vinda do padre jesuíta para o Brasil.

Segundo Costa (1946), o religioso notando práticas imorais aos olhos da igreja, dos homens

que aqui viviam, evidencia em carta para seus superiores “que era coisa mui conveniente

mandar S. Alteza algumas mulheres que tem pouco remédio de casamento, ainda que fossem

erradas, porque casariam todas mui bem”. (COSTA. 1946). Ressalta também a necessidade de

moças órfãs, donzelas para casamento de alguns mandatários. Vejamos:

Nóbrega sabia da existência, em Lisboa, do mosteiro das órfãs (as órfãs da

rainha), instituição destinada ao “amparo e abrigo de algumas órfãs nobres, e

pessoas honradas”, “que alguns religiosos e homens de negócio desta corte

erigiram e sustentavam”, e para a qual D. João, o 3.º, considerando as altas

finalidades, a tomou “a sua proteção, no ano de 1543, dotando-a com rendas

certas e anuais, para a manutenção de vinte e uma órfãs honradas, filhas de

ministros, e ainda fidalgas, cujos pais houvessem falecido em serviço da

coroa. (COSTA. p. 105).

Por estas vias podemos notar nitidamente a formação distinta de duas classes sociais,

mulheres abastadas provavelmente se casariam com nobres e aquelas com “pouco remédio de

casamento”, com a ralé ou com os degredados analisados aqui.

No processo de colonização do Brasil, casamentos com nativas não eram proibidos,

mas geravam pretensa visão preconceituosa, como ressalta Holanda (1995), vejamos:

Longe de condenar os casamentos mistos de indígenas e brancos, o governo

português tratou em mais de uma ocasião, de estimulá-los, e é conhecido o

alvará de 1755, determinando que os cônjuges, nesses casos, “não fiquem

com infâmia alguma”, antes muito hábeis para os cargos dos lugares onde

residirem não menos que seus filhos e descendentes, os quais até terão

preferência para qualquer emprego, honra ou dignidade, sem dependência de

dispensa alguma, ficando outrossim proibido, sob pena de procedimento, dar-

se lhes o nome de caboclos, ou outros semelhantes, que se possam reputar

injuriosos’. (HOLANDA. p. 56).

Notamos, na citação do pesquisador, que os mestiços gerados nestes relacionamentos,

“até” teriam preferência para qualquer emprego. Logo, a utilização deste elemento de escrita

indica a força argumentativa do enunciado ou a própria direção que o texto quis relatar,

estruturando, assim, nossas palavras sobre a questão do preconceito quanto à hibridização

étnica no que diz respeito ao indígena com o indivíduo degredado.

Segundo Ribeiro (2006) “surgimos da confluência, do entrechoque e do caldeamento

do invasor português com índios silvícolas e campineiros e com negros africanos, uns e outros

aliciados como escravos” (RIBEIRO. p 17). Logo, não nos é desconhecido o fato de que no

Brasil – por aspectos de sua formação feita por degredados sociais (desafortunados, prostitutas,

viúvas, inimigos políticos da resistência ao clero e nobreza e ex-detentos) – foi destino cabível

a todos esses que se indispuseram com os regimes absolutistas, considerados de certa forma,

“subversivos”.

Desta forma, degredando e excomungando, as mãos da Santa Inquisição, acuadas pelas

teses de Lutero promoveram uma limpeza étnico-social na Europa afastaram a plebe de quem

tinha sangue nobre em terras européias.

Conforme comentários de Tapajós (1953, p. 67), o Brasil havia sido “declarado lugar

de degredo, e do pior grau, para criminosos do Reino”. Já segundo escreve Prado (1986, p. 81),

os degredados enviados à colônia eram “a escuma turva das velhas civilizações”. O estudioso

ainda comenta que se tratava de “um povo gafado do germe da decadência.” (1986, p. 81). Ruy

(1949, p. 12) menciona, em relação à classe dos degradados, que se constituía do “enxurro da

sociedade continental” e que eles representavam “tudo que havia de mau” (1949, p. 13). O

pesquisador ainda acrescenta que estavam “esvaziando as prisões e limpando as ruas do

Reino.” (1949, p. 13).

Tais retratos dos sujeitos que foram destinados a colonizar as novas terras não

precisariam muito mais de análises, porém ainda reforçamos essas imagens com outras duas

informações contundentes que retratam o desprezo absoluto com que eram tratadas estes párias

sociais. Silva (1953) relatou muito bem esta situação de segregação social no seio da sociedade

européia mencionando que estes homens eram “o povilhéu rafado dos enxurradeiros lisboetas,

a arraia miúda anônima e miserável de todos os tempos.” (1953, p. 211). Logo, no seguimento

do processo de povoamento de nossas terras, veremos estes sujeitos engendrando os “filhos da

prática” colonizadora com as indígenas, gerando o mestiço, o híbrido social de toda esta

amálgama cultural que anos depois povoaria estas terras tupiniquins. Estes rebentos

carregariam consigo a mácula não destes sujeitos eliminados de suas sociedades europeias, mas

a da sua origem mesclada com a dos nativos ou escravos já que a simples cor da pele branca

dos desterrados passaria, com o evoluir do tempo, a ser salvo-conduto das tantas injúrias que

os mestiços sim passariam a sofrer.

Por outro lado, Nash (1950) refere-se às embarcações lotadas destes estratos sociais dos

quais Portugal e Espanha quiseram livrar-se, tornando-os invisíveis aos olhos da sociedade ao

trazê-los para a América. Sobre este tema escreveu que “quase tudo quanto Portugal fez pelo

Brasil foi enviar duas caravelas por ano a vomitar em seu litoral resíduos da sociedade.”

(NASH, 1950, p.126).

A partir do que foi exposto acima, cremos não haver dúvidas da intenção real e absoluta

das coroas de Portugal e Espanha de “varrer” suas empurrando a “sujeira social” para onde

ninguém tivesse conhecimento de sua existência.

Todo este contingente indesejado na metrópole viria a se miscigenar com as nativas das

colônias além do Atlântico. Tal fato, na nossa visão, ajudaria a estruturar o preconceito e a não

aceitação destes filhos da terra, agora “castiçados” com a escória social da Europa que

desconsiderava seus usos e costumes como uma civilização de valor e tradição.

No que diz respeito à formação social, política e estrutural do nativo destas terras, e em

sua defesa, vejamos a concepção de Athanázio (2003), o qual analisa a prática de civilização

às vistas dos povos da terra:

Exercendo posse mansa e pacífica naquela região, sem qualquer interrupção,

herdada dos ancestrais, nunca contestada por quem quer que fosse, os índios

haviam consolidado a propriedade destes tempos imemoriais. Tinham um

governo instituído segundo suas tradições, exteriorizado na pessoa do cacique

(executivo), de uma assembleia convocada em certas ocasiões (congresso) e

algum sistema destinado a julgamentos (judiciário). Eram, pois, uma nação

organizada à sua maneira, com governo, povo e território, requisitos exigidos

pela Ciência Política. (ATHANÁZIO. 2003, p. 88).

Portanto, notamos o quão equivocado está qualquer raciocínio que prima pela não

aceitação da organização social dos povos nativos deste continente, uma vez que, aos seus

moldes de sociedade, sempre tiveram uma estrutura política que não podemos negar como

organizada. Claro que está organização não se estruturava segundo as concepções

eurocêntricas, como estamos acostumados a vivenciar, mas nos seus próprios meios de se fazer

civilização.

Ao fazermos estas análises comparativas entre o discurso de unidade e pureza que regia

as ações da metrópole colonizadora no final do século XV e início do XVI e a efetiva prática

de mestiçagem e hibridação praticada pelos sujeitos encarregados das ações colonizadoras nas

colônias americanas, notamos muitas contradições e até poderíamos citar o termo “dois pesos

e duas medidas”. Um detalhe significativo do sujeito, “cidadão de bem”, europeu daquela

época, dá-nos uma ideia dos valores cultivados pelo colonizador, cujo distintivo máximo

residia, na sua condição de “ser europeu”, branco e, portanto, superior, independente de sua

conduta. Vejamos o que nos revela Clovis Lugon (2010) sobre a prática e o discurso ao se

referir a tal cidadão:

Aqui, observa um missionário das reduções, de passagem pelo Prata, todos os

brancos são considerados nobres. Eles desprezam qualquer tipo de arte.

Aquele que realiza algum trabalho útil é desprezado como se fosse um

escravo. E quem não sabe nada de nada, e vive em pleno ócio, este sim é um

caballero, um cavaleiro de verdade, um nobre. (LUGON. 2010, p. 101).

A cor da pele e o princípio do nada fazer – ou seja, viver do mando e da condição de

impor aos demais o exercício das atividades necessárias à sobrevivência – era o que dava o

caráter de “nobreza” ao colonizador europeu. Assim, temos, de um lado, o “nobre” colonizador

branco e, de outro, os colonizados, nativos das terras americanas. Estes também são descritos

por Lugon (2010). Vejamos como o estudioso refere-se ao indígena guarani, tão tachado de

bárbaro, de selvagem, de ímpio as vistas do que a Europa entendia como civilização, sendo ela

a invasora destas paragens:

Os guaranis, ao contrário, se apaixonavam por seus novos trabalhos. Os

missionários ficavam extasiados com sua habilidade manual. Qualquer objeto

desconhecido era observado e logo copiado. As mulheres eram iguais aos

homens no desejo de aprender e aperfeiçoar-se. (LUGON. 2010, p. 101).

Esse parecer desfaz o senso comum – que passou de mentes em mentes ao passar dos

anos de sociedade para sociedade – o qual persegue o indígena e não o aceita como parte

integrante das atuais sociedades constituídas na América.

De acordo com Darcy Ribeiro (1995), o comportamento e as expectativas do autóctone,

em relação ao europeu, eram bastante contrárias à realidade da índole do colonizador, pois o

nativo esperava que estes

[...] provavelmente seriam pessoas generosas, achavam os índios. Mesmo

porque, no seu mundo, mais belo era dar que receber. Ali, ninguém jamais

espoliara ninguém e a pessoa alguma se negava louvor por sua bravura e

criatividade. Visivelmente, os recém–chegados, saídos do mar, eram feios,

fétidos e infectos. Não havia como negá-lo. (RIBEIRO. 1995, p. 38).

Ribeiro (1995), em seus estudos, retrata a situação a que o indígena é exposto no

processo de colonização, comentando que o nativo, um tanto quanto tarde demais, percebe o

seu engano, mas, quando isso se dá, a tragédia já havia recaído sobre eles:

Pouco mais tarde, essa visão idílica se dissipa. Nos anos seguintes, se anula e

reverte-se ao contrário: os índios começam a ver a hecatombe que caíra sobre

eles. Maíra, seu deus, estaria morto? Como explicar que seu povo predileto

sofresse tamanhas provações? Tão espantosas e terríveis eram elas, que para

muitos índios melhor fora morrer do que viver. Mais tarde com a destruição

das bases sociais da vida social indígena, a negação de todos os seus valores,

o despojo, o cativeiro, muitíssimos índios deitavam-se em suas redes e se

deixavam morrer, como só eles tem o poder de fazer. Morriam de tristeza,

certos de que todo o futuro possível seria a negação mais horrível do passado,

uma vida indigna de ser vivida por gente verdadeira. Sobre esses índios

assombrados com o que lhes sucedia é que caiu a pregação missionária, como

um flagelo. (RIBEIRO. 1995, p. 39).

A partir daí, começa um processo de naturalização e perseguição do indígena e sua

cultura, desmerecendo, desconsiderando e desconstruindo saberes acumulados por séculos a

fio no âmbito destas aldeias, e posteriormente, chegando até os dias atuais esta negação ou não

aceitação dos povos da terra como parte integrante da civilização brasileira.

Considerações finais

O fato de pensarmos como elite colonial, sendo que, grande parte dos brasileiros

descende de degredados pode ser um dos elementos cruciais que nos levam a não aceitar o

indígena como civilização. Outro ponto a ser considerado poderia ser que tanto a nossa história

como a literatura é embasada totalmente na portuguesa (europeia) e não na literatura hispano-

americana ou quiçá baseada em uma produção nacional, o que, basicamente, poderia influir

negativamente no fato de nosso não (re) conhecimento de classe e manutenção ideológica do

pensamento colonial.

Por todos estes pontos analisados no texto caberia a atribuição desta invisibilidade e o

desprezo ao indígena como uma civilização constituída.

Precisamos, para nos estruturar como um povo uno, desfazer esta ideia que a

hibridização empobrece, pois a partir de várias análises podemos notar que mesma só tem a

contribuir para riqueza da diversidade cultural.

Nos parece nítida a versão que tanto filhos da prática como filhos do discurso,

utilizavam-se a todo o momento de monumentais estratégias, pautadas na ideologia cristã para

escravizar, pilhar, desrespeitar uma cultura ancestral que já existia por estas terras por milhares

de anos. Esta forma de pensamento colonialista se expressa na versão que a única salvação de

uma Europa corroída por tantos disparates sociais dos séculos XII ao XVIII, teria de vir buscar

a sua salvação nos ventres férteis das formosas indígenas da América do Sul.

Aparentemente também seria nítida a informação que a não aceitação do índio como

civilização é pelo fator eurocentrista sempre presente aos olhos dos imigrantes europeus,

colocando – os como etnia superior, porém, no entanto nada mais é, que a vergonha de ter

cometido tantos crimes contra a humanidade por estas terras e, logo, cada vez que se vê o

indígena, isto viria a tona. A figura do índio materializa a própria desonra do invasor.

O mesmo indígena que resistiu ainda luta bravamente reivindicando seu espaço, seu

reconhecimento perante a sociedade e apesar de tantas atrocidades que foram feitas e que

continuam a acontecer, esta perseguida etnia ainda tem muito a nos ensinar.

E por fim, analisamos que, uma sociedade em que ninguém está ocioso, ninguém é

sujeito a excessos no trabalho, alimento não é mais abundante, porém distribuído de igual

forma para seus cidadãos; idosos, órfãos e viúvas tem socorros desconhecidos no resto do

planeta pela força da medicina natural e sabedoria milenar, em que todos se casam por escolha

e não por interesse, em que a multidão de crianças, antes de ser um fardo, um estorvo, é motivo

de alegrias...Neste lugar impera o suave império da opinião, traçando elementares conceitos de

um povo, nativo, da terra, como civilização...A civilização indígena.

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