OS FUNDAMENTOS DA ÉTICA CONTEMPORÂNEA

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FILOSOFIA

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINACENTRO DE FILOSOFIA E CINCIAS HUMANAS PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM FILOSOFIA

OS FUNDAMENTOS DA TICA CONTEMPORNEA NAS PERSPECTIVAS DE HABERMAS E TUGENDHAT

Autor: Andrei Luiz Loda Orientador: Alessandro Pinzani

Florianpolis, Dezembro de 2007.

Andrei Luiz Loda

OS FUNDAMENTOS DA TICA CONTEMPORNEA NAS PERSPECTIVAS DE HABERMAS E TUGENDHAT

Dissertao apresentada ao curso de Ps-Graduao em Filosofia, do Centro de Filosofia e Cincias Humanas, da Universidade Federal de Santa Catarina, como requisito para a obteno do ttulo de Mestre em Filosofia, sob orientao do Prof. Dr. Alessandro Pinzani.

Florianpolis 2007

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Agradecimentos Agradeo, em primeiro lugar, ao programa de Ps-Graduao em Filosofia pela oportunidade de aprimorar meus estudos filosficos e concretizao deste trabalho. Ao professor Alessandro Pinzani, meu orientador, pela pacincia, compreenso, incentivo e confiana. Agradeo pelo tempo a mim concedido e pela amizade construda ao longo estes ltimos anos. Aos meus amigos, Gilmar E. Stchepaniki, Marciano Spica, Marcelo Doro, Lendro C. Ody, Mrcio Mller, Marcio Trevisol, Mariel Sandri e Giovanni Formighieri pela amizade, pelas conversas filosficas ou no, pelo apoio e ajuda incondicional. Aos meus pais, Juarez e Clarice, minha irm Liziane, todos os meus familiares que de uma forma ou outra contriburam para a realizao deste trabalho, com apoio incondicional. E a todas as pessoas que contriburam direta ou indiretamente para a concluso desta dissertao.

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Para Glaucia, por fazer parte de minha vida. Obrigado!

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RESUMO:Este trabalho tem como proposta analisar duas posturas distintas de fundamentao da tica contempornea. Os dois autores aqui estudados so Habermas e Tugendhat. Habermas defende a possibilidade de fundamentao tica atravs de uma tica do discurso, demonstrando que podemos chegar ao consenso por meio de proferimentos lingsticos. O que d legitimidade a este consenso a fundamentao do princpio U. Por outro lado, Tugendhat procura compreender a tica atravs de uma anlise semntica dos juzos morais. No livro Lies sobre tica, Tugendhat analisa as varias posturas ticas buscando encontrar algo de plausvel. Estas duas posturas mantm viva o problema de fundamentao tico. Palavras chave: Habermas, Tugendhat, discurso, juzos morais, princpio U, acordo.

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ABSTRACT:This work wants to analyze two different strategies of moral justification in contemporary ethics. The two authors here studied are Habermas and Tugendhat. Habermas defends the possibility of moral justification by elaborating a discourse ethics, in which he aims at demonstrating that one can reach moral consensus through linguistic assertions. What gives legitimacy to this consensus is the justification of the moral principle U. On the other hand, Tugendhat tries to understand ethics through a semantic analysis of moral judgment. In his book Lectures on ethics he analyzes several moral positions looking for plausible elements. Both these theories keep alive the problem of moral foundation. Key-words: Habermas, Tugendhat, discourse, moral judgment, principle U, consensus.

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SUMRIO

CONSIDERAES INICIAIS.................................................................................................09 Captulo I CRITRIOS DA FUNDAMENTAO TICO-DISCURSIVA DA MORAL

HABERMASIANA..................................................................................................................13 1.1 A reformulao tica pensada por Habermas..........................................................14 1.2 Argumentao o caminho para o entendimento...................................................22 1.2.1 Ao comunicativa e ao estratgica......................................................25 1.2.2 A fora ilocucionria dos atos de fala na efetivao da racionalidade comunicativa......................................................................................................3 0 1.3 Pretenses de validade............................................................................................34 1.3.1 Atos de fala e as pretenses de validade..................................................38 Captulo II A FUNDAMENTAO DO PRINCPIO DE UNIVERSALIZAO U..........................47 2.1 O princpio de universalizao como regra de regulamentao moral e princpioponte..............................................................................................................................48 2.2 A contradio performativa a ser evitada....................................................54 7

2.3 Os pressupostos necessrios para a fundamentao do princpio moral como regra da argumentao............................................................................................................57 2.4 Das divergncias de fundamentao moral entre Habermas e Tugendhat..............64 2.4.1 Acesso cognitivo da moral..............................................................65

2.4.2 Habermas e Tugendhat: o acesso cognitivo e volitivo da moral............67Captulo III O PROBLEMA DA FUNDAMENTAO TICA EM ERNST TUGENDHAT.................74 3.1 Um esclarecimento sobre os conceitos de moral e juzo moral..............................77 3.2 Objees tica kantiana........................................................................................86 3.3 Objees tica do discurso...................................................................................94 3.4 Motivao: tentativa de esclarecimento plausvel da moral....................................97 CONSIDERAES FINAIS.................................................................................................105 REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS..................................................................................109

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Consideraes iniciaisA problemtica tica foi o tema que sempre me chamou ateno dentro da filosofia. Sua importncia devida, pois dentre as teorias que conhecemos at hoje encontramos divergncias e no chegamos a um acordo efetivo sobre qual o fundamento da tica e da moral. Desde os gregos a tica tratada como um estudo sobre as aes humanas. Na tragdia o ideal de justa medida era entendido como o equilibro entre as aes desmedidas e a punio dos deuses. A partir de Scrates, Plato e Aristteles as aes corretas assumem a idia de um conhecimento de si mesmo, a prtica de atos virtuosos e a busca da felicidade. por meio destes princpios que a tica moderna e contempornea busca solucionar seus problemas morais, ou seja, quando falamos em aes humanas devemos compreender a tica em termos de problemas de aes. Em nossos dias, com o avano tcnico e cientfico, as pessoas deixaram de lado elementos e princpios que orientem as aes para o que correto e justo. Esta busca de orientao, como vimos acima, teve incio com os gregos: Scrates e Plato, mas sobre tudo com Aristteles (384-322 a.c) e com sua tica a Nicmacos, a partir da qual a tica foi tratada como uma disciplina filosfica. Sua tica baseava-se no fim ltimo do homem, a felicidade, caracterizando-se, assim, como uma tica teleolgica. Dois mil e cem anos aps Aristteles, Kant abandona esta idia e introduz um novo conceito do dever moral o dever pelo puro dever dando origem a tica deontologica. a partir desta compreenso da tica kantiana que inicia o presente estudo. O objetivo aqui fazer a anlise de dois autores contemporneos, que apesar de viverem numa mesma poca, no partilham do mesmo ponto de vista quanto a fundamentao tica: Jrgen Habermas e Ernst Tugendhat. Dentro do pensamento tico atual, a tica do discurso encontra lugar de destaque. A evoluo para um novo contexto tico decorrente de um progresso cientfico e tecnolgico que provoca um desafio para a sociedade em geral; responsabiliza a sociedade, exigindo que se desenvolva uma nova teoria que equacione os problemas ticos surgidos. Essa nova teoria 9

d nfase linguagem, utilizada como meio das reflexes tericas e prticas, propiciando uma abordagem inovadora em relao aos problemas tico-morais. A fundamentao da tica do discurso liga-se a normas e princpios, os quais devem obedecer a um acordo comum, postulado racionalmente entre os concernidos que participam de uma comunidade real de comunicao. Como vrias outras propostas ticas, a tica do discurso busca um princpio moral que possa validar as normas de ao do discurso prtico. Nesse sentido, Habermas introduz o princpio de universalizao como sendo a regra da argumentao, a qual se fundamenta a partir dos pressupostos pragmticos da linguagem. O princpio de universalizao ultrapassa a perspectiva de uma cultura determinada, baseando-se na comprovao pragmtico-transcendental de pressupostos universais e necessrios de argumentao. fundamentao desse princpio de universalizao que Habermas transfere toda a possibilidade de sucesso de sua tica do discurso. Para que isso acontea, antes de mais nada, precisa-se provar a necessidade desse princpio no que diz respeito validao das normas. Habermas evidencia que o tema fundamental da filosofia a razo. Na teoria da ao comunicativa, a razo a discusso fundamental, tentando estabelecer os atributos que caracterizam essa idia de razo. Nesse caso, deve-se estabelecer como objetivo os elementos que constituem a racionalidade comunicativa, o que feito atravs da pragmtica, que procura encontrar a necessidade para estes elementos que a constituem e a tornam possvel. A busca das condies que tornam possvel a ao comunicativa o tema de anlise da filosofia. A ao comunicativa pressupe o uso da linguagem como meio para obter acordo, existindo uma interao lingstica evidenciada pela pragmtica da linguagem. Disso decorre que a pragmtica tenha como tarefa mapear as condies que tornam possvel a ao comunicativa. Essas mesmas condies tambm caracterizam formalmente a racionalidade comunicativa. Com esta racionalidade comunicativa, Habermas chega s quatro pretenses de validade e o princpio do discurso. Estas quatro pretenses so: a verdade, a retitude, a veracidade e a inteligibilidade. As pretenses de validade e o princpio do discurso devem ser cumpridos para que haja ao comunicativa, para que ocorra entendimento, consenso. Neste contexto, um dos principais objetivos deste trabalho mostrar o caminho seguido por Habermas para encontrar a fundamentao de sua proposta tico-discursiva. Para isso, uma srie de questionamentos orientar o processo de investigao do tema em questo. O que Habermas entende por ao comunicativa? De que maneira Habermas consegue dar validade para a sua proposta tica, baseada na ao comunicativa? Todos so capazes de ao 10

comunicativa, ou esta se restringe a apenas alguns indivduos? Dado que o objetivo principal da comunicao atingir o consenso, quais so os pressupostos que possibilitam o alcance de uma argumentao vlida universalmente? Quais so as pretenses que do validade a uma ao entre falantes? De que maneira essas pretenses ocorrem em um discurso comunicativo? Quais so os pressupostos da ao comunicativa? Tais pressupostos so universais ou so relativos a cada situao real de fala? Quais os elementos que determinam o alcance do entendimento dos participantes de uma comunidade de comunicao? O que significa entendimento? Como possvel alcanar o entendimento? Se Para alcanar este entendimento, Habermas exige um princpio U que oriente este processo, qual a essncia do princpio U e do princpio D? Como se d a determinao de normas morais mediante a aplicao do princpio da universalizao? O princpio U critrio suficiente para a determinao do agir moral? Para Habermas o acordo ou consenso moral somente acontecer atravs de bons argumentos. Em Habermas a razo ser intersubjetiva. O que se percebe em Habermas o papel central da linguagem para se alcanar o consenso moral. Isto algo que acontece dentro de uma comunidade ideal de discurso, atravs da troca de proferimentos lingsticos. Tugendhat, assim como Habermas, procura reformular a tica kantiana demonstrando que na tica de Kant, o uso absoluto da razo no pode ser o fundamento das aes morais. Tugendhat segue a linha filosfica de Moore e Wittgenstein, se caracterizando como um filsofo analtico e no formal como Kant e Habermas. Seu objetivo no livro Lies sobre tica analisar os vrios modos de explicao da moral e a partir disso encontrar um conceito plausvel para este problema. Ele faz isso atravs de uma anlise semntica destas expresses morais, elucidando, particularmente, o que entendemos por juzos morais e o uso das palavras bom, mal e dever. Para o autor, quando as expresses forem morais, reivindicam para si o carter bom. Ento, ao afirmarmos que humilhar algum no bom porque isto no correto. Bom, aqui, no entendido no sentido de utilidade, mas de respeito e considerao. Linguisticamente, sempre haver vrias maneiras de agir; sempre existir o vcio em oposio virtude. Neste sentido, nem sempre os juzos morais podem ser regrados ou normatizados. Tugendhat tambm defende que no deva existir um uso absoluto para a palavra bom. Para isso, faz-se necessrio o abandono da moral tradicional (autoritria). Quando se quer justificar o conceito de moral devem-se justificar os motivos que um indivduo tem para aceitar autonomamente participar de uma comunidade moral. Em vista disso, ele percebe que a moral contempornea no deve se basear neste argumento autoritrio e absoluto. Desta forma, a 11

pessoa deve ter seus direitos respeitados, e toda ao tende a tratar o outro como digno de direitos ao participar de uma comunidade moral. Assim, a moral se cumpre ao passo que o individuo assume seu papel de ente cooperador, que mantm uma relao recproca com os demais cooperados. A principal idia defendida em Lies sobre tica est no fundamento da moral, que no deve ser tratado de forma rgida como fez Kant (razo absoluta) e nem de forma to solta como fazem os contratualistas. O que Tugendhat prope uma fundamentao frente s outras fundamentaes da moral, j que a moral religiosa perde espao entre as aes morais. Tugendhat constri sua concepo moral sobre o conceito de vergonha. Esta idia de vergonha, como fora de sano interna, representa a vergonha do individuo, bem como a indignao do outro. Sua proposta, pois, buscar um fundamento plausvel, baseado nos motivos e razes que temos em agir dentro da comunidade moral. Desta forma, a linguagem o fator decisivo para o entendimento moral em uma determinada comunidade. Pode-se entender a moral como uma quase-moral, ao se colocar entre uma moral forte (no sentido kantiano) e uma moral fraca (no sentido do contratualismo). Os dois primeiros captulos versaro sobre a proposta de tica discursiva de Habermas. Nele chegaremos a uma compreenso de todos os conceitos empregados pelo autor para tentar legitimar moralmente sua tica do discurso. Entre os conceitos podemos destacar: atos de fala, mundo da vida, pretenses de validade, agir comunicativo, racionalidade comunicativa, comunidade ideal de fala, principio de universalizao U. Ao final do segundo captulo ter incio o estudo da proposta tica de Tugendhat atravs da interpretao e crtica proferida por Habermas. No terceiro e ltimo captulo, ser apresentado, em primeiro lugar, o projeto de Tugendhat e sua anlise semntica da linguagem a partir das expresses morais proferidas dentro de uma possvel comunidade moral; a crtica moral kantiana e a tica do discurso e, por fim, o fundamento plausvel de moral encontrado por Tugendhat a partir de seu projeto filosfico-analtico.

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Captulo I

1 - OS CRITRIOS DA FUNDAMENTAO TICO-DISCUSIVA DA MORAL HABERMASIANAA tarefa da tica do discurso encontrar um princpio que permita resolver os conflitos de forma racional e, tambm, fundamentar tal princpio. A tica do discurso referese queles pressupostos da comunicao que cada um de ns, intuitivamente, tem que fazer sempre que quer participar seriamente de uma argumentao (HABERMAS, J. 1998). A ao comunicativa , por sua vez, dentro do mundo vivido, uma objetividade que toma reconhecimento no momento em que as pessoas so capazes de linguagem e ao. A referida racionalidade no se resume apenas no uso cognitivo da linguagem, tambm engloba um carter tico e expressivo, ou seja, pretende chegar ao consenso por meio da fundamentao e crtica das objees e idias proferidas pelos falantes. Essa racionalidade definida e composta de pretenses de validade resolvidas discursivamente, tendo como pano de fundo o mundo da vida. Isso somente acontecer, segundo Habermas, quando os sujeitos forem capazes de linguagem e ao. Com base nessas idias, procurar-se- entender como a razo, sendo usada como linguagem, passa a ser explicada pela prpria linguagem. Para Habermas, o tema fundamental da filosofia a razo, pois a linguagem passa a dar as possibilidades para se cumprirem as condies da racionalidade comunicativa, buscando, alm disso, uma justificao. O mundo da vida a base onde os indivduos se relacionam e ali que acontece a fundamentao de normas morais. nesse mundo que existe o entendimento mtuo, os acordos e as prticas cotidianas em geral. As relaes sociais se do no mundo vivido, assumem caractersticas, forma da ao comunicativa: um processo interativo, lingisticamente mediado, pelos indivduos coordenarem seus projetos e ao, e organizarem 13

suas ligaes recprocas (ROUANET, S. P. 1989, p. 24). Nesse processo lingstico, todos os participantes esto em comum acordo em relao verdade dos enunciados, sobre adequao normativa dos proferimentos e, tambm, sobre a veracidade do falante sobre o que ele est falando. Habermas procura dar legitimidade aos proferimentos lingsticos atravs das pretenses de validade, chamando isso de consenso de fundo. Mas o que Habermas entende por pretenses lingsticas e qual a funo dessas? Exigir do falante coerncia com as normas propostas para o discurso fazer com que ele se d conta de sua real participao dentro da roda de comunicao, no processo de resgate discursivo das pretenses de validade em atos de fala. a partir deste resgate discursivo das pretenses de validade, que se torna possvel a fundamentao do princpio de universalizao U. Por isso, procurar-se- tratar, neste captulo, dos atos de fala como fator indispensvel para a realizao do entendimento atravs da argumentao, da real funo das pretenses de validade dentro do discurso prtico e terico e seu significado, bem como da necessidade de um princpio ponte para o discurso.

1.1. A reformulao tica pensada por Habermas

O pensamento de Habermas volta-se para o fato de que, atualmente, a razo da conscincia individual, ou, a filosofia da conscincia no mais suficiente para resolver problemas morais. Habermas concebe a razo inserida num dilogo, com a finalidade de resolver os conflitos que surgem na validao de princpios morais. Para alcanar o consenso, princpio que legitima a validade das normas em Habermas, cada sujeito deve possuir capacidade de linguagem e ao, podendo, com isso, tornar universal a norma em questo. Essas idias fazem parte do conceito de ao comunicativa de Habermas. Habermas entende a ao comunicativa como dada, buscando apenas suas condies de possibilidade, ou seja, considera-se que a ao comunicativa lingisticamente mediada, fazendo surgir a dimenso pragmtica da linguagem. Para essa dimenso fica a tarefa de encontrar as condies que tornam possvel a ao comunicativa. Nesse contexto, o processo de validao das normas morais dado pela linguagem, a qual, tambm, pode ser compreendida como a prpria razo. Esta linguagem possibilita o entendimento, pois os proferimentos da fala fazem parte da natureza humana de cada indivduo. Habermas d linguagem um carter transcendental, considerando que ela imprescindvel e descartando a hiptese de no se utilizar a linguagem para se chegar ao 14

entendimento. devido a este fator da linguagem que se processa a evoluo para a tica do discurso. O processo dialgico nasce de uma interao lingisticamente mediada, a qual compreende fala e aes. No pensamento de Habermas a filosofia sempre se preocupou com a razo. As influncias do iluminismo fizeram com que a ao humana, para ser moralmente correta, no dependesse na crena em algo divino, metafsico ou em algo ontolgico. O que se discute se a norma que fundamenta uma ao moral pode ser dada por uma lei natural, por interesse ou pela prpria razo. Apoiado em idias iluministas, influenciado sobretudo por Kant, Habermas desenvolve seu projeto de tica com base na razo. Habermas elabora a sua tica a partir de uma reformulao da tica de Kant, o qual se dedicou s questes da razo sobre as formas de ao subjetiva, dando-lhes um contedo moral. Encontramos, nele, alguns elementos bsicos que ajudaram Habermas a apresentar sua proposta de fundamentao moral. Kant nunca viu a possibilidade de a experincia fornecer um princpio seguro para a filosofia moral. A experincia, o emprico, so deixados de lado e o princpio da moralidade buscado a priori, na razo pura1. Para Habermas, assim como para Kant, o tema fundamental da filosofia a razo (HABERMAS, J. 1987, p. 24). Mas, com este novo paradigma da linguagem, a razo se manifesta historicamente e manifesta-se atravs da prpria linguagem. Neste caso, a linguagem torna-se como que a explicao da razo, ou melhor, torna-se a prpria razo (DUTRA, D. J. V. 2005, p. 10). Temos, assim, a substituio do paradigma da conscincia1

Todo ser humano est fortemente inclinado a sofrer influncias de seu mundo emprico, o que o leva pratica de aes que tm como motivo seus desejos e paixes. O pensamento de Kant a esse propsito diz respeito utilizao da razo como o verdadeiro caminho para a ao verdadeiramente boa. Segundo ele, a filosofia moral est firmemente fundada na razo. A inteno de todo moralista, diz Kant, encontrar um princpio moral que esteja apoiado nica e exclusivamente em uma razo pura a priori sem comprometimentos empricos. Kant est interessado em encontrar para as aes humanas uma lei moral e no apenas regras prticas de ao. Segundo ele, uma ao verdadeiramente boa no se liga somente a lei moral, mas dever ser conduzida por amor a lei moral, sendo que para preservar sua pureza e autenticidade dever seguir, to somente, a uma filosofia pura (Metafsica). Diz Kant, (...) e aquele que mistura os princpios puros com os empricos no merece mesmo o nome de filosofia (...) e muito menos o nome de Filosofia Moral (KANT, I. 1988, p. 17). Desta forma sua filosofia estritamente formal, o levando a uma investigao sobre o princpio supremo da moralidade. O abandono dos contedos prticos, ou a separao do mundo emprico, no que diz respeito a lei moral, so as caractersticas formais da tica kantiana. Toda lei que tende a moralidade permanece livre de contatos empricos. Kant desempenha a funo de encontrar um princpio supremo da moralidade, alegando que at ento ningum havia dado ateno a este tema. Kant tem o propsito de encontrar os princpios primeiros no campo da tica. Seguindo esta mesma postura formal, a tica discursiva de Habermas prope uma outra ordem para a universalizao das normas morais. Admitindo ainda a razo como causa a priori de nossa moralidade, Habermas desloca o critrio de validade do sujeito, pensado por Kant, para os sujeitos, ou, visualizando a moralidade das normas no discurso realizado racionalmente. Para a maioria dos comentadores de Habermas, ouvimos a expresso de que ele reformula a tica kantiana acrescentando sua tica o discurso como fator decisivo para o consenso e a validade das normas aos outros seres humanos. Ento, para Kant, a fora moral esta internamente no sujeito, por outro lado, em Habermas a verdadeira fora moral se encontra na linguagem e nos melhores argumentos. Habermas funda sua tica do discurso numa pragmtica universal.

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pelo da linguagem, o que compreende um novo estudo para a filosofia. O que se discutir dentro da filosofia so as condies formais da ao comunicativa. Pode-se considerar que esta nova fase da filosofia tem a inteno de explicar um novo conceito de razo. Uma razo situada, que levanta sua voz em pretenses de validade. Temos a idia de uma razo comunicativa que busca alcanar as condies necessrias ao entendimento por meio da linguagem. Segundo Habermas, os fundamentos do agir moral kantiano so buscados internamente na razo pura, atravs de uma mxima individual de ao, podendo se transformar em uma norma tica universal. Este procedimento, que d a capacidade de poder tornar vlida uma norma individual de ao, o imperativo categrico, o qual tem a seguinte formulao: Age apenas segundo uma mxima tal que possas ao mesmo tempo querer que ela se torne lei universal (KANT, I. 1988, p. 59). Habermas formula sua norma de ao atravs do princpio de universalizao U, o qual tem o seguinte enunciado que segue a reformulao ao imperativo categrico kantiano: Ao invs de prescrever a todos os demais como vlida uma mxima que eu quero que seja uma lei universal, tenho que apresentar minha mxima a todos os demais para o exame discursivo de sua pretenso de universalidade (HABERMAS, J. 1989, p. 88). O princpio de universalizao visa a uma cooperao argumentativa de cada caso. Para Kant, o ser humano, como sendo o nico ser na natureza que age pela razo, sabe agir conforme a lei e praticar uma ao boa. Mas, muitas vezes, sofre inclinaes de sua sensibilidade subjetiva. Em conseqncia, as aes morais no tero um valor moral, que para ele deve legislar como uma lei. Por isso, em Kant, as leis da razo apresentam-se na forma de imperativos2. Estes tentam investigar, quais das possibilidades so boas e podem ser vlidas para todos os seres racionais. Admitindo a razo como critrio de valor moral, Habermas concebe U como o princpio que estabelece o acordo sobre as normas morais dentro da comunidade de comunicao. Na tica do discurso, U o critrio de justificao do discurso, o qual somente pode obter validade atravs de argumentos racionais entre os envolvidos. Habermas se apropria somente do carter impessoal e universal da tica kantiana, transformando o imperativo categrico em um consenso com o objetivo de universalizao, isto , transforma o imperativo em U. As normas aceitas na tica do discurso so as que conseguirem o acordo de todos os participantes do discurso. Nenhuma lei moral poder valer2

Estas so as trs formas do imperativo: Age como se a mxima da tua ao se devesse tornar, pela tua vontade, em lei universal da natureza; Age de tal maneira que uses a humanidade, tanto na tua pessoa como na pessoa de qualquer outro, sempre e simultaneamente como fim e nunca simultaneamente como meio; a idia da vontade de todo o ser racional concebida como vontade legisladora universal.

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como universal, a partir de um ou alguns sujeitos, mas somente a partir do reconhecimento de todos os concernidos. Em Kant, o sujeito era autnomo em tornar suas mximas de ao praticveis, atravs do seu exame da razo. Para no haver monlogos, em Habermas, alm da razo evidente em todos, estes devem apresentar bons argumentos e terem a aceitao de toda comunidade dialgica. Nesse ponto de vista, os fundamentos que do validade tica do discurso repousam sobre a razo, mais especificamente a razo comunicativa, fundamentada pela linguagem. O que deve ficar claro que a razo em Kant considerada como monolgica, ou seja, uma razo subjetiva, pois Kant afirma, segundo Habermas, que cada indivduo tem a capacidade de saber o que certo ou errado de acordo com a sua razo. Kant considera esta razo uma razo pura e a priori. Em Habermas, o estudo da razo continua, mas esta razo no mais pensada da mesma forma que em Kant. Agora, razo uma razo intersubjetiva, motivada exclusivamente pela linguagem. No se considera, nesse caso, que a tica habermasiana no se utiliza mais das idias de Kant. A tica de Habermas uma reconstruo das idias de Kant e tambm do pensamento iluminista sobre a moralidade, apesar das suas diferenas. Uma delas contra o formalismo adotado por Kant em sua razo monolgica. At mesmo McCarthy compactua com esta reconstruo da tica kantiana admitindo que realmente a nfase desloca-se do que cada um pode querer, sem contradio, que se torne uma lei geral, para o que todos podem concordar que se torne uma norma universal (McCARTHY, M. 1984. p. 326). Cabe agora a Habermas a tarefa de fundamentar os pressupostos que do legitimidade ao seu pensamento tico-discursivo. A fundamentao da tica do discurso est apoiada na tradio filosfica sobre os aspectos deontolgico, cognitivista, universalista e formalista. A maioria das ticas clssicas falava sobre a questo da vida boa, onde o bem proporcionava a felicidade. Kant foi o primeiro filsofo moral a admitir que os problemas de atuao correta ou justa no poderiam ser resolvidos com o envolvimento emprico, mas a priori, na razo pura. A felicidade ou o bem no pode ser mais o fundamento das aes humanas, pois estes so as conseqncias das mximas promulgadas como moralmente universalizveis pela razo pura prtica. Normalmente, os juzos morais procuram apaziguar os conflitos das aes luz de normas vlidas. No existe mais a preocupao com a aplicao das normas, mas procura-se dar ateno justificao de normas e sobre os problemas das aes corretas e justas. Nesse sentido, falamos da tica deontolgica.

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Habermas argumenta que o acordo entre mximas possveis de universalizao dado pelo princpio de universalizao. Com a fundamentao de U pode-se dizer que as questes prticas devem ser decididas com base em razes. Fala-se aqui do cognitivismo. Todo o juzo moral tem um contedo cognitivo, no se limitando a interaes ou indicaes de falante ou ator. A tica do discurso refuta o ceticismo tico no simples fato de explicar como os juzos morais podem ser fundamentados com base em razes. O imperativo categrico considerado como sendo a mxima subjetiva tomada como lei universal; o mesmo atuando como princpio de justificao das normas vlidas em uma ao universal: aquilo que est justificado em sentido moral tem que poder querer todos os seres racionais. No universalismo, U compreende a capacidade de todos poderem chegar a uma compreenso igual das normas de ao. Com a fundamentao de U, a tica do discurso contesta a suposio bsica do relativismo tico, segundo a qual a validez dos juzos morais s se mede por padres de racionalidade, ou de valor da cultura, ou forma de vida a qual pertena em cada caso o sujeito que julga (HABERMAS, J. 1989, p. 147-148). Os juzos morais devem levantar pretenses que consigam tornar-se universalmente vlidas, caso contrrio, segundo Habermas, estariam condenadas ao fracasso3. Levando em conta o imperativo categrico, Kant concebia a universalizao das normas na capacidade racional de cada indivduo. Cada indivduo, nesse caso, tem a capacidade de saber se uma determinada ao moral ou imoral. O indivduo pode objetivar a sua ao como universal, recorrendo ao imperativo categrico para conseguir a validao de suas normas. A tica universalista tem a funo, nos dizeres de Habermas, de no somente tornar uma norma vlida para uma cultura ou uma determinada poca, mas que a mesma possa valer universalmente para todos. A grande tarefa encontrada a de possibilitar a fundamentao desse princpio moral. A validade universal somente alcanada na tica do discurso por meio da argumentao. Uma concepo tica formalista contrria tradio teleolgica, que pregava a vida boa, a felicidade, escolhendo um cenrio de vida tico. Para Habermas, a tica do discurso no fornecer nenhum contedo para o dever, no diz o que certo ou errado, o que bom ou mal, assim como Kant, mas apenas indica um procedimento para o julgamento moral; ela no traa o caminho a ser seguido para a validao das normas. O formalismo habermasiano no o mesmo que o formalismo kantiano. O procedimento de fundamentao na tica do discurso3

Segundo Rouanet, o princpio de universalizao exige que os interesses de todos os participantes sejam devidamente considerados, sob pena da invalidade da norma, se todos os homens so participantes virtuais, a norma no s ser vlida se lesar interesses gerais do gnero humano (ROUANET, S, P. 1989, p.64). Nenhuma norma moral ser vlida luz do princpio U se no for possvel sua aprovao na comunidade ideal. Estas normas devem levar em conta o interesse de todos os indivduos.

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est ancorado na racionalidade comunicativa e no em uma trplice abstrao, no caso de Kant. O sujeito deve ficar livre para tentar objetivar a universalidade de sua norma moral. Esta trplice abstrao representa:

uma abstrao das conseqncias e efeitos colaterais concretos das normas morais; uma abstrao das inclinaes e interesses, bem como do desejo da felicidade, que tambm motivam a ao e uma abstrao da matria do dever, que s se determina numa dada situao histrica concreta (HABERMAS, J. 1989, p. 103).

No vale mais a inteno individual e sim, o acordo de sua inteno com o grupo. Para Dutra,

estas abstraes so, em grande parte, decorrncia de uma perspectiva monolgica, apririca, caracterstica da posio kantiana no campo da tica. Elas no se aplicam, porm, ao formalismo processual de Habermas, que pressupe, ou melhor, que se funda na intersubjetividade e que s funciona em contextos concretos de dilogo (DUTRA, D. J. V. 2005, p. 158).

O formalismo kantiano caracteriza a ao como moral se ela estiver de acordo com o imperativo categrico, e for executada tendo como nica motivao o respeito lei. A tica do discurso no busca dar um contedo, mas sim um procedimento para chegar garantia dos juzos moralmente vlidos. Em Habermas, o princpio do discurso serve como parmetro para justificar que U exprime o contedo normativo distinguido dentro da argumentao. Toda a norma, no interessa qual seja, deve ser colocada na roda do discurso real para que possa tornar-se vlida racionalmente. Habermas precisa esclarecer a sua tica do discurso como sendo um ajuizamento de questes morais, ao qual d o nome de ponto de vista moral. Ele visualiza uma explicao deste ponto de vista moral como procedimento de um discurso prtico. Na argumentao, todos tm direitos iguais e partem do princpio de que todos devem buscar a verdade cooperativa. Nesse caso, a nica coao permitida a do melhor argumento. A busca da universalizao de uma vontade subjetiva o agenciamento normativo da ao. O ideal de cada participante dever ser colocado como uma prxis argumentativa. Assim, Habermas define, em um segundo momento, o discurso prtico como um processo de entendimento mtuo que, por sua forma prpria, cita a todos os implicados, simultaneamente, a inteno ideal de fala (DUTRA, D. V. 2002, p. 18). Esse discurso deixa de ser individual e privado, passando a ser uma atividade pblica intersubjetivamente partilhada. 19

Ainda com referncia a Kant, Habermas afirma que se encontra muita dificuldade em tentar demonstrar as limitaes do seu imperativo categrico. Por isso, Habermas tambm se v desafiado frente pluralidade da vida concreta, remetendo filosofia apenas as questes de justificao das normas. A existncia da argumentao, diz Habermas, no deixa que acontea um monlogo, quando um indivduo decide por todos, nem que todos estabeleam um acordo consensual sem argumentao, como aconteceu em Kant. Necessita-se, em todos os casos, do dilogo e do discurso como meio para o entendimento. Trata-se, portanto, de aceitar uma norma como vlida aps ter o consentimento de todos os envolvidos. Habermas d a qualquer um a capacidade de argumentar e entrar em consenso ou em entendimento, mas este deve ter capacidade de manter todas as condies e reivindicaes do discurso. Ele tambm exige que os pressupostos argumentativos sejam observados no discurso. Como admitimos, na tica do discurso, uma reformulao da tica kantiana, ento teramos a idia de que ela surge com a funo de resolver os problemas de fundamentao encontrados em Kant. Mas, apesar disso, Habermas enfrenta outras crticas alm daquelas enfrentadas por Kant. Todo processo de justificao tem como pressuposto a ao comunicativa. Habermas pressupe que, assim como Kant, todos tm condies mnimas para participar de uma argumentao, pois possuem razo e pertencem a uma determinada comunidade dialgica. Este cenrio do qual todos podem participar o mundo da vida, ou seja, neste mundo esta a capacidade de todos participar. Para que uma regra tenha validade moral, esta deve ser justificada pelo princpio U, o qual tambm deve ser justificado. Em outras palavras, levantamos pretenses de validade, damos razes e justificamos. Mas, por outro lado, j na ao comunicativa do mundo da vida, necessria a anlise formal das pretenses de validade, para que no haja contradio performativa. Os enunciados das pretenses no podem somente reivindicar a verdade, mas tambm uma justificao prtica, ou seja, devem demonstrar uma retitude, uma justificao das normas de ao. Qual o verdadeiro objetivo da tica do discurso? Primeiramente, seu objetivo, assim como o de Kant, no o de fornecer regras e normas que dizem o que voc pode ou no fazer. Habermas apresenta um mtodo, um procedimento que justifique as normas de ao dos indivduos. E atravs da razo e do dialogo possvel encontrar normas e regras validas para todos universalmente. Mas a norma passa a valer para todos os envolvido ou para todos universalmente, assim como em Kant? Habermas tem a inteno de justificar as normas morais tanto no mundo vivido quanto nas argumentaes prticas formais. Desta forma 20

Habermas caracteriza sua tica como cognitivista, pois localiza um princpio capaz de resolver o problema da validade das normas. Na proposta de reformulao dada por Habermas e tambm por Apel, na tica do discurso os indivduos assumem, juntos, as responsabilidades morais, sendo que em Kant o indivduo julgava individualmente o que seria bom para todos os outros universalmente. Existe impregnada uma idia de cooperao social, sendo que se aceita uma norma, todos devero estar conscientes dos possveis problemas que podero acontecer; devero assumir juntos as possveis conseqncias que, segundo Oliveira, seria a responsabilidade solidria em escala planetria (OLIVEIRA, M. A. 1993, p. 11). Habermas entende o tico como sendo a interao entre sujeitos e no um explcito particularismo, ou no sentido que uma norma moral ser tica se ela atingir a validade universal. O tico pensado por Habermas deve ter um contedo cognitivo, levando em conta os sentimentos que se encontram na prxis comunicativa do mundo vivido do homem. Ainda, nesta atividade da vida cotidiana do homem, no h motivo para problemas morais, pois no existem problemas evidentes. Pensa Habermas que quando existirem contradies ento os participantes devem deixar seu mundo vivido e partir para a justificao e fundamentao de suas pretenses de validade, como veremos no prximo captulo. Adiantando o assunto, Habermas ter como pretexto fundamentar as normas atravs da analise de pretenses de validade, postas em jogo na argumentao. Para ele toda pretenso deve ser posta na argumentao para que todos os concernidos tenham conscincia de que a norma aceita obtenha reconhecimento universal. Em Habermas a validade de qualquer proposio deve ser determinada pela argumentao. Com a ajuda do critrio de universalizao de Kant, ele constri a ao comunicativa como sendo o lugar ideal para a legitimao das normas morais. Toda norma passa por uma anlise podendo ou no tornar-se valida, o que segundo Habermas, justifica sua ao comunicativa como o melhor meio para alcanar o consenso e tambm a fundamentao do princpio U. Tem-se na esfera do discurso pblico a validao das normas morais, o que difere e muito da tica kantiana e de seu imperativo categrico. As normas morais da tica do discurso, tanto em Habermas como em Apel, so promulgadas atravs de uma fundamentao pragmtica, ou a posteriori, ao passo que, em Kant, esta fundamentao era dada a priori no sujeito. Mas esta fundamentao a posteriori somente ser possvel se prevalecer a cooperao entre todos os envolvidos para atingir o consenso. Na interpretao de Oliveira: S num processo intersubjetivo de compreenso possvel atingir um consenso de natureza 21

reflexiva, em que os participantes possam saber que eles, comunicativamente, se convenceram a respeito de algo (OLIVEIRA, M. A. 1993, p. 23). Todos devero aceitar, sem nenhuma ao estratgica, as pretenses de validade como sendo a condio mnima para uma prtica intersubjetiva de ao e com isso obter uma norma universalmente correta. Habermas, e toda tica discursiva, abre espao para a experincia exercer fora sobre as decises morais. Kant considerava quase como um crime, a tentativa de aproximar a filosofia de quaisquer elementos empricos e buscar neles validade para suas teorias. Habermas procura aproximar a razo de uma pratica lingstica baseada em argumento que podero se tornar vlidos moralmente. Se sua tentativa foi livrar-se de crtica, como as enfrentadas por Kant, seu objetivo fracassou. A reformulao pensada pela tica do discurso desloca o eixo da moral kantiana do subjetivismo para o intersubjetivismo. A argumentao , para Habermas, a verdadeira forma, embora prtica, de tornar vlidas as normas postas em evidncia atravs de pretenses de validade. Ento, basicamente, todos os indivduos devero ter capacidades racionais de fala, ou seja, de se expressar atravs da linguagem. Como a tica do discurso baseada na argumentao e no dilogo, Habermas apresenta, como pea chave desse processo ticomoral, os atos de fala, entendidos como a nica forma de nos fazer entender e, assim, obter a validade universal desses mesmos atos de fala expostos em nossa inteno. Para Habermas, as aes podem ser compreendidas em dois sentidos: as aes lingsticas e as aes nolingsticas. No caminho para se chegar ao entendimento, estes dois tipos de aes desempenham papis diferentes e, por isso, merecem uma boa distino, para, assim, compreender por completo o caminho seguido por Habermas na fundamentao da tica do discurso.

1.2. Argumentao - o caminho para o entendimento

As aes no-lingsticas tm como objetivo alcanar um fim desejado atravs da utilizao de meios adequados, pois o ator intervm no mundo, realizando uma ao fsica. Os proferimentos lingsticos so descritos por Habermas como atos em que o falante pretende chegar ao entendimento com outro falante. Nessas duas descries, pode-se assumir a perspectiva de agente, ser o praticante das aes em primeira pessoa, ou pode-se comportar como simples observador da ao do agente que busca um fim desejado em terceira pessoa. 22

Pode-se, tambm, ser alvo da ao em segunda pessoa, recebendo ordens, atuando como meio do entendimento cooperativo, no que diz respeito s atividades orientadas a um fim. Cada uma dessas duas definies de aes deve possuir uma compreenso especfica que, para Habermas, sinnimo de esclarecimento. Vejamos o exemplo citado por Habermas: ao observarmos uma pessoa correndo do outro lado da rua, logo a definimos como praticante de uma ao. Sua corrida tem um objetivo, certamente ele chegar antes ao lugar previsto, ou pode estar correndo para no perder o nibus, ou pode estar correndo para escapar de um assalto. Com esta observao no poderei inferir, com clareza, a real inteno do ator. Para ter melhor clareza, dever-se-ia procurar saber a inteno que comanda a ao, mas isso ainda no d certeza do seu plano de ao. Por isso Habermas admite que a atividade no-lingstica no oferece por si mesma essa perspectiva ela no revela a partir de si mesma o modo como foi planejada. Somente os atos de fala conseguem preencher essa condio (HABERMAS, J. 1990, p. 66). A ordem de pensamento que se deve ter que os tipos de aes lingsticas e nolingsticas tm a finalidade de atingir determinados fins. Mas a possvel distino ocorre no momento de concluso da ao, a qual, dentro da tica do discurso, deve levar ao entendimento. Ou seja, ambas as aes pertencem ao mesmo objetivo, buscar um fim desejado. Todavia, os conceitos bsicos de interpretao so diferentes, podendo levar seu agente para um caminho que no seja o entendimento. Sempre a distino que devemos fazer quanto finalidade ou inteno da ao. Se o fim o entendimento, deve-se apontar, de antemo, trs condies que so: o alvo de ao (a) determinado no modo objetivo independente dos meios intervenientes (b) como se fora um estado a ser produzido de modo causal (c) (HABERMAS, J. 1990, p. 68). Um ato de fala muito mais esclarecedor do que meu amigo que corre do outro lado da rua. O significado verbal do ato de fala revela a inteno do falante. Assim, fica fcil saber o tipo de ao realizada atravs dele. Nesse sentido, admite-se um componente ilocucionrio na fala do agente. Como Austin comenta, ao realizarmos uma ao de fala dizemos tambm o que fazemos. Assumir um enfoque performativo consiste na participao de um ouvinte consciente, que possa assumir as perspectivas do falante em segunda pessoa. Habermas fala aqui de uma partilha intersubjetiva da linguagem dentro de uma comunidade especfica que o mundo da vida. Essa interao lingstica tem a finalidade, tanto para o ouvinte quanto para o falante, de tirar vantagens da peculiar refletividade da linguagem natural e poder apoiar a

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descrio de uma ao executada por palavras sobre a compreenso do autocomentrio implcito na ao verbal (HABERMAS, J. 1990, p. 67). Existem duas distines que precisam ser feitas entre os atos de fala e os atos nolingusticos. Primeiramente, que os atos no-lingusticos no possuem a capacidade de autointerpretao reflexiva, assim como o fim que est sendo seguido e o tipo de sucesso a ser atingido. As aes lingsticas e no-lingsticas podem ser ambas orientadas para um fim. Quando procuramos fazer essa diferenciao entre as aes do entendimento e as aes orientadas para um fim, devem ficar claras, tambm, a no contribuio da teoria da linguagem e a teoria da ao como jogo teleolgico, nos quais os atores tm objetivos e produzem o resultado da ao. Habermas afirma que o agente escolhe valores presentes no mundo objetivo, aplicando-os supostamente como meios adequados. Para que isso acontea, o falante que pretende determinado fim com sua ao ter que convencer os demais representantes sobre o porqu de determinada ao ter esse objetivo e no outro. Isto , a descrio ilocucionria dever ser compreensvel ao ouvinte, ter reconhecimento do proferimento como verdadeiro. Para Habermas, a ao orientada para um fim no conseguir defender essas trs implicaes, pois o sujeito age atravs do interesse. A finalidade dos atos ilocucionrios, independentemente dos meios lingsticos, o entendimento. O campo da linguagem natural e o telos do entendimento interpretam-se reciprocamente, ou seja, eles so explicados mutuamente. Nesse sentido, Habermas esclarece que

fins ilocucionrios no podem ser atingidos por outro caminho que no seja a cooperao, pois eles no se encontram disposio do participante individualmente da comunicao, do mesmo modo que os efeitos produzveis de modo causal. Um falante no pode atribuir a si mesmo um efeito ilocucionrio como se fosse o agente que situa sua atividade na linha de um fim, descrevendo a si mesmo o resultado de sua interveno no conjunto de processos do mundo objetivo (HABERMAS, J. 1990, p. 68).

O que se permite que os agentes das aes se entendam intersubjetivamente dentro do mundo vital da linguagem e busquem o entendimento como finalidade da ao legtima. Todos os atos de fala visam a uma estrutura reflexiva no encontrada nas atividades no-lingsticas. Visam, tambm, fins ilocucionrios de cooperao, quando o destinatrio pode assentir livremente ao entendimento encontrado no interior do meio lingstico. Nesse caso, se adotarmos o uso no-comunicativo das aes teleolgicas, iremos encontrar a idia da racionalidade orientada para um fim. Ao adotar o uso comunicativo estar-se- assumindo 24

uma postura racional orientada ao entendimento. Assim, Habermas expressa que a racionalidade orientada para um fim e a racionalidade orientada para o entendimento no so intercambiveis. Sob esta premissa, eu considero a atividade que visa a fins e o agir orientado para o entendimento como os dois tipos elementares de ao, irredutvel um ao outro (HABERMAS, J. 1990, p. 70). Dentro do mundo das aes lingsticas, Habermas concebe duas formas de aes: a comunicativa (voltada ao entendimento) e a estratgica (voltada obteno de um fim desejado). E a partir de um destes dois tipos de aes dentro dos atos de fala da linguagem que ele desenvolve aquilo que ele chama de agir comunicativo. A construo comunicativa de Habermas tem suas bases em Chomsky, como ele prprio afirma, expressando a competncia da linguagem frente validao dos atos de fala lingisticamente mediados. Habermas situa que possvel, a partir dos atos lingsticos, produzir estruturas universais apoiadas em sentenas unidades lingsticas que constam de expresses lingsticas e proferimentos unidades pragmticas de fala. utilizando-se das expresses lingsticas que Habermas desenvolve a teoria da competncia comunicativa, a qual consiste na reconstruo do sistema de regras segundo o qual produzimos ou gravamos, enquanto tal, situaes de possvel fala. Um ato de fala sempre deve ser proferido com a inteno de chegar ao consenso, no qual h o entendimento comum entre falante e ouvinte. Fica descartada a hiptese de se chegar ao entendimento com as aes estratgicas que tm por objetivo alcanar um fim almejado. Esses atos de conduta servem de guia para que o indivduo no caia ou permanea no mbito da ao estratgica, sabendo resgatar discursivamente suas pretenses de validade da ao comunicativa.

1.2.1. A ao comunicativa e a ao estratgica

Habermas emprega o termo agir ou interao sobre o aspecto do agir e do falar. Por meio da interao lingstica, essas duas possibilidades se encontram unidas. Mas evidente que dentro de um discurso eles podem aparecer em contextos diferentes: quando, por meio da ilocuo, eu assumo o papel de coordenar a ao (ao falar eu fao algo); ou quando os autores abandonam o aspecto lingstico e assumem tendncias extralingsticas que tm como nico objetivo os fins, deixando de usar as aes do discurso. A caracterstica da interao solucionar alguns problemas de coordenao que acompanham a inteno do agente. Seria uma espcie de ligao onde o alter busca apoio no ego e na efetivao de suas 25

aes, diminuindo os conflitos entre os espaos sociais e histricos. Cada pessoa tem um interesse, e a nica forma de organiz-los atravs da interao social. No texto de Willian Rehg, Insight and solidarity, encontramos uma expresso que pode dar maior sentido a esta interao pensada por Habermas: troca de razes give-and-take of reasons (REHG, W. 1997, p. 25). Mas justamente nesse momento, em que surge o problema da coordenao, que o ator procura executar a sua ao com ajuda do outro. As interaes podem fazer as distines no momento em que a linguagem natural utilizada como meio de transmisso de informaes e, tambm, como fonte de integrao social ou como coordenao da ao social. Nos dizeres de Habermas, no primeiro caso, ns temos o agir estratgico e, no segundo, o agir comunicativo. No primeiro, a coordenao depende da influncia dos autores uns sobre os outro, e sobre as situaes da ao qual vinculada atravs de aes no-lingsticas. No segundo, a fora consensual do entendimento lingstico, isto , as energias de ligao da prpria linguagem tornam-se efetivas para a coordenao das aes. Um acordo no deve sofrer influncia imposta de fora e nem ser forado por uma das partes; caso contrrio, as foras ilocucionrias deixam de existir. Ao reclamar a validade normativa tambm assumimos uma atitude performativa, de participantes nas interaes sociais. Nesta reconstruo comunicativa os participantes reclamam validade para as normas ou para as pretenses. Esta postura reconstrutiva pode ser considerada como sendo uma anlise pragmtico-formal. Todo participante deve dar razes para suas regras, gerando com isso o entendimento entre os participantes de tal comunidade. Sem esta postura pragmtica de dar razes, esclarecer a verdade e dar justia quilo que se est falando, se perderia o lugar no mundo da vida4.4

Lebenswelt ou mundo da vida o mundo das evidncias sociais, o horizonte que representa o pano de fundo das normas que orientam a prtica cotidiana. Para Pizzi, no h como entender Habermas sem entender o conceito de Lebenswelt (PIZZI, J. 2005, p. 34). neste mundo que os interlocutores se encontram para estabelecer entendimento. O mundo a vida pensado por Habermas se estabelece como sendo o lugar propcio para que os indivduos compactuem com as mesmas idias e pertenam, assim, a uma nica forma de vida. Para Habermas, os requisitos do mundo da vida representam valores culturais, encarnados nas prticas da vida cotidiana, ou ideais relacionados autocompreenso de uma pessoa e, por isso, comportam um pretenso de validez intersubjetiva (HABERMAS, J. 1991, p. 73.). Neste mundo est contida a pluralidade da vida cotidiana; e neste cenrio existe uma harmonia coletiva, pois seus contedos so previamente conhecidos, interpretados e tambm familiares a todos; ele caracterizado como aproblemtico. Nele seus membros partilham laos de solidariedade, integrando-se em um contexto comum de ao. Por isso a emisso de atos de fala representa o contexto de um possvel mundo de ao entre os vrios existentes. Cada indivduo busca entendimento em seu mundo que o seu mundo da vida. Ou seja, ao levantar uma pretenso o ator esta necessariamente tratando de um problema que acontece em seu prprio mundo da vida, isto , o mundo da vida deixa de ser aproblemtico. Por isso a necessidade da comunicao para restabelecer o entendimento dentro do pano de fundo da Lebenswelt, pode se resumir no resgate das trs pretenses de validade: a verdade pertencente ao mundo objetivo -, a retitude fazendo parte do mundo social e a veracidade, enquanto parte do mundo subjetivo. A estrutura estrutura pragmtico-formal de Lebenswelt supe uma relao entre atos de fala, pretenses de validez e referncias ao mundo (PIZZI, J. 2005, p. 170).

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Na ao comunicativa os representantes da ao interagem entre si para conseguir, cooperativamente, por meio da linguagem, a efetivao de suas intenes. Almeja-se dentro do agir comunicativo o entendimento entre ouvintes e falantes que buscam dar razes, e at mesmo crticas a seus atos de fala, na tentativa de conseguir alcanar um consenso e tambm um reconhecimento intersubjetivo. Nesta forma de ao, a linguagem a verdadeira forma de entendimento, pressupondo, na relao entre falante e ouvinte, a compreenso de algo no mundo objetivo, de algo no mundo social e de algo no mundo subjetivo, negociando posies compartilhadas por todos. Assim, a linguagem passa a ser o mecanismo de coordenao da ao ajustando os planos de ao de cada indivduo, levando-os a interao. A diferena do agir estratgico est apoiada em uma fora racionalmente motivadora ao entendimento que se consolida na comunidade de comunicao, ou seja, o ouvinte ao entrar em acordo com o falante est ciente das possveis conseqncias do entendimento estabelecido. A ao estratgica tem como nica finalidade a obteno de fins desejados, calculando, mediando e conduzindo sua ao ao xito da inteno do falante. Uma ao orientada ao xito pode ser chamada, segundo Habermas, de instrumental, pois no respeita as regras tcnicas da ao, e, tambm, estratgica, pois elege regras racionais para a consolidao da inteno frente a um oponente racional. Um dado interessante que Habermas v a ao estratgica como sendo uma ampliao da ao telelgica que vinha desde os tempos de Aristteles, sendo o centro da teoria filosfica da ao. Agora o agente calcula suas aes com base nos mesmos agentes que esto tentando encontrar o melhor meio para atingir seu fim. Na viso de Habermas, esta ao aproxima-se dos modelos utilitaristas, onde se supes que o ator elege e calcula meios e fins desde o ponto de vista da maximizao de utilidade ou de expectativas de utilidade (HABERMAS, J. 1987, p. 122123). A ao instrumental e a ao estratgica podem ser aes sociais. A ao estratgica vai se opor ao comunicativa, que tem como nico interesse o entendimento, descartando a utilizao de clculos para sua objetivao. Para Habermas, na ao comunicativa os agentes no se orientam pelo seu prprio xito, mas sim pelo entendimento (HABERMAS, J. 1989, p. 385). A tica do discurso distingue-se da anlise subjetiva, pois um nico sujeito jamais pode aprovar uma norma como universal sem antes passar pela discusso, o que faz com que os falantes dem razes sobre suas pretenses postas em jogo. O entendimento, encontrado entre os participantes, foi dado pelo acordo que viabiliza a ao comunicativa. Para que isso ocorra preciso existir uma base racional evidenciada em 27

acordos comuns que fazem parte inegavelmente das aes sociais, ou seja, as emisses de pretenses de validade exigem que o autor reconhea ou refute as interaes medianamente aceitas, pois as razes de cada um esto em potncia para serem usadas enquanto ao comunicativa. Todo sujeito que atua comunicativamente no pode visar ao seu prprio xito, pois o marco da ao comunicativa s pode alcanar o xito que pertence, atravs de um entendimento lucrado: o entendimento determinante para a coordenao das aes (HABERMAS, J. 1989, p. 386). Outra diferenciao que existe entre o agir estratgico e o agir comunicativo que o agir estratgico pode ser utilizado como manipulao. O falante apresenta para o ouvinte suas razes como se fosse parte da ao comunicativa. Por exemplo: me empresta cem reais que amanh te devolvo. O agente tem a inteno de no pagar, por isso utiliza o emprstimo como forma de manipular e alcanar o fim desejado. O ouvinte enganado por uma falsa aparncia da ao comunicativa, atenta estrategicamente. Nesse caso, a mediao tanto da ao comunicativa quanto da ao estratgica dada pela linguagem. O que as diferencia o seu telos, que na ao comunicativa o entendimento e na ao estratgica a obteno de uma perspectiva de xito em seu ato de fala. Este ltimo aspecto o que Habermas chama de uso parasitrio da linguagem: o falante pretende alcanar determinado fim no mundo dos estados de coisas. Habermas tambm compreende essas duas aes como constituindo a racionalidade estratgica e a racionalidade comunicativa, respectivamente. No primeiro casoa linguagem utilizada para alcanar determinados fins no explcitos na proposio enunciada. Ao conceito de racionalidade comunicativa, por sua vez, est vinculada uma perspectiva de entendimento com todos os sujeitos capazes de linguagem e ao. Essa forma de racionalidade refere-se utilizao comunicativa de um saber proposicional, que visa ao consenso dos diversos participantes atravs da fora do melhor argumento (RAUBER, J. J. 1999, p. 63).

Atravs da racionalidade cognitivo-instrumental, o falante procura os meios mais eficazes para a obteno de um fim desejado. uma manipulao da linguagem, fazendo com que o ouvinte seja a vtima de suas intenes. Consiste na utilizao da linguagem como meio para a realizao dos fins desejados. O racional de uma emisso , para Habermas, a apresentao de razes. Ao compartilhar do mundo da vida, falante e ouvinte tambm compartilham intersubjetivamente suas intenes, que Habermas chama de racionalidade comunicativa. A comunicao entendida como a troca de razes, sem qualquer tipo de represso ou coero. Falante e ouvinte agem nica e exclusivamente para alcanar o entendimento, quando as pretenses de validade so postas em dvida. A marca desse 28

processo de problematizao, que tem em vista o consenso, dada pela capacidade que os participantes tm de argumentar. Para que este consenso seja possvel, o falante deve demonstrar que suas afirmaes de validade so satisfatrias. Ento se considera que a fora das exigncias morais est apoiada em boas razes que levam ao entendimento, produzidas atravs de argumentos. Nossas manifestaes lingsticas so consideradas, quanto ao conhecimento, parte integrante de nossa racionalidade, pois esto repletas de sentido e entendimento. Reclamar validade a essas manifestaes necessrio, para que a concluso do discurso seja moralmente vlida. Na ao comunicativa, o sujeito refere-se a algo que tem lugar no mundo objetivo. Neste tipo de ao os indivduos almejam aes que realmente podem ser praticadas dentro de uma conduta tica. A atividade estratgica ou teleolgica refere-se a algo que h de ter lugar no mundo, ou seja, existe uma inteno individual de ao, independentemente de uma possvel prtica tica. Estas duas atividades levantam pretenses de validade que podem ser criticadas ou defendidas, isto , podem ser fundamentadas. A racionalidade comunicativa propicia a excluso do agir instrumental e procura consolidar a comunicao como nica possibilidade para o entendimento. Anulam-se as coaes para alcanar racionalmente o consenso. Capacitados de conhecimento, os sujeitos podem iniciar um discurso que, por sua vez, exige do falante a sustentao de seus proferimentos; exige a verdade do contedo discutido. , portanto, a ao comunicativa o telos imanente da racionalidade comunicativa? Os participantes da fala argumentativa abrem mo de sua subjetividade inicial, passando relao de comunidade, onde no devem existir coeres. Possuindo a mesma capacidade de conhecimento e iguais chances de argumentos, os participantes do discurso podem se entender sobre algo que tem lugar no mundo. Encontrar a verdade do que est sendo dito o objetivo do discurso, quer dizer, preciso haver a aceitao das partes com respeito ao que est sendo exposto. Para Habermas, a argumentao somente pode ser chamada racional se o ator cumpre as condies que so necessrias para a realizao de seu desgnio de interferir eficazmente no mundo. O objetivo que se tem com uma ao teleolgica ou estratgica a realizao de seus propsitos e mximas, elegendo os meios mais adequados para a obteno dos mesmos. Essa ao, em seu incio, teleolgica, mas se transforma em estratgica, como vimos acima, quando os agentes da ao atuam em seu prprio benefcio. Isto , o ator elege e calcula meios e fins do ponto de vista da expectativa de sua utilidade. Em contraposio, as aes reguladas 29

por normas tm como princpio, dentro da argumentao, a orientao de sua ao por valores comuns. As normas contidas na ao comunicativa expressam um acordo existente em um grupo social. Como j foi mencionado, a ao comunicativa se refere interao entre sujeitos capazes de linguagem e ao. Com a utilizao da linguagem, o entendimento ou o acordo deve surgir como caracterstica da relao entre duas ou mais pessoas que traam idias e colocam em dvida as pretenses de validade. A ao estratgica, abordada por Habermas como sendo oposta ao comunicativa, adota um modelo em que o agente pode formar opinies sobre os estados de coisas existentes e, desenvolver intenes com a finalidade de trazer existncia dos estados de coisas desejados. Esses estados de coisas so expressos por proposies semnticas que tm oraes enunciativas e intencionais. Com essa ao, os atores buscam um fim que, de certa forma, interfere na deciso dos outros indivduos que esto envolvidos na comunicao. Atravs do meio lingstico que se constri a ao comunicativa defendida por Habermas e que implica, de certa forma, relao do ator com o mundo, mas de uma maneira diferente da relao sujeito-mundo-estratgico. O consenso encontrado nessa ao dado pela natureza lingstica. A linguagem estratgica usada como meio de influncia para conduzir as decises dos outros a um fim desejado, ou seja, busca-se alcanar os propsitos. Neste caso, procurar-se- esclarecer a fora ilocucionria dos atos de fala, os quais so expostos atravs de proferimentos lingsticos.

1.2.2. A fora ilocucionria dos atos de fala na efetivao da racionalidade comunicativa

No incio de sua obra Teoria da ao comunicicativa, Habermas escreve:

A racionalidade das opinies e das aes um tema que tradicionalmente foi tratado na filosofia. Pode-se dizer, inclusive que o pensamento filosfico nasce da reflexo da razo encarnada no conhecimento, na fala e nas aes. O tema fundamental da filosofia a razo (HABERMAS, J. 1987. p. 15, (Traduo A.L.L).

Com ela Habermas quer explicar a racionalidade comunicativa atravs da pragmtica universal. Via atos de fala, tentar distinguir a ao comunicativa que leva ao entendimento e a ao estratgica que leva realizao de um fim ou manipulao. Esta ltima limita-se ao 30

que um nico sujeito quer cumprir. A primeira representa toda a objetividade de fatos que se tornam reconhecveis e aceitos por uma comunidade inteira capaz de linguagem e ao. Segundo Dutra, a racionalidade comunicativa tem um carter mais amplo, pois contempla no somente o conhecimento da linguagem, mas tambm o tico e o expressivo, o que a leva a ser fundamentada em um consenso discursivo. Como Habermas aplica os atos de fala ao conceito de racionalidade comunicativa, e obteno de um consenso discursivo? Entende-se por atos de fala a unidade elementar da fala, porque o falante, por meio da expresso, realiza exatamente a ao que a expresso performativa, empregada no proferimento, apresenta. Para que isso ocorra, preciso que o contedo proferido ao objeto em questo tenha a ver com o prprio objeto. Habermas tem por interesse estabelecer regras para que o falante competente da ao possa fazer proferimentos coerentes. De acordo com as regras, falante e ouvinte podem comunicar-se espontaneamente e chegar ao entendimento. A competncia que se tem lingisticamente significa a capacidade de algum dominar um sistema abstrato de regras. Ter capacidade de fala e ao so pr-requisitos da teoria da ao comunicativa de Habermas. Simultaneamente, uma pessoa pode dizer algo e fazer algo. Isso faz com que duas ou mais pessoas se entendam reciprocamente sobre determinados proferimentos lingsticos. Em quase todos os casos de atos de fala, h um enquadramento que designa uma parte performativa, a qual inerente em todos os atos de fala. essa dupla estrutura que permite definir um ato lingisticamente. Assim, as expresses lingsticas so simultaneamente fala e ao. Para desenvolver a sua teoria da ao comunicativa, Habermas procura em Austin o ponto de partida dos atos de fala, classificando-os em atos locucionrios, atos ilocucionrios e atos perlocucionrios. A definio para estes atos de fala pode ser a feita da seguinte forma:

Chamo locucionrios o contedo das oraes enunciativas (p) ou das oraes enunciativas nomenalizadas (que p). Com os atos locucionrios o falante expressa estados de coisas: diz algo. Com os atos ilocucionrios o agente realiza uma ao dizendo algo. Por ltimo, com os atos perlocucionrios o falante busca causar efeito sobre seu ouvinte. Os trs atos que Austin distingue podem, portanto, caracterizar-se da seguinte forma: dizer algo; fazer dizendo algo; causar algo mediante o que se faz dizendo algo (HABERMAS, J. 1987. p. 370-371).

Um ato de fala sempre deve ser proferido com a inteno de chegar ao comunicativa, na qual falante e ouvinte se entendam. Fica descartada a hiptese de se chegar ao entendimento com as aes estratgicas que tm por objetivo alcanar um fim almejado. Esses atos servem 31

de guia para que o indivduo no caia ou permanea no hemisfrio da ao estratgica, sabendo resgatar discursivamente suas pretenses de validade da ao comunicativa. Buscando uma interao social por meio de proferimentos lingsticos, Habermas d a funo de entendimento aos atos ilocucionrios e perlocucionrios, pois estes envolvem interaes lingsticas entre pessoas reciprocamente, ou seja, exigem interlocutores que conduzam a ao para o entendimento ou como determinao do xito 5. Um enunciado somente ter significado se entendermos um ato de fala e quando soubermos o que o faz aceitvel, ou seja, o que o tornar vlido intersubjetivamente. Pode-se, agora, fazer uma distino entre a funo que cada ato realiza nas interaes sociais que Habermas prioriza. Os atos de fala perlocucionrios so utilizados como parte especial da ao estratgica, na qual a fora ilocucionria utilizada como ao teleolgica, tornando a interao social negativa. Nesse caso, o falante, que age com vistas voltadas a fins, procura fazer com que o ouvinte entenda o que est sendo dito e contraria as obrigaes implcitas no ato de fala, sem deixar transparecer seu propsito perlocucionrio (HABERMAS, J. 1987. p. 376). Este tipo de ao estratgica, em que se visa a um fim desejado, no considerado uma interao social. O que se prioriza na linguagem o seu telos: o entendimento. O desvio da interao social torna o ouvinte vtima das intenes do falante. Para Habermas, todo ato de fala deve dar compreenso e condies de aceitabilidade, o que o leva a admitir os atos de fala ilocucionrios como enunciados realmente comunicativos, contrariando assim a teoria semntica do significado, onde somente podemos entender uma orao quando entendemos as condies sob as quais a orao verdadeira. O propsito do ato perlocucionrio tomar a ilocuo como um meio para alcanar o objetivo estratgico de sucesso. Os atos ilocucionrios so entendidos por Habermas como a simetria das interaes sociais de indivduos, que formam o modelo prprio da ao comunicativa: Chamo, pois, de ao comunicativa aquelas interaes mediadas lingisticamente, em que todos os participantes perseguem com seus atos de fala fins ilocucionrios e s fins ilocucionrios (HABERMAS, J. 1987. p. 378). Falante e ouvinte, nesse caso, esto harmonicamente inteirados das intenes de cada um, perseguindo sempre o fim desejado, que o

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O ato lingstico literalmente um ato. Para Rouanet, graas ao ato lingstico a fala ao mesmo tempo ao, e a relao lingstica transforma-se em ao comunicativa (ROUANET, S. P. 1989, p. 25). Na ao comunicativa os indivduos so capazes de mediar e organizar suas relaes lingsticas. O ato lingstico estabelece uma dupla estrutura que a comunicao entre duas ou mais pessoas e a intersubjetividade, condicionando o comportamento dos atores.

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entendimento. com o interesse no entendimento que falante e ouvinte abriro mo do discurso para se entenderem sobre a pretenso de validade posta em dvida. Constata-se que a teoria dos atos de fala baseada nas aes convertidas na fora ilocucionria que, segundo Dutra, entendida como pretenses de validade. O que essas pretenses exigem a aceitao intersubjetiva de razes que levam ao entendimento. Essas razes iro fazer parte dos discursos tericos e prticos6. O que deve prevalecer a fora do melhor argumento e no a coao da fora ou do poder. O convencimento acontece pelos bons argumentos e pelas boas razes. Na ao comunicativa, o falante procura deixar clara a sua real inteno a partir das razes lanadas, o que no ocorre na ao estratgica. Habermas chama de ao comunicativa (...) o processo de obteno de acordos a partir da apresentao de bons argumentos (HABERMAS, J. 1987. p. 391). Descarta-se, no processo do entendimento, atravs do discurso, o agir estratgico que tem como finalidade a utilizao de atos ilocucionrios para a obteno de fins perlocucionrios. Alguns atos de fala so expressos de forma impessoal, fazendo referncia a uma proposio normativa. A teoria dos atos de fala tem por objetivo clarear o carter performativo das emisses. O ato de fala tem uma fora ilocucionria que consiste na capacidade de estabelecer a relao interpessoal de fazer coisas dizendo algo, na linguagem de Austin (DUTRA, D. J. V. 2005, p. 47-48). A parte ilocucionria fixa o sentido pragmtico da pretenso de validade exigida e o contedo proposicional fixa aquilo de que se fala. Assim, os atos de fala, segundo Habermas, representam uma dupla estrutura que se enquadra no nvel ilocucionrio e proposicional. Ao se fazer uma pergunta, o prprio ato de perguntar reflete que estamos perguntando. O sujeito deve ter em vista as razes e regras para consolidar o entendimento, e isso deve estar presente em todos os envolvidos, que o que Habermas chama de competncia comunicativa. Com isso, todo ato de fala inerente ao entendimento. Na viso de Dutra, qualquer falante que queira argumentar seriamente, (...) no pode deixar de reconhecer, intuitivamente, que reivindica validade para suas afirmaes e que essa validade tem que ser estabelecida pelo princpio do discurso (DUTRA, D. J. V. 2005, p. 147). Retomando a classificao dos atos de fala de Austin, Habermas diz que os atos locucionrios so constativos, pois descrevem um estado de coisas no mundo, podendo ser verdadeiros ou falsos. Os atos ilocucionrios desenvolvem uma fora ilocucionria, podendo ser, segundo Dutra, felizes ou infelizes. O sucesso de um ato ilocucionrio depende das pretenses de validade racionalmente mostradas do convencimento de todos os indivduos.6

A estes dois tipos de discursos dedicar-se- maior ateno no captulo subseqente, seguindo a ordem de pensamento do autor aqui estudado na tentativa de fundamentar seu princpio de universalizao.

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Mas ser que estes atos de fala ilocucionrios e perlocucionrios so suficientes para tornar valida uma argumentao? Atravs de que critrios se pode dizer que o falante agiu racionalmente motivado para o entendimento? Como distinguir atos de fala ilocucionrios e atos de fala perlocucionrios, na prpria inteno do sujeito? Alm das aes lingsticas, h uma srie de outros fatores que proporcionam a fundamentao da tica do discurso. Habermas afirma que impossvel uma pessoa viver sem se comunicar. Para isso, ele se utiliza dos atos de fala munidos de pretenses de validade. Somente com a teoria dos atos de fala de Austin, Habermas no conseguiria fundamentar suficientemente a tica do discurso, por isso, em 1976, Habermas trabalhou na solidificao da teoria dos atos de fala, mas no conseguiu evitar as crticas, sobretudo por Ernst Tugendhat. Nesta teoria da ao comunicativa, Habermas transmite para os atos de fala, ou melhor, para a linguagem a capacidade de entendimento, acordo e consenso. Mas, para isso, Habermas teve de provar a validade das pretenses e tambm o desempenho discursivo, o que no representa somente acordo, entendimento e consenso, mas a prpria fundamentao da tica do discurso e de seu princpio U.

1.3. Pretenses de validade

Para sair da filosofia do sujeito, Habermas assumiu um caminho diferente dos fenomenlogos: a racionalidade comunicativa. Abandona, assim, o conceito de ser-nomundo, proposto por Heidegger. Sua racionalidade comunicativa processada dentro do pano de fundo do mundo da vida, definido como o horizonte de auto-evidncias culturais e lingsticas. A constituio do mundo da vida dado comunicativamente e no a partir de uma perspectiva individual, ou seja, entendido em termos da linguagem e no mais em termos da conscincia. a comunicao intersubjetiva que vai conduzir, neste momento, o entendimento. Este processo comunicativo entendido como uma racionalidade mnima, comportando a interao, a linguagem e a intersubjetividade como elementos antropolgicos. A racionalidade comunicativa encontra a sua medida na faculdade que os participantes tm de orientar-se por pretenses da validade a ser intersubjetivamente reconhecidas e encontra o seu cnon nos procedimentos de desempenho de pretenses de validade. H uma espcie de resoluo concreta das pretenses de validade dentro do mundo da vida, pensa Habermas. O mundo da vida comporta em si a intersubjetividade, como forma de possibilitar o consenso, no podendo ser posto em dvida. O importante a salientar que o 34

mundo vivido reflete as condies formais da ao comunicativa em si mesmo. No entanto, ele , acima de tudo, um fundo de certezas da ao comunicativa (DUTRA, D. J. V. 2005, p.82). Ele constitudo por um processo comunicativo voltado ao entendimento. As certezas do mundo vivido podem virar tema de um discurso, se estas se tornarem problemticas. Ao falar da racionalidade comunicativa, Habermas faz uma distino entre dois tipos de comunicao: a ao comunicativa ordinria e o discurso. Tem-se na ao ordinria uma troca de informaes. Por outro lado, no discurso existe a problematizao das pretenses de validade, que no cenrio ordinrio no puderam ser resolvidas pela falta de argumentos e capacidade crtica. Uma refere-se a opinies e a outra a normas, as quais so sustentadas pelo jogo lingstico utilizado para chegar ao consenso. Com o discurso tem-se a finalidade de dar razes a respeito das interrogaes e interaes, fundamentando as pretenses de validade das opinies e das normas. A validade dessas vises de mundo estabelecida numa estrutura de comunicao, que exclui a formao discursiva da vontade enquanto impedem, seja a transformao de proferimento extralingsticos em proferimentos lingsticos, seja a passagem flexvel da ao comunicativa ordinria para o discurso. Entende-se, nesse sentido, que o resgate das pretenses de validade legtimas garantem sair da comunicao ordinria para a comunicao mais elevada, a qual Habermas chama de discurso. Entendimento significa que o participante na interao se pe de acordo sobre a validez que pretende para suas emisses ou manifestaes, isto , que reconheceu intersubjetivamente as pretenses de validade com que se apresenta uns aos outros. A ao comunicativa representa o uso da linguagem como meio para alcanar o entendimento entre participantes e a defesa das pretenses de validade postas em questo para serem aceitas; falante e ouvinte encontram-se em uma mesma situao sobre a verdade dos enunciados, o que remete ao resgate das pretenses de validade postas em dvida. O ouvinte deve tomar uma postura de aceitao ou negao, racionalmente motivada, frente emisso do falante. Habermas taxativo quando afirma que o mundo da vida constitudo de linguagem e cultura. Nesse caso, o entendimento inerente ao mundo da vida. Este entendimento a busca de acordo, o qual pressupe o reconhecimento intersubjetivo das pretenses de validade levantadas em atos de fala. Segundo Habermas, por meio de atos de fala levantamos quatro pretenses de validade, a saber: a inteligibilidade, a verdade, a retitude e a veracidade. De acordo com o uso da linguagem, quer-se que as pessoas envolvidas no discurso entendam-se e consigam chegar a um acordo, ou seja, ao consenso. Quer-se, primeiramente, que o entendimento mediado pela linguagem ocorra satisfatoriamente entre falante e ouvinte. 35

Essa a pretenso de inteligibilidade, inerente em qualquer processo do entendimento mtuo. a pretenso que cada falante deve ter para conseguir manifestar de maneira compreensvel sua emisso. Ela mais uma condio da comunicao do que uma pretenso: a inteligibilidade representa, enquanto a comunicao transcorre sem perturbaes, uma pretenso de validade j resolvida factualmente; no simplesmente uma promessa (VELASCO, M. 2001, p. 92). Ela considerada entre as pretenses a nica imanente linguagem, pois pressupe que as outras representam ordens da realidade extralingstica. A pretenso de verdade, como o prprio enunciado expressa, consiste em um enunciado que tenha uma coerncia com o estado de coisas sobre o qual se diz algo, ou seja, deve-se pretender que aquilo de que se est falando seja verdadeiro. A pretenso de retitude mostra a correo que as normas devem ter para obter o reconhecimento intersubjetivo; que o que foi dito esteja em correo com o contexto normativo vigente; faz parte do mundo social a partir das relaes interpessoais legitimamente reguladas. Por fim, a pretenso de veracidade que consiste na pessoa se expressar de modo veraz, representando o mundo subjetivo enquanto totalidade das vivncias subjetivas pretende que o que foi expresso realmente seja correspondente ao pensamento do falante. Em sntese, est-se falando, aqui, da exigncia da verdade aos enunciados e proposies, da retitude para a ao legtima e para o contexto normativo destas, e da veracidade para a manifestao das vivncias subjetivas. Deixando de lado a pretenso de inteligibilidade, pois um pressuposto para a compreenso de um ato de fala, Habermas diz que as trs outras pretenses pertencem ao domnio ontolgico de trs mundos, tomados por ele de Popper. A teoria dos trs mundos de Popper tornou-se um referencial em Habermas, pois a comunicao organiza-se a partir da trplice pretenso de validade. Um ato de fala se refere simultaneamente a algo no mundo subjetivo, a algo no mundo objetivo e a algo no mundo social comum a todos (HABERMAS, J. 1990, 126). A pretenso de verdade relaciona-se ao mundo objetivo, a retitude refere-se ao mundo social e a veracidade toma partido com o mundo subjetivo. So, portanto, os critrios de verdade, retitude e veracidade que garantem o consenso, legitimando a relao que acontece entre o mundo objetivo conjunto de entidades sobre as quais so possveis enunciados verdadeiros , o mundo social relao interpessoal legitimamente regulada e o mundo subjetivo - totalidade das vivncias do falante. Cada uma das pretenses de validade procura satisfazer domnios de mundos diferentes. A linguagem serve, nesse sentido, como meio de comunicao para atingir certas metas. Os atos de fala coordenam os

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tipos de interaes encontradas na ao comunicativa que conduzem o ouvinte e o falante ao entendimento. Estas trs pretenses so passveis de crtica. Enquanto isso no acontece, o entendimento entre falante e ouvinte est satisfeito. Nesse sentido, o mundo da vida continua exercendo seu papel de pano de fundo das relaes sociais. H uma aceitao das emisses lingsticas proferidas comunicativamente pelos falantes. Enquanto isso acontece, os sujeitos garantem a harmonia no mundo da vida. Mas, em muitos casos, o ouvinte no acredita na verdade das afirmaes, na veracidade do locutor ou na manifestao correta com relao s normas. Se isto realmente se confirmar, a pretenso de validade perde sua credibilidade sobre o entendimento plenamente satisfeito no mundo da vida. Este o momento de resgatar a pretenso de validade colocada prova, suspensa temporariamente, por meio do discurso argumentativo. Com isso, segundo Habermas, os dois precisam trocar argumentos: o falante deve prestar conta dos enunciados lingsticos proferidos ao ouvinte. D-se incio com isso, quilo que Habermas chama de discurso argumentativo racionalmente motivado. Os atos de fala devem procurar o sucesso da comunicao, ou seja, o entendimento e o consenso exigem a satisfao das diferentes pretenses de validade, simultaneamente. Contudo, cada ato de fala levanta preferencialmente uma pretenso de validade. Para evidenciar melhor estas idias, pode-se citar um exemplo, proposto por Habermas. Se num seminrio, o professor diz ao aluno: 1 - Por favor, traga-me um copo de gua. Est se cumprindo, nesse caso, a compreenso do ato de fala atravs da pretenso de inteligibilidade. A partir desse ato de fala podem surgir trs objees por parte do aluno. Um deles pode reclamar a correo do contexto normativo. 2 No, voc no pode tratar-me como se eu fora seu criado. Com essa interveno, questiona-se que a ao do falante seja correta dentro de um contexto normativo dado. Mas, ser que o professor necessita efetivamente de um copo de gua? Surge a segunda contestao. 3 - No, o que voc pretende diminuir-me frente a meus amigos. Questiona-se, com essa interveno, a sinceridade do falante, suspeitando que este persiga um fim perlocucionrio. Ou, por fim, pode-se questionar a verdade do enunciado. 4 - No, no h lugar prximo onde buscar gua antes que voc v embora. Questiona-se, assim, o enunciado sob o ponto de vista da verdade. 37

O consenso somente ser obtido, no caso de questionamento, quando se cumprem as pretenses de validade levantadas em atos de fala. O consenso intersubjetivo mede-se pela satisfao dessas trs ltimas pretenses de validade, passveis de crtica, mais a pretenso de inteligibilidade, que inerente em qualquer ato de fala. Quem no aceita um ato de fala, questiona no mnimo uma pretenso de validez. Quando se contesta uma destas pretenses porque o ato de fala no cumpriu a funo de assegurar uma relao interpessoal. Nesse caso,

todos os falantes e ouvintes se supe mutuamente que tem de falar inteligivelmente, de que tem que ser veraz, de que tem que considerar as respectivas emisses como verdadeiras e de que tem que considerar correta uma norma relevante para o ato de que se trata (HABERMAS, J. 1987., p. 396).

Austin analisou a fora ilocucionria buscando a felicidade ou infelicidade dos atos de fala. Austin, segundo Habermas, diz que um ato de fala ser feliz quando o falante assumir o compromisso, frente ao ouvinte, que o leve a confiar no que ele est dizendo. uma condio que dever se satisfazer em todo sucesso ilocucionrio. Apesar disso, Habermas, acha essa posio de Austin insuficiente, pois ele no explica em que consiste esse compromisso que o falante assume. Frente s pretenses de validade, o ouvinte assume uma posio. O falante precisa colocar as pretenses implcitas, com justificao e fundamentao de suas prprias pretenses, para que o ouvinte as reconhea. Assim, estabelecer-se- o consenso racionalmente motivado.

1.3.1. Os atos de fala e as pretenses de validade

Na tica habermasiana, a argumentao somente ter progresso se as pretenses de validade encontrarem normas e mandamentos que fundamentem a sua prtica. Isso comea na esfera do pano de fundo da comunicao, que o mundo da vida, lugar dos possveis dilemas, onde, por meio de indivduos capazes de linguagem e ao, possa se chegar ao plano da argumentao. interessante destacar que esse tipo de estrutura se desenvolve com o agir comunicativo em contraposio ao agir estratgico. O que se visa, portanto, o entendimento, por meio dos atos de fala, referindo-se ao mundo objetivo, ao mundo social ou ao mundo subjetivo individual. Procura-se fazer com que os indivduos criem uma certa adeso ao das pessoas que fazem proferimentos lingsticos. O agir comunicativo uma motivao 38

racional do proponente para um entendimento, ou seja, por meio do ato de fala (ilocucionrio) as possveis partes tentam chegar a um acordo em contraposio ao agir estratgico mediado pelo interesse. Uma norma moral proclamada como dentica universal e incondicional como, por exemplo, no se deve matar ningum, um mandamento no matar ningum pode ser exposta de maneira diferente obedecendo a atos de fala regulativos: dar ordens, fechar contratos, abrir sesses, fazer advertncias, permitir excees, dar conselhos, etc (HABERMAS, J. 1989, p.81). Uma norma moral, para possuir essa caracterstica, deve ser aplicada por meio de atos de fala. No possvel express-la ou torn-la vlida, sem que lancemos os proferimentos de atos de fala, pois, alm de tudo, possuem um sentido pragmtico ou, como considera Habermas: um mandamento. Mas dar a pretenso de validade dos atos de fala depende do papel ilocucionrio das classes desses atos. Por exemplo: o ferro magntico; verdade que o ferro magntico. Existe uma assimetria entre estes dois atos de fala. A pretenso de verdade somente pode ser encontrada em atos de fala, j a pretenso de retitude normativa tem sua sede em normas e s de maneira derivada em atos de fala. Existem trs classes de atos de fala nos quais se enquadram as trs pretenses de validade: atos de fala constatativos, atos de fala regulativos e atos de fala expressivos ou representativos. Para Habermas esse princpio esclarecido na seguinte idia:

quando o falante faz um enunciado, conta algo, explica algo, expe algo, prediz algo, ou discute algo, etc., busca um acordo como ouvinte sobre a base do reconhecimento de uma pretenso de verdade. Quando o falante emite uma orao de vivncia, descobre, revela, confessa, manifesta, etc. algo subjetivo, o acordo s pode produzir-se sobre a base do reconhecimento de uma pretenso de veracidade. Quando o falante d uma ordem ou faz uma promessa, nomeia ou exorta algum, compra algo, se casa com algum, etc., o acordo depende de que os participantes considerem normativamente correta a ao (HABERMAS, J. 1987 p. 395).

Os enunciados constatativos exigem do falante que sua pretenso tenha o reconhecimento de todos os participantes sobre a verdade de sua emisso, ou seja, a pretenso de verdade resgatada atravs de um ato de fala constatativo. Se ela no obtiver o reconhecimento de um dos indivduos deve-se procurar argumentar para resgatar o entendimento. Todo falante deve apresentar razes de convencimento comunicativos. A pretenso de validade normativa resgatada por meio de enunciados regulativos, fazendo com que o falante deva justificar suas razes, caso no aceite o proferimento. Nesse caso, no se est mais no campo do mundo da 39

vida, pois o entendimento no est plenamente satisfeito. H, assim, a necessidade de se resgatar o consenso aduzindo razes. Para reclamar a veracidade das sentenas os locutores devem proferir enunciados expressivos ou representativos. Com o consenso, elaborado entre duas pessoas, que possuem condies suficientes de discurso chega-se ao entendimento sobre algo. possvel entendimento em um discurso somente por proferimentos lingsticos. No contexto do discurso, segundo Velasco, a nica classe de atos de fala cujo significado implica obrigaes tpicas de ao a dos atos regulativos, porque neles esto tematizadas as relaes interpessoais: ouvinte e/ou falante tem que fazer algo, se uma ordem, uma promessa ou um acordo aceito por eles (VELASCO, M. 2001, p. 93). Nos atos de fala expressivos e constatativos, o ouvinte no obrigado a realizar uma ao. O ouvinte deve apenas compreender o contedo proposicional e a fora ilocucionria de uma orao de vivncia ou de uma orao enunciativa (VELASCO, M. 2001, p. 93). No ato de fala regulativo, a obrigao consiste em dar consistncia e trazer argumentos. O resgate destas pretenses proporciona uma sada do agir comunicativo e um ingresso no discurso, submetido a regras especiais. Os atos de fala constatativos e regulativos so resgatveis discursivamente, pois dependem exclusivamente da troca de argumentos. Mas, nem sempre quando se fala em pretenses de validade e sua legitimao, quer-se dizer que elas sejam criticadas ou legitimadas. No caso, o falante pode resgatar a pretenso de verdade e normatividade discursivamente, aduzindo razes. Para a pretenso de veracidade, o falante dever defend-la e resgata-la atravs da firmeza de seu comportamento. Para Habermas, que algum pense sinceramente o que diz algo a que s se pode dar credibilidade pela conseqncia de suas aes, no pela indicao de razes (HABERMAS, J. 1989, p.79). A aceitao pelo ouvinte do que foi dito faz com que entrem em vigor as obrigaes expostas no significado da fala. A assimetria entre as pretenses de verdade e normatividade se t