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A N N A M A R I A F A U S T O M O N T E I R O D E C A R V A L H O

A BAÍA DEGUANABARAOs itineráriosda memória

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INTRODUÇÃO

A baía “de algumas vinte léguasem roda” (Anchieta, 1988, p.328), chamada em seu lado oci- dental de Guaná-pará (“seio do

mar”) e, em seu lado oriental, de Nhê-terôy(“água escondida”) pelos nativos habitantesdo seu litoral (Costa, 1965, p. 9) e ainda, deRio de Janeiro, pelo mundo português que noSeiscentos a conquistou, vem sendo, há mais dequatro séculos, “lugar” onde se cristalizam osvestígios da ação e dos sonhos de povos e cul-turas. Desde estes começos teve sua imagemassociada à visão de Paraíso, em profundo con-

traste com a realidade do desenvolvimentoterritorial de seus principais sítios urbanos.

Ontem um pedaço de terra que guardavaa promessa de um “Jardim do Mundo”, hojeuma área com múltiplos pontos de degrada-ção mas que, apesar de tudo, permanece bela.

Parece-nos que as somas investidas pelapolítica governamental na recuperação da áreadeveriam ser acompanhadas pela ação daque-les que refletem sobre a cultura, esse lugaronde se cruzam várias dimensões: sociais,políticas, econômicas, artísticas, etc.

O curso de especialização em História daArte e da Arquitetura no Brasil, do Departa-mento de História, da Pontifícia Universida-

AANNA MARIAFAUSTO MONTEIRODE CARVALHO éprofessora ecoordenadora docurso deespecialização emHistória da Arte e daArquitetura no Brasil,do Departamento deHistória da PUC/Rio.

Luis Teixeira,

“Carta da Baía de

Guanabara”,

1573-78, incluída

no manuscrito

“Roteiro de Todos os

Sinais...”,

Biblioteca da

Ajuda, Lisboa

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de Católica do Rio de Janeiro, propõe-se acontribuir nesse processo de reflexão e pla-nejamento, que se quer eficiente, sobre a orlada Baía de Guanabara. Nesse sentido, apro-veitamos a oportunidade para apresentar apesquisa interdisciplinar que estamos desen-volvendo, a qual pretende situar a experiên-cia histórico-cultural da ocupação da baía,entendendo as lógicas de seu adensamento eo papel dos diversos atores que durante sécu-los ora otimizaram, ora refrearam suaspotencialidades. Propomo-nos formular umaanálise histórica e crítica sobre a construçãoda imagem da Baía de Guanabara no proces-so civilizatório brasileiro, entendendo, doponto de vista do urbanismo, arquitetura eartes plásticas, qual o papel do Estado, daIgreja e da Sociedade Civil no agenciamentodesse espaço durante quatro séculos.

Este estudo, para além de um exercício depesquisadores que olham o passado, se inscre-ve numa proposta de construção do presenteque busca devolver a esse lugar a importânciahistórica que um dia possuiu, e aos homens adignidade da missão de preservá-la.

Em nossa análise privilegiamos três perí-odos que guardam lógicas de ocupação e in-tervenção dominantes: a Baía de Guanabaracomo porto colonial (séculos XVI, XVII eXVIII); A baía como porta do mundo (séculoXIX); A baía em fragmentos (século XX).

A BAÍA COMO PORTO COLONIAL(1550-1808)

Neste período estão sendo investigadosdois momentos: primeiramente, os séculosXVI e XVII, quando a ação político-religio-sa-militar desempenhou papel preponderan-te na conquista, defesa e povoamento de suasmargens, com a fundação de seu principalnúcleo urbano – a cidade de São Sebastião doRio de Janeiro – e a implantação do aparatoeconômico que o sustentava. São construídosprincipalmente fortes, igrejas, capelas, colé-gios, conventos, fazendas, engenhos ealdeamentos indígenas.

A análise visual da cartografia de épocamostra um olhar que privilegia o levantamentototal do sítio pela marcação objetiva dos pontosestratégicos, como garantia da “tomada de pos-

se” do lugar. A primeira carta portuguesa daBaía de Guanabara, que se conhece, o mapa docartógrafo real Luís Teixeira, datado de 1573-78, em Roteiros de todos os Sinais, Conheci-mentos, Fundos, Baixos, Alturas que Há naCosta do Brasil (edição fac-similar do manus-crito da Biblioteca da Ajuda – Lisboa, Tagol,1988, p.17) (Ilustração 1), é disto um registroexemplar: sua clareza e objetividade indicamos pontos geográficos relevantes – os morros eas ilhas à entrada da barra, a vasta rede de comu-nicação hidrográfica e as terras de penetraçãopara os litorais norte e sul da capitania; eenfatizam seus acréscimos institucionalmenteedificados – a cidade e os seus principais monu-mentos (a Sé, o Colégio dos Jesuítas, os fortes)e os aldeamentos indígenas. O seu principalreferencial é externo: mostra a baía como umagregado territorial finito e irradiador derepresentatividades para uma organização so-cial que se quer conjunta e civilizada, um pontode vista que expressa o olhar totalizador do donoe não causa estranhamento. Uma segunda abor-dagem passaria a relacionar este mapa de LuísTeixeira com as ilustrações do texto de A Uto-pia (1516), de Thomas Morus, como, por exem-plo, a xilogravura de Holbein da ilha de Utopus(Ilustração 2), e a inferir daí as referências

Texto apresentado no Encon-tro “Morfologia das CidadesBrasileiras e a Produção daCidade do Rio de Janeiro” como tema “A Construção da Ima-gem da Baía de Guanabara”.

Hans Holbein,

“Ilha de Utopus”,

xilogravura que

ilustra o livro

Utopia, de Thomas

Morus (Basiléia,

1518)

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para que a imagem da Baía de Guanabara,como um possível espaço de utopia, tenhasucedido a de “visão de Paraíso Terrestre”medieval, como diz Sérgio Buarque deHolanda, “uma realidade ainda presente emsítio recôndito” (Holanda, Visão do Paraíso,1992, p. X). Mais fecunda, esta investigaçãopartiria da hipótese de que Morus escreveuesta obra fundado na repercussão dos rela-tos de viagem sobre o Novo Mundo,notadamente o do cosmógrafo florentinoAmérico Vespúcio, que em 1501 e 1503 fi-zera parte das expedições portuguesas de re-conhecimento da costa brasileira (Serrão,1965, pp. 19-21).

Assim descreve Morus a ilha da Utopia:

“[...] tem duzentos mil passos sua largura,situada na parte média. Esta largura dimi-nui gradual e sistematicamente do centropara as duas extremidades, de maneira quea ilha inteira se arredonda em um semicír-culo de quinhentas milhas de arco [...]O mar enche esta imensa bacia; as terrasadjacentes que se estendem em anfiteatroquebram o furor dos ventos, mantendo aságuas calmas e pacíficas, e dando a estagrande massa líquida a aparência de umlago tranqüilo. Esta parte côncava da ilhaé como um único e vasto porto acessívelaos navios em todos os pontos.A entrada do golfo é perigosa por causados bancos de areia de um lado e dos es-colhos, do outro. No meio se levanta umrochedo visível de muito longe, e que poristo não oferece nenhum perigo. Osutopianos construíram uma fortaleza de-fendida por uma boa guarnição.�[...]Este conquistador [Utopus] teve bastantegênio para humanizar uma populaçãogrosseira e selvagem e para formar umpovo [...] Utopus empregou, no acabamen-to dessa obra gigantesca, os soldados doseu exército, assim como os indígenas , afim de que estes não olhassem para o tra-balho imposto pelo vencedor como umahumilhação e um ultraje”.

Como bem diz Carlos Nelson Ferreira dosSantos em seu artigo “Para cada Forma deDominação a Utopia que Merece”, in Arqui-

tetura Revista, 3, (1985-86, p. 29):

“[...] A Europa tomava conhecimento dametade da Terra que ignorava e se dedica-va a virar pelo avesso as suas própriasidéias. O verdadeiro mundo novo estavaem parte alguma, e onde quer que se en-contrassem aqueles ocidentais quereformulavam as suas cabeças. [...] O paísque [Morus] inventou, a ilha da Utopia,era exatamente esta terra do lugar nenhum,um círculo sólido dentro do círculo ilimi-tado do oceano que, por sua vez, continhadentro um golfo, um novo círculo de água.No meio destes encaixes, que retomavame sublinhavam a idéia da centralidade,havia uma capital, Amaurotum, a cidadedos sonhos e das nuvens”.

Outros documentos cartográficos da Baíade Guanabara do século XVI e XVII levanta-dos apontam igualmente para a idéia de regis-tro objetivo e objetivação do sonho de orga-nização social e territorial em seu conjunto.O mapa “La France Antartique” (1557-58),incluído na segunda edição da obra de Jeande Léry, Histoire d’un Voyage Fait en la Terredu Brésil, Autrement Dite Amerique (1580)(Léry, 1960, p. 80), mostra o Rio de Guanabaraou o Rio de Janeiro e os principais acidentesgeográficos da região circundando o podercentralizado na fortaleza-ilha de Villegagnon,em torno da qual giram os aldeamentos indí-genas. A carta “Isle et Fort des François”,reproduzida em La CosmographieUniverselle d’André Thévet, Cosmographedu Roy (vol. 2, 1575, p. 908 – reproduçãooriginal Coleção Biblioteca Nacional), numarara visão panorâmica e perspectiva em defe-sa da unidade política, social e territorial daBaía de Guanabara, mostra-a como um anfi-teatro na cena do ataque português ao forteColigny na ilha de Villegagnon em 1560, quedestrói a unidade política, social e territorialda sonhada capital da França Antártica(Barreiros, 1965, p. 7). A carta holandesa “Riode Janeiro”, publicada no Reys-bock, emAmsterdam, 1624 (Coaracy, 1965, p. XV),mostra a cidade e a baía protegidas por umbem aparelhado sistema de fortificações,desestimulador de novas investidas no seu

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hidrográfica que circunda a baía, o que vemconsolidar a vocação comercial da cidade doRio de Janeiro como principal porto do país etambém o mais vigiado.

As primeiras vistas e plantas de situação,que em finais do século XVII começam aaparecer, denotam já um enfoque parcial dorecôncavo, o recorte da costa leste, que so-mente considera a zona urbana propriamentedita, conforme podemos constatar numa raravista de 1695, intitulada “St. Sebastien, VilleEpiscopale du Brésil”, executada por FrançoisFroger em Relation d’un Voyage Fait en 1695,1696, 1697, aux Côtes d’Afrique, Detrois deMagellan, Brésil et Cayenne..., 1698 (Ferrez,1963, p. 5) na qual vemos principalmentereproduzidas a exterioridade e objetividadedos mapas. Mostra que a cidade por essa oca-sião ocupara a várzea, mas ainda tinha comolimite e principal eixo de referência o tripé dedominação religiosa e militar, representadona monumentalidade dos fortes e dasedificações conventuais dos morros do Cas-telo, de Santo Antônio e de São Bento, emcontraste com a escala civil acanhada e aper-tada entre as montanhas e o mar.

A “Planta da Cidade de São Sebastião doRio de Janeiro com suas Fortificações”, feitaem 1713 pelo engenheiro militar francês JeanMassé (Serviço de Documentação Geral da

litoral. O mapa do cosmógrafo real JoãoTeixeira, “Capitania do Rio de Janeiro”, da-tado de 1631 (Mapas..., 1971, p. 36), repre-senta de modo dominante a idéia decentralidade da cidade do Rio de Janeiro emrelação à baía e ao conjunto do sistema defen-sivo e de produção econômica dos engenhose fazendas – junto ao leque de rios que neladeságuam. Do mesmo autor, o mapa “Apa-rência do Rio de Janeiro”, publicado em 1666no seu Livro [Atlas de 31 cartas] sobre TodaAcosta da Província de Santa Cruz (Serviçode Documentação Geral da Marinha), já dáuma idéia da expansão do povoamento dacidade, levando em conta igualmente a repre-sentação da unidade política (religiosa e mi-litar) e econômica.

O segundo momento de nossa análise daBaía de Guanabara como porto colonial, o doséculo XVIII à primeira década do século XIX,abrange um período marcado pela expansãomercantil e agrária do Rio de Janeiro, a partirdo ciclo do ouro que se abre para o Brasil coma descoberta dos minérios preciosos da regiãodas Gerais em 1695, quando o Caminho Novodas Minas, descendo a Serra do Mar, torna oporto da cidade o seu escoadouro natural. Estemovimento é responsável pelo desenvolvimen-to da rede urbana e pela circulação de produtoscoloniais, facilitada pela expressiva bacia

Jean Massé, “Planta

da Cidade de São

Sebastião do Rio

Janeiro com suas

Fortificações”(1713),

Serviço de

Documentação

Geral da Marinha

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Marinha) (Ilustração 3) dois anos após a sa-ída do invasor Duguay-Trouin – a primeiraem escala correta da cidade�–, a planta de1768, do engenheiro militar sueco JacquesFunck (Coleção Mapoteca do Exército), e ade 1769, feita pelo Sargento-mor portuguêsFrancisco João Roscio (Coleção Mapotecado Itamarati), apresentam o projeto de ummuro com baluartes fortificados, destinadosà defesa da cidade depois que esta teve suas“portas arrombadas”. Mostram, também, osavanços da cidade e seus subúrbios. Comobem diz Roberto Conduru em seu artigo “APólvora e o Nanquim” (1989, pp. 13-4) :

“O que mais se destaca nestes planos é aconfirmação de uma idéia de sistema de-fensivo para o Rio de Janeiro elaboradaprimeiramente por Massé, qual seja a dearticular o conjunto de fortificações eencerrar a cidade, seja por muro e/ou ca-nal. A contradição entre a intenção defechar a urbe e o constante crescimentoda mesma encontra-se explícita na formade representação utilizada pelos engenhei-ros: tanto a omissão das edificações ex-ternas ao limite proposto [...], como a pre-sença das mesmas [...] só ressaltam a opo-sição entre o gesto que almeja enclausurare a vocação expansiva da cidade [...]. ORio de Janeiro é ainda um lugar de guerra;mas não apenas este lugar. A cidade nãose molda somente a partir de sua funçãoportuária-estratégica, mas através dasuperposição e conexão de funções diver-sas e espaços respectivos”.

A coibição dos caminhos do ouro e a maiorproximidade da região sul do país, em litígiocom a Província de Buenos Aires pela colô-nia do Sacramento, levam, em 1763, a trans-ferência da capital do vice-reino de Salvadorpara o Rio de Janeiro. Em 1808 a corte aí seinstala, fugida da invasão napoleônica dePortugal. Constatam-se importantes mudan-ças na ocupação da orla da Baía de Guanabaranos seus núcleos urbanos e nos rurais, com ocrescente prestígio do poder laico e o gradualdeclínio das ordens monásticas. Afirma-se arepresentatividade do poder civil, público eprivado, expresso nas obras governamentais

de saneamento, abastecimento de água eembelezamento urbanos (aterrados de lagoasrasas e pestilentas, valas, aquedutos, fontes,chafarizes, praças e jardins), nas residênciasapalacetadas (Paço dos Governadores) e nasigrejas de Ordens Terceiras e de Irmandades,que se multiplicam e se espalham não só nazona urbana propriamente dita, mas em di-versos pontos do recôncavo. Ganham evidên-cia as vistas panorâmicas da cidade tomadasem perspectivas cenográficas, como a execu-tada em cerca de 1760, provavelmente pelomarechal-de-campo D. Miguel ÂngeloBlasco, a mando do governador Bobadella(Coleção Patrimônio do Exército – Ferrez,1963, pp. 28-9). Este importante documentomostra objetiva e detalhadamente a cidade deum novo ângulo; o ponto de vista é no sentidonorte-sul, precisamente da fortaleza da Ilhadas Cobras, fronteira ao mosteiro de SãoBento, em direção à entrada da barra. Comodiz Gilberto Ferrez, o governador “quis as-sim deixar para a posteridade uma visão pa-norâmica da cidade por ele transformada epara a qual tanto trabalhara” (p. 29). Outroexemplo é o “Prospecto da Cidade de SãoSebastião do Rio de Janeiro”, de Luis dosSantos Vilhena, executado em 1775 (Cole-ção Biblioteca Nacional), que representadetalhadamente a orla urbana e seus edifíci-os. No começo do século XIX há plantas doRio de Janeiro também para esses melhora-mentos urbanos, como a de J. C. Rivara, “Le-vantada por ordem de Sua Alteza Real, oPrincipe Regente Nosso Senhor, no ano de1808” (Coleção Mapoteca do Itamarati).

Fechando este segundo ciclo colonial, sur-gem as primeiras pinturas de paisagem da baíae da urbe, que já mostram a descoberta danatureza como um processo dessacralizado,passível de ser catalogada cientificamente e deser apreendida enquanto fenômeno estético.Os painéis elípticos do nativo mulato LeandroJoaquim (Ilustração 4) são exemplares desseprocesso. Pintados nos finais do século XVIIIcomo complemento ornamental dos pavilhõesdo terraço do Passeio Público, que descortinavaa entrada da Baía de Guanabara, os painéisrepresentam vistas da baía e cenas de costu-mes da vida econômica, das festas e do cotidi-ano carioca. Revelam ainda um ponto de vista

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que, em parte, rompe com a representaçãoobjetiva da baía. A construção pictórica é si-multaneamente planar e ciclorâmica, rebate asperspectivas, organizando a cena em faixashorizontais para o alto e para os lados, numgiro pela orla litorânea da cidade e da baía, queadmite um jogo de reciprocidades para alémdos seus limites urbanos, em zonas considera-das de romaria (as cercanias da igreja da Gló-ria em direção ao sul e a do Lazareto, no sen-tido norte) (Santos, 1994). A imagem de foraé deixada ver ao espectador como vigias deuma embarcação, na interioridade das paredescegas do pavilhão.

A BAÍA COMO PORTADO MUNDO (1808-1889)

A abertura dos portos às nações amigas,os movimentos de independência e de instau-ração do Império no Brasil (1822) e o desen-

volvimento de um novo ciclo econômico nopaís – o café – provocaram grande cresci-mento da região. Entretanto, se até então aBaía de Guanabara e seu recôncavo constitu-íam uma unidade, a criação do MunicípioNeutro, em 1834, e a nova configuração ad-ministrativa imperial – com a instituição dasprovíncias – levam a uma primeira fraturadessa integridade. A partir de então, veremostrês espaços diferenciados ganharem formadentro da baía de Guanabara: o primeiro cons-tituirá parte do litoral do Rio de Janeiro, oMunicípio Neutro, capital do país; o segun-do, parte do litoral de Niterói, capital da Pro-víncia do Rio de Janeiro; e um terceiro, sobrados outros dois, será visto de forma difusacomo o “fundo da baía”, o seu interior .

Este processo se radicalizará com a im-plantação da rede ferroviária, dando início àfragmentação e ao esvaziamento da baía en-quanto lugar da vida econômica e propician-

Leandro Joaquim,

“Pesca da Baleia”,

óleo sobre

painel(1784c.)

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do esse crescimento em outras regiões, agoraao longo do vale do rio Paraíba. Esta novalógica provoca a obsolescência do sistema decomunicação fluvial, que até então fora oprincipal responsável pelo dinamismo da Baíade Guanabara.

Pouco a pouco os espaços litorâneos dabaía são redefinidos, alternando suas funçõese usos: belas paisagens naturais (Paquetá, Ilhado Governador, Charitas), portadoras de umsentido bucólico, se confrontam com paisa-gens industriais emblemáticas do mundomoderno (Ponta de Areia, Saúde, Gamboa),com seus estaleiros, indústrias, vilas operári-as e postos de fiscalização da imigração. Alémdas plantas e vistas da totalidade da baía,surgem as que recortam o seu lado oriental,documentando os limites urbanos do novomunicípio – Niterói. As pinturas e gravurassobre o sítio expressam bem, ao longo de todoo século, enfoques diferenciados, mas queevidenciam um contorno mais romântico,ultrapassando a pura intenção de registro.

Num primeiro momento, principalmenteo que corresponde à chegada da Missão Fran-cesa ao Brasil e à fundação da Real Academiade Belas-Artes, ganham evidência as repre-sentações de paisagens naturais e urbanas,fatos históricos e cenas de costumes do Riode Janeiro, somando-se à intenção de fruiçãoestética as visões “pitoresca”, documental epropagandística. A cidade e sua naturezaaparecem, na maioria das vezes, bemdelineadas (predominando o desenho sobre acor), ora em recantos ora na visão totalizadorae distanciada das perspectivas panorâmicas,dos vol-d’oiseau, sempre com a Baía deGuanabara legitimando a contundente e exu-berante paisagem tropical e seus signos maisrepresentativos (na maioria das vezes, o Pãode Açúcar).

É grande o número de pintores viajantesque marcam em sua produção esse primeiroprocesso, tais como Richard Bates, Debret,Anderson, Ender, Bertichen, Cocholet, osTaunay (pai e filho), Chamberlain, MariaGraham, Arago, Desmond, Planitz, Rugendas,Vidal, Sunqua e Schimdt, entre outros. Naapreciação desses diferentes enfoques, res-saltamos aqui, de Jean Baptiste Debret, a cenahistórico-urbana “Desembarque da Princesa

Leopoldina” (1816 – Coleção Museu Nacio-nal de Belas-Artes) (Viagem Pitoresca e His-tórica... 1978, p. 338) e o “Panorama da Baíado Rio de Janeiro” (1831) (idem, ibidem, p.342); de Nicolas Antoine Taunay, as cenasurbanas “Morro de Santo Antônio” e “Largoda Carioca” (1816 – Coleção Biblioteca Na-cional – Diário do MNBA, 1993, pp. 14-5); deHenry Chamberlain, “Ilha de Boa Viagem emNiterói” (1822 – Lamego, 1964, p. 204); e deRugendas, “Vista do Rio de Janeiro” (c. de1827-1835 – Arte no Brasil, vol. I). Dentre osinúmeros estudos em forma reduzida dos gran-diosos “panoramas circulares do Rio de Ja-neiro”, ressaltamos o de Chamberlain (1818),o atribuído a Felix Emile Taunay (1822) – oprimeiro do Rio de Janeiro ampliado e expos-to na grande rotunda de Paris, em 1894 –, o deMaria Graham (1824), o de William JohnBurchell (1825), o de Emeric Essex Vidal(1828) (Rio Antigo. Pinturas e Pintores, 1990,pp. 44-5) e o de Sunqua (1830).

Neste embate entre fruição estética e do-cumentação, entre a natureza e o construído,entre sentimento e contemplação, é significa-tiva a exclamação de Debret:

“Que série de acontecimentos extraordi-nários se desenrolou diante de mim du-rante esses quinze anos! Que contrastescontínuos! Quantas coisas se opondo aohomem! E o homem se opondo às coisas!E apesar de tudo, e através de tudo isso,que rápida a arrancada na marcharegeneradora da civilização!”.

Dentro desta mesma linha de pensamen-to, é aqui oportuna a transcrição da análisecomparativa que Margareth Pereira faz dasduas telas de Taunay pai e do “Panorama doRio de Janeiro” registrado em 1822 porTaunay filho, em seu artigo “Romantismo eObjetividade: o Primeiro Panorama do Riode Janeiro” (inédito, p. 11):

“Embora de dimensões modestas e semformar, aparentemente, uma seqüência,estas telas [‘Morro de Santo Antônio’ e‘Largo da Carioca’] são marcadas pelomesmo tom romântico que impulsionou osurgimento das pinturas de panoramas.

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Ambas solicitam um olhar que percorren-do a cena mergulha numa atmosfera, numminuto preciso captado pelo pintor. Mo-mento ao mesmo tempo de ação e repou-so, momento de vida e contemplação dotempo: assim pintarão o Rio de Janeiro osTaunay, pai e filho. Enquadrando certasvistas sob uma luz difusa e nostálgica, pin-tará o pai suas pequenas telas. Totalmenteluminoso e cheio de promessas registrará,ao contrário, seu filho, a visão panorâmi-ca da cidade, anos mais tarde.[...] A reflexão sobre a história e o presen-te, a atualidade, está por exemplo em am-bos. A pintura de Taunay [pai], outrorapastoral, está aqui tensionada e a visão dacidade não é atravessada por nenhuma luzintemporal. Ao contrário. Da banalidadedas cenas de hoje colocadas em primeiroplano – frades que conversam, ou olhamo horizonte com lunetas, grupos de boisque atravessam a malha urbana – o pintorempurra o espectador, de plano em plano,para trás, buscando a história através dacidade colonial (nova aos seus olhos) econstruindo gradativamente uma visão do‘tempo passado’.O último plano é aquele onde, sem conso-lo, o espectador contempla a Baía deGuanabara. Nesta ‘retrospectiva’ é a na-tureza que vem ocupar o lugar do monu-mento [...] este acumular-se de ações hu-manas está sublinhado na visão do Pão deAçúcar ou a baía num céu permeado denuvens cinzas. [...] vemos que a ambiçãodos primeiros românticos em tornar a pin-tura, arte da presença, capaz de exprimira ausência, parece realizar-se. [...]Seis anos mais tarde, o panorama do Rio,embora contemplando a mesma cidade ebuscando esta mesma comunicabilidade,já perdeu o tom intimista e reflexivo deNicolas Taunay e reduzirá a cidade e na-tureza de estímulo a espetáculo. O proce-dimento seguido por Taunay-pai de orde-nação da cena por planos também se repe-te no panorama pintado pelo filho. A cons-trução formal parece ser, entretanto,‘prospectiva’. É como se saíssemos dofundo luminoso da baía e fôssemos con-duzidos gradualmente até o centro urba-

no – denso, povoado. Mais luminoso ain-da. Aqui e ali, pedaços de verde, mas sãoresíduos. A viagem chega até o presente –roupas apenas acabadas de lavar, frutosque pendem das árvores e no alto do morrodo Castelo a figura de Pedro I, já impera-dor, que se faz acompanhar, a cavalo, poruma comitiva.A cena é clara, a arquitetura mostra oscontornos bem desenhados, e as casas sãoapresentadas com seus telhados nivela-dos, ordenados, cercando os diversos ‘mo-numentos’. No fundo, a Baía de Guanabaraem sua versão radiosa. Tudo parece emequilíbrio e a única promessa de ação vemdos homens que estão na comitiva. A cenaé histórica e convida à reflexão, mas é emdireção ao futuro ‘a criar’ – à jovem naçãohá pouco independente – que o pintor bus-ca nos conduzir. Como em NicolasTaunay, natureza e cidade estão sujeitas àvontade e à ação dos indivíduos. ‘Da sub-jetividade do sentir à subjetividade doquerer’ esta parece ser, entretanto, a dife-rença destes desenhos [...]”.

A partir de meados do século XIX, esteembate se acentua através da sensibilidaderomântica, naturalista, realista,impressionista, etc., de artistas de diferentescorrentes estilísticas como Müller, Hale,Linde, Martinet, Monvoisin, Vinet,Hagedorn, Schmidt, Potemont, VictorMeirelles, Fachinetti, Tribolet, Grimm eCastagneto, entre outros. Em escala íntimaou grandiosa, em visão aproximada ou pa-norâmica, pinturas e gravuras se dedicam aoconfronto entre a natureza e o construído.Ora privilegiam o movimento deinteriorização do Rio de Janeiro, observan-do-se, nas representações, o construído emconstante evolução, numa preocupação emmostrar a cidade do Rio de Janeiro como aimagem de uma capital em franco processode modernização, tendo como cenografia arepresentação da natureza da Baía deGuanabara, como os “Estudos para o Panora-ma do Rio de Janeiro” de Victor Meirelles(1885-86 – Coleção Museu Nacional de Be-las-Artes) (Valladares, 1978, ests. 889, 890,891 e 892); ora há o equilíbrio entre a paisa-

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gem-natureza e a paisagem-construída, comoa “Vista de Pássaro da Cidade do Rio de Ja-neiro” de Emil Bauch (1873 – Coleção Mu-seu Castro Maia – idem, ibidem, ests. 847 a851). Ora o enfoque da natureza sobrepuja ourbano, conforme mostram Alfred Martinetem “Entre Botafogo e Flamengo” (Ilustração5), um dos quadros do seu “Panorama à vold’oiseau do Rio de Janeiro, tomado do Corco-vado” (Coleção Museu Castro Maia),Fachinetti na “Enseada de Botafogo e Praia daSaudade” (1868), Potemont em “Fundo da Baíade Guanabara”, e Castagneto na “Vista da Baíade Guanabara tomada de Paquetá” (1889). Navisualização desse universo, seja na clareza dalinha, no tumulto das massas, na vibração dacor, o que a arte do período oferece ao espec-tador é mais uma imagem de contemplação, deexterioridade da cidade, da baía e seu entorno,do que um sentido de integração àquela expe-riência estética, ainda que a situação deenvolvimento espacial dos panoramas ou a demediação entre pintura e natureza na visãoimpressionista de um Castagneto, por exem-plo, tenham tentado neutralizar a relação su-jeito-objeto da representação. Ao findar doséculo XIX, mantiveram-se, ainda que preca-riamente, os vínculos que fizeram da Baía deGuanabara a imagem-síntese do território de“Utopia”, de “lugar de recolhimento e prote-ção”, de “fonte prodigiosa de riquezas”, de“portal de entrada do mundo”, enfim, imagensonde arquitetura e paisagem aparecem forman-do um conjunto relativamente harmonioso.Essas imagens mostram-se, assim, suficientespara conferir unidade ao espaço, e, sobretudo,preservam ainda o sentido de unidade entreCultura e Natureza.

A BAÍA EM FRAGMENTOS (1889-1995)

A partir da Proclamação da República(1889) e do novo ciclo de urbanização do Riode Janeiro, marcado pelo período Passos (1902-06), as fraturas espaciais e sociais da Baía deGuanabara se acentuam e se sobrepõem. Jánão é mais possível proceder a recortes tempo-rais ou mesmo físicos definidos: a baía é ummosaico que espelha as descontínuas políticasadministrativas e sua incapacidade de

gerenciamento e de projeto para a área.Buscando superar os obstáculos impos-

tos pelo sítio natural, o Rio de Janeiro, a exem-plo do que se passa nas cidades modernas,deseja acumular energias para, em seguida,constituir uma dinâmica produtiva tal queassegure sua autonomia frente ao território.A urbe moderna, diz Argan, se quer funcio-

Alfred Martinet e

Franz Keller-Leuzinger,

trecho do “Panorama

do Rio de Janeiro

Tomado do

Corcovado”,

litogravura

colorida(1849),

Museus Castro

Maya, RJ

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nal. E para garantir “circularidade às funções”é executada uma série de obras para tornareficiente a estrutura urbana (Argan, 1984, pp.329-38). Melhorias, reformas, projetos, pla-nos, tais são as iniciativas dos poderes públi-cos para orientar o desenvolvimento da cida-de, mas que no exercício da municipalidadeem torno da Baía de Guanabara acabaram

redundando numa desorientação.O programa urbanístico (1902-06) de

Pereira Passos para o Rio de Janeiro constituio primeiro grande plano para transformar oantigo núcleo urbano imperial em uma me-trópole digna de sua condição de capital daRepública. Inspirada na Paris de Haussmann,a Reforma Passos surge, sobretudo, como

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uma autêntica ação “civilizatória” sobre ostrópicos, capaz de abrir ao país as vias damodernidade.

Os princípios do projetar moderno, con-tudo, somente serão aplicados na década se-guinte, através das propostas urbanísticas deAlfred Agache e Le Corbusier. Menos queuma imagem idealizada do passado, os pla-nos de Agache e do arquiteto franco-suíçofundamentavam-se numa leitura científicada realidade e, cada qual a sua maneira, pro-jetam, no presente, a cidade do futuro. Divi-dido em funções distintas e dominando plas-ticamente a paisagem, o Rio moderno pro-curava afirmar dramaticamente suas prerro-gativas frente à Natureza. Como conseqüên-cia, o frágil equilíbrio mantido, até então,entre sítio geográfico monumental e o teci-do construído, cede espaço à ação desmedi-da da técnica que, em nome do Progresso,rasga o solo, perfura montanhas, arrasamorros, aterra partes da baía e do oceano.

Diante dessa intencionada auto-suficiên-cia, principalmente das cidades do Rio deJaneiro e de Niterói, a Baía de Guanabaratende a tornar-se um mero pano de fundoque, por oposição, serve apenas para ressal-tar a ação construtiva do homem.

Nesse contexto de grandes transforma-ções, os novos meios técnicos de reprodu-ção, surgidos a partir do século XIX, sãoinstrumentos mais adequados, em certo sen-tido, para registrar essa dinâmica tensa dasmetrópoles modernas. Se as fotos de MarcFerrez guardam ainda o ponto de vista ro-mântico dos panoramas (Ferrez, 1985, p.72), embora já anunciem a pulsação do te-cido urbano, os flagrantes de Augusto Malta(Coleção Arquivo da Cidade) insinuam, nasua multiplicidade e imediatez, a constitui-ção verdadeira de um olhar moderno. Emambos os casos, porém, a vista da baía porsi só é insuficiente para captar toda a com-plexidade do fenômeno urbano moderno.Uma metrópole como o Rio de Janeiro pas-sa a oferecer novos e inúmeros atrativos, ea lente dos fotógrafos revela-se o instru-mento mais apto para captar, com suficien-te agilidade e precisão, as metamorfosespor que passa a cidade.

Múltiplas e dispersas, as fotografias evi-

denciam um novo tipo de olhar que, funda-mentalmente, processa fragmentos de cena.A única possibilidade plausível de se operaruma síntese destes diversos fenômenos é aestruturação de um olhar construtivo que atu-alize e coordene os diversos pontos de vista.

Semelhante procedimento metodológico,como vimos anteriormente, é o do planejadormoderno que, inicialmente, decodifica a ci-dade, fracionando-a em setores distintos,para em seguida reagrupá-los a partir de umraciocínio funcional. A lógica de função,contudo, opera em favor da auto-suficiênciado sistema: cada componente tem seu senti-do determinado unicamente pelo fim quecumpre. Na lógica interna que move o siste-ma municipal em torno da Baía deGuanabara, políticas públicas e realidadessociais se confrontam: projetos industriaiscotejam mega-infra-estruturas urbanas, sematender às demandas socioculturais histori-camente reconhecíveis. Os condomíniosresidenciais, nascidos ainda dos sonhosbucólicos – de veraneio ou não – são cadavez mais residuais diante da proliferação dasfavelas e da ocupação desordenada da bai-xada. Ainda que guardem características dosonho idílico de um paraíso (Paquetá,Brocoió, etc.), estas paisagens vão perden-do sua expressão emblemática do lugar deconquista e realização da unidade da Baía deGuanabara.

Ainda segundo esse raciocínio, vemosque a avenida Beira-Mar, outrora “o maisbelo boulevard do mundo”, serve como viapreferencial para circulação rápida de veí-culos; o porto funciona apenas como pontode carga e descarga de mercadorias; o Ater-ro do Flamengo é, exclusivamente, lugar re-servado à circulação e ao lazer; a ponte Rio-Niterói e a Linha Vermelha são antes indíci-os de uma ligação mais direta para se chegarao outro lado e ao fundo da baía do que umanova tentativa de integração dos territóriosque a rodeiam, reunificando-a.

Os resquícios daquela antiga unidade for-mada entre o sítio natural e a cidade, quefizeram da Baía de Guanabara o símbolo mai-or dessa região geográfica, portanto, se des-vanecem. Prevalece, tão-somente, uma re-lação de causalidade, que põe em conexão

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apenas alguns pontos, mas que são insufici-entes para recompô-la como totalidade.

Confrontada por um tecido urbano empermanente expansão, fragmentada pela auto-suficiência dos municípios em suas laterais,abandonada nas áreas de pouca ocupação, aBaía de Guanabara, ainda que conserve belezae grandiosidade, resiste, hoje, ou na condiçãode um fato empírico ao cotidiano dos habitan-tes de suas margens, ou como imagem turísti-ca veiculada pelos meios de comunicação.

O projeto de despoluição da Baía deGuanabara surge, assim, como o gestoutópico mais contemporâneo no Rio deJaneiro. Purificar as águas é, também, ogesto simbólico de destruir a imagem de

“mar-de-lama” que persegue seu territó-rio; esforço tecnológico que deve ser crí-tico e não pode prescindir da reflexãohistórico-cultural. Pois intervir no pre-sente, planejar o futuro, exige não só quese absorva do passado tudo o que um diarepresentou conquistas, mas que se aten-te também para os descaminhos. Talvezsó a partir desta fusão de tempos, destafusão da contínua sabedoria dos homensna luta contra suas próprias cegueiras,possamos também traçar estratégias decomportamento capazes de rememorartoda a riqueza cultural que se concentrou– e ainda se concentra – nas margens des-te enorme espelho d’água.