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OS IMPACTOS OCASIONADOS PELA (IN)EXISTÊNCIA DE
POLÍTICAS PÚBLICAS ESPECÍFICAS NO PROCESSO DE
IMPLEMENTAÇÃO DA LEI 10.639/03 NA REDE MUNICIPAL DE ENSINO DE
SÃO PAULO
Andréia Vitório Silva Mazzone
Mestranda em educação – EHPS/PUC-SP
Professora de História – SME São Paulo
Resumo
Passados dez anos da promulgação da Lei 10.639/03 que institui a obrigatoriedade do
ensino da história e cultura afro-brasileira nas escolas de ensino fundamental e médio do
país, é preciso caminhar para alguns balanços relativos aos impactos que a mesma produz
nos espaços intraescolares. Partindo desta perspectiva, esta comunicação se propõe a
apresentar alguns impactos ocasionados pela (in) existência de políticas públicas
específicas em relação a implementação da Lei 10.639/03 na rede municipal de ensino de
São Paulo. No intuito de responder a este questionamento serão analisados os relatos de
três professores de diferentes áreas – ciências, alfabetização, história - desta rede de
ensino, que foi escolhida devido ao meu pertencimento como professora de história e
também ao fato de se constituir no maior sistema de ensino municipal do país. A hipótese
apresentada é de que a ausência de políticas públicas significativas relativas ao trato da
questão no município de São Paulo torne a implementação da Lei mais lenta e
fragmentada, já que o contexto atual aponta para um número representativo de professores
que trabalham com a temática apenas de maneira isolada devido à dificuldade existente
na construção de trabalhos coletivos sobre a questão. Preliminarmente é possível apontar
que os três relatos não indicam a existência de silenciamentos e omissões por parte da
Secretaria Municipal de Educação de São Paulo em relação a implementação da lei, mas
indicam a necessidade de reconfiguração das ações desencadeadas. Como referencial
teórico foram abordados L.W. Boneti, I. Goodson, A.C. Silva, V. R. Silvério e M. Tardif.
Palavra-chave: Lei 10.639/03. Políticas públicas. Rede Municipal de Ensino de São
Paulo
INTRODUÇÃO
Em 09/01/2013 a Lei 10.639/03 que incluiu no currículo oficial da rede de ensino
a obrigatoriedade do ensino da história e cultura afro-brasileira, sancionada pelo
presidente Luís Inácio Lula da Silva, completou dez anos. Fruto de lutas históricas do
movimento negro organizado, a criação de uma lei específica sobre a questão dá maior
visibilidade à necessidade de implementação da temática nas escolas brasileiras de ensino
fundamental e médio. O termo necessidade neste contexto não é utilizado de forma
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aleatória. Indica a perspectiva de superação e recusa da invisibilidade impregnada
historicamente no contexto escolar brasileiro. Trata-se de um grande passo pela negação
de práticas racistas e excludentes pautadas por currículos que não privilegiam os
interesses educacionais no campo histórico-cultural da parcela majoritária da população
brasileira.
A criação desta Lei não representa um fim em si. A luta não inclui apenas a
transformação na construção e apropriação do conhecimento, mas de acesso e
reconhecimento generalizados nos planos cultural, econômico, político e social. Dessa
maneira, a visibilidade em torno da conquista da Lei 10.639/03 não é exagerada. Trata-se
da tentativa de uma justa e demorada reparação histórica à contribuição negra na
sociedade brasileira através da escola. O acesso ao conhecimento sobre a história e cultura
afro-brasileira e sua reflexão crítica abrem portas para a construção/reconstrução de
identidades, e para o reconhecimento do negro enquanto sujeito portador de uma cultura
e história que não se limita apenas à evidenciação da opressão.
Inserindo a Lei 10.639/03 em um contexto de criação de políticas públicas mais
abrangentes em relação ao combate ao racismo e a construção de políticas afirmativas no
país, podemos dizer que esta, juntamente com as Diretrizes Curriculares Nacionais para
a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura. Afro-
Brasileira e Africana se configuram como os principais instrumentos de legitimação e
construção de práticas educativas em relação à temática étnico-racial no Brasil. Embora
a Lei e as Diretrizes Curriculares sejam fundamentais ao processo, é notória as
deficiências geradas pela ausência de políticas públicas significativas para que o ensino
da história e cultura afro-brasileira se efetive no contexto escolar.
Portanto, esta comunicação se propõe apresentar alguns impactos ocasionados
pela (in) existência de políticas públicas específicas em relação a implementação da Lei
10.639/03 na rede municipal de ensino de São Paulo. No intuito de responder a este
questionamento serão analisados os relatos de três professores desta rede de ensino. A
hipótese apresentada é de que a ausência de políticas públicas significativas para o trato
da questão no município de São Paulo torne a implementação da Lei mais lenta e
fragmentada, já que contexto atual aponta para um número representativo de professores
que trabalham com a temática de maneira isolada devido à dificuldade existente na
construção de trabalhos coletivos sobre a questão.
Esta pesquisa está organizada da seguinte maneira: primeiramente haverá uma
breve conceituação sobre o que são políticas públicas e qual sua importância para a
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construção de ações significativas no contexto escolar. No segundo momento haverá a
apresentação dos sujeitos da pesquisa e os critérios que envolveram essa escolha, assim
como a escolha pela rede municipal de ensino de São Paulo, e por fim, o terceiro momento
será dedicado à fala dos professores e a percepção que os mesmos possuem sobre a
implementação da Lei 10.639/03 e o papel das políticas públicas neste processo.
POLÍTICAS PÚBLICAS E A IMPLEMENTAÇÃO DA LEI 10.639/03: UMA
RELAÇÃO NECESSÁRIA
A preocupação do movimento negro com a necessidade de revisão da educação
através de seus currículos marcadamente eurocêntricos, e práticas amplamente racistas
no contexto escolar, não é recente. Já no início da década de 1930 a Frente Negra defendia
a integração do negro à sociedade brasileira por via da formação escolar. Décadas depois,
os movimentos negros a partir da década de 1970 começam a denunciar “[...] a existência
e persistência de práticas discriminatórias e racistas e, posteriormente, passou a exigir
medidas concretas dos poderes públicos no sentido de coibi-las”. (SILVÉRIO, 2003, p.
321).
Foi no bojo da luta estruturada a partir da década de 70 que foi construída a Lei
10.639/03. Várias entidades negras participaram ativamente neste processo em várias
regiões do país conforme nos diz Silva:
Irradiadas por todo o país, essas entidades negras, tais como o
Movimento Negro Unificado, o Centro da Cultura Negra – CCN, do
Maranhão, o Centro de Estudos e Defesa do Negro do Pará – Cedenpa,
o Grupo Solano Trindade, de Recife, entre várias outras, atuam nas
escolas, realizando palestras, concursos, encontros e seminários. Junto
às comunidades, realizam encontros, constroem e divulgam cadernos
de educação, calendários de datas históricas não-oficiais, boletins,
cartazes, jornais e livros, colocando assim, paralelo ao sistema oficial,
todo o processo civilizatório cultural que a tradição seletiva oculta, para
dificultar a construção da identidade, da autoestima e da cidadania dos
segmentos étnicos e sociais oprimidos. (SILVA, 1996, p. 142)
A atuação do movimento ocorria em várias frentes. Enquanto alguns membros
atuavam nas escolas com o intuito de garantir uma formação e elaboração de material
didático não apenas aos alunos e professores, mas a comunidade no intuito de trazer
aspectos ligados a identidade e cidadania negra amplamente negligenciados e silenciados,
havia também o aspecto de cobrança ao Estado brasileiro forçando-o a reconhecer que
“[...] a inexistência de medidas sócio-legais desde a abolição, significou uma postura
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política que corroborou para a exclusão ou para a integração subalterna da população
afrodescendente.” (SILVÉRIO, 2003, p. 329) .
Será em busca dessa reparação, que passa a ganhar força no Brasil com a
Constituição de 1988, quando a denúncia de diversas formas e práticas de racismo são
reconhecidas como crime, que começará a surgir uma movimentação política mais
intensa no intuito de respaldar legalmente a população negra excluída e marginalizada.
Diante deste cenário torna-se fundamental a criação de políticas públicas, conceituada
nesta pesquisa como sendo:
A ação que nasce do contexto social, mas que passa pela esfera estatal
como uma decisão de intervenção pública numa realidade social
determinada, quer seja ela econômica ou social. Ainda, esclarece que
as políticas públicas representam [...] o resultado da dinâmica do jogo
de forças que se estabelecem no âmbito das relações de poder, relações
estas constituídas pelos grupos econômicos e políticos, classes sociais
e demais organizações da sociedade civil. (BONETI, 2006, p. 76).
Caberá ao Estado mediar às reivindicações e fazer a definição do tipo de
intervenção na educação por meio da legislação educacional (leis, decretos, pareceres) e
deverá também acompanhar o cumprimento da implementação por meio de mecanismos
próprios (BONETI, 2006). É nesse instante que chegamos a um ponto importante para a
análise do problema proposto. A criação da Lei 10.639/03 não veio acompanhada de um
programa específico de avaliação da implementação do ensino da história e cultura afro-
brasileira nas escolas do país. Atualmente são as publicações acadêmicas que realizam
este balanço, com a desvantagem de apenas diagnosticar e apontar possíveis soluções para
o problema, já que cabe ao governo através de suas ações construir políticas públicas que
subsidiem a implementação da Lei nos aspectos em que as intervenções são válidas.i
Todo esse processo não é livre de embates, pois “implantar uma política pública
por convencimento e mobilização dos agentes envolvidos implica o pressuposto de que a
realização dessa só será possível se a maioria dos envolvidos aderirem à nova política”
(ROTHEN; CONTI, 2010, p.43). Este elemento nos traz uma nova perspectiva para o
problema, pois considera as decisões e o posicionamento dos professores e dos demais
agentes da escola como preponderantes para que a ação aconteça. Podemos indicar este
fator como decisivo para a ampliação da construção de políticas públicas relevantes, já
que deve subsidiar aspectos relativos a formação, produção de material didático e acesso
a informação com o intuito de ampliar a relação do professor com a temática.
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IDENTIFICAÇÃO DOS SUJEITOS E DO LOCAL DA PESQUISA
Para a realização desta pesquisa foi considerado o depoimento de três professores
da rede municipal de ensino de São Pauloii, pertencente a uma escola que se situa num
bairro periférico da cidade, onde há um amplo histórico pedagógico no trato das questões
étnico-raciaisiii. Trata-se de uma professora de ciências (Ruth)iv, uma professora
alfabetizadora (Dandara) e um professor de história (Clóvis). Os três professores são
negros e iniciaram o trabalho com a temática em sala de aula antes da promulgação da
Lei 10.639/03. Segundo o relato dos três entrevistados, o reconhecimento étnico e a
valorização da importância do trabalho com a temática na construção de uma sociedade
menos excludente e desigual; e na construção da autoafirmação da identidade da criança
negra, foi determinante para o primeiro passo em relação ao trato da temática.
A escolha por um grupo que já trabalha cotidianamente a temática em suas aulas
facilita a compreensão de elementos deficitários, especialmente no que se refere a
políticas públicas. Como os três são professores engajados e envolvidos com a questão,
os mesmos possuem mais facilidade em identificar possíveis entraves em relação a
implementação da Lei.
A opção pela diversidade do grupo, incluindo áreas que não são apontadas como
prioritárias no trato das questões étnico-raciais como ciências, e outra em que as questões
históricas e culturais não recebem o tratamento devido nos cursos de formação inicial
como pedagogia, foi uma maneira de enfatizar que o trabalho com a temática é possível
independentemente da área em que se inserem.
A opção por uma escola pertencente à rede municipal de ensino de São Paulo não
foi aleatória. Esta rede de ensino possui números bastante expressivos. Trata-se do maior
sistema municipal educacional do país, com quase 1 milhão de alunosv. Desses, pouco
mais de 280 mil alunos no ensino fundamental II, concentrados em 546 escolas que
contam com cerca de 180 mil professores.vi
Para o cumprimento das exigências legais a prefeitura se instrumentalizou e
passou a construir/disponibilizar: projetos, programas de formação continuada, além de
cursos e diretrizes específicas para o estudo das questões étnico-raciais.
Uma das principais iniciativas foi a criação em 2008 das Orientações Curriculares
e Expectativas de Aprendizagem para a educação étnico-racial na educação infantil,
ensino fundamental e médiovii. Neste documento são apresentadas propostas de trabalho
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voltadas para uma abordagem temática da história e cultura africana e afro-brasileira com
o ensino infantil, fundamental, médio e EJA.
É possível também acessar no endereço eletrônico da Secretaria Municipal de
Educação de São Pauloviii um link dentro do segmento programas e projetos que é
específico para educação Etnicorracial (sic). Lá se encontra a lista com o nome dos
formadores da SME, cursos oferecidos, e a disponibilização de recursos didáticos, como
um banco de atividades elaborado por professores que realizaram os cursos oferecidos, e
uma midiateca para a abordagem da questão em sala de aula.
O quadro de formadores possui 11 profissionais, entre mestres e doutores,
formados em diversas áreas, mas com um trabalho específico voltado para as questões
afro-brasileiras e africanas, além de alguns voltados para a questão indígenaix. São três o
número de assessores. Os cursos oferecidos são voltados para oito áreas de conhecimento
específicas: 1)Artes; 2) História e Cultura Africana/Ensino Fundamental;
3)Etnomatemática; 4) Literatura e Cultura Africana e Afro-brasileira; 5) Étnico-
racial/Educação Infantil; 6) Étnico-racial/Ensino Fundamental; 7) História, Cultura e
Literatura Indígena; 8) Cultura, História e Literatura Latino-Americana.
Embora o site apresente oito áreas, no item específico sobre cursos foi possível
localizar apenas três:- Educação para as relações étnico-raciais; - Literaturas e Culturas
Africanas e Afro-brasileira;e História e Cultura Afro-brasileira e Africana.
A midiateca possui 24 títulos entre documentários, filmes e desenhos. Todos
acompanhados de sinopse e o tempo de duração. Já no banco de atividades, formulado a
partir da conclusão dos cursos oferecidos entre 2011 e 2012, foi possível identificar cinco
atividades em 2011 e quatro atividades em 2012x números pouco expressivos para uma
rede tão grande.
Não podemos negar que existe oferta de formação e disponibilização de recursos
didáticos diferenciados dentro da secretaria municipal de educação que busca legitimar
as ações traçadas no plano federal através da Lei 10.639/03 e das Diretrizes Curriculares
Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e
Cultura Afro-brasileira. Cabe-nos agora refletir, e acredito que os entrevistados nos
ajudarão neste processo, se esses cursos e materiais são suficientes para todos os
professores da rede; se há ampla oferta e disponibilidade de vagas e horários dos cursos,
se são compatíveis com a disponibilidade de tempo dos professores e, principalmente, se
essas medidas não servem apenas para que a secretaria municipal de educação de São
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Paulo enquadre minimamente no seu discurso a preocupação que possui em relação a
implementação da Lei.
A EXPERIÊNCIA DOS PROFESSORES NO TRATO DAS QUESTÕES ÉTNICO-
RACIAIS NA REDE MUNICIPAL DE ENSINO DE SÃO PAULO
O objetivo de trazer à tona o relato desses três professores é tentar identificar
através de suas falas, vestígios que nos permitam identificar a maneira como a secretaria
municipal de São Paulo se posiciona em relação a implementação da Lei 10.639/03 e se
há alguma política específica que indique a preocupação e empenho desta Secretaria em
transformar à temática étnico-racial uma vivência real tanto para os educadores, quanto
para os educandos. Dandara nos relata a seguir sobre a sua participação nas JEIFxie o
aprendizado esta experiência lhe trouxe:
Participei de JEIF no Heitor dos Prazeresxii, onde a temática era a
questão étnico-racial foi bem interessante...uma das coisas que eu achei
complicada na época do Heitor dos Prazeres era o fato da coordenação
da escola não ter este pertencimento com a temática étnico-
racial...quando eu falo de pertencimento, não estou falando que a
coordenação tinha que ter especialistas na questão étnico-racial, mas eu
não percebi interesse em dizer: “olha, vamos fazer junto... Todas as
atividades, e olha que a gente fez muita coisa durante o ano, foi muita
coisa feita, mas desde a formação na JEIF, que veio o Sandro...primeiro,
num ano veio a Bebel, depois veio o Sandro, todos mandados por SME,
que eu achei ótimo né, foi uma parceria assim muito legal através de
DOT. Eles mandaram os formadores...eles têm os formadores
lá...prestou concurso, teve a seleção...tem formadores que vão pras
escolas...só que as escolas têm que pedir, eles não mandam sem a escola
pedir...como havia o interesse da gente eles mandaram. (Dandara)
Dois detalhes chamam a atenção na fala de Dandara. O primeiro evidencia um
aspecto intraescolar no trato da discussão étnico-racial demonstrando o quanto o
posicionamento dos gestores e coordenadores pedagógicos pode ser decisivo para o
estudo e trabalho sobre a temática. O segundo aspecto, de caráter externo, evidencia o
foco da nossa observação, que é a maneira como a secretaria municipal de educação lida
com a formação étnico-racial nas escolas.
Segundo Dandara, a dificuldade de identificação com a temática não deve gerar
interditos junto ao grupo. O fato de, mesmo não sendo especialista na questão, a
coordenadora não articular e nem incentivar os professores a tratarem de assuntos
relativos à temática, mesmo sabendo o quanto esta discussão pode ser importante para o
fortalecimento do coletivo, gera um grande prejuízo ao avanço da Lei 10.639/03.
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O papel da coordenadora pedagógica neste cenário contribuiu para o
comprometimento das discussões sobre a temática no grupo, mas devido ao alto grau de
comprometimento e conhecimento que Dandara possuía em relação à questão, ela
conseguiu construir a discussão e a formação com os demais professores devido ao
próprio empenho, e da aceitação da maior parte do grupo. Segundo Goodson, o currículo
configura-se como um campo abertamente conflituoso, de disputa de poder constante:
[...] qualquer afirmação sobre currículo deve estar localizada no período histórico em
questão. Em determinados momentos são estabelecidas nova estruturas que, por sua vez,
estabelecem as novas ‘regras do jogo’. (Goodson, 2008, p. 14-15). Essas novas estruturas
estão se consolidando a partir da necessidade de um novo olhar para o trato das questões
étnico raciais na escola, e o campo de disputa se configura, neste caso específico, com a
luta de alguns professores para que discussões sobre a temática étnico-racial ocorram
mesmo quando alguns agentes, no caso a coordenadora pedagógica, se abstém da
discussão.
Sobre a formação oferecida por DOTxiii através de SMExivfica evidente que ao
mesmo tempo em que diz oferecer o curso, e realmente a secretaria oferece, ele deve ser
pleiteado junto a Secretaria municipal de educação através de um tramite burocrático.
Com isso, podemos indicar que a formação para o trato das questões étnico-raciais só faz
parte das escolas que solicitam a formação, ou seja, escolas que não tem o histórico de
trato com a temática, e nem que pretende tê-lo, dificilmente contará com a visita de um
formador. E se considerarmos os números de formadores que fazem parte do quadro da
secretaria de educação apontado no início da pesquisa, dificilmente essa formação tem
como ser realizada. Portanto, embora ofereça uma formação de qualidade aos seus
professores, a mesma só ocorre com a solicitação a SME, a iniciativa não parte
inicialmente da Secretaria Municipal de Educação.
No que diz respeito ao relato de Ruth, a mesma nos demonstra o quanto a troca de
experiências acaba sendo um caminho bastante usual para os professores interessados em
abordar a temática em suas aulas.
[...] o conhecimento que eu tenho de étnico-racial foi a leitura, a
formação étnico-racial que eu tive nessa escola com essa professora e
ela me esclarecia muitas dúvidas que eu tinha. Mas eu não fiz nenhum
trabalho, e depois, quando eu fui pra escola, que eu tinha o diretor que
me incentivou muito, ele me deu os cadernos pra eu ler, eu li os
cadernos, mas não deu pra eu ler tudo. Foi o que deu uma base para eu
fazer o trabalho com os alunos, mesmo porque os cursos que eu analisei
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sobre étnico-racial eles eram muito voltados pra português, arte,
história, não sei como está agora. (Ruth)
É possível perceber o papel que as experiências adquiridas no contato com os
demais professores, e com o diretor, foram fundamentais para o desenvolvimento de Ruth
em relação à apropriação de conhecimentos específicos em relação à temática. O papel
da experiência é bastante representativo no contexto educativo como nos indica Tardif:
Pode-se chamar de saberes experienciais o conjunto de saberes
atualizados, adquiridos e necessários no âmbito da prática da profissão
docente e que não provêm das instituições de formação nem dos
currículos. Estes saberes não se encontram sistematizados em doutrinas
ou teorias. São saberes práticos (e não da prática: eles não se superpõem
à prática para melhor conhecê-la, mas se integram a ela e dela são partes
constituintes enquanto prática docente) e formam um conjunto de
representações a partir das quais os professores interpretam,
compreendem e orientam sua profissão e sua prática cotidiana em todas
as suas dimensões. Eles constituem, por assim dizer, a cultura docente
em ação. (TARDIF, 2012, p. 48-49)
É inegável o papel que a experiência, e a troca dela com os demais agentes
educativos possuem, mas o fato de novamente as ações de formação terem se estruturado
a partir de ações específicas de determinados agentes sem o respaldo de uma política
pública específica não pode deixar de ser considerado. São os professores através de suas
experiências, formações e disponibilidade de materiais informativos ou didáticos, que
realizam aos poucos um processo de formação e conscientização em relação à
importância do trato das questões étnico-raciais na escola.
Quanto ao papel da Secretaria Municipal de Educação, novamente evidenciamos
um posicionamento de “esforço mínimo” nas ações que incentivam a implementação da
Lei. Isso ocorre, pois, como nos aponta Ruth, mesmo quando o governo oferece formação
aos docentes, o mesmo recai nas áreas consideradas estratégicas- arte, literatura, história
– o que contraria o próprio corpo da Lei que indica claramente que a mesma deve ser
abordada no âmbito de todo o currículo escolar. Esta opção pela formação que privilegia
apenas as três áreas já citadas inviabiliza ou dificulta que professores de outras áreas
participem dos cursos oferecidos fora do seu local de trabalho.
De certa maneira a fala de Clóvis evidenciará os mecanismos que estão por trás
das ações, e omissões, relatadas por Dandara e Ruth, sintetizando o que significa para ele
a visão da Secretaria Municipal de Educação em relação à Lei 10.639/03:
[Já participei] Pela Secretaria Municipal um curso que teve na escola
que foi bancado pela prefeitura, então é da rede municipal. Eu acho que
ajuda, mas é mais por pressão da escola que tinha um projeto e estava
tentando retomar um projeto. O curso é bom, eu aprendi coisas que eu
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não sabia, porque mesmo nós negros nós não nos preocupávamos muito
com essa questão de estudar a história da África, a história do negro e
tal, porque é com se não fizesse parte da história, a gente aprendia
assim, agora, quando você pega,o curso ajuda? Ajuda, mas em geral
não existe uma política pública voltada pra isso, então os cursos, quando
tem uma demanda de cobrança das escolas tudo bem, mas geralmente
os cursos são organizados assim, precisa cumprir a lei, como precisa
cumprir a lei e é obrigatório, a secretaria tem que patrocinar o curso.
Então, aparentemente o objetivo não é de formação, o objetivo é, tem a
lei, precisa cumprir a lei, os professores não estão trabalhando isso na
escola, também não vamos nos preocupar muito se vão trabalhar ou não,
mas a nossa parte a gente vai fazer. (Clóvis)
Clóvis, assim como Dandara o fez, indica que ao mesmo tempo que a formação
acontece, ela não faz parte de uma política pública específica, mas é fruto de uma
cobrança e encaminhamento iniciado no interior das escolas. Isso nos permite deduzir que
a prefeitura atua apenas nas escolas onde a questão já está posta, ou seja, em escolas onde
a temática não faz parte de discussões específicas sobre a temática dificilmente a
prefeitura fará algum tipo de intervenção. Este professor também destaca o aspecto
burocrático do cumprimento da Lei, ou seja, como a Lei é um instrumento legal de
viabilização da educação étnico-racial e faz parte de um contexto federal mais amplo, ela
é “cumprida” na escola, mas não porque há políticas públicas específicas que garantam
sua implementação, mas porque existe uma determinação legal que obriga a federação,
os estados e os municípios a acatá-la. Podemos deduzir que não há um interesse real da
secretaria de educação em fazer com que a Lei seja efetivamente cumprida, já que a
mesma proporciona e garante apenas o mínimo.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
É interessante observar que os três relatos não indicam o silenciamento e omissão
por parte da Secretaria Municipal de Educação de São Paulo, já que a mesma realizou
ações significativas como ter enviado formadores para escola e ter oferecido cursos de
formação continuada dentro e fora do local de trabalho, mas a grande questão é que ela
caminha sempre pelo mínimo. Foi possível perceber através da fala desses entrevistados
que o respaldo só ocorre quando há algum trabalho em andamento. É importante que seja
criada uma política pública específica que atue principalmente nos locais onde as ações
voltadas para a implementação do ensino da história e cultura africana ainda não ocorra.
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Embora a Secretaria Municipal de Educação de São Paulo não seja insensível a
implementação da Lei 10.639/03, espera-se dela maior empenho, principalmente em
relação as escolas que não colocam como pauta de suas ações coletivas e até mesmo
NOTAS
i Neste estudo não será considerado os aspectos subjetivos que podem levar a rejeição do professor ao
trabalho cotidiano com a temática étnico-racial. Aspectos relacionados ao racismo e a ideologia do mito da
democracia racial não podem ser desprezados quando o objetivo é compreender as dificuldades de
implementação da LEI 10.639/03. Portanto, este estudo privilegia a identificação de aspectos objetivos
que podem ser equacionados a partir da intervenção de políticas públicas específicas. iiEssas entrevistas obtidas através da metodologia de história oral fazem parte da dissertação de mestrado
intitulada: Entre a Lei, o saber e a Cultura: Dificuldades, avanços e perspectivas sobre a implementação
da Lei 10.639/03 a partir das práticas e saberes docentes – PUC-SP. Ao todo foram entrevistados seis
professores, mas para a produção deste artigo foram considerados apenas três. iiiAs entrevistas foram realizadas no segundo semestre de 2013. Dos três professores, apenas o de história
continua lecionando nesta escola. A professora alfabetizadora pediu remoção para outra escola na mesma
região, e a professora de ciências assumiu o cargo de coordenadora pedagógica em outra unidade escolar. ivO nome dos três entrevistados é fictício. vDados fornecidos pela própria Secretaria Municipal de Educação no site:
www.portalsme.prefeitura.sp.gov.br viEste levantamento foi feito através dos dados disponibilizados no site da Secretaria Municipal de
Educação e atualizados em 01/02/2013. A referência não deixa explícita se os dados se referem apenas aos
professores concursados, ou se incluem também os professores contratados. Não há separação por
disciplina. viiDisponível em www.portalsme.prefeitura.sp.gov.br viiiwww.portalsme.prefeitura.sp.gov.br ixNão foi localizado no site a data da última atualização dessas informações. xNão é possível afirmar que estas foram as únicas atividades elaboradas pelos cursistas entre 2011 e 2012.
O site não oferece informações detalhadas.
xiJEIF – Jornada especial integral de formação. É neste momento que o professor realiza sua formação
continuada. Esta formação ocorre dentro do horário de trabalho. Nem todos os professores participam
desta formação, já que para participar é preciso que o professor possua jornada completa (24 ou 25 aulas). xiiNome fictício da escola onde trabalham os professores entrevistados. xiiiDOT – Diretoria de Orientação Técnica. xivSME – Secretaria Municipal de Educação.
REFERÊNCIAS
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Didática e Prática de Ensino na relação com a Sociedade
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