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1 Os Índios dos Sertões: Os Puris de Campo Alegre na visão dos Memorialistas do Século XVIII e XIX Enio Sebastião Cardoso de Oliveira Doutorando em História Política UERJ INTRODUÇÃO No final do século XVIII e início do XIX foi marcado pela passagem da Antiga região de Campo Alegre, que hoje seria a macro região centro sul do Vale do Paraíba Fluminense, de viajantes e cronistas que desenvolveram vários relatos e iconografias dos índios Puris que habitavam a região. No contexto de virada do século e grande parte dos oitocentos, esses trabalhos tornaram-se importantes referências historiográficas na construção da visão do colonizador em relação aos índios Puris de Campo Alegre, freguesia que em 1801 tornou-se vila, e em 1848 foi elevada a categoria de município de Resende. Na visão desses cronistas, também chamados de memorialistas, esses índios eram classificados em duas formas: como “índios bravos”, que viviam numa região considerada ainda como Sertão, que possuíam hábitos tidos como “selvagens”, bem diferentes dos que o colonizador estava acostumado, ou eram vistos como índios mansos, que em condições de aldeados, no caso do aldeamento de São Luís Beltrão de Campo Alegre, onde eram mantidos em contatos relativamente amistosos de trocas sociais, de comportamento amigável e muitas vezes receptivo ao homem europeu que se via como “civilizado”. Dentro de uma análise historiográfica, neste trabalho, discordamos da máxima de que esses cronistas tratavam os índios como se fossem apenas dois blocos com características gerais no final do século XVIII e XIX, divididos em tupis no litoral fluminense e tapuias no interior, mas sim, ao contrário disso, no referido período, esses viajantes já possuíam ângulos e olhares diferenciados, explicitados a partir de suas iconografias e relatos, do interior dos “sertões” da província, onde procuraram descrever a vida dos puris e outras etnias da antiga Campo Alegre, onde hoje é o médio vale do Paraíba fluminense. Numa região que no século XIX, passou a sofrer de forma cada vez mais

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Os Índios dos Sertões: Os Puris de Campo Alegre na visão dos

Memorialistas do Século XVIII e XIX

Enio Sebastião Cardoso de Oliveira

Doutorando em História Política UERJ

INTRODUÇÃO

No final do século XVIII e início do XIX foi marcado pela passagem da Antiga

região de Campo Alegre, que hoje seria a macro região centro sul do Vale do Paraíba

Fluminense, de viajantes e cronistas que desenvolveram vários relatos e iconografias dos

índios Puris que habitavam a região. No contexto de virada do século e grande parte dos

oitocentos, esses trabalhos tornaram-se importantes referências historiográficas na

construção da visão do colonizador em relação aos índios Puris de Campo Alegre,

freguesia que em 1801 tornou-se vila, e em 1848 foi elevada a categoria de município de

Resende. Na visão desses cronistas, também chamados de memorialistas, esses índios eram

classificados em duas formas: como “índios bravos”, que viviam numa região considerada

ainda como Sertão, que possuíam hábitos tidos como “selvagens”, bem diferentes dos que

o colonizador estava acostumado, ou eram vistos como índios mansos, que em condições

de aldeados, no caso do aldeamento de São Luís Beltrão de Campo Alegre, onde eram

mantidos em contatos relativamente amistosos de trocas sociais, de comportamento

amigável e muitas vezes receptivo ao homem europeu que se via como “civilizado”.

Dentro de uma análise historiográfica, neste trabalho, discordamos da máxima de

que esses cronistas tratavam os índios como se fossem apenas dois blocos com

características gerais no final do século XVIII e XIX, divididos em tupis no litoral

fluminense e tapuias no interior, mas sim, ao contrário disso, no referido período, esses

viajantes já possuíam ângulos e olhares diferenciados, explicitados a partir de suas

iconografias e relatos, do interior dos “sertões” da província, onde procuraram descrever a

vida dos puris e outras etnias da antiga Campo Alegre, onde hoje é o médio vale do Paraíba

fluminense. Numa região que no século XIX, passou a sofrer de forma cada vez mais

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acentuada e sistemática do avanço das fronteiras agrícolas, levando a diminuição de sua

área com a formação de outras freguesias, diminuição que não reduziu sua importância

econômica e política, fato comprovado com a formação do município de Resende no

antigo arraial e freguesia de Campo Alegre. Neste quadro não podemos deixar de levar em

consideração conceitos e modelos de uma sociedade colonial e pós-colonial do período em

que esses cronistas memorialistas estiveram na região que direta e indiretamente

influenciaram em suas observações, mas que mesmo assim romperam com apreciações

anteriores que, em certa medida, influenciaram uma nova historiografia que tirou a

temática indígena de um posicionamento pouco crítica por parte dos pesquisadores, saindo

do campo meramente antropológico para um modelo historiográfico com uma visão crítica

dessas sociedades indígenas.

“OS ÍNDIOS EXÓTICOS E OS ÍNDIOS BRAVOS”

Na visão desses cronistas os ameríndios que viviam nessas terras tinham hábitos

bem diferentes dos costumes ditos “civilizados” europeus, desta forma por muito tempo

eram considerados seres sem almas (Sem Deus, Lei e Rei) dentro dos conceitos do século

XVI e XVII, uma visão colonizadora e rasa sobre as diferentes etnias, praticamente

colocando o índio como elemento nativo pertencente a dois blocos: o do litoral que foi

rapidamente dominado e o do interior, o “índio bravo” que ocupava o desconhecido sertão.

Porém, com o advento do Diretório Pombalino (1755), ocorreram algumas mudanças

significativas como o casamento misto, a utilização da língua portuguesa nas aldeias, a

transformação de aldeias em vilas e freguesias, criação do cargo de Diretores de Aldeia e

retirada da catequese dos índios das mãos da poderosa ordem Jesuítica, dentro de um

caráter assimilacionista (ALMEIDA, 2007, p. 191 – 212) numa tentativa de transformar os

índios em verdadeiros vassalos do rei (DOMINGUES, 2000, p.68 ).

No entanto, o diretório Pombalino não atingiu o efeito esperado, pois além de ser

adaptado as necessidades e aos interesses políticos locais (OLIVEIRA, 2012, p. 54), não

conseguiu assimilar o índio, principalmente no interior da província fluminense, onde a

resistência cultural indígena dentro de um campo multicultural e até mesmo intercultural

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sobrepôs a uma cultura “monolítica” (SORIA, p.2) assimilacionista proposta pelo

Diretório.

Neste cenário retornamos a região de Campo Alegre onde se pode observar a

formação de uma política indigenista que levou a formação do Aldeamento de São Luís

Beltrão, habitada em sua maioria pelos índios puris do tronco linguístico macro-gê (jê)

(FREIRE, MALHEIRO, 2010, 7 e 8).

Sobre esses índios foram relatados e também retratados por muitos cronistas do

século XIX como “exóticos” de comportamento “manso” para alguns, dentro do

pensamento Ilustrado europeu, dignos de estudos antropológicos e outros como “bravo”,

selvagens de comportamento quase animal que seriam mais bem classificados pela

zoologia (MOREL, 2001, p.1039-1058).

Podemos perceber a existência de uma linha tênue entre o que seria um “índio

bravo”, guerreiro, que não deixava se submeter e que atrapalhava a marcha colonizadora e

os “índios mansos”, aqueles que tinham aspectos e atitudes amigáveis, em certa medida, o

índio negociador, comportamento explicado pela própria necessidade da manutenção de

sua sobrevivência, que no século XIX, seriam feitas com líderes locais, presidentes de

provinciais e a coroa do novíssimo Império Brasileiro. Mas, bravo ou manso, exótico ou

selvagem, esse índio era algo que atrapalhava a tal macha colonizadora, e o seu extermínio

ou a sua assimilação, isto é, o seu completo desaparecimento, era algo inevitável, para

muitos, e a saída para o crescimento do Império Brasileiro e suas províncias.

A posição de personalidades como José Bonifácio, que defendia métodos brandos

no domínio dos índios, mas que ao mesmo tempo acreditava no seu desaparecimento como

algo inescapável. Desta forma, vários mecanismos foram utilizados para afastar a

indesejável presença dos índios, uma delas é ter o índio sob uma perspectiva de

invisibilidade, isto é, tentar acaboclá-lo, identificá-lo como mestiço, ou como pardo, não

reconhecendo sua etnicidade, ou fazendo desaparecer dos documentos oficiais

(MALHEIROS, 2008, p.3), era o índio sem identidade oficial, o índio sem

reconhecimento, que viabilizava a retirada do direito a terra, patrimônio indígena

sustentado enquanto este fosse reconhecido como tal. (CASTRO, 2006, p.13).

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A IMAGEM E O IMAGINÁRIO PURI

O primeiro registro dos índios puris feito por um viajante ocorreu ainda no século

XVI, onde o corsário Inglês Antonio Knivet, em expedição pelo interior do que seria a

Capitania do Rio de Janeiro, no Vale do Rio Paraíba, contatou grupos de índios conhecidos

como “Porie” nas florestas marginais ao rio Paraíba do Sul. O encontro foi uma

consequência da missão ordenada por Martim de Sá, que segundo o relato de Knivet:

“Vendo Martim de Sá que eu o servia com solicitude, ordenou-me que com oito dos

seus escravos, carregados de machados e facas, fosse buscar um outro gênero de

selvagens chamados Pories (Puris), que haviam igualmente assentado pazes com os

portuguezes; desde muito, porém, os portuguezes os não procuravam”. 1

A existência de índios Puris na região do Médio Vale do Paraíba, no Sul e Centro-

Sul do atual Estado do Rio de Janeiro, do conhecimento por parte do colonizador, é bem

mais antiga que os apontamentos dos viajantes do final do século XVIII e principalmente

do XIX. Vejamos o mapa de Knivet ,que andou pelo vale entre os anos de 1596 a 1597.2

1KNIVET, Antonio. Narração da viagem que, nos annos de 1591 e seguintes, fez AntonioKnivet da

Inglaterra ao mar do sul, em companhia de Thomaz Candish. RIHGB, Tomo XLI parte 1ª. Typ. De Pinheiro

& C. Rio de Janeiro, 1878, p 211. 2Anthony Knivet e a região do Vale do Paraíba. Almanaque Urupês, em dezembro 27, 2012. http:/

/www.almanaqueurupes.com.br/portal/textos/anthony-knivet-e-a-regiao-do-vale-do-paraiba

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Porém, um conflito com outra etnia, poderia ter sido o motivo da ocupação Puri na

região. Joaquim Norberto de Sousa Silva defende a tese de que os Puris, depois de serem

fustigados pelos Botocudos, deixaram a “Serra da Mantiqueira”2, e se deslocaram para a

Região de Campo Alegre, região demonstrada no mapa de 1824, que compõe o acervo da

Biblioteca de Lisboa, mostrando onde hoje é o Centro-Sul do Vale do Paraíba Fluminense.

2 SOUSA SILVA, Joaquim Norberto, Revista do Instituto Histórico e Geográphico do Brazil. Memória Histórica das Aldeias do Rio de Janeiro, 3ª Série, Nº 14 – IHGB, 1852. p. 243.

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De forma geral, Joaquim Norberto de Silva e Sousa deixou um importante trabalho

oitocentista sobre os índios do Rio de Janeiro, a sua obra “Memória Histórica

Documentada das Aldeias do Rio de Janeiro”, publicada pela IHGB, um importante

instrumento de consulta de pesquisadores, pois relatam, mesmo em alguns casos de forma

sucinta, a formação de vários aldeamentos, inclusive os chamados “tardios de fronteira”,

do final do século XVIII e começo do XIX.

No entanto, outros memorialistas e viajantes deixaram importantes contribuições,

algumas em forma de imagens e outras em relatos sobre os índios. Cronistas que viajaram

pela região da província do Rio de Janeiro como foi o caso de Jean-Baptiste Debret (1768-

1848) no início do século XIX, importante pintor que liderou a “Missão Artística

Francesa”, procurou

demostrar em suas

pinturas e relatos o

cotidiano do Brasil

joanino. Debret retrata e

seu livro Viagem

pitoresca e histórica ao

Brasil (DEBRET, 1989),

um importante trabalho

que, dentro de um

contexto oitocentista,

procura mostrar cenas de

índios, numa

interpretação do que seria

uma condição exótica para a época, num misto de atitudes

Imagem: Índios Civilizados – Botocudos, Puris, Maxacalis e Pataxós

“bravas” e “selvagens” e ao mesmo tempo “mansas” e “civilizadas”. Podemos perceber

que apesar da figura, no texto explicativo a imagem reporta como tribos de índios

civilizados “Botocudos, Puris, Maxacalis e Pataxós".

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A representação da cena é feita de forma sombria, com índios vivendo em uma

floresta esfumaçada devido à presença de fogueiras, onde estão assando algum animal,

parecendo ser de um macaco, muito consumido pelos índios ou de um tatu, trazendo

aspectos dicotômicos já que existem expressões que para os critérios oitocentistas

representariam o caráter de selvageria, como analisa Celestina Almeida; “a prancha 10

apresenta um ambiente de floresta escura e esfumaçada com fogueiras, em torno das quais

índios nus, com expressões rancorosas ou apáticas, alguns com botoques nos lábios, assam

pedaços de carne” (ALMEIDA. 2009, p. 12). Também é ressaltada a forma voraz que um

dos índios come a carne. Valéria Lima observa que, pelo tamanho do osso nas mãos do

índio que o consome, levanta a possibilidade da imagem sugerir a prática do canibalismo

(LIMA. 2007, p. 260), muito embora no texto explicativo de Debret refere-se a imagem

como índios civilizados. Dicotômico porque ao mesmo tempo em que há uma atmosfera

sombria ocorrem aspectos suaves, com a presença de criança demonstrando brandura,

afetuosidade e tranquilidade com os adultos, com uma mãe amamentando seu filho e outra

criança dormindo no ombro de outra índia, minimizando a forma abrupta da cena

demonstrando pontos de civilidade, o que mostra que os índios no século XIX, mexendo

muito com o imaginário de homens contemporâneos como Debret, o que o leva a captação

dessa imagem a esse imaginário.

Mas nesse imaginário, tratando da origem do nome “Puri”3, segundo Freire e Malheiros,

ocorreu a partir de uma designação pejorativa, dada pelos seus vizinhos Coroados.

Segundo Teodoro Sampaio, a partir do verbete de Métraux, a análise etimologica da

palavra puri, era usada para designar: povo miúdo, gentinha, fraco, de pequena estatura4. A

descrição etimológica de Sampaio confirma o que diz Bessa Freire e Márcia Malheiros5.

Porém, os cronistas e viajantes deixaram em seus apontamentos várias descrições físicas

para os índios Puris,

3 FREIRE e MALHEIROS. Op Cit. P. 17. 4 SAMPAIO, Teodoro Fernandes, O Tupi na Geografia Nacional, Gráfica da Escola de Aprendizes

Artífices, Bahia, 3º edição, 1928. Verbete Purys. Segundo Métraux, “ OPurieraumnomepejorativoConcedidoa eles pelaCoroado”. p. 534. 5. O nome Puri é uma designação pejorativa dada a eles pelosCoroado. Os Puris, Telikong ou Paqui estavam

divididos em pelo menostrês sub-grupos: Sabonan, Uambori e Xamixuna, que ocupavam umterritório na área

do rio Paraíba e Serra da Mantiqueira. No séc. XVIII,antes de serem vendidos como escravos, foram

estimados em mais de5.000 índios. No séc. XIX, foram aldeados em São Fidelis e na Missão deSão João de

Queluz, registrando-se 655 índios Puri em Resende, em1841. Em 1885, Ehrenreich localiza remanescentes

Puri no baixo Paraíba. FREIRE e MALHEIROS. Op Cit. p. 17.

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mas a pequena estatura dos Puris em relação às outras etnias é a que acabou generalizando,

segundo Paulo Pereira dos Reis, e pontuada por vários autores, tidos como frágeis e

pequenos: De (...) porte acaçapado (...) descrita por Von Spix e Von Martins;(...)

Geralmente muito Baixos (...) Eschwege; (...) pequenos como nas outra partes (...) Casal;

(...) Pequena Estatura (...) Joaquim Noberto6. Entretanto, o príncipe Maximiliano afirma na

sua observação sobre a questão da pequena

Imagem: ACabana dos Puris de Maximiliano Alexandre PhilippWied-Neuwied

estatura dos Puris: “Devo confessar que nenhuma diferença nesse particular observei entre

os Puris e as outras tribus”.7Porém, retornando sobre a questão do imaginário podemos

perceber como essa imagem ao lado, representa uma parte dos ditos “civilizados” de

origem branca europeia em relação aos índios como, por exemplo, a segunda imagem

conhecida como Las Cabanas dos Puris, retratada pelo Príncipe de Wied-Neuwied

Maximiliano, em seu livro Viagem ao Brasil: nos anos de 1815-1817. Trata-se de uma

representação de um casal em sua choça, uma iconografia bem conhecida que representa o

dia a dia dos Puris,bem afastado de seu aspecto selvagem e bravio, que despertava o

imaginário do colonizador na região de Campo Alegre. Podemos observar nessa imagem

um índio deitado em uma rede – um legado cultural das etnias indígenas. A mãe cuidando

do que parece ser o seu filho–(sambee) na língua puri e uma fogueira com a caça sendo

assada, tendo esta caça a aparência de um macaco, muito apreciado pelos Puris. Uma

situação bem bucólica e aparentemente tranquila. Porém, o índio na rede cria um

estereótipo e a representação dada pelos conquistadores e por alguns viajantes cronistas

conta o índio preguiçoso e não dado ao trabalho, um argumento muito utilizado para

ocupar suas terras. A análise feita, dentro de um contexto eurocêntrico, não só dos índios

Puris, mas também para outras etnias que, inevitavelmente entra no campo do poder

simbólico desenvolvido por Bourdieu, que define poder simbólico como “uma forma

transformada e legitimada de outras formas de poder” (BOURDIEU, 1998. P. 15).

Voltando a imagem, sobre a alimentação dos Puris podemos ressaltar os dois

episódios narrados por dois cronistas do século XIX, que mostram as muitas interpretações

6 REIS. Op. Cit. 69. 7 WIED-NEUWIED, Maximiliano Alexandre Philipp: Viagem ao Brasil. Tradução de Edgar Süssekind

de Mendonça e Flávio Poppe de Figueiredo. Coleção Brasiliana, Ed. Nacional, São Paulo, 1940. p 108

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sobre o modo de vida e a cultura do índio, em especial dos puris, pode ser narrado por Ida

Pfeiffer, que ceou com os Puris da Serra da Flecheira, em 1846, numa típica refeição Puri:

“Os meus hospedeiros prepararam o macaco e o papagaios, atravessando-os com espetos de

madeira e assando-os no fogo, Com visitas a fazerem a refeição bem gostosa, eles puseram

ainda no carvão mais algumas espigas de milho e alguns tubérculos. Em seguida,(...)

partiram o macaco assado com a mão em várias partes, (...) Além de papagaio, milho e

tubérculos, puseram tudo na minha frente (...) achei absolutamente delicioso”. (PREIFFER,

v.1)

No entanto, o Príncipe Maximiliano descreve: Que os índios “ofereceram-nos

diversos pedaços mal assados desses animais (...). Era com efeito repugnante! Sobre tudo

porque assaram a caça com pele, que ficava, assim, esturricada e preta”.

(MAXIMILIANO, 1985). É interessante as diferentes observações desses dois viajantes

sobre a mesma alimentação oferecida pelos índios Puris, observações sob diferentes

ângulos que só aguçam o imaginário dos europeus e colonizadores que viveram no século

XIX , que contribuíram com suas diferentes imagens e o seu modo de pensar.

PURI: A IMAGEM E

SEMELHANÇA DOS CRONISTAS.

A imagem dos Puris foi

retratada de várias formas pelos

viajantes, que tiveram sua presença

aumentada de forma expressiva,

principalmente de cronistas e

naturalistas, com a chegada da corte

portuguesa no Brasil em 1808, e que a

princípio se dedicaram a questão das

ciências naturais mas posteriormente

passaram a tecer importantes

considerações políticas, culturais e

econômicas da população das terras

além mar, presença que continuou

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ocorrendo ainda mais tarde no novo Império Brasileiro.(PEREIRA, 2011). Faremos

alguns comentários sobre os aspectos levantados a partir das imagens apresentadas por

esses homens que tiveram contato com a etnia Puri, como foi o caso de Johann Moritz

Rugendas, pintor alemão que chegou ao Brasil em 1821 e dedicou parte de sua vida

retratando a cultura brasileira, entre eles a imagem de índios Puris. Em sua obra (Viagem

pitoresca ao interior do Brasil) de 1833, Rugendas traduziu nas suas impressões a

exuberância do povo brasileiro. E os índios Puris foram retratados assim como os negros

foram expressos em suas litografias, além de cenas pitorescas da sociedade brasileira.

Índio Puri de Rugendas

Sob a ótica de Rugendas chegou sua contribuição a imagem do rosto dos índios

Puris de forma bem simples sem se preocupar em retratar um determinado momento ou

acontecimento do cotidiano dos índios. Na imagem acima, limita-se a mostrar o traço na

forma de gravuras de rostos de índios, com traços simples, mas com grande significado

historiográfico e antropológico. Porém, bem depois de Rugendas em viagem pelo Brasil,

Paul Max Alexander Ehrenreich, alemão natural da cidade de Berlim, também fez algumas

gravuras, que segundo o historiador Marcelo Lemos é da autoria do pesquisador, que

também fotografou várias etnias em diversos pontos do Brasil

Porém, o que podemos observar

nesses diferentes registros dos

pesquisadores da época que há múltiplos

olhares é que havia uma grande

heterogeneidade nas populações indígenas

em vários aspectos não se limitando apenas

ao físico. Algumas dessas diferenças

poderiam ser frutos das contradições nas

análises entre as diversas narrativas de

cronistas, viajantes e naturalista

confundindo-as no momento de classificá-

las, como por exemplo, ocorrera com os Coroados, que segundo Norberto, passou a

designar toda a tribo que utilizasse um corte de cabelo característico que lembrava uma

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coroa. (NORBERTO, p.88). “No Rio de Janeiro o nome Coroado foi generalizado a todos

os selvagens que se distinguiam pela maneira de cortar o cabello”8. O nome Coroado, foi

dado pelos portugueses, segundo Saint Hilaire aos índios que tinham o hábito de “Cortar os

cabelos no meio da cabeça, à maneira dos nossos sacerdotes, ou seja antes, de não

conservar mais do que uma calota de cabelos, como fazem ainda hoje os Botocudos”.9

Devemos ressaltar, apesar de não ser o objeto desse trabalho, que a grande

diversidade, fruto de uma classificação confusa dos viajantes e cronistas do século XIX, os

Coroados aos quais nos referimos são aqueles que eram linguisticamente vinculados ao

tronco macro-jê, que Marcelo Sant’ana Lemos adota como da família Puri-Coroado,

proposto por André Metraux10. Bessa e Malheiros também classificam os Coroados

pertencentes à família Puri, que habitavam as ramificações da Serra do Mar e nos vales dos

rios Paraíba, Pomba e Preto.

Nesse aspecto, remeteremos às impressões do naturalista Von Martins que verificou

em seu trabalho que os índios brasileiros apresentavam uma grande diversidade de

caracteres físicos: (....) alguns altos e baixos, esbeltos e corpulentos, vermelhos acobreados

amarellados e até brancos, com pouca barba ou se constantemente não a depilam,

apresentam-na regulamente basta”11.

Em suas viagens pelo Brasil, o

Príncipe Maximiliano Wied-

Neuwied, retratou os Puris em

várias regiões da Província do

Rio de Janeiro, mostrado seus

aspectos cotidiano dessa etnia.

Na figura ao lado intitulada -

8 SILVA. Op. Cit p. 88. 9 SAINT HILAIRE, Auguste de. Viagem às nascentes do Rio São Francisco. Belo Horizonte. Ed. Itatiaia, EDUSP. São Paulo. 1975. p. 38. 10 LEMOS. Op. Cit. p. 50 11 REIS, Paulo Pereira dos. O Indígena do Vale do Paraíba: apontamentos históricos para os estudos

indígenas do Vale do Paraíba Paulista e regiões circunvizinhas. São Paulo: Governo do Estado de São Paulo,

1979. p. 61.

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Famílias de índios Puri em viagem pela mata - podemos perceber no olhar desse

naturalista o deslocamento de uma família Puri pela mata, destacando-se a divisão de

trabalho através dos gêneros, onde os homens (caçadores e guerreiros) vão na frente do

grupo dando proteção e as mulheres levam os filhos e carregam utensílios de uso do bando.

Todos aparecem nus, o que seria uma atitude considerada selvagem e fora dos padrões da

Corte, mas as posições das lanças podem presumir que eles não estão em posição de ataque

e sim de deslocamento. Essa pintura exprime a visão desse cronista, dentro de princípios

oitocentistas onde o exótico e o selvagem se separam por uma linha bem tênue para o

homem branco que se dizia civilizado, e principalmente a classe letrada influenciada pelo

pensamento Ilustrado.

Considerações Finais

Muitos desses viajantes que vieram ao Brasil consideravam as viagens e o contato

com os a população, principalmente o índio, a fauna e flora algo insubstituível, um

pensamento desenvolvido pelo naturalista alemão Alexandre Von Humboldt, que foi

apropriado por outros naturalistas que estiveram por aqui nesse período vindo da Europa

como, por exemplo, Von Martius, Spix e Auguste de Saint-Hilaire. Ser uma testemunha

ocular, “ver com os próprios olhos” (PEREIRA, 2011, p.3) assim podemos compreender

como os valores do pensamento eurocêntricos se refletiram nos trabalhos do novo Império

Brasileiro e ainda nos tempos de D. João VI. Encerramos esse breve trabalho com as

palavras do botânico francês Auguste de Saint-Hiliare, ao descrever a vegetação nos

trópicos: “nada aqui lembra a cansativa monotonia de nossas florestas de carvalhos e de

pinheiros.”(1938, p.11),

BIBLIOGRAFIA

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